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Lilia Moritz Schwarcz - Lima Barreto: triste visionário

Schwarcz, Lilia Moritz. - Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017

Fruto de exercício de pesquisa e de escrita igualmente densos, Lilia Moritz Schwarcz apresenta para o mercado literário nacional Lima Barreto: triste visionário (2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017). Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras., Companhia das Letras), contribuição esta que objetiva a tessitura de uma biografia não centrada apenas no sujeito social Lima Barreto como um homem do seu tempo. A releitura do pensamento do pré-modernista, ao mesmo tempo que atualiza a perspectiva de abordagem de brasilidade e das lacunas sociais denunciadas em seus textos, permite repensar esse Brasil marcado pela exclusão dos seus sujeitos, tanto o do século XIX quanto o do século XXI. Schwarcz reescreveu Lima Barreto sem esquecer o que dele foi trabalhado e analisado pela crítica literária anterior, principalmente por Francisco de Assis Barbosa, em A vida de Lima Barreto (1952BARBOSA, Francisco de Assis (1952). A vida de Lima Barreto. São Paulo: José Olympio.), obra com a qual constantemente estabelece diálogos enriquecedores.

Lima Barreto: triste visionário percorre as diferentes fases da vida de Barreto trazendo temáticas caras ao escritor: i) a educação como um mecanismo de autonomia para o pobre; ii) o emprego público como garantia de sobrevivência; iii) a solidariedade com os desamparados socialmente, que definiu positivamente sua literatura como arma de denúncia dos desmandos; iv) o boicote vivido pelos setores sociais de prestígio devido a não coadunar com o silenciamento das minorias; e v) a fragilização de Barreto em decorrência das internações manicomiais e do não avanço de políticas estatais em prol dos vulneráveis. Todavia, a relevância do exercício historiográfico-literário de Schwarcz não reside em retratar a vida e a obra de Barreto, como é comum a quaisquer biografias, mas, sim, pelo fato de, ao recontar acontecimentos e fatos, provocar o olhar da crítica para a necessidade de reler a contribuição barretiana a partir dos imbróglios da atualidade brasileira e da continuação dos dilemas pautados pelo escritor pré-modernista. Desse modo, a autora amplia o escopo de Barbosa (1952BARBOSA, Francisco de Assis (1952). A vida de Lima Barreto. São Paulo: José Olympio.), que destacou a importância do escritor pré-modernista para a literatura nacional. Acervos públicos, jornais, revistas literárias e imagens dão o mote e guiam o desenvolvimento do enredo proposto por Schwarcz, ressaltando uma pesquisa baseada em documentos que aferem a realidade dos fatos reconstruídos no exercício do fazimento da biografia.

Na obra Lima Barreto: triste visionário (2017), é perceptível uma análise da discussão de um projeto nacional, na perspectiva de promover a inclusão de sujeitos e lugares na temática central da brasilidade e suas multiplicidades. Com essa perspectiva, e observando a realidade sociopolítica do Brasil, é impossível não retomar as questões fortemente confrontadas por Barreto a respeito dessa problemática. Entretanto, além desse paralelo reforçado pelas linhas de Schwarcz (2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017). Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras.), ousamos trazer à baila outros dois pré-modernistas que estabeleceram interlocução com Lima Barreto e encorparam as temáticas que ele encampa: Euclides da Cunha e Monteiro Lobato. O trio aqui eleito para a problematização foi minucioso em pautar a construção de brasilidade e o reconhecimento de sujeitos e espaços marginalizados por meio de suas contribuições para o pensamento sobre a identidade nacional. Tal perspectiva de discussão a respeito dos aspectos genuinamente nacionais, como é sabido, começou a tomar forma já no Romantismo, mas custou a contemplar os socialmente invisíveis, tendo em vista a manutenção dos privilégios de uma elite minoritária quantitativamente, mas majoritária na representatividade nos escalões governamentais. De fato, a inclusão dos negros no cenário literário nacional principiou somente na terceira geração romântica. No entanto, essa inserção aconteceu de modo ínfimo, se comparada com os feitos das populações negras que diuturnamente contribuíam para a construção do país na época. A luta pela abolição era marca nesse momento literário, porém, quase sempre, a voz negra era representada, mas não autorizada a retratar suas angústias e marcas decorrentes desse apagamento e silenciamento social e cultural, resultante de uma condição de subalternidade.

Marcada nesse eixo temático da proposta de discussão de brasilidade, com a implementação da diversidade social existente no Brasil, em todos os seus espaços sociais e lapsos temporais, mas mais precisamente, no Rio de Janeiro do início do Século XX, foi construída a prosa de Barreto, que retrata, fielmente, a contradição entre o Brasil ficcional e o Brasil real. Ele foi um dos primeiros autores nacionais a atribuir protagonismo a um personagem negro, que, agora, detinha uma voz que, genuinamente, expressava suas necessidades, sua exclusão. A crítica literária atribui a Barreto um lugar de destaque perante os grandes e importantes escritores nacionais, principalmente devido a sua denúncia constante do quão danoso é o racismo anotado nessa sociedade que, depois de um longo processo histórico, largara a prática retrógrada da escravidão, mas carregava - e ainda carrega - marcas desse período. Contudo, a fala de Barreto não traduz exclusivamente a questão do racismo, contempla, de modo combativo, as mais vastas maneiras de excluir. A escravidão foi abolida em 1888, mediante a Lei Áurea, entretanto as práticas sociais de supressão do modus vivendi das comunidades negras continuavam fortes. Apesar de todo esse reconhecimento crítico da obra de Barreto, ainda existe uma lacuna a ser preenchida: o escancarar de uma literatura que dá espaço àqueles que outrora restavam marginalizados. No Brasil contemporâneo, marginalizar a diversidade significa continuar a apagar esse Brasil real e corroborar um processo de segregação que não contribui para o avanço dos reconhecimentos sociais e a efetivação dos direitos das minorias.

Contraditório em si mesmo, como bem destacou Silviano Santiago no comentário de orelha que acompanha a obra, a pesquisadora evidenciou o Lima Barreto em “carne e osso”. Essa missão resta definida desde o aposto eleito e que valora a condição de vida de Barreto - triste visionário -, que é bem visível ao longo da obra. Barreto é um sujeito repleto de dualidades, desde o eu, sua subjetividade, que sofre com as dificuldades e com os cerceios impostos pela sociedade, que divide brancos e negros, ricos e pobres, privilegiados e desprivilegiados, até sua contribuição literária, em que apresenta a esperança de construir um país justo, mesmo que imaginado com as mãos dos que não demonstravam nenhum compromisso com a nação e com o povo.

Considerando a questão da educação como um momento de extrema relevância para a família Barreto, verdadeiro amparo no romper dos grilhões geradores do preconceito e da segregação social, Schwarcz desenvolveu os dilemas vividos pelo autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) quanto à alteração na forma de governo do país cujo discurso abordava a busca pela modernização. Assim como Euclides da Cunha, Lima Barreto via no monarquismo o reflexo do atraso brasileiro movido, essencialmente, pela forma concentrada como a Coroa imperial destinava seu ato de governar. O Rio de Janeiro continuava sendo sua grande joia e merecia os melhores cuidados, disponibilização de estruturas grandiosas e marcas de desenvolvimento, mesmo que primitivo, enquanto o resto do país permanecia esquecido, apenas produzindo para dar sustentáculo a essa realidade opressora. A mudança de ventos e a adoção do republicanismo eram analisadas por ambos como o nascedouro de uma nova realidade nacional, amparada no espírito público e de inclusão dos marginalizados, pois, com a inclusão, seria possível reconstruir um país que evidenciasse sua marca de pluralidade de cores, de espaços e de realidades. Todavia, o que ocorreu não foi a transmutação do velho para o novo, mas um maquiar, um redesenhar do velho que continuava arraigado no modo de fazer política e de pensar a brasilidade entre aqueles que detinham a condição de colocar a nação na perspectiva de edificar em prol do bem público e da coletividade, mas que nada fazia e permitia que as práticas continuassem idênticas às de outrora: obsoletas e marcadas pelos privilégios de alguns poucos em detrimento do esforço de todos. Euclides da Cunha já denunciava seu distanciamento com o sistema republicano desde 1902, quando foi editado Os sertões e, ao condenar o modus operandi na Guerra de Canudos, sentenciava que “aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo” (Cunha, 2002CUNHA, Euclides da (2002). Os sertões. São Paulo: Nova Cultural., p. 9). Também em 1909, em À margem da história, Euclides da Cunha continuou sua crítica ao modelo “novo”, quando refletia a omissão estatal perante o povo que vivia na região amazônica e cobrava a adoção urgente de “medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos” (Cunha, 1999CUNHA, Euclides da (1999). À margem da história. São Paulo: Martins Fontes., p. 16).

A crítica a esse modelo republicano, que já se encontrava assinalado e eivado de máculas, seria perfeitamente construída por Barreto em Triste fim de Policarpo Quaresma, inicialmente publicado em folhetins e impresso em livro somente em 1915. O protagonista desse romance apresenta todos os anseios patriotas e de nacionalismo possíveis para um sujeito que verdadeiramente demonstra seu compromisso com a brasilidade e, ao mesmo tempo, aponta, com uma sátira voraz, a face desse Brasil real, mantenedor dos privilégios, que, na verborragia, exprime um sentimento de unidade, de avanço, de agregação. Porém, na prática, esses exercícios não passam de palavras e inexistem no mundo das ações. Esse sentimento de inclusão de espaços e personagens periféricos é muito bem contemplado a partir de quem era o Major Quaresma e qual era sua visão de país: “Quaresma era, antes de tudo, brasileiro. Não tinha predileção por esta ou aquela parte de seu país, tanto fazia assim que aquilo que o fazia vibrar de paixão [...] era tudo isso junto, fundido, reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro” (Barreto, 1997BARRETO, Lima (1997). Triste fim de Policarpo Quaresma: edição crítica. Organização de Antônio Houaiss e Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo. São Paulo: Scipione., p. 14). Nesse fragmento, é visível a proposta de integração do espaço nacional defendido pelo ativismo literário de Barreto: um país que não tem uma feição, mas um plural de realidades que, em tudo, representa o todo. Esse pensamento barretiano é que marcava sua oposição ao monarquismo e a preferência pelo republicanismo, apesar de não ter sido defendido por este último. A segregação continuava a passos largos, motivando o rompimento; e ele passou a clamar pela justiça social em sua construção literária.

Relegado ao escanteio social em virtude das críticas que fazia às elites da época e ao sistema midiático em vigor, por meio do seu primeiro romance, como ressalta Schwarcz (2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017). Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras.), restou a Barreto a alternativa de também se distanciar daqueles que não eram compromissados com a realidade nacional. Destarte, estava afastado daquele convívio social hipócrita por meio de duas grades: a da sociedade e a sua. Negro, suburbano e crítico do modelo vigente na época, defensor das classes mais pobres da sociedade, das mulheres, do meio ambiente, de toda e qualquer política que não encontrava sustentáculo na articulação pública que estava em vigor, Barreto utiliza sua voz excluída como matéria-prima para mostrar sua luta. Sua literatura, sua palavra, como demonstrado em Lima Barreto: triste visionário, é solidária com todos aqueles que estavam, de certo modo, descontentes com a realidade pela qual o país passava e que, no fim, ainda vislumbravam um amanhã de união e fortalecimento do povo. Ao longo de todo o retrato biográfico, Barreto é construído, a partir dos sentimentos e das vias de contraste, como um sujeito que detinha forte esperança no sucesso do Brasil como uma sociedade capaz de garantir direitos básicos a seus cidadãos. No entanto, em seus escritos - fossem crônicas, diários, contos ou romances -, era perceptível a gradativa desmotivação, como um jogo que estava sendo perdido, um reconhecimento de que o descaso com a nação e com os nacionais seria a triste sina dessa pátria que, em todos os aspectos, tinha condições de ser grande, harmônica e um espaço de boa convivência para os seus.

Em função dessa carência de pensar o Brasil para e com os brasileiros é que surge a necessidade de repensar a construção literária de Barreto e suas contribuições para o projeto literário nacional de emancipação, defesa do humanismo e inserção daqueles que estão à margem dessa realidade. O Brasil excludente do fim do século XIX e início do século XX em muito se aproxima deste do século XXI. Apesar do avanço histórico, da modernização e do acesso a alguns bens e serviços pela população em geral, o acesso a direitos básicos continua a ser privilégio de poucos, enquanto muitos restam apagados socialmente. O empenho de Barreto contra o estrangeirismo descontrolado, que resultou em sua recusa a integrar a revista Klaxon, continua como crítica ao Brasil atual, que nega sua pluralidade e se volta para as afirmações internacionais, sempre com uma proposta de implementar o outro no eu, como se a cultura fosse uma forma universal inalterável. Essa crítica à tentativa de importar uma realidade que não nos pertence é o que une as perspectivas de Lima Barreto e de Monteiro Lobato. Este último asseverou que “O Brasil de amanhã não se elabora, pois, aqui. Vem em películas de Los Angeles, enlatado como goiaba. E a dominação yankee vai se operando de maneira agradável, sem que o assimilado perceba” (Lobato, 2008LOBATO, Monteiro (2008). A lua córnea. In: LOBATO, Monteiro. A onda verde. São Paulo: Globo. p. 32-37., p. 37).

É necessário resgatar Barreto para que possamos compreender nossas amarras com o passado, ser capazes de libertar nossa história dos embaraços que impedem nosso desenvolvimento social e nosso progresso rumo ao futuro de congregação entre os plurais, compreendendo o programa de cópia do estrangeiro e o desprezo total das particularidades e das singularidades nacionais impostas pelas elites nacionais. É necessário resgatar Barreto para que possamos reconhecer as marcas de preconceito e de estabelecimento de diferenças que só nos diminuem e ampliam a força de quem deseja oprimir o povo. É necessário resgatar Barreto para que tomemos consciência de quem somos e porque estamos em determinado lugar, para saber que, com medidas que fomentem o respeito entre todos e o fortalecimento de uma nação verdadeiramente nacional, e não regional, podemos ser ainda mais fortes e entender que a união dos mais distintos grupos tem o condão de endossar a luta de todos.

Essa é uma possibilidade de sintetizar o grande e atual pensamento de Barreto: o desejo de ter uma nação participativa, com a construção sólida de um espaço patriótico para os brasileiros das mais distintas cores, classes sociais, credos, sexualidade e tantas outras classificações, com o fito de promover uma confluência entre os que apenas rogam por uma realidade mais humana e moralmente correta, mas que, ainda nos dias atuais, demonstram estar tão distantes de nós. Perpassa ainda o pensamento de Barreto sobre questões de proteção ao meio ambiente, que, afinal, também integra sua compreensão de brasilidade. Com essa marca de redescobertas, Lima Barreto: triste visionário (2017) é materializado e se mostra como fonte necessária para quem deseja compreender sua importância não apenas para a literatura nacional, mas também para a rediscussão do projeto de nação e de brasilidade, com o devido selo da inclusão dos diferentes. Os atos de silenciamento jamais calaram Lima Barreto durante seu exercício de denunciar as opressões, nem mesmo o silêncio do hospício foi capaz de tamanho feito. A voz desse personagem da literatura nacional ecoava e ainda ecoa nas letras nacionais, denunciando os males das múltiplas tiranias do cotidiano.

Referências

  • BARBOSA, Francisco de Assis (1952). A vida de Lima Barreto. São Paulo: José Olympio.
  • BARRETO, Lima (1997). Triste fim de Policarpo Quaresma: edição crítica. Organização de Antônio Houaiss e Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo. São Paulo: Scipione.
  • CUNHA, Euclides da (1999). À margem da história. São Paulo: Martins Fontes.
  • CUNHA, Euclides da (2002). Os sertões. São Paulo: Nova Cultural.
  • LOBATO, Monteiro (2008). A lua córnea. In: LOBATO, Monteiro. A onda verde. São Paulo: Globo. p. 32-37.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017). Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos é bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2017
  • Aceito
    30 Jan 2018
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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