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Literatura negro-brasileira e a pedagogia da convivência

Jordan B. Jones: Queria começar com algumas perguntas mais teóricas e depois falar sobre a sua poesia e os contos também. Então, queria perguntar primeiramente para você sobre essa questão de entender o outro. Qual é o papel ou a importância da literatura e da arte em fazer isso, em nos ajudar a entender um “outro”?

Cristiane Sobral: Ao elaborar personagens e procurar fazer isso de uma maneira não maniqueísta — essa é uma grande proposta tanto na literatura como no teatro — e também se apresentar enquanto espelho, a literatura e a arte colocam-se como uma grande plataforma de apresentação de subjetividades. Dessa maneira, propõem um espectro de reflexão para que outras humanidades possam se desenhar, tanto para o leitor como para o espectador. Eu gosto muito desta frase: “Representação estética da experiência humana”. Então, quando eu penso, por exemplo, em Shakespeare, pela variedade de peças e personagens, é um autor que considero muito referencial para pensar em quantas maneiras de existir ele propõe nas várias personagens que compôs. A gente consegue pensar sobre a humanidade, sobre as várias formas de subjetividades quando pensa no rol de personagens que ele apresenta ali, na sua obra. É por isso que é tão importante reivindicar modelos — além dos modelos únicos — de representação na literatura e na arte, para que outras subjetividades também possam ser apresentadas nesses lugares.

Jordan B. Jones: Para você, o que distingue a literatura dos outros meios — do teatro, do cinema? O que a literatura pode fazer que os outros meios não podem, e vice-versa?

Cristiane Sobral: Tem corpos diferentes de representação. A literatura permite certo exercício contemplativo e solitário, individual, enquanto o teatro já propõe outro espaço coletivo, empático e catártico. A literatura já sai um pouco desse lugar. As composições de histórias também podem acontecer de acordo com a perspectiva de cada leitor, enquanto, no teatro, a obra depende muito da leitura que cada encenador vai fazer. É por isso que cada espetáculo pode ter mil versões, dependendo do diretor, do encenador, da interpretação e tudo. Agora, para o leitor as obras são abertas e também se abrem em cada momento da vida. A gente pode ler a mesma obra a cada dez anos e encontrar nela outra versão de si.

O cinema, essa indústria cultural, acho que consegue manipular muito a nossa recepção do que pode ser uma obra cinematográfica. Com essa coisa da sala escura, de ter um ambiente aonde se vai para assistir a um filme. Então fica muito difícil você quebrar a expectativa do cinema, uma vez que são produzidas certas condições — até mesmo de uma atmosfera de um ar-condicionado, de pipoca, de encontros românticos — para poder ir ao cinema. Não foi dessa forma que o cinema foi criado, mas a indústria cultural apropriou-se dessa coisa maravilhosa que é o cinema, para conceber uma indústria que é muito hollywoodiana. Existem outras formas de fazer cinema, mas nós ficamos muito viciados nessa. Na academia, existem outras propostas de passar filmes em aulas e coisas que quebram muito a recepção. E os alunos resistem, por exemplo, quando o professor tenta passar um filme numa sala. Acham chato, acham que não funciona da mesma forma, porque a mente está muito condicionada a ver um filme daquela maneira: hollywoodiana, com um fim feliz, sem quebra de expectativa, com imagens que se desenrolam e tudo mais. E a televisão copiou muito esse modelo; viciou a nossa mente para ter aqueles quadros consecutivos. Acho que por isso a literatura e o teatro nunca vamos perder. Embora o cinema e a internet sejam outros meios mais refinados e com avanços tecnológicos que a princípio desafiaram essas outras estéticas, dizendo “teatro vai acabar”, existe uma perspectiva do efêmero que nenhuma dessas outras linguagens pode oferecer. E tem vários teóricos que vão confrontar isso. Essas urgências do efêmero são cada vez mais anticapitalistas, então ainda necessárias.

Jordan B. Jones: Agora, voltando, você falou um pouco da empatia que uma obra de arte pode gerar na mente do leitor. Como é que a arte e a literatura podem afetar a maneira como pensamos sobre direitos humanos, mesmo nesse seu trabalho com professores de ensino médio? Como é que você usa ou não usa a arte e a literatura para passar essa visão para eles?

Cristiane Sobral: Isso é tão complexo, porque para a gente falar de direitos humanos a gente tem de pensar em privilégios e em quem são os humanos, porque existem alguns grupos que têm seus direitos tão roubados em nossa sociedade (e isso, historicamente, a gente sempre teve) que as suas concepções de humanidade sempre foram aviltadas — ultrajadas e extirpadas —, e não se discutiam aí as suas humanidades. Parece que alguns sempre foram mais humanos que outros. Então, a ausência de direitos para alguns grupos, nos meandros de justiça, sempre foi uma coisa muito naturalizada. E os movimentos de direitos civis e dessa luta pela reparação, de direitos para alguns grupos historicamente desfavorecidos, ainda está muito aquém do que a gente precisa. O Brasil é um dos países com maior concentração de renda do mundo. Nós somos ainda muito brandos nas discussões que poderiam revelar o tanto que há desigualdade. Caminhar aqui pelas ruas dos Estados Unidos e perceber o tanto de prosperidade que tem nas cidades e ao mesmo tempo lembrar como são as nossas ruas lá no Brasil, o tanto de pobreza, de falta de saneamento básico, de falta de moradia — e lembrar que nós somos a mesma América, só que América do Norte e América do Sul. E que uma, a América do Sul, praticamente está em baixo, segurando a que está em cima. Essa imagem para mim é muito forte, assim, que a de baixo fica ali trabalhando, porque a força de trabalho é muito forte aqui na América do Norte.

Então, eu penso muito em direitos humanos desta maneira: essa lógica de direitos humanos já existe, só que alguns são mais humanizados do que outros. Alguns têm a primazia dos direitos, e sempre tiveram, e esses outros ainda não têm a legitimidade da reivindicação dos seus direitos. E isso ainda é muito jurássico, que um grupo não tenha quem lute pelos seus direitos. Entrar nas penitenciárias e perceber que existem mulheres encarceradas, que não têm visitas; outras que já cumpriram pena, mas não têm um advogado que possa legislar um documento para que saiam, porque elas já estão de fato com a sua pena encerrada — não teriam por que estarem lá. Mas em alguns casos mulheres preferem estar presas, porque as condições de pobreza que elas estariam enfrentando fora da prisão fazem com que prefiram estar lá, porque têm certeza de alimento, moradia. Isso é uma denúncia muito grave, né? Que alguém prefira estar na penitenciária do que voltar para o que seria de fato a prisão da sociedade, do lado de fora. É uma denúncia muito grave.

Eu digo, porque tive a oportunidade de fazer alguns trabalhos no sistema prisional. Então, isso me chocou muito, ver que era um lugar do qual muitas pessoas não queriam sair. A gente nunca imagina essa realidade. Encontravam-se, de uma maneira coletiva, bem resolvidas, que nunca tiveram aqui fora, por conta da violência doméstica, do abandono e da violência dos maridos. Lá elas estavam se sentindo protegidas.

Jordan B. Jones: Entendi. Queria agora perguntar sobre quem é que tem o direito de falar pelo outro — até que ponto eu posso escrever da perspectiva ou criar personagens que são diferentes em termos de raça, sexualidade etc. Se tem um limite, qual é esse limite do qual um(a) autor(a) não deve passar?

Cristiane Sobral: Eu sempre acho que não tem limite. Não tem limite, porque nós estamos tentando, pelo contrário, ampliar esses limites. O que nós queremos é mais espaço. Nós não estamos reivindicando cercas. Pelo contrário, nós estamos ampliando e quebrando muros. Para mim, e não só para mim, é muito cara a oportunidade de compor uma personagem não negra. Eu acho que, na literatura brasileira, como é rico pensar uma mulher negra escrevendo uma personagem que não é negra. Esse é um olhar que enriquece e complexifica a literatura brasileira. Porque já tivemos muitas personagens negras escritas por pessoas que não eram negras. Então, isso não teve limite. Acho que não tem que ter limite para a criação, dessa maneira. As obras são abertas e aí podem estar. Nós queremos ampliar os limites para que outras mulheres negras possam estar nesse espaço criativo. E quanto maior for essa penetração no sentido da convivência — eu falo muito assim dessa pedagogia da convivência, do tanto que é ruim a gente não poder conviver entre negros e brancos, do tanto que isso é nocivo para as nossas sociedades. Não sei se tem vantagens, mas eu vejo muitos prejuízos no fato da não convivência entre negros e brancos.

E a literatura… Acho que, à medida que alguém que não é negro lê um livro que fala de personagens negras, isso pode contribuir para uma pedagogia da convivência, sabe? De uma subjetividade entre um leitor e um livro que fala dessa subjetividade de pessoas negras. Do que é que acontece de fato nos corpos de mulheres negras que não está diretamente relacionado com questões de sexualização, que são as questões mais abordadas nos livros em que a gente encontra histórias de mulheres negras. Se existem outras questões que a literatura não contou. Então acho que as pessoas que lutam por transformações não têm de se privar de escrever sobre personagens negras. Se têm sensibilidade e interesse em falar sobre isso, falem. Tem uma preocupação de complexificar as personagens, de querer de fato chegar um pouco mais perto, para olhar melhor. Acho que todo mundo pode fazer isso. Não sei se seria tão difícil para mim; eu já escrevi personagens brancas — não sei se escrevi bem, mas tentei escrever.

Jordan B. Jones: Então estaria certo em dizer que você está propondo não que escritores brancos deixem de escrever personagens negras, ou não brancas, mas que haja mais espaço para todo mundo escrever todo mundo?

Cristiane Sobral: Sim, principalmente para pessoas negras. Porque as pessoas brancas já têm a primazia de tudo. Então não me espanta, com os acessos que pessoas brancas (ou não negras) tiveram a tudo no mundo, que elas tenham plenas condições para escrever sobre nós, porque os campos de pesquisa permitem isso. Então, os eugenistas conhecem muito mais sobre negros do que eu, assim [risada]. Então, não me espanta que eles possam escrever sobre negros. Isso para mim não seria nenhuma novidade, quando a gente fala que o racismo é um sistema perfeito, né? Então, tenho plena certeza de que eles conhecem muito sobre a negritude. Agora, que nós, que somos negros, possamos parar de limpar o chão e tenhamos condições de comer para poder sentar e escrever — isso é um luxo. Que a gente possa estar nas universidades e ter condições de escrever é uma reparação histórica, é um direito também.

Se isso puder acontecer, se puder formar uma geração de escritores na minha família, é um salto geracional. Historicamente, acho que contribui para a humanidade dizer que a gente conseguiu transpassar esse tempo em que pessoas negras só ocupavam x, y e z lugares. Isso não é uma melhoria para pessoas negras. Acho que isso é importante destacar. É uma melhoria para a nossa sociedade como um todo. Não pode ser destacado como um crescimento de populações negras; tem de ser destacado no espectro planetário, tem de ser um ajuste que beneficie a todos. Não pode ser visto como um caso de “olha, isso é uma coisa para negros”. Porque enquanto a gente estiver pensando assim não vai ser um bem para a humanidade.

Jordan B. Jones: Você falou agora há pouco de escrever personagens não negras e você espera que tenha feito isso bem. Como é que você pensa sobre essas personagens? Como é que você cria um outro? Você faz entrevista? Você pesquisa? Como é que você aborda essa questão de escrever uma pessoa que não compartilha a experiência de vida que você teve (ou tem)?

Cristiane Sobral: Tem um teórico do teatro russo chamado Constantin Stanislavski, e um dos métodos dele, que ele não gosta de chamar de método, porque ele diz assim: “Não, não é receita de bolo”, mas é um dos caras mais fantásticos que tem. Ele tem o que chama de “se mágico”. E ele diz assim: “E se eu fosse?”. Ele quer trabalhar com a imaginação criativa. Então, eu tenho uma personagem trans que se chama Maria Teresa num conto meu; o conto se chama “Maria Teresa”. Eu nunca imaginei nem planejei escrever. Geralmente minhas personagens são assim, eu não planejo ou decido: “Ah, vou escrever uma personagem trans. Tem uma causa pela qual vou escrever uma personagem trans”. Não foi assim. Para você ver como funciona, eu comecei a escrever o conto e a personagem no início do conto ia tomar banho. A cena inicial do conto era ela indo tomar banho. E, quando ela foi tomar banho, ela estava tomando banho de calcinha. E eu tenho essa coisa de ver a história e escrever sobre a história que eu vejo. A história vai se apresentando para mim. Então, eu vou escrevendo o que eu estou vendo. A minha imaginação é física, muitas vezes. Então eu estava vendo aquela mulher tomando banho de calcinha. E eu, o autor, vendo e fazendo perguntas. Eu me perguntei: “Por que uma mulher está tomando banho de calcinha?”. Pareceu-me uma coisa não comum. Eu perguntei: “Ué, mas por que ela está tomando banho de calcinha?”. E ela quis me responder: “Eu estou tomando banho de calcinha porque eu não me sinto à vontade com o meu pênis”.

E foi ali que eu fui descobrir que ela era uma mulher trans. Ela me disse, sabe? E eu fiquei tão feliz de ela ter compartilhado isso comigo, porque eu não imaginava que eu ia escrever uma personagem trans. Foi tão bonito como ela se apresentou para mim. E qual era a história? Era uma personagem trans que ia ser a primeira procuradora do estado do Rio de Janeiro a receber um prêmio numa grande cerimônia no Rio de Janeiro. E o conto é o momento em que ela vai tomar banho, ela vai se arrumar, vai entrar no carro com o chofer que ela tem, que é o mesmo chofer que a acompanha nas atividades que ela faz. E no banho e no caminho entre a casa dela e o evento, ela está relembrando o percurso da vida dela, as coisas que ela passou desde a escola, quando ela era um menino e tudo, e como ela nunca imaginou que ela poderia chegar àquele lugar onde ela chegou. Até o momento em que ela sobe no palco para fazer o discurso e o público fala: “Vamos receber agora Maria Teresa, a primeira procuradora do estado do Rio de Janeiro”, e coisas assim.

Então, eu fiquei tão emocionada quando tudo aconteceu com ela. Foi tão linda para mim a forma como… Não era uma pessoa trans; era alguém, era um ser humano que estava me contando como foi linda a trajetória de vida dela, a superação, as coisas que ela viveu. E ela fala da escola, quando ela foi agredida porque ela era diferente, o que ela teve de superar. E o motorista dela é um homem, e ela fala da relação que ela tem, que esse motorista, embora seja um homem, tem uma relação de cuidado com ela — e por isso ela o tem há muitos anos —, e ele coloca uma música no rádio porque sabe que ela está muito nervosa porque está indo falar em público. E ela olha a cidade pela janela e diz: “Nossa! É uma cidade tão linda, mas ao mesmo tempo uma cidade tão cruel”. Assim, ela ser trans também não é nada. Ela é uma pessoa, entende? Ela é trans, mas é mais do que isso; é alguém. Então, essa sensibilidade, para mim, é a coisa mais importante dela. E eu fiquei pensando assim, se eu tivesse planejado: “Ah, vou escrever uma personagem trans, vou ler tudo sobre a trans, como a trans é” e tal. Eu poderia ter todos os dados, mas talvez não encontraria a humanidade dela. Porque depois, quando eu mostrei para alguns amigos que são trans, todos acharam bonito, e outros que não são trans também acharam — porque não importa se ela é trans ou não. Tinha de ter uma verdade. Porque é isto que Stanislavski fala: “E se eu fosse?”. Qual é o elemento que não poderia faltar se eu fosse um homem branco? Seria essa verdade.

Independentemente de ser uma mulher negra ou um homem branco, de ser prostituta, teria um elemento que seria essa autenticidade, que não poderia faltar. Eu tenho um compromisso com a beleza nas minhas obras, mesmo com obras tristíssimas que eu escrevo. Tenho um compromisso com a beleza e com a dignidade. São duas coisas que me chamam muito em preservar nas obras. Às vezes acontecem coisas terríveis com as personagens — como naquela imagem de “O Grito”, aquela obra de arte —, tem coisas muito feias, mas ainda assim eu quero ter esse compromisso com a beleza e com a dignidade. Para mim isso é a estética. Tem personagens que morrem e tal, e é muito triste, você fala: “Ah, eu não queria isso assim”. Mas ainda tem esse compromisso com a beleza e com a dignidade. Mesmo que a humanidade seja terrível com aquela personagem.

É uma mulher trans, mas ela não pode ser uma aberração, não pode ser algo que ninguém poderia ser. Muito depois de ter escrito meu conto, vi um documentário sobre uma mulher trans, e ela fala assim: “Ah, eu sou uma mulher trans”. Ela era um homem e se tornou uma mulher trans. Aí você fala assim: “Agora ela é uma mulher trans e ela vai namorar homem”, porque essas são as caixinhas de gênero que a gente tem. E ela fala “Estou namorando uma mulher”. Aí você fala assim: “Caramba, mas ela era um homem, virou uma mulher trans e está namorando uma mulher? Então por que é que ela é mulher trans?”. E ela diz algo que para mim foi fantástico: “Olha, eu sou uma mulher trans. Para mim tanto faz, eu quero alguém que me ame; não importa se é homem, se é mulher, se é trans”. E ela foi falando aquilo e eu fiquei falando assim: “Gente, como nós somos estúpidos. Ela é trans e tudo, e a gente está aqui tentando encaixá-la em algum lugar dizendo: ‘Não, ela tem de namorar homem ou mulher’”. Então para mim ficou muito claro como nós somos estúpidos de tentar ficar botando numa caixa.

Jordan B. Jones: Queria perguntar agora sobre suas obras específicas. Eu li o Não vou mais lavar os pratos e também o seu conto “Cauterização”. Nessas duas obras você fala muito de negritude, do cabelo e tudo isso, e eu queria saber se você já viu sinais de que a sua literatura muda (ou mudou) a perspectiva de pessoas sobre a negritude, sejam pessoas negras, sejam pessoas brancas, se estimulou negros a terem orgulho de seu cabelo e de sua raça, ou se pessoas brancas ou não negras passaram a apreciar também esse cabelo “ruim”?

Cristiane Sobral: Isso é a coisa mais legal. Se eu estivesse triste, eu poderia ser feliz todos os dias, porque quando não tinha internet eu recebia cartas escritas. E ainda hoje, todo dia alguém me manda uma mensagem, ou no Facebook ou no e-mail, e me conta uma história pessoal que vai assim: “Eu não gostava de ser negra. E aí eu li o seu livro Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz. Eu usava o cabelo alisado e eu raspei a minha cabeça e agora uso meu cabelo natural”. As pessoas mandam-me fotos de antes e depois. Tem uma professora que hoje é premiada, que se chama Gina Vieira Pontes. Ela tinha um cabelo alisado muito comprido e ela conta que quando ela leu meu livro Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz ela começou a ter uma doença na cabeça. O cabelo começou a cair, e ela entendeu que é porque ela não estava dando conta mais daquele cabelo alisado. E aí ela arrancou todo aquele alisamento, que é o que tem em “Cauterização”, e hoje, se você olhar as fotos dela no Facebook, ela usa um cabelo black power — coisa mais linda o cabelo dela. E ela trabalha com uns projetos de negritude — ela é uma mulher maravilhosa. Assim, com só aquela mulher, eu já poderia me dar por feliz. Só com aquela única.

Nas escolas aonde eu vou, quando eu chego tem um monte de cartazes colados: “Viva a minha negritude”, e os meninos fazem música. Assim, é muito forte a quantidade de depoimentos. E tem senhoras mais velhas também. Tem pessoas brancas que dizem assim: “Eu não sou negra, mas eu quero comprar seu livro porque eu tenho uma sobrinha que é negra e eu acho que ela precisa ler seu livro”. “Eu não sou negra, mas eu amo os negros”. Então, em toda parte, a quantidade de depoimentos positivos é mil vezes maior do que os negativos. Mil vezes maior. Sempre eu falo assim: “Afeto cura, afeto cura, afeto cura”. Tem grupos de estudos que se reúnem para ler minhas obras. Tem alguns psicólogos que me chamam, pedem para eu ir conversar. Esses que me chamaram nas prisões foi porque eles entenderam que os textos estavam sendo bons para trabalhar em autoestima, para levantar a autoestima das mulheres que estavam encarceradas, que elas estavam ganhando uma resiliência.

Então, quando eu comecei a escrever, eu não fazia ideia desse lugar da minha literatura que seria um pouco medicinal. Porque eu sou uma mulher de terreiro, eu trabalho no terreiro. Esse é um lado que muita gente não sabe. E eu tenho muitos afilhados de santo. Então, nesse tempo que eu estou aqui, as pessoas estão me mandando muitas mensagens, porque eu sou médium vidente. Então, aos sábados eu vou lá e tem uma fila de pessoas que vêm para se consultar com as entidades que trabalham comigo. Isso é outra história, mas eu vejo que, mesmo não estando incorporada nem nada, na literatura isso vem também, porque os textos têm esse poder, de alguma forma tratar as pessoas. É nítido isso, pelas coisas que eu recebo. Nesse tour, eu já estou recebendo muitas cartas, das cidades onde eu passei. Já estou recebendo um monte de gente mandando coisas. É muito bonito.

Jordan B. Jones: Você falou agora há pouco sobre aquela personagem trans que você escreveu. Contrastando com o que você disse agora, você começou a escrever com esse propósito de trabalhar a autoestima negra? O que a leva a tratar dos assuntos que trata na sua obra? Se você, por um lado, não sabe o que vai escrever e você vê a história e escreve, e por outro lado você tem esse projeto de elevar a consciência negra, como é que você articula isso no processo de escrita?

Cristiane Sobral: A negritude para mim é tudo, mas eu me considero uma pessoa, sobretudo, humanista. Embora a negritude seja meu tema muito forte, tem muitas pessoas que não leram as minhas obras bem, porque eu tenho muitas obras que não falam de negritude. Muitas. Sou criada por uma mulher branca. Minha mãe adotiva era uma mulher branca. E as causas sociais eram muito fortes na vida da minha mãe. Então, eu sou essa pessoa, também de direitos humanos e tudo, por causa da minha mãe. Isso é pura minha mãe. Então, eu acredito que isso é muito forte para mim. As questões de negritude vêm junto. Por isso que essa coisa das causas trans, as causas espirituais, isso tudo vem junto comigo. Junto com o teatro, a música, as questões da negritude. Tem uma intenção muito clara minha de trabalhar com essas coisas. E eu acho que com o decorrer do tempo a minha tendência é ampliar esse escopo. Interessam-me muito as questões indígenas (hoje eu tenho pesquisado bastante sobre línguas indígenas e outras coisas), as questões de gênero, as questões de matrizes africanas do ponto de vista da religião. Ainda sempre nesse campo da negritude, mas não só. Isso vai ser uma marca minha sempre. Não tem como. Mas, se você ler as minhas obras, você vai ver que não é só. Não vou ficar só. Não me acomodo só aí.

Jordan B. Jones: Você se incomoda de ser classificada como escritora negra? Você prefere ser vista como escritora e ponto? Como é que funciona isso?

Cristiane Sobral: Não. Eu me considero uma escritora negra, negro-brasileira. Porque eu acho que, quando falo negra, literatura negro-brasileira, o Brasil integra a Europa e o indígena. Então, acho que negro-brasileira, quando bota o Brasil junto, aí entra tudo. Então, acho que, se fosse falar literatura negro-brasileira, acho que é a expressão que mais dá conta. Porque se fosse só negro não daria, porque não é só negro. É essa coisa do negro-brasileiro, porque o Brasil é uma sopa, né? Então, essa expressão afro não dá para mim, afrodescendente, afro-brasileira, não dá conta, eu acho. Porque eu acho que afrodescendente é todo mundo. Toda a humanidade é afrodescendente, sabe? Falar: “Ah, quem é afrodescendente?”. Você é afrodescendente. Todo mundo é afrodescendente. Agora negro, no sentido de “pertencimento negro”, sou, mas não sou só negra. Então negro-brasileira, porque negro e brasileiro é uma coisa que nós que somos brasileiros… É diferente de ser negro-estadunidense, é diferente de ser negro-africano, é diferente de ser negro-indiano. Negro-brasileiro, porque no brasileiro também não tem purismo. Não dá para a gente tirar o indígena. Não dá. Tenho poemas em que eu falo dessa raiz indígena, desse xamanismo, desse caboclismo, desse cafuzismo, desse tupi. Porque nós somos isso também. E isso é rico. Como é que eu vou falar: “Tem uma cabocla”? De repente, a cabocla era minha avó. Então, não posso dizer que sou só negra e apagar essa parte. Embora essa coisa de eu não conhecer minha família biológica é que me dá essa autorização para escolher as minhas raízes, também porque eu posso inventar algumas [risada]. Ao invés de perder, eu falo: “Opa, então vou inventar uma coisa aqui para mim”.

Jordan B. Jones: Nessa ideia de ser escritora negro-brasileira, você se considera parte de um movimento maior de escritores e escritoras? A gente falou um pouco disso, sobre as várias gerações de escritores negros no Brasil, mas você dialoga com esses autores no sentido de planejar o que vocês vão escrever? Como é que interagir com os outros de sua geração, de seu movimento, afeta como você vê, como você escreve?

Cristiane Sobral: Como linguagem, não, mas como convivência, sim. Eu sou muito próxima destes outros autores: Cuti, Lia Vieira, Eliana Alves Cruz, Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa. Sou muito ligada na coletividade. Então, eu gosto sempre de Fausto Antônio. Eu acho muito importante ler as outras pessoas. Sempre estou comprando livros deles e lendo coisas que foram lá para trás, buscando essas referências. Acho muito importante. Considero como família. Assim como eu fui uma menina que gostou de ler tudo de literatura brasileira, porque eu sou canônica também, gosto de ler tudo, literatura russa, como falei de Stanislavski; eu amo Brecht — tenho Brecht como um dos meus autores preferidos — e Nelson Rodrigues e tantos outros. Em relação à literatura negro-brasileira, também gosto muito de ler essa galera, e aí já faço minhas análises, de quem tem um estilo mais assim e mais assado, quem caminha mais por aí; tenho os meus preferidos. E tem os meus mentores também. Para muitas coisas, tem vários que me ajudaram a ler os meus livros antes de sair, a me ajudar a ser interlocutor. Agora estou com dois romances que estou escrevendo. Vão ser os meus primeiros romances, e está sendo a parte mais difícil da minha carreira, eu acho.

Jordan B. Jones: Porque tem uma expectativa já? Ou porque as pessoas conhecem sua obra e esperam algo de alta qualidade? Ou porque é outro gênero?

Cristiane Sobral: Em termos de publicação, está sendo mais fácil, porque tem a editora já esperando para publicar. Mas está sendo mais difícil porque eu, Cristiane, estou muito exigente. Eu nunca estive tão exigente para fazer. Eu não fui tão chata assim como estou sendo agora com esses. Então, eu estou soltando, assim, estou abraçando demais. Então, eu vou ter de tomar uma decisão. Não sei se a obra ficou em pé ainda para mim, ou ela está muito em cima de mim que eu ainda não consegui ver. Não decidi ainda qual que é. Eu estou me divertindo muito com a poesia, porque é a coisa que eu mais amo fazer, e fica saindo um poema toda hora, mas o que eu deveria parir mesmo…, sabe? Estou um pouco brava comigo, porque não era isso. E ao mesmo tempo vai ser uma coisa bem terrível — eu não queria que fosse, mas está sendo isso. Vai ser uma coisa terrível. Não vai ser bonitinho, porque as minhas coisas boas não são soft. Talvez eu quisesse ser um pouco mais soft para fazer esse romance, mas não vai dar. Eu também não posso controlar, falar: “Um filho feio!”. Mas se ele quer nascer assim, o que eu posso fazer? Estou tentando esconder [risada], mas acho que não vai dar, não.

Jordan B. Jones: Talvez esse seja o momento de perguntar qual seria o efeito ou quais seriam os efeitos ideais na mente de um(a) leitor(a) depois de ler suas obras (se tem um ideal)?

Cristiane Sobral: Acho que a pessoa tem de ficar meio zonza, tem de ficar meio chocada. Aquilo tem de mexer com a pessoa. Tem homens, por exemplo, que não gostam de poesia e que me escrevem falando assim: “Eu não gosto de poesia, mas aí eu li seu livro e gostei”. Aí eu fico feliz, porque eu falo: “Gente, um homem que não gosta de poesia…”. Não é cantada — são pessoas que falam que não gostam de ler poesia, que aquilo mexeu com elas de alguma forma. Então, de alguma forma, eu acho que meus poemas são para pessoas que gostam de poesia, mas também conseguem chamar outros que não têm costume de ler poesia. Isso é um efeito. O que é que pode causar, não sei. Acho que é físico. Como eu tenho essa coisa do teatro, acho que tento levar em algum lugar que seja um pouco físico, para mexer um pouco com a pessoa. Tem uns livros que você compra para enfeitar a sala, que você bota na mesa, e tem até umas medidas que você tira e tal. Eu nunca quis que meus livros fossem perfumaria. Sempre quis que fossem um pouco bombásticos, que causassem alguma reação — ou uma coisa boa, mas que tivessem algum impacto.

Jordan B. Jones: Minha última pergunta é sobre seus projetos futuros, se tem mais em mente ou se quer comentar sobre esses romances ou outra coisa em termos do conteúdo, da temática?

Cristiane Sobral: Eu tenho esses dois romances em construção. Tem dois, porque eu tenho a encomenda da editora, mas eu acabei tendo dois núcleos temáticos, duas tramas, e não tive como fazer uma só. Então, fui trabalhando nos dois núcleos temáticos aqui e ali e tive de deixar mesmo os dois. Um especialmente está mais para o fim. Eu tenho uma antologia de contos com autores da Guiné-Bissau que eu estou organizando. Eu estive lá ministrando uma oficina de escrita criativa no ano passado, e uma demanda do país era o fato de ter pouquíssimas publicações de contos e tudo, então consegui uma editora para fazer essa publicação. Já estou com esses textos, já está em fase de organização. Vai ser uma publicação muito importante, politicamente.

Jordan B. Jones: Vai sair lá primeiro, ou vai sair no Brasil?

Cristiane Sobral: Vai sair no Brasil primeiro, para depois sair lá. Tem também uma publicação que é com textos de autores negros do Brasil, e eu também estou organizando e fiz uma recolha a princípio geográfica, que tem autores e dramaturgos de todas as regiões do Brasil. Depois, distribuição de gênero e também de faixa etária. Fiquei mais ou menos um ano para conseguir fazer uma pesquisa assim que fosse equânime. Consegui também uma editora, já estou com o material. Mas, como 2019 foi um ano em que eu viajei muito, preciso agora parar para terminar de organizar esses dois livros, e as editoras já estão esperando. E vai envolver muita gente que está precisando fazer publicação. Minha intenção maior é oportunizar para essas pessoas que precisam botar o trabalho na rua. E eu estou com o espetáculo Esperando Zumbi, esse monólogo. O texto é de minha autoria e também estou em cena. Aí, eu volto para o Brasil agora, dia 30 de novembro [de 2019], já temos mais uma apresentação dele. É um espetáculo muito forte e muito bonito que fala dessa que seria a mulher de Zumbi dos Palmares. E eu espero agora, nesse primeiro semestre mesmo, poder terminar esses dois romances, que para mim não tenho essa aposta, mas para o mercado editorial romance é outro patamar da sua carreira, outro momento. E eu acho que tenho mais fôlego para contar essas histórias nesse lugar do romance. Então, espero conseguir ser um pouco mais generosa comigo no sentido de soltar essas obras.

Referências

  • SOBRAL, Cristiane (2009). Cauterização. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.)Cadernos negros: contos São Paulo: Quilombhoje. v. 32. p. 21-26.
  • SOBRAL, Cristiane (2010). Não vou mais lavar os pratos Brasília: Athalaia.
  • STANISLAVSKI, Constantin (2016). A preparação do actor Lisboa: Bibliotrónica Portuguesa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2023
  • Aceito
    20 Abr 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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