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Gih Trajano: quem saberia perder

Gih Trajano: quem saberia perder

Gih Trajano: quem saberia perder

“Anote ou grave: o que eu faço não está escrito em lugar nenhum.” Assim costumava apresentar-se a poeta, slamer e escritora Gisélia de Sá Trajano, que teve sua formação básica em poesia realizada nos saraus promovidos pelo grupo Poetas do Tietê no estabelecimento prisional em que se encontrava cumprindo pena na virada do século XX. Em espaço de exclusão radical, a autora, nascida em Suzano nos idos de 1977, filha de pais nordestinos migrantes, que pelejaram para criar os seis filhos que vingaram, teve pela primeira vez acesso a produções culturais e fez-se logo poeta. Na sequência, descobriu o slam e consagrou-se nesse formato de competição entre performances de poesia falada. A marca da oralidade não deixou de comparecer em sua primeira criação literária na modalidade escrita, a pequena narrativa Quem saberia perder, na qual se encontra ficcionalizada a experiência de Angélica, mulher negra e trabalhadora cuja vida vira de pernas para o ar quando ela comete um crime e é levada à prisão.

Esta que narra a história é e não é Gih Trajano, conforme ela própria enuncia na apresentação que consta na contracapa da primeira edição da obra: “Essa sou que fala de mim na terceira pessoa. Como se Gih ou Gisélia não fosse eu” (Trajano, 2021TRAJANO, Gih (2021). Quem saberia perder. São Paulo: Selin Trovoar., contracapa do livro). Como se a personagem Angélica também o fosse e não o fosse - poderíamos acrescentar, fazendo referência ao universo ficcional aqui em discussão. É fascinante o jogo de identidades espelhadas construído pela agora escritora Gih Trajano por meio da própria semelhança acústica entre os nomes da personagem e da autora da capa, e que complementa o paratexto no qual ela se apresenta ao leitor em perfil manchado pelo estigma do erro, mas igualmente marcado pela busca de um ajuste renovador em termos de conduta: “Das lições de honra que recebeu, foi a única [entre os filhos] que deu errado, mas a que até hoje luta para que tudo fique certo” (Trajano, 2021TRAJANO, Gih (2021). Quem saberia perder. São Paulo: Selin Trovoar., contracapa do livro).

É por meio da ordem da escrita que Gih procura corrigir a desordem assumida da própria vida, como costuma ocorrer nos escritos de si em suas variadas hibridações com a ficção. O psicanalista Contardo Calligaris comenta a afirmação de William Zinsser, segundo a qual “O escritor de um ‘memoir’ deve se tornar o ‘editor’ da sua própria vida!” (Zinsser apudCalligaris, 1998CALLIGARIS, Contardo (1998). Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 43-58. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2071 . Acesso em: 1º jun. 2022.
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, p. 51). ­Afirma ele que “o ‘editor’ não é o editor no sentido português da palavra; tampouco ele escreve; ele é aquele que rearranja ou melhora o que já é um texto” (Calligaris, 1998CALLIGARIS, Contardo (1998). Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 43-58. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2071 . Acesso em: 1º jun. 2022.
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, p. 51) - o texto de sua existência, poderíamos acrescentar. Ainda que seja um espaço de representação de erros, o espaço de escritura parece, dessa forma, constituir uma autoconstrução renovada.

O percurso enunciativo que constitui Quem saberia perder comporta o elemento coletivo como eixo primordial de significação, conforme afirma a própria autora em debate recente acerca de sua estreia na ficção brasileira contemporânea:

A Angélica é um mosaico de muitas mulheres com quem eu convivi dentro do sistema prisional, o crime dela não é parecido com o que eu cometi, as características dela não são as minhas. […] mas ela tem meu sobrenome de solteira, fiz questão que essa mulher trouxesse muito de mim (I Encontro Gênero e Encarceramento, 2022I ENCONTRO GÊNERO E ENCARCERAMENTO. Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=i-Tg0psQ9xo . Acesso em: 8 maio 2022.
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).

Compondo a personagem com base em si e outras, Gih tece uma narrativa muito afinada com tendência central da cultura contemporânea, na qual cartografias de trajetória individuais costumam trazer acentos coletivos, segundo entende Leonor Arfuch (2010ARFUCH, Leonor (2010). O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ.).

Fazendo suspense acerca do crime da protagonista, apenas revelado nas últimas páginas, a voz que narra acompanha de perto sua trajetória sem jamais encobrir a responsabilidade implicada nos atos que a levaram à carceragem: “Não havia nela inocência” (Trajano, 2021TRAJANO, Gih (2021). Quem saberia perder. São Paulo: Selin Trovoar., p. 10). A rotina de seis anos na prisão feminina vai se desdobrando a cada situação que é apresentadas ao leitor sob o foco reduzido da cela. Nesta, Angélica conhece o modo por meio do qual o poder é exercido e o amor vivenciado em uma penitenciária feminina, as rivalidades e as cumplicidades estabelecidas entre as mulheres em situação de prisão. As gírias da cadeia comparecem no texto, sendo explicadas ao leitor em notas de rodapé.

O título do livro foi extraído da canção homônima de Sá e Guarabyra, conforme declara a autora nos agradecimentos. Os versos da letra desdobram-se na estrutura interna do romance intitulando a sequência dos capítulos, nos quais, ao modo de um varal, são pendurados em ordem cronológica pequenos trechos da história da protagonista. Partem da conjuntura que antecedia em poucos dias seu casamento, passando por uma decepção crescente com o noivo, até sua chegada abrupta à penitenciária, sem que seja feita qualquer menção ao que ocorrera nas horas anteriores: “Angélica nunca soube dizer ao certo o que aconteceu. Tudo foi muito rápido e quando se deu conta estava sendo fotografada, examinada, olhou para seu pulso, doía muito, se percebeu algemada com um olho roxo e sangue na boca” (Trajano, 2021TRAJANO, Gih (2021). Quem saberia perder. São Paulo: Selin Trovoar., p. 10). A intertextualidade mostra-se, dessa forma, recurso essencial na composição do romance, abrindo sentidos por meio do entrelaçamento da história que está sendo contada com o texto poético dos reconhecidos autores da música popular brasileira.

A publicação da editora independente Selin Trovoar vem preencher uma lacuna importante na série literária sobre espaços de encarceramento, inaugurada por Dráuzio VarellaVARELLA, Dráuzio (1999). Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras. com a publicação de Estação Carandiru em 1999. A obra do médico narrou a vida no cárcere com base na própria experiência de convívio semanal com os homens em situação de prisão durante a vigência do projeto de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis desenvolvido por mais de dez anos no complexo prisional. Quem saberia perder, por sua vez, revela ao público pela via da ficção o encarceramento visto de dentro, na perspectiva de uma pessoa encarcerada, e ainda de uma inusual perspectiva de gênero.

O médico Varella já detivera sua atenção sobre esse universo em Prisioneiras (2017), narrativa na qual reconhecera que o presídio feminino é um universo à parte: “preciso esquecer tudo que aprendi nos meus dezessete anos em cadeias masculinas” (Varella, 2017VARELLA, Dráuzio (2017). Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras., p. 20). Na conjuntura dessa publicação, uma série de obras abordaria igualmente o espaço prisional feminino de uma perspectiva externa. Trata-se de Vida e leitura: narrativas na penitenciária feminina, da pedagoga Ana Arlinda de Oliveira, de 2014OLIVEIRA, Ana Arlinda (2014). Vida e leitura: narrativas na penitenciária feminina. Cuiabá: Ed. UFMT.; Cadeia, da advogada e cineasta Débora Diniz, de 2015DINIZ, Debora (2015). Cadeia: relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.; Presos que menstruam: a vida brutal das mulheres - tratadas como homens - nas prisões brasileiras, da jornalista Nana Queiroz, de 2015QUEIROZ, Nana (2015). Presos que menstruam: a vida brutal das mulheres - tratadas como homens - nas prisões brasileiras. Rio de Janeiro: Record.. Relevantes enquanto tema, as mulheres detidas tornaram-se objeto de muitas pesquisas e estudos, mas demoraria ainda para que assumissem uma voz e falassem elas próprias de sua condição no interior do sistema penitenciário.

Por isso a voz autoral de Gih é tão importante e Quem saberia perder, uma publicação digna de apreço. Não bastasse oferecer ao público uma enunciação feminina do cárcere, a venda do livro ainda rende fundos para a manutenção do projeto “Improvisada desde que nasci”, por meio do qual a cidadã Gisélia de Sá Trajano auxilia as mulheres egressas da prisão em seu dificílimo processo de ressocialização. Que se aplauda a iniciativa e se promova a venda da obra. O que o Estado brasileiro não faz, uma mulher, “improvisada desde que nasceu”, acaba por fazer.

REFERÊNCIAS

  • I ENCONTRO GÊNERO E ENCARCERAMENTO. Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=i-Tg0psQ9xo Acesso em: 8 maio 2022.
    » https://www.youtube.com/watch?v=i-Tg0psQ9xo
  • ARFUCH, Leonor (2010). O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ.
  • CALLIGARIS, Contardo (1998). Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 43-58. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2071 Acesso em: 1º jun. 2022.
    » https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2071
  • DINIZ, Debora (2015). Cadeia: relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • OLIVEIRA, Ana Arlinda (2014). Vida e leitura: narrativas na penitenciária feminina. Cuiabá: Ed. UFMT.
  • QUEIROZ, Nana (2015). Presos que menstruam: a vida brutal das mulheres - tratadas como homens - nas prisões brasileiras. Rio de Janeiro: Record.
  • TRAJANO, Gih (2021). Quem saberia perder São Paulo: Selin Trovoar.
  • VARELLA, Dráuzio (1999). Estação Carandiru São Paulo: Companhia das Letras.
  • VARELLA, Dráuzio (2017). Prisioneiras São Paulo: Companhia das Letras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Aceito
    28 Mar 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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