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Resenha

Perrone-Moisés, Leyla. - Mutações da literatura no século XXI São Paulo: Companhia das Letras, 2016

O trabalho crítico da síntese, pressuposto de toda avaliação panorâmica da produção literária de um período, é um gesto que contém a certeza da polêmica. Por isso, alguns dos recursos retóricos inescapáveis desse subgênero da crítica são a justificação e o reconhecimento antecipado das insuficiências sabidas ou não por seus autores. Debruçar-se sobre a produção literária de uma, duas ou três décadas é já contar com o protesto diante de esquecimentos, enganos e do mal explicado. Quando a síntese se volta para a literatura contemporânea, o empreendimento é quase quixotesco, pois moverá agentes e disputas prementes do campo literário.

Talvez por essas razões o primeiro impulso é ler Mutações da literatura no século XXI com a predisposição ao elogio ou ao desagravo, uma vez que a autora apenas reitera seu lugar teórico e político, elegendo o que julga relevante. Leyla Perrone-Moisés faz uma análise da produção literária “das modernas línguas ocidentais” (p. 13) e afirma que tratará do que considera a “alta literatura”, mas que prefere chamar “simplesmente de literatura” (p. 35). Ao reconhecer que o conceito de literatura é problemático, e que é preciso indicar a acepção com que vai trabalhar, vaticina:

A literatura de que aqui falamos é a que foi definida em meados do século XVIII, quando a palavra deixou de significar o conjunto da cultura letrada para designar uma atividade particular, uma prática de linguagem separada (e superior) das outras práticas verbais, uma arte e um meio de conhecimentos específicos (p. 19).

Literatura, nessa perspectiva, é o que se toma por literatura desde a modernidade, quando passou a ser a dimensão artística e autônoma da língua: uma vasta biblioteca dos grandes escritores da cultura ocidental. O cânone, sem mais. Entretanto, correlacionar o conceito de literatura ao cânone no atual momento político e cultural significa acenar para a controvérsia, quando não para a polarização política. Perrone-Moisés sabe disso, pois se contrapõe a uma parcela relevante do mundo acadêmico e a diversos grupos militantes da esquerda contemporânea.

Reafirmar os valores e os nomes do cânone é situar-se no debate das letras a partir de um posição problemática, uma vez que escapa a certo consenso de que a arte literária deve ser democratizada tanto no consumo quanto na produção. Para a autora, os apelos por essa democratização na verdade são fruto de uma geração para a qual “a globalização econômica não resolveu os problemas nacionais em termos gerais e igualitários, e o multiculturalismo se transformou em enfrentamento de particularismos” (p. 40). A essa paisagem social Perrone-Moisés chama de “o pós-moderno”, “nosso desastroso período histórico” (p. 41). O multiculturalismo seria antes um efeito colateral das contradições da globalização que uma reivindicação às injustiças do nacionalismo e da “ideologia economicista”.

Essas avaliações estão na base dos problemas que Perrone-Moisés aponta no meio literário de hoje, e seriam determinantes para a falta de importância atribuída à literatura nos currículos escolares. Segundo a autora, o que resultou desse quadro “foi a ‘balcanização’ dos estudos literários, sua submissão dos mesmos aos mal definidos ‘estudos culturais’, supostamente interdisciplinares, mas na verdade superficialmente informados pelas ciências humanas, até a condenação e o abandono puro e simples do ‘literário’” (p. 73). O fundo do argumento, seu pressuposto e orientação, surge límpido como um cristal: o problema é desviar-se do “literário”, da coisa em si.

Assim, a justificação política dos posicionamentos de Perrone-Moisés correm em duas direções complementares: i) relativizar seu conservadorismo e elitismo evidentes; ii) reiterar o caráter democrático da defesa da literatura per se. O conservadorismo seria “uma atitude inerente aos conceitos de cultura, de arte e de educação”, uma vez que “em termos culturais, conservar não é regredir, mas é uma atitude política, porque concerne à sociedade como um todo”. Quanto ao elitismo, “trata-se de uma seleção visando a preservar o melhor do que já foi feito até hoje, e de uma resistência ao tsunami da indústria cultural” (p. 33).

Perrone-Moisés contesta o princípio pedagógico de Gilberto Freyre, para quem se deve considerar a realidade dos educandos. Segundo a autora, essa prática manteria a injustiça social, uma vez que “oferecer ao aluno apenas aquilo que já consta em seu repertório é subestimar sua capacidade de ampliar suas conhecimentos e privá-lo de um bem que ele tem direito” (p. 81). Ela reitera que a escolha das obras deveria ser feita não em função de questões contingenciais, mas por suas qualidades intrínsecas, as quais, por sua vez, não estão nos temas, mas na forma. Com isso, conclui que a defesa do cânone e de certo elitismo seriam, ao contrário do que parece, o caminho para a efetiva democratização, visto que o “melhor do que já foi feito” deve ser preservado e amplamente conhecido por todas as classes e grupos sociais.

Mutações da literatura no século XXI divide-se em duas partes. Na primeira, “Mutações literárias e culturais”, de que tratamos até agora, estão explicitados os pressupostos teóricos-ideológicos de sua abordagem, assim como as justificações de toda ordem. Na segunda parte, “A narrativa contemporânea”, os ensaios-capítulos seguem como uma apresentação dos autores contemporâneos a partir de problemas ou características comuns às obras: “Metaficção e intertextualidade”, “A autoficção e os limites do eu”, “A ficção distópica” etc. No primeiro desses ensaios, “A nova teoria do romance”, não há uma teorização de fato, como o título sugere, mas uma compilação das características e funções da literatura segundo os escritores.

Depois de esboçar as contribuições de Lukács e Adorno em aspectos relativos ao romance (esquecendo-se ou preterindo Bakhtin), Perrone-Moisés passa a apresentar a reflexão dos próprios escritores sobre seu ofício, e vê nisso “uma característica dessa nova fase do gênero” (p. 90), alegação bastante contestável enquanto fenômeno marcadamente atual. A questão central aventada pela obra desde o título, “as mutações da literatura”, no caso, do romance contemporâneo, surge sobremaneira vinculada à trajetória de alguns escritores. Assim, quando lhes atribui a “nova teoria do romance”, a autora evidencia a maior fragilidade de sua abordagem: a falta de aprofundamento ou mesmo de uma especulação teórica mais robusta.

O impulso inicial dos ensaios é a divulgada morte da literatura. O ponto de partida é que, apesar das ameaças, a literatura segue viva e com episódios de sucesso mercadológico, inclusive entre o que a autora considera a verdadeira literatura. Citando o formalista Iouri Tynianov, para quem “toda definição de literatura que busque seus traços essenciais se choca com o ‘fato literário vivo’” (p. 28), Perrone-Moisés reconhece que é necessário encarar as “mutações” a partir de uma postura teórica capaz de lidar com esse objeto instável, escorregadio. O que se segue, porém, é o conservadorismo metodológico, de dicção humanista.

Não é desprovido de razão argumentar que muitas abordagens dos estudos culturais são de fato mal informadas de suas transversalidades teóricas com as humanidades, e que há leituras de obras mais ou menos deterministas. Os exemplos mais caricatos, contudo, certamente não representam o conjunto ou mesmo a relevância dessa corrente para o pensamento estético e político. Ademais, tão improdutivas quanto algumas simplificações dos estudos culturais têm sido as desqualificações irrefletidas e quase sempre autoritárias do “politicamente correto”. De todo modo, a intenção aqui não é fazer uma defesa dos estudos culturais, mas atentar para o fato de que as posições de Perrone-Moisés são inadequadas diante da literatura produzida nas últimas décadas, inclusive para o recorte que ela propõe, com autores prestigiados das duas últimas décadas.

Em seu ensaio sobre o contemporâneo, Agamben (2009AGAMBEN, Giogio (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos.) atenta para o fato de que aqueles que estão bem acomodados em seu tempo não têm as melhores condições para enxergá-lo, de modo que uma melhor compreensão do presente advém de algum estranhamento frente a ele. Perrone-Moisés alardeia que não participa da voga dos estudos culturais, mas apresenta uma alternativa crítica “deslocada” em seu sentido menos fértil: o saudosismo e o comentário mal-humorado. Se não pretende “impor o cânone a ferro e fogo, como faz Bloom”, seu propósito ainda é “atrair novos leitores para a literatura ocidental” (p. 51). De fato, não se deve fugir da tradição, mas sob seu ponto de vista basta que a tradição seja passivamente acessada pelos leitores, como se as heranças e os termos para acessá-las não fossem objeto de disputa.

Além da acomodação política, outro problema dos ensaios de Mutações da literatura no século XXI está na indiferença ao debate teórico contemporâneo. A paisagem contemplada, como qualquer outra, exige maior reflexão tanto para a recusa quanto para a aceitação de alguns de seus conceitos e características. Um exemplo é a incipiente problematização do termo “autoficção”, que considera “uma bela invenção” (p. 209) e assume sem maiores explicações, a despeito de ser um dos traços mais transversais e desafiadores da produção literária recente.

Não por acaso críticos mais sensíveis, como a argentina Josefina Ludmer (2007LUDMER, Josefina (2007). Literaturas postautónomas. Ciberletras: Revista de crítica Literária e de Cultura, Bronx, v. 17, n. 2. On-line. Disponível em: Disponível em: http://www.lehman.cuny.edu/ciberletras/v17/ludmer.htm Acesso em: 20 fev. 2017.
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), especulam sobre uma era “pós-autonôma” da literatura, a qual dispensa abordagens unicamente formalistas ou focadas na busca do sentido político das representações e autorrepresentações ficcionais. Ludmer atenta para a necessidade de se compreender essas questões (e outras) a partir da ambiguidade que a introdução do elemento biográfico impõe ao leitor de romances. Pode-se ver nisso apenas a reverberação de Proust, porém esse eterno retorno aos clássicos, se compreendido como reconhecimento perpétuo de suas qualidades no devir histórico, torna dispensável a especulação teórica sobre as textualidades contemporâneas.

Não se trata de endossar ou não certas abordagens que circulam no ambiente acadêmico brasileiro e internacional, mas de responder ao “problema” da biografia. Quando não o faz, Perrone-Moisés se afasta de questões trazidas pela própria produção que julga “exigente”. É o caso de W. G. Sebald, que se vale da tensão biográfica e relativiza a cláusula pétrea que separa autor e narrador. Em outros termos, é o que ocorre com o brasileiro Ricardo Lísias e o best-seller norueguês Karl Ove Knausgard, também analisados no livro. Ainda que esses escritores invistam na espetacularização da intimidade “real”, tornando instável a recepção romanesca a princípio calcada na autonomia estética, ao fim e ao cabo, o que interessa para a autora é, sobretudo, o trabalho com a linguagem, afinal “o texto literário é linguagem submetida a uma forma, isto é, o texto literário é arte” (p. 210).

Assim, Leyla Perrone-Moisés adota uma perspectiva incapaz de olhar o contemporâneo considerando algumas de suas marcas. Ao pregar que os estudos literários devem ser prioritariamente atrelados ao legado dos melhores, questões teóricas e políticas candentes são neutralizadas em razão da “forma que transforma linguagem comum em literatura” (p. 212). Essa reverência aos modelos do cânone resulta na comparação caricata do crítico literário ao enólogo, alguém que, segundo Perrone-Moisés, tem o “gosto” apurado, que teve a “sorte” de ler bons livros, visto que “toda formação de gosto se faz por análise e comparação” (p. 63). Ao longo da história, contudo, muitas foram as transformações de água em vinho ou de vinho em água. Além disso, não só de vinho tem sido regada a conversa infinita dos clássicos.

A lição de Tynianov sobre a importância de reconhecer o “fato literário vivo” não é levada a cabo. Os ensaios de Mutações da literatura no século XXI se esmeram em apresentar um paradoxo: são mutações que resultam sempre no mesmo.

Referências

  • AGAMBEN, Giogio (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos.
  • LUDMER, Josefina (2007). Literaturas postautónomas. Ciberletras: Revista de crítica Literária e de Cultura, Bronx, v. 17, n. 2. On-line. Disponível em: Disponível em: http://www.lehman.cuny.edu/ciberletras/v17/ludmer.htm Acesso em: 20 fev. 2017.
    » http://www.lehman.cuny.edu/ciberletras/v17/ludmer.htm
  • MAINGUENEAU, Dominique (2006). Discurso literário. Tradução de A. Sobral. São Paulo: Contexto.
  • PERRONE-MOISÉS, Leyla (2016). Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2017
  • Aceito
    25 Mar 2017
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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