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Por uma pedagogia do arquivo: produção e disseminação do conhecimento na cultura digital 1 1- Este artigo foi elaborado por meio de recursos fornecidos pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Bolsa Produtividade em Pesquisa, proc. 309203/2021-0.

Resumo

Atualmente, o arquivo não mais se limita a um espaço físico controlado por quem detém a produção e a reprodução do conhecimento, pois se transforma numa espécie de impulso cultural, na medida em que as pessoas se arquivam por meio de um fluxo incessante de compartilhamento de informações nas redes sociais. Seguindo essa linha de raciocínio tem-se, como objetivo deste artigo, refletir sobre os pressupostos filosófico-educacionais da pedagogia do arquivo, na sociedade na qual o capitalismo de vigilância determina a digitalização ubíqua das relações humanas e, portanto, a produção das informações que serão, ou não, arquivadas e propagadas pela internet. Para tanto, metodologicamente optou-se pela análise de textos de pesquisadores e pesquisadoras, tais como Featherstone, Livingstone, Kellner e Share, Beer, Van Dijck, Poell, e Vall, Buckingham, Zuboff, Flynn e Manovich, cujos estudos focaram nas ressignificações do arquivar-se na sociedade contemporânea. Na sociedade da memória digital, na qual se torna possível a lembrança de tudo, novas formas de esquecimento são produzidas, na medida em que as informações compiladas são descontextualizadas a ponto de se transformarem em fake news. Diante desse cenário, conclui-se que se torna imperativa a contextualização histórica das informações digitalmente produzidas. Mais do que nunca, torna-se necessário recuperar e compreender as causas dos acontecimentos digitalmente disseminados, sobretudo com a intenção de se fomentar engajamentos morais afeitos ao ato de arquivar-se como experiência formativa aumentada na cultura digital.

Palavras-chave
Arquivo; Cultura digital; Formação; Pedagogia do arquivo; Semiformação

Abstract

Today, the archive is no longer limited to a physical space controlled by those who own the production and reproduction of knowledge, since it becomes a kind of cultural impulse, to the extent that people archive themselves by means of an incessant flow of information sharing in social media. Following this line of thought, it is the purpose of this article to reflect on the philosophical-educational presuppositions of the pedagogy of the archive, in the society in which surveillance capitalism determines the ubiquitous digitization of human relationships and, therefore, the production of the information that will (or will not) be archived and propagated on the Internet. To that end, the methodological approach that was chosen involved analyzing texts of researchers such as Featherstone, Livingstone, Kellner & Share, Beer, Van Dijck, Poell, De Vall, Buckingham, Zuboff, Flynn and Manofich, whose studies focused on resignifications of self-archiving in contemporary society. In the society of digital memory, in which it becomes possible to remember everything, new forms of forgetting are produced as compiled information is decontextualized to the point of becoming fake news. Given this scenario, it becomes imperative to conduct the historic contextualization of digitally produced information. More than ever, it becomes necessary to recover and understand the causes of events digitally disseminated, particularly in order to foment moral engagements aligned with the act of self-archiving as an augmented formation ( Bildung) experience in the digital culture.

Keywords
Archive; Digital culture; Formation; Pedagogy of the archive; Half-education

Introdução

Em tempos de hegemonia da cultura digital, uma questão se notabiliza cada vez mais: diante da produção e disseminação contínua de dados algoritmicamente obtidos, como é possível produzir, armazenar e disseminar conhecimento? Indubitavelmente, as premissas básicas dessa questão não são inéditas, haja vista a trajetória da acumulação e armazenamento do conhecimento produzido já na famosa biblioteca de Alexandria, idealizada pelo rei grego Ptolomeu no século III antes de Cristo. Não menos conhecido foi o início de sua destruição no ano de 48 a.C., por ordem de Júlio César, assim como os saques realizados no século II que, praticamente, arrasaram com seu acervo.

Outro momento marcante na história da destruição de acervos bibliotecários foi o ocorrido no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt am Main, Alemanha, cuja biblioteca e seus mais de 40.000 livros foram totalmente destruídos durante a ascensão nazista. Justamente tais perdas materiais irreparáveis contrastam com a produção, armazenamento e disseminação de dados nas chamadas “ nuvens” virtuais, os quais podem ser perpetuados ad infinitum sem que se tenha a preocupação de que irremediavelmente desapareçam, pois como que se libertam das limitações do espaço físico. Diante do quadro atual da produção, armazenamento e disseminação digital das informações, altera-se profundamente o liame espaço-temporal que faz com que elas possam ser relacionadas entre si com o intuito de que seja engendrado o próprio conhecimento. Por exemplo, quando espaços digitalizados, tais como os guichês de check in de empresas aéreas, se tornam off-line em decorrência de quaisquer problemas técnicos, eles como que deixam de existir fisicamente. Já quando pessoas em seus automóveis não estão mais conectadas, por meio de alguma falha do aplicativo Waze numa cidade do porte de São Paulo, muitas delas preferem estacionar seus veículos e esperar o retorno da conexão pela internet para que possam voltar a se localizar espacialmente. Ou seja, nesse caso, as ruas deixam de ser um não-lugar apenas quando são virtualmente conectadas, quando os códigos computacionais reconfiguram a própria relação com o espaço físico.

Nesse admirável novo mundo digital, o armazenamento das informações, por meio de arquivos virtuais, acarreta transformações profundas no processo formativo diante da conversão do arquivar como uma espécie de impulso cultural. Frente a essa observação, situa-se o objetivo deste artigo: refletir sobre os pressupostos filosófico-educacionais da pedagogia do arquivo, na sociedade na qual o capitalismo de vigilância determina a digitalização ubíqua das relações humanas e, portanto, a produção do conhecimento que será, ou não, armazenado e propagado. Metodologicamente, para a reflexão destes pressupostos, foram utilizados textos de pesquisadores e pesquisadoras, tais como Featherstone (2006)FEATHERSTONE, Mike. Archive. Theory, Culture & Society, London, v. 23, n. 2-3, p. 591-596, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0263276406023002106 Acesso em: 10 jun. 2018.
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, Livingstone (2010)LIVINGSTONE, Sonia. Media literacy and the challenge of new information and communication technologies. The Communicative Review, London, v. 7, n. 1, p. 3-14, 2010. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/10714420490280152 Acesso em: 25 nov. 2022.
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, Kellner & Share (2008)KELLNER, Douglas; SHARE, Jeff. Educação para a leitura crítica da mídia, democracia radical e a reconstrução da educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 29, p. 671-715, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v29n104/a0429104.pdf Acesso em: 24 jun. 2017.
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, Beer (2013)BEER, David. Popular culture and new media: the politics of circulation. New York: Palgrave Macmillan, 2013., Van Dijck, Poell & De Vall, (2018)VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; De WALL, Martijin. The plataforma society: public values in a connective world. New York: Oxford University Press, 2018., Buckingham (2019)BUCKINGHAM, David. The media education manifesto. Cambridge: Polity Press, 2019., Zuboff (2018ZUBOFF, Shoshana. Big other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-69., 2019)ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. London: Profile Books, 2019., Flynn (2020)FLYNN, Paul. Towards a pedagogy of archival engagement. Archives and Records, London, v. 41, n. 2, p. 105-108, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1080/23257962.2020.1758048 Acesso em: 22 jun. 2023.
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e Manovich (2020)MANOVICH, Lev. Cultural analytics. Cambridge; London: MIT Press, 2020., cujos estudos focaram nas ressignificações do arquivar-se na sociedade contemporânea.

Atualmente já é possível observar indícios de mudanças radicais na relação entre produção de saberes e práticas educacionais na sociedade na qual as vidas das pessoas cada vez mais se digitalizam, daí a relevância de se refletir sobre as bases filosófico-educacionais da pedagogia do arquivo. Nesse momento, é importante observar que a menção a uma pedagogia de engajamento arquivístico foi feita principalmente com os objetivos de tanto incentivar práticas de armazenamento e disseminação do conhecimento de forma mais sustentável, justamente por serem digitais, quanto de suscitar relações entre professores e alunos fundamentadas em interações mais frequentes por conta da produção de hipertextos ( Flynn, 2020FLYNN, Paul. Towards a pedagogy of archival engagement. Archives and Records, London, v. 41, n. 2, p. 105-108, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1080/23257962.2020.1758048 Acesso em: 22 jun. 2023.
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). Embora estes propósitos sejam importantes em relação à dimensão educacional, é preciso refletir sobre pressupostos filosófico-educacionais da chamada pedagogia do arquivo na sociedade na qual o ato de se arquivar transforma-se no impulso que consolida a nova ontologia da cultura digital: ser significa se arquivar e se propagar midiática e eletronicamente no espaço virtual.

O impulso de se arquivar virtualmente como garantia da existência física

Há um conto de Jorge Luís Borges (1899-1986) que pode ser lido como metáfora absolutamente adequada do significado de se armazenar e produzir dados na cultura digital, a saber: A biblioteca de Babel. Ao aludir à mítica torre, construída com o objetivo de alcançar o céu, e à reação divina de confundir os construtores ao lhes atribuir diferentes línguas, cujos respectivos vocabulários e gramáticas deveriam ser conservados pelos grupos espalhados pelo mundo, Borges concebe a existência de uma biblioteca, chamada universo, composta de “um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais”[...] De qualquer hexágono, veem-se andares inferiores e superiores: interminavelmente” ( Borges, 2021, p. 68BORGES, Jorge Luís. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.). Neste espaço infinito, agrupam-se volumes incomensuráveis de livros que não são repetidos e que podem ser lidos indistintamente em todos os idiomas, justamente porque eles são constituídos por elementos comuns a todos: o espaço, o ponto, a vírgula e as letras que compõem o alfabeto.

Além da caracterização do espaço bibliotecário infinito, também o tempo, um dos mistérios básicos da humanidade, segundo Borges, poderá ser esclarecido por meio de palavras. E mesmo se a linguagem dos filósofos não for apta para nominar definitivamente o significado do tempo, “a multiforme Biblioteca produzirá o idioma inaudito que for necessário e os vocabulários e gramáticas desse idioma” ( Borges, 2021, p. 74BORGES, Jorge Luís. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.). Ao escrever este conto admirável em 1941, Borges não poderia ter imaginado o tipo de transformação que viria a ter o nexo espaço-temporal na sociedade, cujas forças produtivas, notadamente as de ordem tecnológica, permitem fazer com que os objetos se comuniquem entre si a ponto de interpretar as informações compiladas e gerar novos dados em todas as áreas do conhecimento humano ( Koopman, 2019KOOPMAN, Colin. How we became our data: a genealogy of the informational person. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2019.).

Da mesma forma como a biblioteca infinita imaginada por Borges é habilitada a produzir um novo idioma para poder nominar as características do tempo, similarmente os objetos conectados pela “internet das coisas” ( internet of things - IoT) são capazes de intercambiar informações on-line de modo a fazer com que não somente os dados possam ser interpretados, como também se desenvolvam formas de predição de comportamentos, decorrentes do modo como as pessoas acessam, armazenam e disponibilizam seus dados pessoais todas as vezes que clicam as teclas de seus gadgets eletrônicos, sobretudo de seus aparelhos celulares ( Miorandi et al., 2012 MIORANDI, Daniele et al. Internet of Things: vision, applications and research challenges. Ad Hoc Networks, Amsterdam, n. 10, p.1497-1516, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.adhoc.2012.02.016 Acesso em 29 set. 2022.
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; Greengard, 2015GREENGARD, Samuel. The Internet of things. Cambridge: MIT Press, 2015., Schönberger; Cukier, 2017SCHÖNBERGER, Victor Mayer; CUKIER, Kenneth. Big data: the essential guide to work, life and learning in the age of insight. London: John Murray Press, 2017.).

Desde a mítica torre de Babel, cuja história foi narrada no Gênesis bíblico, até a criação da linguagem de marcação de texto ( HyperText Markup Language – HTML), a linguagem da web, que permite fazer com que praticamente todos os documentos virtuais possam ser lidos em qualquer computador e transmitidos pela internet, nota-se a presença da preocupação em fazer com que as informações obtidas no transcorrer das relações sociais possam ser, de alguma forma, compiladas e conservadas para o cumprimento dos mais variados objetivos. Justamente na preocupação de produção e conservação das informações que seriam transmutadas em conhecimento, se notabilizou a hegemonia de determinados grupos sociais sobre outros. Na antiga civilização assírio-babilônica, por exemplo, os sacerdotes eram identificados como os depositários das palavras, “[...] os conhecedores da técnica da leitura e da escrita, nas duas culturas e línguas que alimentavam a vida do país (o sumério: língua culta e de culto; o acádico: língua da vida cotidiana e da comunicação)” ( Cambi, 1999, p. 65CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999.).

No papel de depositários das palavras consideradas cultas ou vulgares, eram os sacerdotes que dominavam os códigos sociais nos quais se materializavam as relações de poder de um grupo sobre a maioria das pessoas. Nesse momento, é inevitável a lembrança das palavras de Derrida sobre a etimologia da palavra arquivo: Arkhê, que designa ao mesmo tempo começo e comando. Essa palavra coordena concomitantemente o início das coisas e “o princípio da lei ali onde os homens e os deuses comandam, ali onde se exerce a autoridade, a ordem social” ( Derrida, 2001, p. 11DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.).

O controle da produção e reprodução das informações também pode ser observado na Idade Média, sobretudo na figura dos monges copistas que decidiam, na reprodução dos textos filosóficos da Antiguidade greco-romana, quais deles teriam seus conteúdos fielmente reproduzidos e quais seriam adulterados de acordo com os interesses da Igreja Católica. Porém, com o advento da imprensa, criada por Johannes Gutenberg (1398-1468) em 1439, inicia-se o período revolucionário de produzir, reproduzir e armazenar informações que, séculos mais tarde, proporcionará a estruturação de um tipo de processo formativo que se consubstanciará, de forma inédita, com a possibilidade de universalização da condição de cidadania. Mas a vinculação entre a produção e armazenamento de informações, a formação ( Bildung) e a cidadania não ocorrerá de forma espontânea, como se fosse uma consequência histórica inevitável. Ela acontecerá na sociedade do Estado de direito burguês: o Estado no qual prevalece o anelo de que, apesar de ter de sublimar seus impulsos, ao viver numa coletividade em processo de esclarecimento ( Aufklärung), no dizer de Kant (2005)KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é esclarecimento. In: KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 63-72., o indivíduo moralmente formado se tornaria “livre e radicado em sua própria consciência” durante o convívio público ( Adorno, 2010, p. 13ADORNO, Theodor W. Teoria da semiformação. In: PUCCI, Bruno; ZUIN, Antônio; LASTÓRIA, Luiz (org.). Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2010. p. 7-41.).

É interessante observar a forma como Kant (2005)KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é esclarecimento. In: KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 63-72. soluciona a aparente aporia entre os usos privado e público da razão, no seu texto “Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento”, escrito no final do século XVIII: se, na condição particular de um padre, por exemplo, o indivíduo deve se submeter à ordem sequencial de uma missa, por outro lado, na condição de “indivíduo letrado”, de cidadão do mundo, ele não só pode como deve, se for o caso, objetar as regras às quais se subordina quando exerce sua função de padre em prol do aprimoramento da própria instituição religiosa. Para Kant, esse indivíduo age em desacordo com o dever de um cidadão se, como um homem instruído, não “expõe publicamente suas idéias contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições” ( Kant, 2005, p. 66KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é esclarecimento. In: KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 63-72.). Exatamente a publicização de tais ideias, feita pelo indivíduo letrado, foi destacada por Habermas (2014)HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014. da seguinte forma:

Aquele público que pode ser considerado o sujeito do Estado de direito burguês compreende também sua esfera como uma esfera pública nesse sentido estrito: em suas ponderações, antecipa, em princípio, o pertencimento de todos os seres humanos. O homem privado individual é também simplesmente ser humano, isto é, pessoa moral [...]. Entretanto, o público adquiriu sua forma muito bem determinada: é o público leitor burguês do século XVIII. Essa esfera pública continua literária mesmo quando assume funções políticas.

( Habermas, 2014, p. 232HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014.).

Na verdade, ser letrado e ser político, no sentido de ser interventor, se mesclam numa ontologia que referenda a condição social de que, cada vez mais, todas as relações sociais seriam determinadas pela internalização e reprodução da lógica do fetiche da mercadoria. É no nascedouro da indústria cultural do século XVIII que os chamados produtos culturais, vislumbrados nas publicações dos dramas pessoais na forma de livros e de cartas em jornais, que a esfera pública literária assume a função política de afirmação das relações de produção balizadas na defesa incondicional da propriedade privada. Na medida em que o modo de produção capitalista assume sua condição de hegemonia, diante da forma como se desenvolvem as relações entre suas forças produtivas e suas relações de produção, as próprias notícias se convertem em mercadorias: “A circulação de notícias não se desenvolve apenas vinculada às necessidades de circulação de mercadorias: as próprias notícias se transformam em mercadorias” ( Habermas, 2014, p. 126HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014.).

Noticiar-se, característica sine qua non da atual sociedade do espetáculo produtora da cultura digital, tem seu processo embrionário quando as forças produtivas permitem fazer com que, através de seu processo de reprodutibilidade técnica, o indivíduo materialize sua capacidade mnemônica a ponto de poder coletar-se por meio de arquivos físicos. De acordo com Freud (2010)FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização: novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010., com a câmera fotográfica, o ser humano “criou um instrumento que guarda as fugidias impressões visuais, o que o gramofone também faz com as igualmente transitórias impressões sonoras; no fundo, os dois são materializações da sua faculdade de lembrar, de sua memória” ( Freud, 2010FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização: novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 51). Nesse caso, a materialização da memória, por meio dos aparatos tecnológicos da câmera fotográfica e do gramofone, permitiu fazer com que as imagens e sons fugidios pudessem deixar de sê-lo e, portanto, culturalmente “permanecessem” nas formas de fotos e discos. Exatamente essa permanência possibilitou com que os registros mnemônicos visuais e auditivos fossem acumulados, de tal modo que, diante do processo de reprodutibilidade técnica, a própria função da arte se afastou gradativamente de seu momento ritualístico de culto e se tornou política.

Não foi fortuita a defesa de Walter Benjamin, já em meados da década de 1930, da necessidade de que o proletário pudesse ver e ser visto nos filmes como uma das condições de confirmação de suas identidades: individual e de classe. É por isso que, já nas primeiras décadas do século XX, esse pensador frankfurtiano asseverava que “o cinema se revela assim, também nesse ponto de vista, o objeto atualmente mais importante daquela ciência da percepção que os gregos chamam de estética” ( Benjamin, 2010BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2010., p. 209). Desta forma, saía literalmente de cena o valor de culto e começava a, paulatinamente, entrar em seu lugar o valor de exposição não somente da arte, mas, igualmente, da afirmação da “ontologia do ser” como expressão do “ser percebido” ( TÜRCKE, 2010TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Unicamp, 2010.). O “ser” significar “ser percebido” começa a se constituir ontologicamente quando a exposição espetacular de si passa a ser estimulada na cultura, cuja reprodutibilidade técnica faz com que ela própria se torne passível de ser acumulada por meio dos produtos fabricados pelo seu processo de industrialização. Quem percebeu esse movimento de forma patente foi Georg Simmel (1997)SIMMEL, Georg. The concept and tragedy of culture. In: FRISBY, David; FEATHERSTONE, Michael. Simmel on culture. London: Sage, 1997. p. 55-75. nas primeiras décadas do século XX:

Aqui emerge a condição problemática típica da modernidade: o sentimento de ser rodeado por um número imenso de elementos culturais, os quais não são sem sentido, e tampouco são profundamente significativos para o indivíduo; elementos que possuem uma qualidade arrebatadora como massa, na medida em que o indivíduo não pode assimilar interiormente todo objeto particular, mas também não pode simplesmente rejeitá-lo, dado o fato de que potencialmente este objeto pertence à esfera do seu desenvolvimento cultural. Este fato poderia ser caracterizado como o reverso exato do dito: nihil habentes, omni possidentes (nada temos, tudo possuímos) que caracterizou a pobreza ditosa dos primeiros franciscanos na sua liberação absoluta de todas as coisas que tenderiam a desviar a alma de seu caminho, de tal modo essas coisas a transformariam de forma indireta. Ao invés disso, numa cultura muito abundante e sobrecarregada, as pessoas fiam-se pelo dito: omnia habientes, nihil possidentes (tudo temos, nada possuímos),”

( Simmel, 1997SIMMEL, Georg. The concept and tragedy of culture. In: FRISBY, David; FEATHERSTONE, Michael. Simmel on culture. London: Sage, 1997. p. 55-75., p. 73).

A pauperização espiritual, que ocorre quando as pessoas não experimentam substancialmente os objetos no sentido de recrudescer sua postura ético-moral, se espraia numa cultura cuja abundância de produtos se atrela à promessa de que, por meio do consumo contínuo, será possível encontrar a felicidade plena aqui e agora. Ao refletir sobre o modo como a lógica do fetiche da mercadoria cultural penetra na esfera mais íntima do indivíduo, na sua alma, por assim dizer, Adorno (1986)ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.) Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986. p. 92-100. asseverou o seguinte “cada produto se apresenta como individual: a individualidade mesma contribui para o fortalecimento da ideologia, na medida em que desperta a ilusão de que o que é coisificado e mediatizado é um refúgio do imediatismo e da vida” ( Adorno, 1986ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.) Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986. p. 92-100., p. 94).

Nesse contexto da indústria cultural do século XX, os produtos que se apresentavam como afeitos às particularidades de cada indivíduo, mas que eram massificados e padronizados desde o momento de sua concepção, já demandavam tanto a classificação dos grupos de consumo, quanto o armazenamento constante, na retroalimentação da ilusão de que, finalmente, o prazer e a felicidade absolutos seriam obtidos por meio do consumo contumaz. Era preciso consumir e armazenar cada vez mais para poder sentir o alívio de ter de conviver continuamente com o próprio vazio. Mas esse pretenso arrefecimento da sensação visceral de privação, em meio à cultura sobrecarregada e abundante de objetos, no dizer de Simmel (1997)SIMMEL, Georg. The concept and tragedy of culture. In: FRISBY, David; FEATHERSTONE, Michael. Simmel on culture. London: Sage, 1997. p. 55-75., não pode ser comparado com a sensação de vazio na cultura cuja digitalização das vidas impinge a inevitabilidade de se arquivar como condição para a afirmação da própria existência física. É na sociedade da revolução microeletrônica que a necessidade de se arquivar e disponibilizar as informações nas redes sociais, seja de forma voluntária ou não, se converte num “poderoso impulso na cultura contemporânea” ( Featherstone, 2006FEATHERSTONE, Mike. Archive. Theory, Culture & Society, London, v. 23, n. 2-3, p. 591-596, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0263276406023002106 Acesso em: 10 jun. 2018.
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, p. 595). Consequentemente, a necessidade de se arquivar está reconfigurando os contornos identitários do indivíduo da seguinte maneira:

As vidas das pessoas passaram a ser vistas como singularidades. Elas são identificadas e individualizadas através de seus registros ou arquivos, os quais são armazenados em séries. Com efeito, arquivar-se se tornou uma nova forma de poder baseada não na ideologia do individualismo, mas sim na realidade da individuação, assim como populações inteiras cujos corpos e histórias de vida se tornam documentadas, diferenciadas e registradas em arquivos.

( FEATHERSTONE, 2006FEATHERSTONE, Mike. Archive. Theory, Culture & Society, London, v. 23, n. 2-3, p. 591-596, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0263276406023002106 Acesso em: 10 jun. 2018.
https://doi.org/10.1177/0263276406023002...
, p. 592).

Essa realidade da individuação, cujo desenho é cotidianamente delineado todas as vezes que clicamos quaisquer palavras nos mecanismos de busca das plataformas digitais, inclusive os erros, se afirma categoricamente num contexto social específico: o capitalismo de vigilância, no qual as informações são algoritmicamente coletadas, filtradas, armazenadas, classificadas e interpretadas. Ao invés da “massificação personalizada” da indústria cultural de meados do século passado, por meio da qual as pessoas eram agrupadas de acordo com seus respectivos perfis de consumidores nos mapas dos institutos de pesquisa ( Adorno; Horkheimer, 1986ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1986.), na atual sociedade dos big data, prepondera a chamada “personalização massificada”. Pois são os algoritmos que permitem fazer com que as idiossincrasias mais íntimas das pessoas sejam compiladas e armazenadas em gigantescos bancos de dados virtuais, de tal modo que os produtos sejam apresentados aos consumidores antes mesmo que eles e elas os procurem na internet.

Atualmente, prevalece a figura do Big Other, o grande outro, representado por uma arquitetura digital algorítmica que “registra, modifica e mercantiliza a experiência cotidiana desde o uso de um eletrodoméstico até seus próprios corpos, da comunicação ao pensamento, tudo com vista a estabelecer novos caminhos para a monetização e o lucro” ( Zuboff, 2018ZUBOFF, Shoshana. Big other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-69., p. 43-44). Como consequência desse processo, o Big Other “combina as funções do saber e do fazer para efetuar um meio penetrante e sem precedente de modificação comportamental” ( Zuboff, 2019ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. London: Profile Books, 2019., p. 376). Evidentemente, essa transformação comportamental, que recrudesce continuamente a ontologia da cultura digital de que ser significa ser midiática e eletronicamente percebido por meio dos arquivos digitais, ao amalgamar as funções do saber e do fazer, açula modificações decisivas na esfera formativa. E para que essas mudanças possam ser compreendidas, faz-se relevante a investigação sobre o modo como ser midiática e eletronicamente percebido se converte em ser percebido por meio do arquivar-se digital, fato esse que suscita a reflexão dos pressupostos filosófico-educacionais da pedagogia do arquivo.

A pedagogia do arquivo: pressupostos filosóficos-educacionais

Um dos textos mais conhecidos de Theodor W. Adorno (1903-1969), em relação à esfera educacional, intitula-se: “Teoria da semiformação”, concebido em 1959. Nele o pensador frankfurtiano apresenta suas reflexões sobre o modo como a formação ( Bildung) historicamente se converte na sua inimiga mortal: a semiformação ( Halbbildung). Ao invés da experiência formativa, que se fundamenta na reflexão contínua do indivíduo sobre o modo como sua identidade se consolida eticamente na relação espaço-temporal estabelecida com os outros e consigo, entra em cena a semiformação que se esteia num “estado informativo pontual, desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe que ficará borrado no próximo instante por outras informações” ( Adorno, 2010ADORNO, Theodor W. Teoria da semiformação. In: PUCCI, Bruno; ZUIN, Antônio; LASTÓRIA, Luiz (org.). Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2010. p. 7-41., p. 33).

Ao identificar a prevalência do estado informativo pontual, desconectado, intercambiável e efêmero como um dos pilares da semiformação no contexto da indústria cultural do final da década de 1950, talvez o próprio Adorno se surpreendesse com o modo como esse insight se revitalizou na sociedade da cultural digital, sob a predominância da produção e disseminação das fake news. É nessa sociedade, na qual tudo pode ser lembrado, que novas formas de esquecimento são desenvolvidas. A análise dessa contradição se respalda no fato de que se, na atualidade, é possível acessar informações em quaisquer espaços e tempos, exatamente as formas de acesso, exposição, disseminação e arquivamento de tais informações fazem com que elas tendencialmente se transformem em dados absolutos, em presentes perpétuos apartados das esquecidas mediações históricas que as engendraram. As notícias que forem mais exibidas e, portanto, acessadas, serão aquelas cujos algoritmos dos mecanismos de busca do Google, por exemplo, selecionarão e apresentarão ao internauta logo na sua primeira página na internet, haja vista que os algoritmos de tais mecanismos são capazes de “ajustar os parâmetros dos padrões, os quais podemos chamar de modelos – por meio de critérios de desempenho definidos em relação aos dados” ( Alpaydin, 2016ALPAYDIN, Ethem. Machine learning. Cambridge: Mit Press, 2016., p. 24, 25).

Consequentemente, quanto mais as notícias falsas forem acessadas e repostadas nas redes sociais, mais elas tenderão a ser consideradas como absolutas, como verdades inquestionáveis. É deste modo que a semiformação se revigora no contexto da indústria cultural hodierna. Pois os novos presentes algoritmicamente se perpetuam por meio do acesso e da repostagem de notícias que são consideradas como verdades inquestionáveis, mas que, na realidade, são de interesse de grupos extremamente poderosos e que, em certas ocasiões, se aliam a propostas fascistas de extrema-direita.

Porém, as chamadas novas estruturas de participação ( Beer, 2013BEER, David. Popular culture and new media: the politics of circulation. New York: Palgrave Macmillan, 2013.) não se limitam exclusivamente à produção e reprodução das fake news. Se os usuários da internet e de suas redes sociais são consumidores e produtores de notícias falsas, eles também podem fazer uso dos mesmos processos de acessar, filtrar, classificar, arquivar e interpretar as informações de acordo com seus respectivos contextos históricos. Para tanto, é necessário considerar o modo como a atual produção dos arquivos virtuais redimensiona a própria capacidade mnemônica, que é essencial para que haja o processo de conversão das informações que dialogam entre si em representações mentais duradouras e, portanto, conceitos.

De fato, o poder do ato de arquivar-se faculta nova forma à memória, sobretudo quando as biografias e a própria história “são contadas por meio de documentos que excluem ou incluem” ( Beer, 2013BEER, David. Popular culture and new media: the politics of circulation. New York: Palgrave Macmillan, 2013., p.47). Consequentemente, na sociedade do capitalismo de vigilância, as informações digitais mundialmente conectadas recrudescem majoritariamente seu valor na forma de commodities, ao passo que as “informações que não são conectadas e, portanto, não são de alguma forma arquivadas,”não se diferenciam das que são simplesmente esquecidas” ( Schönberger, 2009SCHÖNBERGER, Victor Mayer. Delete: the virtue of forgetting in the digit age. Princeton: Princeton University Press, 2009., p. 81).

É interessante observar as reações frente à overdose de informações que são cotidianamente disponibilizadas, arquivadas ou excluídas por meio da internet. Diante da possibilidade de convivência com a memória digital, que pode como que congelar as experiências, a ponto de reproduzi-las nas formas de presentes que infinitamente se perenizam, Schönberger (2009)SCHÖNBERGER, Victor Mayer. Delete: the virtue of forgetting in the digit age. Princeton: Princeton University Press, 2009. argumenta sobre a necessidade de recuperação da capacidade humana do esquecer. Para tanto, ele relembra outro conto de Borges intitulado “Funes, o memorioso”, por meio do qual o escritor argentino narra a maldição de Funes que, simplesmente, tem o poder de memorizar eternamente detalhes do cotidiano ( Borges, 2021BORGES, Jorge Luís. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.). Ou seja, ele é incapaz de esquecer qualquer coisa.

Ao não esquecer nada, Funes se torna inapto tanto a perdoar, como se o ressentimento também se eternizasse, quanto a elaborar generalizações, haja vista o fato de que se torna mnemonicamente prisioneiro dos detalhes. E se somos uma espécie de Funes, uma vez que a memória digital aprimora extraordinariamente o poder da memória orgânica, por assim dizer, então seria fundamental promover o seguinte procedimento, segundo Schönberger (2009)SCHÖNBERGER, Victor Mayer. Delete: the virtue of forgetting in the digit age. Princeton: Princeton University Press, 2009.: se as pessoas se convencerem da importância da faculdade de esquecer, “elas cessarão de prover suas informações pessoais para os outros e a memória digital deixará de existir, ao menos na sua forma abrangente e ameaçadora” ( Schönberger, 2009SCHÖNBERGER, Victor Mayer. Delete: the virtue of forgetting in the digit age. Princeton: Princeton University Press, 2009., p. 129).

A defesa desse tipo de abstinência digital tem o seu mérito, sobretudo porque se fundamenta no empoderamento do próprio indivíduo ao refletir e conscientemente escolher que informação ou imagem desejará arquivar e disponibilizar nas redes sociais. Contudo, há que se rememorar as palavras de Adorno (2010)ADORNO, Theodor W. Teoria da semiformação. In: PUCCI, Bruno; ZUIN, Antônio; LASTÓRIA, Luiz (org.). Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2010. p. 7-41., expostas já no final da década de 1950, sobre a relação entre memória e semiformação: “A semiformação é uma fraqueza em relação ao tempo, à memória, única mediação capaz de fazer na consciência aquela síntese da experiência que caracterizou a formação cultural em outros tempos” ( Adorno, 2010ADORNO, Theodor W. Teoria da semiformação. In: PUCCI, Bruno; ZUIN, Antônio; LASTÓRIA, Luiz (org.). Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2010. p. 7-41., p. 33).

Se fosse possível ressignificar essa asserção de Adorno no contexto da cultura digital, notar-se-ia a forma como a inundação de informações e imagens digitais renovam o processo de danificação da formação ( Bildung), na medida que os estados informativos pontuais, desconectados, intercambiáveis e efêmeros são algoritmicamente produzidos, reproduzidos e arquivados como se bastassem em si e por si. É por isso que a lógica imperante das fake news se esteia na fragmentação e na descontextualização. Frente a esse cenário social, torna-se cada vez mais difícil fazer com que o indivíduo seja unicamente responsável pelo que deve ou não arquivar e, portanto, arquivar-se; como se essa fosse uma questão exclusiva de exercício de seu livre-arbítrio.

Deste modo, no lugar de se defender uma espécie de abstinência digital, talvez fosse mais profícuo o movimento de utilizar o poder da memória digital ( Livingstone, 2010LIVINGSTONE, Sonia. Media literacy and the challenge of new information and communication technologies. The Communicative Review, London, v. 7, n. 1, p. 3-14, 2010. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/10714420490280152 Acesso em: 25 nov. 2022.
http://dx.doi.org/10.1080/10714420490280...
; Kellner; Share, 2008KELLNER, Douglas; SHARE, Jeff. Educação para a leitura crítica da mídia, democracia radical e a reconstrução da educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 29, p. 671-715, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v29n104/a0429104.pdf Acesso em: 24 jun. 2017.
http://www.scielo.br/pdf/es/v29n104/a042...
; Buckingham, 2019BUCKINGHAM, David. The media education manifesto. Cambridge: Polity Press, 2019.), para fomentar a análise das conjunturas sócio-políticas-econômicas e culturais das informações e imagens digitais, na medida em que esses dados fossem historicamente contextualizados com o passado, o que possibilitaria presencialmente o engendramento de outras perspectivas futuras. É desta forma que as representações mentais duradouras decorrentes se metamorfoseiam em conceitos; os mesmos conceitos que esteiam psiquicamente os comportamentos morais que religam o particular com o geral, na porquanto este indivíduo reflete sobre as causas e consequências de suas atitudes em relação aos outros.

Ou seja, o pensamento conceitual depende visceralmente da recuperação mnemônica do passado para que o presente não se perpetue indefinidamente e sim impulsione o indivíduo a projetar novas identidades e concepções vindouras. Assim, ao invés da memória digital incentivar a perpetuação de considerações ressentidas e, até mesmo, preconceituosas, ela poderia ser utilizada para religar o particular e geral, o indivíduo e a sociedade, promovendo assim uma espécie de renovação ética da formação ( Bildung) na cultura digital, sendo que tal renovação será analisada a seguir.

Arquivar-se como experiência formativa aumentada na cultura digital

Dentre a gama de conceitos que Paulo Freire elaborou durante toda a sua trajetória como educador, certamente um dos que mais se destacam é a chamada educação bancária, que foi definida da seguinte forma:

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fixadores das coisas que arquivam [...] Educadores e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão de educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.

( Freire, 1978FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., p. 66).

Há vários aspectos que merecem ser enfatizados nessa definição de Freire sobre os pressupostos da educação bancária. Todavia, seria interessante avultar o sentido da metáfora concernente à palavra: arquivar. Os educandos e educandas se tornam meros receptáculos, arquivos nos quais as informações são depositadas e absorvidas. No contexto no qual Paulo Freire (1978)FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. elaborou essa metáfora do aluno-arquivo, ainda prevalecia o entendimento do arquivo como um local identificado espacialmente, cujo acesso restrito às informações proporcionava o poder daqueles que controlavam tanto a forma da elaboração, quanto a maneira pela qual elas seriam transmitidas para a maioria das pessoas. Tal como foi anteriormente enfatizado, o arquivo se referia ao lugar onde os registros governamentais eram armazenados e mantidos em segredo: “O arquivo fazia parte de um aparato de controle e regulação social, de tal modo que assim se facilitava a governança do território e da população por meio da informação acumulada” ( Featherstone, 2006FEATHERSTONE, Mike. Archive. Theory, Culture & Society, London, v. 23, n. 2-3, p. 591-596, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0263276406023002106 Acesso em: 10 jun. 2018.
https://doi.org/10.1177/0263276406023002...
, p. 591). Não por acaso, já no Novum Organum, Francis Bacon (1561-1626) asseverava que a detenção do conhecimento implicava em poder e controle ( Bacon, 1973BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza – Nova Atlântida. São Paulo: Abril Cultural, 1973.).

Seguindo essa linha de raciocínio, faz todo o sentido o vínculo observado por Freire (1978)FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. entre o vetor hierárquico verticalizado entre o professor e o aluno e a absorção mecânica e passiva de informações, que são como que depositadas no aluno-arquivo. Mas, se esta concepção de arquivo imperou nas sociedades que precederam a revolução microeletrônica, não se torna mais possível restringir o significado do arquivar exclusivamente à constatação de que se trata de um lugar de depósito. Aliás, a própria noção de espaço se altera profundamente na sociedade da cultura digital, tal como nos casos relatados na introdução deste artigo sobre as panes do aplicativo Waze e dos guichês de check in de empresas aéreas. Nestes casos, o software e a espacialidade se constituem reciprocamente, de tal maneira que “a espacialidade se torna o produto do código e o código existe primariamente com objetivo de produzir uma espacialidade particular” ( Kitchin; Dodge, 2011KITCHIN, Rob; DODGE, Martin. Code/Space: software and everyday life. Cambridge; London: Mit Press, 2011., p. 16).

O espaço e o tempo se modificam substancialmente na cultura digital, na medida em que o fluxo e o armazenamento de informações ocorrem de forma contínua e ininterrupta. As transformações nas dimensões espaço-temporal fazem parte de uma cultura na qual o arquivo digital se torna um impulso que redimensiona a forma de produção e disseminação do conhecimento: “As transformações no arquivo digital, entre fluxos e classificação, nos direciona ao coração das questões sobre a constituição, a formação e o armazenamento do conhecimento na era atual” ( Featherstone, 2006FEATHERSTONE, Mike. Archive. Theory, Culture & Society, London, v. 23, n. 2-3, p. 591-596, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0263276406023002106 Acesso em: 10 jun. 2018.
https://doi.org/10.1177/0263276406023002...
, p. 591). Por conseguinte, o arquivo digital não pode ser considerado apenas como um “lugar” no qual as informações são registradas e acessadas, mas sim como um fluxo contínuo de armazenamento e reciprocidade de informações. Justamente esse fluxo ubíquo e ininterrupto faz com que também as relações estabelecidas entre professores e alunos sejam ressignificadas de forma inédita.

As atuais transformações das relações verticalmente hierarquizadas entre professores e alunos, que promovem uma troca incessante de fluxos de informações entre si e, portanto, arquivam-se reciprocamente, são indícios da maneira como a formação ( Bildung) pode ser repensada no contexto da sociedade da cultura digital. Para tanto, é preciso considerar o modo como a própria memória é algoritmicamente redimensionada por meio da produção, reprodução e disseminação das etiquetas digitais, os chamados tags ou metadados.

Quando são consideradas as atuais etiquetas digitais, é interessante relembrar a crítica de Adorno à denominada “mentalidade do ticket” ( Ticketdenken) que imperava entre os indivíduos de tendências fascistas que etiquetavam e rotulavam de forma preconceituosa aqueles que não pertenciam ao grupo autoritário ( Adorno, 1972ADORNO, Theodor W. Studies in the authoritarian personality. In: ADORNO, Theodor W. Gesammelte schriften 9- soziologische schriften II - Erste Hälfte. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1972. p. 143-508.). Contudo, na sociedade da cultura digital, o processo de etiquetar adquire uma conotação decisiva de intervenção, a ponto dos arquivos digitais que são localizados, classificados e interpretados por meio dessas tags serem identificados como “espaços políticos profundos” ( Beer, 2013BEER, David. Popular culture and new media: the politics of circulation. New York: Palgrave Macmillan, 2013.; Parikka, 2012PARIKKA, Jussi. What is media archaeology? Cambridge: Polity, 2012.). Sendo assim, as palavras-chave, as tags, que são digitadas todas as vezes que procuramos quaisquer informações nos mecanismos de busca das plataformas digitais, encaminham-nos a determinados links e não a outros. E mais: a cada vez que são acessadas e compartilhadas, os algoritmos referentes a um determinado mecanismo de busca interpretam que as mais consultadas devem ser as que mais correspondem ao real significado daquilo que se procura, ao se transformarem numa espécie de imperativos categóricos na era da cultura digital.

Se, por exemplo, a palavra-chave negro for consubstanciada a certos locais considerados frequentemente perigosos, então os algoritmos dos softwares dos computadores de viaturas policiais tenderão a correlacionar tais lugares onde crimes são cometidos com ser negro, como se a cor da pele inquestionavelmente fosse associada a uma ontologia criminosa. Pois, se um negro estiver em tal lugar, os algoritmos tenderão a imediatamente identificá-lo como um criminoso ( Noble, 2018NOBLE, Safya Umoja. Algorithms of oppression: how search engines reinforce racism. New York: New York University Press, 2018.). Nesse sentido, a essência histórica da “mentalidade do ticket” afeita ao preconceito delirante é algoritmicamente renovada na cultura digital. Porém, essa mesma marcação, na forma das etiquetas digitais, pode suscitar o direcionamento da atenção para temas e fóruns de discussão relacionados, literalmente, com questões de vida ou morte, tais como: “defesa da diversidade, proteção do meio ambiente, não ao racismo”, entre outros. É por isso que se pode afirmar que este é o poder dos metadados e da classificação por meio dos arquivos, pois exatamente neles é possível observar a forma como “as infraestruturas de participação incluem a participação em seus conteúdos” ( Beer, 2013BEER, David. Popular culture and new media: the politics of circulation. New York: Palgrave Macmillan, 2013., p.54).

Evidentemente, o mero acesso a tais tags não assegurará por si só a presença tanto do raciocínio crítico ao pensamento estereotipado, quanto das resistências às práticas concernentes ao preconceito delirante. Mas, se palavras-chave que remetem ao preconceito forem gradativamente desaparecendo do cenário digital, ou perderem espaço para outras mais espetacularmente emancipatórias, então haverá mais possibilidades de que outras tags vicejem no terreno hoje ocupado sobretudo pela reiteração da “mentalidade do ticket”. Para que essa situação se torne hegemônica, é preciso cada vez mais açular a recuperação espaço-temporal histórica das informações e relacioná-las à outra dimensão crucial da Bildung: a ético-moral. Frente ao atual grande júri das redes sociais, que expõe qualquer tipo de julgamento “sem ter de se responsabilizar por isso em relação a qualquer pessoa” ( Türcke, 2019TÜRCKE, Christoph. Digitale gefolgshaft: auf dem weg in eine neue stammesgesellchaft. München: C.H. Beck Verlag, 2019., p. 122), espraia-se um ethos afeito ao desengajamento moral em praticamente todas as relações sociais. Diante desse quadro, é preciso coligir a recuperação digitalmente realizada dos contextos históricos das informações, com o incentivo à sensibilização ética, que permita fazer com que o indivíduo não se sinta atraído pelo sortilégio de palavras de ordem autoritárias e pela fruição de sentimentos de onipotência narcísica ( Nida-Rümelin; Weidenfeld, 2018NIDA-RÜMELIN, Julian; WEIDENFELD, Nathalie. Digitaler humanismus: eine ethik für das zeitalter der künstlichen intelligenz. München: Piper, 2018.).

Ironicamente, é a mecanicidade algorítmica da memória digital que pode se tornar o contraponto à memorização mecânica da educação bancária, na medida em que arquivar-se digitalmente, na forma de fluxos de informações reciprocamente compartilhados, pode substituir a caracterização dos educandos, e dos educadores, como arquivos nos quais são depositadas informações sem qualquer tipo de intervenção criadora. Na sociedade da cultura digital, torna-se possível fazer com que o arquivar-se e o arquivar de informações forneçam o lastro necessário para que os diálogos entre as informações suscitem a produção de conceitos éticos que sejam substancialmente experimentados em comportamentos morais, de tal modo que não se trate o outro instrumentalmente como objeto para a realização de determinado fim. Dessa forma, a experiência formativa digitalmente aumentada poderá ressignificar criticamente o sentido do arquivar-se, bem como as seguintes palavras de Paulo Freire expostas anteriormente: “Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também” ( Freire, 1978FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., p. 66).

É a renovação dessa esperança, proposta por Paulo Freire, que possibilita repensar a relação entre formação ( Bildung) e cidadania nos tempos da cultura digital ( Zuin; Mello, 2021ZUIN, Antônio; MELLO, Roseli Rodrigues. Por uma pedagogia da esperança e da autonomia na era da cultura digital. Pro-Posições, Campinas, v. 32, p. e20210110, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0110 Acesso em: 17 maio 2023.
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). Se a Bildung foi elemento decisivo para a universalização da condição de ser cidadão no século XVIII, tal como foi destacado na primeira parte deste artigo, é preciso sopesar sobre as características do indivíduo digitalmente letrado, numa espécie de reconsideração sobre a relação estabelecida por Kant (2005)KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é esclarecimento. In: KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 63-72. entre a experiência formativa e o ousar saber como premissa da saída do indivíduo de seu estado de menoridade, de ser tutelado por outrem. Talvez, o abandono do estado de ser subordinado envolva, atualmente, a promoção de uma alfabetização digital crítica que faça com que educandos e educadores afirmem digitalmente suas condições de cidadãos, na medida em que são principalmente capazes tanto de identificar, quanto de intervir criticamente sobre a produção e a reprodução das fake news.

Se as plataformas digitais alteram inclusive as perspectivas políticas dos seus usuários, a ponto de modificarem “as percepções que possuem sobre a esfera pública política como tal” ( Habermas, 2022HABERMAS, Jürgen. Reflections and hypotheses on a further structural transformation of the political public sphere. Theory, Culture & Society, London, v. 39, n. 4, p. 145-171, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1177/02632764221112341 Acesso em: 14 nov. 2022.
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, p. 164), então faz-se cada vez mais precípua a utilização dos espaços dessas mesmas plataformas para que as informações sejam contextual e historicamente relacionadas entre si, a ponto de estimular a permanência de representações mentais duradouras e, portanto, de conceitos e práticas de intervenção contra a barbárie do preconceito delirante ( Van Dijck; Poell; De Wall, 2018VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; De WALL, Martijin. The plataforma society: public values in a connective world. New York: Oxford University Press, 2018.). A presença da experiência formativa aumentada depende do modo como a relação espaço-temporal digitalmente codificada fomenta a religação corporal do indivíduo consigo mesmo e com os outros.

Considerações finais

Na atual sociedade do chamado capitalismo de vigilância, o processo de acessar, filtrar, classificar, arquivar e interpretar as informações torna-se fundamental tanto para a produção e reprodução das commodities, quanto para a forma como o conhecimento será engendrado e compartilhado. Não por acaso, cada vez mais se faz vigente, em todas as relações sociais, a classificação de comportamentos e desejos presentes e futuros por meio das ações de algoritmos que localizam quaisquer particularidades dos indivíduos, tamanho é o seu poder de personalizar em meio a uma massa incomensurável de dados, de metadados. Frente a esse contexto, são várias as contribuições de autores e autoras para a reflexão crítica sobre como a digitalização ubíqua determina o engendramento de transformações radicais também nos processos de produção e disseminação do conhecimento, tais como a de Featherstone (2006)FEATHERSTONE, Mike. Archive. Theory, Culture & Society, London, v. 23, n. 2-3, p. 591-596, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0263276406023002106 Acesso em: 10 jun. 2018.
https://doi.org/10.1177/0263276406023002...
, Livingstone (2010)LIVINGSTONE, Sonia. Media literacy and the challenge of new information and communication technologies. The Communicative Review, London, v. 7, n. 1, p. 3-14, 2010. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/10714420490280152 Acesso em: 25 nov. 2022.
http://dx.doi.org/10.1080/10714420490280...
, Kellner e Share (2008)KELLNER, Douglas; SHARE, Jeff. Educação para a leitura crítica da mídia, democracia radical e a reconstrução da educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 29, p. 671-715, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v29n104/a0429104.pdf Acesso em: 24 jun. 2017.
http://www.scielo.br/pdf/es/v29n104/a042...
, Beer (2013)BEER, David. Popular culture and new media: the politics of circulation. New York: Palgrave Macmillan, 2013., Van Dijck, Poell e De Wall (2018)VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; De WALL, Martijin. The plataforma society: public values in a connective world. New York: Oxford University Press, 2018., Buckingham (2019)BUCKINGHAM, David. The media education manifesto. Cambridge: Polity Press, 2019., Zuboff (2018ZUBOFF, Shoshana. Big other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-69., 2019)ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. London: Profile Books, 2019., Flynn (2020)FLYNN, Paul. Towards a pedagogy of archival engagement. Archives and Records, London, v. 41, n. 2, p. 105-108, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1080/23257962.2020.1758048 Acesso em: 22 jun. 2023.
https://doi.org/10.1080/23257962.2020.17...
, Manovich (2020)MANOVICH, Lev. Cultural analytics. Cambridge; London: MIT Press, 2020., entre outros. As ponderações presentes neste artigo compactuam com esse propósito. Ou seja, é preciso atentar cada vez mais pedagogicamente sobre a relação entre saberes e práticas educacionais na sociedade do arquivar-se digitalmente como impulso cultural.

É nessa sociedade que arquivar não mais se limita ao armazenamento físico de documentos e, portanto, de saberes que seriam hierarquicamente controlados pelos seus detentores e guardadores. Pois o arquivo digital contesta, por suas idiossincrasias, tanto a espacialidade do lugar físico, quanto a temporalidade de uma produção de conhecimento em rede que não cessa em nenhum momento. Na realidade, o arquivar-se digital extrapola as fronteiras do lugar virtual e se metamorfoseia na ontologia identitária de que ser significa arquiva-se por meio de um fluxo contínuo de informações reciprocamente compartilhadas. Entretanto, a possibilidade da prática de tal permuta não pode atuar como uma espécie de racionalização em defesa de uma suposta neutralidade algorítmica que consente em fazer com que as trocas de informações ocorram como se fossem algo em si e por si, destituídas, desse modo, dos contextos históricos e das relações que as conceberam. Ou seja, as correlações algorítmicas não podem ser apartadas da compreensão das causas que as engendraram, com vistas à produção e disseminação do conhecimento.

A tecnologia, inclusive a algorítmica, não pode ser identificada meramente como um conjunto de técnicas, mas sim ser caracterizada como um processo social que é, como diria Marcuse (1999)MARCUSE, Herbert. Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: Unesp, 1999.. Outrossim, por mais que se sinta certo conforto por meio do exercício de uma espécie de abstinência digital, não será assim que deixarão de existir as questões relativas ao trato com a torrente incessante de informações digitalmente produzidas e reproduzidas. Os atos de refletir a respeito da relevância dos processos de filtrar, classificar, arquivar e compartilhar as informações, como condição de produção e reprodução do conhecimento que será classificado e interpretado, bem como sobre o arquivar-se como experiência formativa aumentada na cultura digital, tornam-se fundamentais para que que possam ser delineadas práticas pedagógicas afeitas ao necessário engajamento moral dos usuários da internet.

Se, na sociedade da memória digital, na qual se torna possível a lembrança de tudo, novas formas de esquecimento são produzidas, na medida em que as informações compiladas são descontextualizadas a ponto de se transformarem em fake news, então se torna imperativa a necessidade de que a análise dos processos de produção e disseminação do conhecimento considere criticamente o modo como o arquiva-se constitui tais processos na condição de impulso cultural. Se for assim, em meio à atual Babel digital, os novos Funes não serão aprisionados unicamente pela memória dos detalhes, mas os relacionarão mnemonicamente com os contextos sociais nos quais foram produzidos. Desse modo, eles poderão “permanecer” como indivíduos eticamente vinculados entre si, em meio ao fluxo ininterrupto de arquivamento, interpretação e compartilhamento dialógico de informações.

Referências

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  • ADORNO, Theodor W. Studies in the authoritarian personality. In: ADORNO, Theodor W. Gesammelte schriften 9- soziologische schriften II - Erste Hälfte. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1972. p. 143-508.
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  • 1-
    Este artigo foi elaborado por meio de recursos fornecidos pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Bolsa Produtividade em Pesquisa, proc. 309203/2021-0.

Editado por

Editor:
Prof. Dr. Agnaldo Arroio

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2022
  • Revisado
    24 Abr 2023
  • Aceito
    15 Maio 2023
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