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ARTIGO-PARECER: BIOGRAFIA CIENTÍFICA COMO POSSIBILIDADE PARA A VALORIZAÇÃO DE UMA CIÊNCIA QUÍMICA MAIS FEMININA E NEGRA

INFORME DE ARBITRAJE: LA BIOGRAFÍA CIENTÍFICA COMO POSIBILIDAD DE VALORAR UNA CIENCIA QUÍMICA MÁS FEMENINA Y NEGRA

RESUMO:

Apresento o processo de avaliação do artigo “Biografia científica como possibilidade para a valorização de uma ciência química mais feminina e negra” por meio de uma análise de seus domínios axiológico, metodológico, factual e historiográfico. Em termos axiológicos, apresento as evidências e minha linha de raciocínio que me levaram a compreender que o trabalho, apesar de se designar uma pesquisa exploratória, demonstrava ter uma expectativa anterior, a de que a biografia de uma cientista negra poderia promover discussões acerca de raça e gênero na formação de professores. No domínio metodológico, exploro as incoerências que essa hipótese anterior teve para o desenvolvimento da metodologia. No domínio factual, discuto a importância da apresentação de dados em classificação de gênero, raça e localização geográfica. Em se tratando de história e historiografia, apresento as discussões com os autores relativas à construção de um material didático que não me fora apresentado na primeira versão. Encerro o trabalho indicando que a versão final tornou-se mais coerente e sua hipótese, atenuada. O trabalho apresenta qualidade e rigor metodológico acima da média, na minha opinião, e o processo foi extremamente salutar, gerando questões pertinentes para a nossa área como um todo.

Palavras-chave:
Metodologia; Valores; Evidências; Historiografia

RESUMEN:

Presento el proceso de evaluación del artículo “La biografía científica como posibilidad de valorar una ciencia química más femenina y negra” a través de un análisis de sus dominios axiológico, metodológico, fáctico e historiográfico. En términos axiológicos, presento las evidencias y mi línea de razonamiento que me llevaron a comprender que el trabajo, a pesar de pretender ser una investigación exploratoria, demostró una expectativa previa, que la biografía de un científico negro podría promover discusiones sobre raza y género en los futuros docentes. En el ámbito metodológico, exploro las inconsistencias que tuvo esta hipótesis previa para el desarrollo de la metodología. En el ámbito fáctico, analizo la importancia de presentar datos en la clasificación de género, raza y ubicación geográfica. En cuanto a historia e historiografía, presento las discusiones con los autores respecto a la construcción de material didáctico que no me fue presentado en la primera versión. Cierro el trabajo indicando que la versión final se ha vuelto más coherente y su hipótesis se ha atenuado. El trabajo presenta, en mi opinión, una calidad y un rigor metodológico superiores a la media y el proceso fue sumamente saludable, generando preguntas pertinentes para nuestra área en su conjunto.

Palabras clave:
Metodología; Valores; Prueba; Historiografía

ABSTRACT:

In this paper, I present the evaluation process of the article “Scientific biography as possibility to value a more feminine and black Chemical Science” through an analysis of its axiological, methodological, factual, and historiographical domains. In axiological terms, I present the evidence and the train of thought that led me to understand that the paper, despite being intended as an exploratory research, demonstrated a previous hypothesis, that the biography of a black female scientist could promote discussions about race and gender in teacher training. In the methodological domain, I explore the inconsistencies that this previous hypothesis had for the development of the methodology. In the factual domain, I discuss the importance of presenting data classified by gender, race, and geographic location. When it comes to history and historiography, I present the discussions with the authors regarding the construction of teaching material that was not presented to me in the first version. I close the work by indicating that the final version has become more coherent and its hypothesis has been attenuated. The work presents above average quality and methodological rigor, in my opinion, and the process was extremely interesting, generating pertinent questions to our area of research as a whole.

Keywords:
Methodology; Values; Evidence; Historiography

COMEÇO DE UMA CONVERSA, OU INTRODUÇÃO

Quem trabalha com história e filosofia da ciência sabe que uma boa análise de um episódio científico passa pela pormenorização das evidências para uma teoria ou hipótese, dos métodos divisados para coletar tais evidências, e dos valores, expectativas e objetivos dos cientistas envolvidos no episódio, incluindo questões contextuais que possam ter tido efeitos cognitivos naquele episódio. Há três domínios da ciência, portanto: factual, metodológico e axiológico. Com o tempo, compreendi que esses domínios são parte de qualquer área que busque a produção de conhecimento, inclusive a educação científica. Mais do que isso, observei que a capacidade de avaliar essas três dimensões permite críticas com potencial de gerar conhecimentos mais robustos.

Concordo com Laudan (1984Laudan, L.(1984) Science and values: the aims of science and their role in scientific debate. University of California Press.), quando ele afirma que uma teoria da racionalidade demanda compreender as sofisticadas relações que existem entre valores, metodologias e fatos científicos. Nesse sentido, há uma razão lógica para que ciência, inclusive uma mais social-aplicada como a educação científica, seja feita em comunidade. Não é possível esperar que um pesquisador, sozinho, encontre todas as limitações da sua pesquisa. O trabalho rigoroso de crítica é o caminho para que os três domínios da produção de conhecimento se ajustem da melhor forma possível, gerando o melhor conhecimento possível.

Assim, gostaria de afirmar como compreendo a importância dos trabalhos de avaliação de manuscritos. Para mim, o trabalho do avaliador tem duas camadas, uma didática e outra epistemológica. Didática porque, apesar de sermos colegas investigadores, somos também permanentemente aprendizes. Há aspectos da estrutura de um trabalho acadêmico que são mais visíveis àqueles que não fizeram parte da investigação. Muitas vezes, como pesquisadores, temos a impressão de que o trabalho não tem pequenas contradições e que nossas expectativas teóricas ou contextuais não influenciaram em grande parte na construção de nossas comunicações. Pareceristas exercem um papel didático ao problematizar pontos que não raro nos fogem e, no percurso, podem nos fazer compreender melhor as lacunas teóricas e metodológicas e as expressões axiológicas que podem gerar crítica ao trabalho. Como é uma avaliação interna e anônima entre pareceristas e autores, essa é uma instância didática, por permitir que certos pontos sejam devidamente revistos e corrigidos previamente, caso concordemos com tal revisão, e pesquisas futuras sejam mais restringidas aos limites apontados por pareceristas.

Pelas mesmas razões, compreendo também que essa é uma instância epistemológica, porque permite que o próprio conhecimento passe por uma rodada de críticas metodológicas, factuais e axiológicas antes de ser publicado, ganhando assim tempo para revisar dados e pontos que enfraquecem as hipóteses aventadas. Mas adiciono a isso uma nova camada: concordo com Longino (1990Longino, H. (1990). Science as social knowledge: values and objectivity in scientific inquiry. Princeton: Princeton University Press.) quando afirma que a revisão por pares é a primeira instância em que se podem observar se os valores implícitos de um pesquisador aparecem, mesmo que tacitamente, em seu manuscrito.

Os aspectos humanos e contextuais que tanto indicamos existir nas ciências exatas também existem em uma ciência mais social-aplicada, como o ensino de ciências. O que quero dizer com isso é que nossas pesquisas também são permeadas por nossas expectativas, mesmo que as tentemos ignorar. Não significa, contudo, dizer que, quando isso ocorre, incorremos em má ciência, em mau conhecimento acadêmico. Significa apenas reconhecer que a publicação não deve ser o objetivo final de um trabalho, e sim sua circulação, e entender a crítica como parte essencial do processo, algo que tem o potencial de aprimorar nossas pesquisas, assim como gerar novas.

Por isso, dediquei-me a criticar o artigo “Biografia científica como possibilidade para a valorização de uma ciência química mais feminina e negra” diligentemente, não porque o achei de má qualidade, mas justamente pelo contrário. Bons trabalhos merecem ainda mais zelo, ainda mais cuidado. Bons trabalhos têm potencial de alcance, fertilidade, precisão. Por entender que esse é um manuscrito acerca de um trabalho que primou por rigor metodológico e por endereçar um tópico de crescente relevância, apontei uma série de questões de natureza metodológica, fatual e axiológica que transpareciam no manuscrito, embora sejam muito típicas das pesquisas em ensino de ciências, especialmente aquelas de campo e levantamento exploratório.

Assim, decidi dividir este artigo-parecer em cinco seções e, é claro, considerações finais. Três delas são dos domínios que compõem a ciência - axiológico, metodológico e factual. Uma delas é dedicada a questões historiográficas. Essas quatro primeiras estão relacionadas diretamente à primeira versão do manuscrito, aquela que recebi para avaliar em maio de 2023. Por isso, nelas incluo algumas réplicas que recebi dos autores e, quando pertinente, minhas tréplicas. A quinta seção diz respeito à minha interpretação da versão final, o que foi alterado e o que foi mantido, de acordo com meu parecer.

DOMÍNIO AXIOLÓGICO

Muitas vezes, nossas expectativas implícitas transparecem em nossos trabalhos, apesar de nossos esforços. Minha leitura do manuscrito me levou à compreensão de que o trabalho se tratava de uma investigação cuja hipótese era a de que biografias de cientistas negras podem ampliar a discussão acerca de questões de raça e gênero na formação de professores. Fui levada a essa compreensão pelo título e por uma série de trechos do manuscrito. Quase toda a introdução era focada na defesa de que as biografias podem propiciar identificação entre leitores e cientistas, especialmente se estes últimos não forem homens europeus, figuras geralmente enaltecidas, mesmo que de passagem, em livros didáticos. É fato que a seção subsequente, referente ao contexto teórico sobre biografias, trazia autores que não necessariamente se debruçam sobre esse domínio dos aspectos da ciência, mas era finalizada, com argumentação própria dos autores, de que biografias têm a potencialidade de desafiar estereótipos e de propiciar processos de identificação por parte das alunas, e de problematização do padrão masculino, para os alunos.

Havia ainda outros trechos que tornavam dominante a impressão de uma hipótese durante a exploração de resultados e de desenho metodológico. No instrumento de coleta de dados, oito das onze questões buscam compreender as associações entre gênero, raça e ciência que fazem os alunos. O mais pujante, contudo, vem da interpretação dos resultados de duas das questões que não são diretamente associadas a tais assuntos, a saber, as questões 10 (“que características da ciência e do conhecimento científico estão presentes [no texto biográfico]?”) e 11 (“Descreva tudo aquilo que pode interferir na produção do conhecimento científico [no texto biográfico]”) (Gomes & Francisco Jr., 2024, p. 19). Digo isso porque, na análise dos resultados, era enfatizado que os alunos se inclinaram mais a descrever características compreendidas como internas à ciência, como seus métodos e delineamento de problemas, além de dar mais atenção a questões institucionais. Esses resultados, por si só, não indicariam a busca pela validação de uma hipótese, mas de uma efetiva exploração, como declararam as autorias na réplica; contudo, sentia-se ainda, nas considerações finais, uma tendência a compreender esse resultado como desviante, indicando que “ainda que muitos tenham identificado características do trabalho científico [...] que se procurou destacar na biografia, os participantes enfocaram em maior grau aspectos internos, como o problema e métodos científicos” (Autores, primeira versão).

O trajeto da leitura levou-me a interpretar que o manuscrito tinha uma hipótese, cuja validação, apenas parcial, foi compreendida pelos autores como um resultado desviante, que demonstrava maior necessidade de interação didática em sala de aula. Isso me levou a indicar às autorias que a investigação me parecia ter uma natureza tautológica, que fora desenhada para provar uma hipótese. As autorias replicaram, indicando que compreendiam os fundamentos da minha crítica; por isso, trocaram termos da questão de pesquisa (de “potencialidade” para “possibilidade”) e reorganizaram trechos que pudessem passar tal impressão. Ainda, indicaram não ter encontrado a palavra “hipótese” no sentido que eu compreendi no texto e que entendem que pesquisas exploratórias não devem ser balizadas por hipóteses.

Quero indicar, mais uma vez, que uma hipótese não precisa ser enunciada para que seja identificada pelos leitores. Como valores e expectativas se relacionam intimamente com metodologias e fatos, quando apresentei uma crítica relativa à estrutura metodológica, recebi, entre argumentos igualmente metodológicos, também um de natureza axiológica. Essa crítica e esses argumentos serão melhor apreciados na próxima seção; entretanto, quero trabalhar aqui mais um pouco da posição axiológica apresentada na defesa das autorias.

Gostaríamos de ressaltar, ainda, que nosso interesse não é exclusivo nas “capacidades relativas à análise da ciência em termos de gênero e raça”, mas sim em aspectos epistemológicos gerais, conforme enfatizado, desde a versão original, nos objetivos e depois retomado nas considerações finais (Autorias, réplica).

De fato, após as alterações que mitigaram a impressão de uma hipótese - a alteração da palavra potencialidade na questão de investigação e vários outros trechos - passa-se a perceber melhor a intenção das autorias. É importante frisar, no entanto, que o título continua passando a impressão de uma inclinação ao tópico, assim como o esforço despendido em defender a importância de uma abordagem da história da ciência capaz de quebrar estereótipos e promover identificação entre alunos. Vale ressaltar que, ao longo do texto, há pouco aprofundamento teórico em aspectos epistemológicos gerais, reforçando a impressão de que há um objetivo mais importante para os autores.

A própria diferenciação entre dimensões internas e externas à ciência, classificação para as respostas da questão 10, também era indicativa de uma visão que separa o âmbito lógico-metodológico do contextual, e, portanto, aspectos epistemológicos gerais de questões de gênero e raça. Embora seja oriunda das respostas dos alunos, em uma tentativa de demonstrar em que ponto se situam suas percepções dos aspectos da ciência, ela era uma classificação dos autores, em última instância. É importante frisar que a dicotomia entre o que é cognitivo e o que é contextual é um tema majoritariamente superado na filosofia da ciência (com algumas exceções importantes), em razão do protagonismo da história da ciência como corpo de evidências para a filosofia. De todo modo, o que quero reiterar é que essa separação e a consequente compreensão de que esforços mais intensos devem ser destinados para que aspectos mais contextuais sejam operacionalizados pelos alunos são, para mim, também uma demonstração de que havia algo na biografia, na implementação e na própria expectativa dos autores de que havia uma hipótese, mesmo que não enunciada. Porém, cabe ressaltar que esse ponto de crítica foi considerado pelos autores: “A separação entre interno e externo foi suprimida, pois levaria a outras discussões, que de fato poderiam ser sombreadas” (Autores, réplica).

Por fim, importa enfatizar outro ponto que levava a impressões durante a leitura, mesmo que não explicitamente enunciadas: a organização de um texto acadêmico. Sua estrutura, por si só, é indicativa ao leitor das intenções de um pesquisador. Nossa área tem o hábito de introduzir os referenciais teóricos e, com eles, a justificativa de um trabalho, antes de apresentar a investigação, qualquer que seja seu tipo. Aliás, normalmente se despendem páginas a fio para introduzir as ideias de autores que não raro já são de amplo conhecimento; esse não é o caso do manuscrito em questão, contudo. Sua seção de referenciais teóricos sobre biografias científicas na educação é bastante sucinta e bem dialogada, o que é muito bom para o leitor. Mas eu gostaria de enfatizar que tal estrutura - introdução, referenciais teóricos, metodologia, resultados, considerações finais - gera a percepção de que há uma hipótese inicial. Questiono-me se, em casos de pesquisas exploratórias como esta, não seria mais coerente alterar a estrutura do texto, com os referenciais teóricos após os resultados, de modo a alinhar melhor a percepção dos leitores sobre as metodologias e expectativas exploratórias dos pesquisadores. De todo modo, é importante esclarecer que essa não foi uma crítica que apresentei aos autores, porque foi uma ideia elaborada com a produção deste artigo-parecer. Mesmo assim, entendo que é uma reflexão interessante para a área como um todo.

DOMÍNIO METODOLÓGICO

É inegável que o trabalho apresenta rigor metodológico acima da média entre as pesquisas com pessoas da área. Cuidados atípicos, mas bem-vindos, foram tomados. É salutar o esforço de ampliar o universo de participantes, não apenas em número, mas geograficamente - foram estudadas respostas de estudantes de três regiões, mesmo que a maioria se localizasse na região Nordeste. Muito positiva também foi a iniciativa de avaliação da biografia e validação do questionário por duas pesquisadoras da Educação Química, doutoras na linha de história e filosofia da ciência. Essas ações demonstram uma preocupação com a validade e a confiabilidade dos dados e, repito, não são a prática tradicional nos trabalhos de natureza qualitativa exploratória na área, embora devessem ser.

Uma expressão que usei na avaliação do trabalho - desenho metodológico - causou desconforto aos autores, que a entendem como oriunda de pesquisas experimentais; enfatizaram preferir o termo “procedimento metodológico”. Apesar de conceder que essa possa ser a origem da expressão, embora não tenha encontrado fontes para isso, gostaria de usar esse espaço para uma reflexão acerca da diferença entre método e metodologia, com a qual espero guiar a conclusões diretamente relacionadas ao meu argumento central: o de que nossas expectativas para um trabalho de investigação permeiam a maneira como investigamos.

Enquanto métodos dizem respeito a técnicas e procedimentos essenciais para se atingir um objetivo parcial ou geral, metodologia concerne o estudo, o conhecimento dos métodos com os quais se executará esse objetivo. Nesse sentido, podemos compreender de maneira generalista que a metodologia é a compreensão intencional de quais métodos melhor se adéquam à investigação que queremos desenvolver. Naturalmente, e frequentemente na nossa área, resumimos metodologia como a categorização da pesquisa que intencionamos executar. Não raro nos referimos à metodologia como qualitativa ou quantitativa, em relação aos tipos de evidência que vamos colher; como experimental ou exploratória, de acordo com a intenção de testar ou reconhecer o objeto de estudo; como de campo ou bibliográfica, a depender do objeto, para citar apenas alguns exemplos. Embora essa descrição esteja correta, ela também está incompleta, porque metodologia também se preocupa com o estudo intencional de quais são os melhores métodos para que nossa pesquisa alcance seu objetivo, quaisquer que sejam as combinações de tipos de evidência, objetos investigados e outros entes essenciais de uma pesquisa. O que ocorre é que essas escolhas metodológicas são dependentes diretamente das particularidades da investigação e usualmente não anunciadas. Mesmo assim, elas demandam justificativas explícitas, ou ficará a cargo de quem lê tentar compreender as razões pelas quais certos métodos, procedimentos e recortes foram eleitos.

Assim, o que quero defender é que metodologias não são entes autônomos, independentes das nossas expectativas, valores e objetivos, assim como não são descoladas das demandas dos dados que queremos coletar. Ademais, se alguns de seus aspectos podem ser prontamente classificados, outros transparecem nas decisões metodológicas tomadas. O que quero dizer com isso, enfim, é que nunca há falta de intencionalidade em uma pesquisa. Se escolhemos proceder metodologicamente de uma forma, é porque há restrições dos nossos objetivos e dos fatos que pretendemos compreender. Assim, uma metodologia é desenhada tanto quanto procedida; talvez a maior diferença que exista seja entre um desenho anterior à pesquisa, mais típico de investigações experimentais, e um desenho processual, mais típico de explorações. Vale como ponto de curiosidade aqui: nós, pesquisadores em história e filosofia da ciência no ensino, defendemos amplamente ensinar que, na ciência exata, não existe método definido, que há uma dinâmica sofisticada entre teoria, experimento e observação. O mesmo vale para a pesquisa em ensino de ciências, como não poderia deixar de ser.

Como expectativas estão diretamente associadas a metodologias - ou seja, como desenhamos nossa investigação muitas vezes a partir de nossas expectativas - e como identifiquei uma hipótese (mesmo que não enunciada) de que a biografia tinha a potencialidade de promover discussões epistemológicas de gênero e raça, indiquei no parecer que seria muito importante haver um grupo de controle. Grupos de controle são ferramentas essenciais para ponderar se a potencialidade esperada pode ser associada ao fenômeno em estudo. Sugeri inclusive duas possibilidades de abordagem para um grupo como este: um em que se aplicasse apenas um texto filosófico com o mesmo objetivo ou um a que se expusesse uma obra de ficção científica com o mesmo tema, como as obras de Octavia Butler.

Os autores replicaram, enfatizando que explicitaram que a pesquisa é de natureza qualitativa e exploratória, tipo de investigação em que um grupo de controle não faz sentido.

[...] a pesquisa é delineada como exploratória de cunho interpretativo. Exploratória no sentido de buscar indícios iniciais de sentidos produzidos sobre epistemologia da ciência. O estudo não busca “identificar o potencial”, como alega o parecer, mas sim possibilidades. São palavras que denotam sentidos diferentes para uma pesquisa, pois potencialidade parte de um juízo de valor, o que tentamos evitar (Autores, réplica).

Concordo com eles; de fato, grupos de controle têm a ver com teste de hipóteses, e não com o reconhecimento de uma realidade, que é o objetivo de uma exploração. No entanto, como fiz na seção anterior, preciso frisar novamente que muitos aspectos do texto sugeriam e ainda sugerem uma hipótese implícita. Nesse sentido, minha indicação no parecer poderia ter sido a de trocar o tipo de pesquisa anunciada - o que geraria, por sua vez, também uma incoerência entre expectativas e metodologias, porque a execução metodológica já pretérita fora a de uma exploração, sem grupo de controle.

Também cabe reflexão sobre a escolha do universo de investigação, para a qual foram dadas três justificativas: (a) “variedade geográfica [para] aumentar a confiabilidade” (Gomes & Francisco Jr., 2024, p. 6); (b) docentes em formação, pela “necessidade de ampliar a discussão e o incentivo de mulheres na ciência” (ibid), e (c) estudantes que “não tivessem cursado disciplinas que contemplassem história e filosofia da ciência” (ibid). Tratarei a justificativa (a) na seção acerca do domínio fatual, a seguir, porque essa escolha metodológica tem implicações na coleta de evidências. Focarei aqui nas justificativas (b) e (c).

Quanto à escolha de licenciandos, penso ser um recorte apropriado. A pesquisa em ensino de ciências tem buscado mostrar as potencialidades educacionais da história e da filosofia da ciência, por uma variedade de razões (Matthews, 1995Matthews, M. (1995). História, filosofia e ensino de ciências: a tendência atual de reaproximação. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 12, n. 3, p. 164.; Lederman, 2007Lederman, N. G. (2007). Nature of Science: Past, Present, and Future. In: Abell, S. K.; Appleton, K.; Hanuscin, D. (eds). Handbook of Research on Science Education. Routledge.; Matthews, 2012Matthews, M. R. (2012). Changing Focus: From Nature of Science to Features of Science. In: Khine, M. S. (ed). Advances in Nature of Science Research. Springer.). Naturalmente, também a pesquisa tem mostrado os desafios envolvidos. Existe uma grande dificuldade em associar história e ensino de ciências em razão dos currículos engessados, das práticas de ensino tacitamente difundidas e da falta de acesso a fontes históricas apropriadas para os variados níveis de ensino (Martins, 2007Martins, A. F. P. (2007). História e Filosofia da Ciência no ensino: Há muitas pedras nesse caminho… Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 24, n. 1, p. 112.; Damásio & Peduzzi, 2017Damásio, F.; & Peduzzi, L. O. Q. (2017). História e Filosofia da Ciência na Educação Científica: Para quê?Ensaio - Pesquisa em Educação em Ciências, v. 19, e2583.). A formação inicial de professores é, de fato, o âmbito mais propício para dar início a uma possível mudança de paradigma que chegue às salas de aula da educação básica. Ainda, é essencial levar em conta que a própria história e a própria filosofia da ciência são temas de aprendizado importantes, não importa em que nível escolar, já que vivemos em um mundo baseado fortemente na ciência e na tecnologia (McComas et al, 1998McComas, W. et al. (1998). The nature of science in science education: an introduction. Science & Education, v. 7, n. 6, p. 511.). Contudo, nenhuma dessas informações constava no texto; a justificativa desse recorte, novamente, foi generalista em termos epistemológicos e assertiva em relação ao incentivo para mulheres cursarem e se interessarem pela ciência.

Gerou-me curiosidade, também, a seleção de sujeitos que não houvessem sido expostos a disciplinas de caráter histórico-epistemológico. Apesar de achar válida a escolha, ela novamente me remete à hipótese não enunciada do trabalho. A presença de alunos que tivessem tido contato formal com o tópico possivelmente propiciaria discussões em grupo que mudariam os resultados, o que não seria necessariamente um mau desfecho. Além disso, a biografia aparentemente aborda questões que disciplinas histórico-epistemológicas tocam apenas de passagem. Assim, parece-me que essa escolha também possa ter algo a ver com a hipótese implícita: sendo expostos formalmente a um material como esse pela primeira vez, que sentidos esses alunos dariam para as questões de raça e gênero (presentes em oito das onze questões)?

É importante esclarecer, contudo, que as reflexões que trouxe nos dois últimos parágrafos não fizeram parte do parecer. Deixei apenas uma caixa de comentário no texto, sobre a justificativa (c), que também foi entregue às autorias. Contudo, encontro espaço aqui para ampliar essa discussão com os membros da área como um todo. É evidência anedótica o que trago aqui, mas ao longo do meu percurso acadêmico, testemunhei colegas dizendo que recortes são recortes, que prescindem de maiores justificativas. Tenho minhas dúvidas quanto a isso, sobretudo quando se trata de pesquisas de campo ou pesquisas gerais com pessoas. A justificativa de uma escolha de universo pode revelar muitas coisas sobre as expectativas do pesquisador e, por outro lado, influenciar a seleção do que o investigador entende por evidências.

DOMÍNIO FACTUAL

Como nossas expectativas moldam nossas metodologias, elas também podem desempenhar um papel importante na nossa escolha de evidências, propagadas ou não pela metodologia escolhida. Indiquei na seção anterior que uma das justificativas para o recorte - a ampliação geográfica para aumento da confiabilidade - seria melhor explorada a partir da percepção do domínio factual da produção do conhecimento acadêmico. Mais uma vez, reitero que acho válida a escolha de ampliar o alcance geográfico do universo e, mais uma vez, indico que senti falta de uma justificativa para tal escolha. Mas o que é mais interessante é a relação que essa escolha acabou tendo com as evidências apresentadas: nenhuma. As respostas não foram classificadas por instituição, o que permitiria ao leitor associar localização geográfica às respostas. Os autores responderam que não houve variação significativa. Aos leitores, resta aceitar, mesmo que essa evidência pudesse ter sido apresentada na forma de tabela simples na discussão dos resultados para cada resposta.

O mesmo ocorreu quando questionei se houve diferenças entre respostas por gênero ou por raça. O perfil racial dos alunos, aliás, não é um item de identificação no questionário, embora a pesquisa seja sobre possibilidades de uma biografia científica “para a valorização de uma ciência química mais feminina e negra” (Título). Mas esse é um ponto metodológico e quero aqui reiterar a parte factual dessa questão. Mais uma vez, resta ao leitor acreditar que não houve diferenças significativas. A questão é: quando uma das justificativas teóricas é que o contato com histórias de mulheres negras pode propiciar um processo identitário de outras meninas/mulheres e uma problematização do padrão masculino entre meninos/homens, esse deveria ser um resultado explícito a ser oferecido pelo trabalho.

Conhecer a demografia que é fonte de dados em pesquisas com pessoas é essencial, embora um assunto pouco explorado na nossa área. Por um lado, o subgrupo escolhido para uma pesquisa pode não ser representativo do aluno médio, como Kanim e Cid (2020Kanim, S. & Cid, X. C.(2020). Demographics of physics education research. Physical Review Physics Education Research, v. 16, n. 2.) observaram no contexto estadunidense, levando a conclusões que nem sempre podem ser ampliadas para a prática escolar cotidiana. Por outro, noto que é impressionantemente frequente a apresentação de respostas de alunos sem o devido perfilamento em pesquisas com pessoas no Brasil. Isso me levou a comentar no parecer uma incoerência da nossa área, que gerou outro incômodo entre os autores. É praticamente consensual que nossos alunos não são tábulas rasas conceituais, que eles trazem seus conhecimentos para a sala de aula e que esses conhecimentos influenciam a maneira como aprendem e veem o mundo, como mostraram as pesquisas em concepções espontâneas nos anos 1980 (Driver, 1989Driver, R. (1989). Students’ conceptions and the learning of science. International Journal of Science Education, v. 11, p. 481.), a importância dos subsunçores para a Teoria da Aprendizagem Significativa (Ausubel, 1968Ausubel, D. P. (1968). Educational Psychology: A cognitive view. Nova York: Holt, Rinehart & Winston.) e a pedagogia crítica de Paulo Freire (1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido, 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; 1996Freire P. (1996). Pedagogia da autonomia. 25a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.), para citar apenas alguns exemplos. Contudo, pelo fato de não darmos valor factual a quem eles são demograficamente, eu tendo a entender que a área os vê, implicitamente, como tábulas rasas ideológicas (contrariando tacitamente o corpo da obra de Paulo Freire).

O incômodo dos autores proveio do fato de que há, de fato, uma subseção intitulada “Conhecimentos prévios dos alunos sobre cientistas”, com a qual eles compreendiam ter oferecido ao leitor um conhecimento mais profundo dos alunos. Ali, os autores dedicam-se a analisar as respostas dadas pelos alunos nas perguntas de 1 a 6 no questionário. Dali, obtiveram-se alguns resultados que reiteram a ideia de que há pouco contato dos alunos com personagens não festejados da ciência, já que a maioria dos alunos indicou ter tido contato com outras histórias apenas na graduação e que têm grandes dificuldades de pensar prontamente em exemplos de cientistas mulheres.

Contudo, a análise do perfil dos alunos poderia ter levado os resultados mais à frente. Há trechos de respostas oferecidas pelos autores que nos levam a pensar que alguns deles tinham bagagem prévia sobre o assunto, até mesmo posicionamento político, como as respostas dos estudantes E06 e E08 na tabela 4, E45 e E06 na tabela 6 e E49 e E19 na tabela 8. Nessa última tabela, E49 parece fazer uso de linguagem inclusiva. Sei que uma investigação mais inclinada ao levantamento não tem a capacidade de triangular esses dados com entrevistas e observações do pesquisador; ainda assim, esses resultados não podem ser diretamente correlacionados com a aplicação em si, já que podem ter raízes em outros âmbitos das vidas dos estudantes, como interações em redes sociais, por exemplo. Certamente, esse tipo de compreensão só adviria de entrevistas e observações, que não são aplicáveis a levantamentos. Mas uma coisa em um levantamento é possível: a categorização dos resultados quantitativos por gênero, raça e localização geográfica dos alunos, que nesse caso são parte central da investigação.

Concedo que os autores indicaram que não houve diferenças significativas nas respostas, mas dados simples ajudariam o leitor a tecer suas próprias conclusões. Os autores replicaram dizendo que “mesmo para citar duas mulheres cientistas, apenas 13 em 61 (sendo 42 mulheres) foram capazes” (Autores, réplica), o que me levou a crer que não entenderam minha indicação de uma categorização simples de resultados, que poderia ter sido feita em uma frase e que mostraria ao leitor, quantitativamente, que essa distribuição foi, de fato, insignificante em termos de gênero e raça. Desses 13 que citaram duas mulheres, quantos eram mulheres, quantos eram negros, quantos estavam em cada instituição?

Quero consolidar meu argumento com a análise de outro ponto que indiquei na avaliação. Na questão 10, muitos alunos demonstraram ter reconhecido mais elementos cognitivos e metodológicos da ciência do que contextuais, no texto. Como a impressão que tive da análise desses resultados, sobretudo nas considerações finais, foi a de que esse foi um resultado inesperado pelos autores, avaliei no parecer que isso poderia ser associado a outros fatores, não apenas a uma limitação do objeto de aprendizagem escrito, a biografia da cientista. Indiquei, por exemplo, que o aluno que estuda química é usualmente mais inclinado a questões metodológicas, pela própria natureza dessa ciência; portanto, entendi que esse resultado pode ser correlacionado a outras coisas e que uma análise demográfica mais profunda poderia ter revelado uma variedade de possibilidades interpretativas para esse resultado.

Em réplica, os autores asseveraram que “Há uma homogeneidade muito grande nas estruturas curriculares dos cursos de licenciatura atualmente, bem como no perfil socioeconômico [...] o que explicaria isso, embora não seja intenção da pesquisa tal discussão” (Autores, réplica). No entanto, homogeneidade em grandes bancos de dados como o do INEP tem a ver com pequenas variações médias; essa homogeneidade não se aplica necessariamente aos alunos investigados, justamente porque as instituições não foram escolhidas intencionalmente pelos autores de modo a replicar o perfil usual do licenciando em química. Parece-me, assim, que esse contra-argumento dos autores é incoerente com o propósito inicial de ampliar geograficamente o universo dos alunos, ação desnecessária caso se tome como axioma que qualquer subgrupo estudado seja uma replicação do perfil nacional mais amplo.

É certo que é impossível que uma pesquisa, sozinha, considere cada idiossincrasia de cada sujeito participante. Por outro lado, há experiências compartilhadas por localização geográfica, gênero e raça que podem ser associadas aos resultados de qualquer pesquisa. Essas experiências, aliás, não deixam de informar a maneira de ver o mundo do aluno assim que ele entra em sala de aula. É por isso que usei a expressão provocadora “tábula rasa ideológica”: porque em investigações, sobretudo como esta que tinha raça e gênero como um dos pontos axiológicos e localização geográfica como ponto metodológico, esse tipo de dado deve ser oferecido ao pesquisador de maneira mais detalhada, mesmo que os pesquisadores o tenham detectado como insignificante. Mas gostaria de esclarecer que essa não é uma crítica apenas ao trabalho em análise, senão a toda a área. E enfim, como curiosidade, vejo esse ponto também como uma incoerência das próprias pesquisas em história e filosofia da ciência no ensino: queremos ensinar aos alunos que os cientistas têm perfis ideológicos e que isso muitas vezes influencia a maneira como fazem ciência, mas temos dificuldade de associar o mesmo efeito aos nossos alunos sujeitos de pesquisa, de reconhecer que quem eles são influencia as evidências que eles nos propiciam.

Relativamente a mais uma prática na área, e não um problema específico do manuscrito em questão, levantei a questão do oferecimento de evidências na forma de trechos que passam pela curadoria dos pesquisadores. Ao todo, os pesquisadores tiveram acesso a um universo de aproximadamente 400 respostas a questões abertas, mas apresentaram no manuscrito apenas alguns exemplos. Logicamente, seria impossível apresentar todas as respostas e considero positivo que se tenham criado categorias com dados quantitativos para a melhor apreciação do leitor. Contudo, os trechos oferecidos como exemplos muitas vezes não ressoam com o leitor; alguns parecem genéricos demais ou associados demais à biografia, a qual não tive acesso durante a avaliação (o que será discutido na próxima seção). Considerando a possibilidade de que tais trechos tenham sido escolhidos por serem os melhores, e pelo fato de não haver triangulação com outros métodos de coleta de dados - o que uma pesquisa de campo forneceria - cabe indagar sobre quais eram os efeitos esperados pelos pesquisadores ao apresentarem essas evidências. Essa foi uma questão apontada no parecer que não foi replicada pelos autores. Nesse ponto, assumo como fundamental a iniciativa da revista de depositar os dados das pesquisas empíricas no dataverse. Apesar de eu não ter tido acesso a tais dados durante a avaliação, em respeito às normas de avaliação anônima, certamente voltarei a eles com sua publicação no depósito. Sinto que é importante frisar novamente que, em qualquer área acadêmica, bons artigos não devem ter a simples publicação como objetivo final, mas suas posteriores circulação e consequente crítica; esse trabalho acadêmico essencial de crítica e replicação certamente ganhará força com o acesso a tais dados.

DOMÍNIO HISTÓRICO E HISTORIOGRÁFICO

Na primeira versão do manuscrito, os autores afirmaram que a pesquisa foi feita em três etapas, a primeira delas sendo o desenvolvimento da biografia de Alice Ball, a partir de fontes primárias e secundárias. Porém, minha compreensão era que o manuscrito relatava apenas uma pesquisa - o levantamento com pessoas - e não tratava da pesquisa bibliográfica e de desenvolvimento instrucional que levou à biografia como resultado. Não acho que isso seja um problema, afinal há tópicos suficientes para exploração na pesquisa apresentada. Espero, por outro lado, que o processo igualmente investigativo de transformar informações históricas em material didático seja publicado e amplamente apreciado. É importante enfatizar, novamente, que os leitores do manuscrito e deste artigo-parecer têm acesso à biografia, o produto final, no dataverse da Ensaio.

Ocorre que uma consequência dessa escolha foi o fato de que não tive acesso à biografia para análise quando recebi o manuscrito, e isso implicou uma incapacidade de avaliar as evidências oferecidas pelos autores para além do que eles mesmos indicaram nas análises dos resultados. Coube-me, portanto, avaliar brevemente as justificativas para o uso didático de uma biografia científica.

O trabalho destina uma seção a um diálogo com a literatura sobre biografias científicas e suas possibilidades didáticas. Nela, são apresentadas fontes que defendem que essas obras podem ser meios para introduzir personagens menos conhecidas da ciência e, além de propiciarem perspectivas sobre a ciência produzida, podem também humanizar os cientistas, adicionando a suas vidas acadêmicas também contextos e particularidades. São muitas possibilidades positivas, mas, na primeira versão, nenhuma fonte ou posicionamento dos autores que fosse mais crítico em relação a esses materiais.

Esse posicionamento crítico é essencial e foi indicado por mim como fundamental para a publicação do artigo. Como não havia uma seção dedicada ao trabalho investigativo de desenvolvimento da biografia, não era possível saber o que caracteriza uma boa biografia científica para os autores. É certo que eles indicaram que usaram fontes históricas primárias e secundárias; resta a questão, todavia, relativa à confiabilidade dessas fontes. A história da ciência também passou por grandes mudanças nas últimas décadas e trabalhos antes considerados bons passaram a ser desafiados. Não é raro encontrar trabalhos que apresentam novas visões para episódios cujas histórias dávamos por conhecidas. Para citar alguns exemplos, há questões sobre a “controvérsia” entre as ópticas de Newton e Huygens (Moura, 2016Moura, B. A. (2016). Newton versus Huygens: como (não) ocorreu a disputa entre suas teorias para a luz. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 33, n. 1, p. 111.), a importância de experimento de Michelson-Morley para a Teoria Especial da Relatividade (Kragh, 1987Kragh, H. (1987). An introduction to the historiography of science. Cambridge University Press.) e a indicação de Max Planck como propositor da quantização da energia (Kragh, 2000Kragh, H. (2000). Max Planck: the reluctant revolutionary. Physics World.).

Uma biografia científica é um trabalho historiográfico e, com ele, são necessários cuidados da mesma natureza (Kragh, 1987Kragh, H. (1987). An introduction to the historiography of science. Cambridge University Press.). Mesmo fontes primárias autobiográficas precisam ser abordadas com cautela. Os cientistas, e quem quer que seja que conte suas histórias, mudam de perspectiva com a vida. Novas fontes surgem, historiadores com melhor conhecimento científico ou da língua nativa do pesquisador encontram novas evidências, entre outras possibilidades. Não há objetividade clássica na história da ciência: novas descobertas de fontes históricas mudam nossa percepção de fatos pretéritos.

Uma das fontes apresentadas na seção indica que um dos objetivos de uma biografia científica é o de enaltecer o biografado. Na minha compreensão, esse objetivo tem dois lados que quero problematizar. É lógico, por um lado, que uma biografia pode enaltecer alguém; afinal, muitas vezes se desenvolvem biografias de figuras consideradas positivas. Claro, biografias também podem ser feitas de figuras aviltantes da história. De todo modo, enaltece-se alguma característica que, naquela personagem, se diferencia do ser humano médio. Por outro lado, a escolha de uma biografia, sendo ela própria uma escolha de contar a história de alguém que fez uma grande contribuição, é feita pelo biógrafo, alguém já encantado (positiva ou negativamente) com a personagem. É possível - e muitas vezes ocorre - que essa estima do autor pelo objeto da biografia influencie na maneira como a história é narrada. Portanto, são fundamentais cuidados historiográficos e a vigilância axiológica do autor - ou seja, sua capacidade de revisar seu próprio texto e de notar o quanto de sua idealização do cientista transparece na biografia, o quanto há do biografado e o quanto há do próprio biógrafo na obra. É certo, contudo, que os autores fizeram um esforço especial, passando a biografia pela validação de duas pesquisadoras; cabe, ainda, a questão sobre o quanto da história de Alice Ball, através de fontes confiáveis, sabiam as avaliadoras. Os doutos em história da ciência não têm a obrigação de saber toda a história da ciência.

Não podemos esquecer que a biografia científica produzida tinha outro propósito, para além do historiográfico: foi desenvolvida para ser um objeto de aprendizagem. Aqui, gostaria de trazer questões para a área, porque eu mesma gostaria de saber se um norte é possível. Pelo simples fato de terem um protagonista, não passariam as biografias a impressão de um cientista heroico? Qual peso é necessário designar à comunidade científica em uma obra como essa? Quanto de história da comunidade científica pode coexistir na obra antes que ela deixe de ser uma biografia? Seria a ideia heroica e individualista um preço razoável a pagar por um momento de apreciação de outras características de uma cientista importante, porém desconhecida? Se sim, que ações posteriores podem ser feitas para mitigar a ideia individualista da ciência?

A VERSÃO FINAL DO TRABALHO

Algumas modificações importantes foram introduzidas no texto, que certamente mitigaram muito das minhas impressões acerca do trabalho até aqui discutidas. Já na introdução, é possível notar que os autores incluíram mais algumas considerações sobre questões tradicionalmente tidas como epistemológicas e alteraram, como tinham afirmado na réplica, o termo “potencialidade” por “possibilidade” na questão de pesquisa.

Na seção “Biografias científica para o debate histórico, epistemológico e social”, os autores incluíram uma discussão sobre os limites de uma biografia científica, como indiquei no parecer e como discuti na seção acima. A inserção é realmente muito boa e traz justamente uma discussão sobre a cautela essencial para uma biografia científica, lembrando que elas podem inadvertidamente passar uma ideia individualista da ciência, mas reiterando alguns cuidados fundamentais com uma citação apropriada. Cabe enfatizar, ainda, que o parágrafo final dessa seção, que é argumento próprio dos autores, se dedica a associar a construção de uma biografia a aspectos caros da história e da filosofia da ciência e, de maneira mais importante, suprimiu o trecho em que indicavam que era esperado que biografias de mulheres negras pudessem produzir identificação entre meninas e problematização entre meninos, mais coerente com uma pesquisa de exploração.

Antes de passar à análise da próxima seção, gostaria de esclarecer um ponto essencial. Minha posição não é contra a possível capacidade de biografias científicas de mulheres negras de produzir tais sentidos entre alunos; de fato, acho que esse é um resultado possível, mas que precisa ser melhor investigado para a compreensão de possíveis associações ou causalidades. Além disso, o desfecho da seção passava a impressão de uma hipótese anterior, que definitivamente foi aplacada com a nova redação, adicionalmente a demonstrar mais coerência metodológica com o próprio estudo de exploração.

Na seção “Procedimentos Metodológicos”, foi ampliada a justificativa para um estudo exploratório. Mais importante ainda foi a adição de justificativas robustas para a escolha de Alice Ball, com razões sociológica, epistemológica, de gênero e de raça. Além disso, foi introduzida uma pormenorização do texto biográfico, ao qual não tive acesso na avaliação, com a apresentação de um quadro com as principais seções da biografia e suas sínteses. O que pude interpretar das sínteses envolve a vida, o trabalho metodológico, o roubo de autoria e o reconhecimento póstumo de seu trabalho, o que é frisado pelos autores em parágrafo subsequente, em que defendem que o texto contemplou características da ciência variadas, inclusive as que tradicionalmente entendemos como mais cognitivas. Outras minúcias metodológicas foram adicionadas, entre elas, uma exemplificação de como foi executado o processo de codificação das evidências, na descrição da pré-análise dos dados, e uma descrição mais abrangente da etapa de exploração do material.

Um ponto interessante é que os autores escolheram manter os resultados como oferecidos na primeira versão, demonstrando que não entenderam como fundamental a classificação das respostas por raça, gênero ou localização geográfica. Dessa forma, vejo-me na obrigação de enfatizar o argumento que apresentei na seção sobre o domínio factual. É certo que muitas das alterações feitas até esse ponto atenuaram a minha impressão de uma hipótese anterior e que tornaram o texto mais coerente com uma pesquisa exploratória. Contudo, o título do trabalho e a presença dos temas de raça e gênero em 8 das 11 questões do instrumento continuam demonstrando uma inclinação do trabalho, o que, para mim, é suficiente para que as respostas fossem analisadas também por esse viés. Ademais, insisto também que a própria ideia metodológica de ampliação de universo geograficamente seria muito melhor justificada se fosse também ela uma categoria de análise para cada resposta, como já fiz na seção acerca do domínio metodológico.

Devo apontar que as próprias seções de análise dos resultados também tiveram mudanças de modo a mitigar a impressão de uma hipótese anterior. Trechos foram adicionados, sobretudo na seção “Sentidos sobre a compreensão epistemológica da produção do conhecimento”, para indicar que uma série de fatores eram esperados com as respostas às questões 10 e 11, incluindo aqueles mais cognitivos, epistêmicos. Os autores também subtraíram os termos “dimensão interna” e “dimensão externa”, que certamente geravam conflitos com a própria análise da filosofia da ciência. Adicionaram à discussão, também, uma razão para a inclinação a aspectos da ciência relativos às suas metodologias, enfatizando que esse era um ponto destacado na biografia. Somado ao fato de que as considerações finais foram também alteradas, dando ênfase a todos os aspectos da ciência, percebo que os próprios autores compreenderam que havia uma inclinação na versão inicial, corrigida na versão final. Sinto, portanto, que as expectativas dos autores estão agora mais reguladas, apesar de o título e de o questionário ainda passarem a impressão que reinou em minha primeira leitura.

Por fim, gostaria de destacar que os autores adicionaram trechos em que indicam os limites da investigação, apontando que o texto, em si, não foi suficiente para gerar análises mais profundas da ciência como um todo e, sobretudo, nas interseções entre contextual e cognitivo (que valores contextuais desempenham papel na ciência). Indicaram também a necessidade de pesquisas não exploratórias posteriores, que levem em consideração interações em sala de aula. Enfim, ponderaram investigar também os conhecimentos filosóficos prévios dos alunos. Para mim, são muito salutares essas adições; não podemos esperar que pesquisas sejam perfeitas, embora muitas pesquisas relatadas na nossa área, especialmente com pessoas, indiquem majoritariamente os pontos de sucesso. A educação científica lida com objetos sofisticados e os limites de uma pesquisa deveriam ser evidentes aos pesquisadores e, por que não, aos leitores igualmente. É nesses limites que pesquisas posteriores podem se debruçar, oferecendo melhores resultados, relações de associação mais fortes, saindo do mundo as pesquisas isoladas temporal e espacialmente, com pequena universo, para o da pesquisa robusta, capaz de promover associações mais fortes e possível generalizações.

MINHAS CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O PROCESSO

É possível que o leitor deste artigo-parecer seja levado à impressão de que eu tenha visto lacunas demais no manuscrito. Minha forma de expressão escrita tende a ser assertiva e minha maneira de análise, herdada de pesquisas históricas focadas nas relações entre ciência e valores, são geralmente compreendidas assim. Infelizmente, sinto que essa foi a reação dos autores ao receberem meu parecer. Quero usar esse espaço para afirmar que isso não procede. A firmeza da minha crítica, presente no detalhamento que busquei apresentar aqui, é em razão de eu ter achado o trabalho muito bom; já indiquei minha satisfação com o rigor do trabalho e com o as alterações feitas, o que reitero. Infelizmente, porque sou professora de física, não há espaço nas minhas aulas para a exploração do tema; se houvesse, certamente buscaria a biografia e tentaria levá-la à sala de aula, mesmo que não fizesse uso do questionário desenvolvido no manuscrito.

Muitas das críticas que teci aos autores foram mais para a área do que para eles, na verdade. É essencial que nossa área busque a autocrítica com mais frequência, pois refletir sobre como nossas expectativas se relacionam com nossos métodos e com as evidências que colhemos é parte da racionalidade acadêmica. Quero confessar, aqui, que eu mesma já produzi trabalhos que tiveram inconsistências como as que apontei aqui, e continuarei fazendo, provavelmente. Espero passar por críticas dessa natureza, por mais desconfortável que sei que me sentirei. Mas conhecimento acadêmico precisa ser criticado rigorosamente para que melhore, não há outra saída. O processo é incômodo, de fato, mas inescapável.

Para fechar, gostaria de compartilhar (mais) uma curiosidade. Durante todo o processo de avaliação, referi-me aos autores como “as autoras”, porque tinha certeza de que eram mulheres. Para minha surpresa, descobri que um dos autores é homem. Devo enfatizar que foi uma grata surpresa, aliás. Tópicos de raça e gênero não são apenas contextuais, mas muitas vezes são cognitivos. Sabemos de muitos episódios da história da ciência em que visões supremacistas influenciaram expectativas, metodologias e evidências - e é por isso que critiquei classificações tipo interna e externa à ciência. Se eles desempenham papel cognitivo, eles precisam ser do interesse de todos os que praticam ciência, história da ciência, filosofia da ciência e ensino de ciências, porque são simultaneamente essenciais para a justiça e para a epistemologia.

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  • O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pela verba para a editoração deste artigo.

Editado por

Marina Rodrigues Martins, Paula Cristina Cardoso Mendonça, Luiz Gustavo Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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