Acessibilidade / Reportar erro

ARTIGO-PARECER: DE QUE CIDADANIA ESTAMOS FALANDO? UMA REVISÃO DE LITERATURA DAS PESQUISAS EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS COM PERSPECTIVA DE FORMAÇÃO PARA CIDADANIA

INFORME DE ARBITRAJE: ¿DE QUÉ CIUDADANÍA ESTAMOS HABLANDO? UNA REVISIÓN BIBLIOGRÁFICA DE INVESTIGACIONES EN EDUCACIÓN EN CIENCIAS CON UNA PERSPECTIVA DE FORMACIÓN PARA LA CIUDADANÍA

ARTICLE-OPINION: WHAT CITIZENSHIP ARE WE TALKING ABOUT? A LITERATURE REVIEW OF RESEARCH IN SCIENCE EDUCATION WITH A PERSPECTIVE ON TRAINING FOR CITIZENSHIP

RESUMO:

O presente texto visa sistematizar algumas contribuições materialistas e dialéticas para pensarmos a categoria “cidadania” na educação científica sob uma perspectiva emancipatória. Trata-se de um artigo-parecer que possibilita uma continuidade com as reflexões contidas no artigo de Rosa, Lima e Cavalcanti (2023) intitulado “De que cidadania estamos falando? Uma revisão da literatura das pesquisas em educação em ciências com perspectiva de formação para a cidadania”. A partir de mobilização de pensamentos da sociologia, filosofia e psicanálise, elegemos quatro tópicos como contribuições às noções de cidadania e emancipação na educação em ciências: a cidadania como slogan que precisa ser problematizado, a natureza ideológica do Estado de direito democrático, um olhar crítico em relação aos horizontes democráticos e caminhos para a emancipação humana no contexto da educação científica. Trata-se de um convite à educação científica para discutir as bases da nossa sociedade atual e vislumbrar novas formas de socialização e civilização.

Palavras-chave:
Ensino de ciências; Cidadania; Emancipação humana

RESUMEN:

Este texto tiene como objetivo sistematizar algunos aportes materialistas y dialécticos para pensar la categoría “ciudadanía” en la educación científica desde una perspectiva emancipadora. Este es un artículo de opinión que permite dar continuidad a las reflexiones contenidas en el artículo de Rosa, Lima y Cavalcanti (2023) titulado “¿De qué ciudadanía estamos hablando? Una revisión de la literatura sobre investigaciones en educación científica con una perspectiva de formación para la ciudadanía”. A partir de la movilización de pensamientos provenientes de la sociología, la filosofía y el psicoanálisis, elegimos cuatro temas como contribuciones a las nociones de ciudadanía y emancipación en la educación científica: la ciudadanía como lema que necesita ser problematizado, la naturaleza ideológica del Estado democrático de derecho, un Mirada crítica en relación a los horizontes democráticos y los caminos de emancipación humana en el contexto de la educación científica. Esta es una invitación a la educación científica para discutir los fundamentos de nuestra sociedad actual e imaginar nuevas formas de socialización y civilización.

Palabras clave:
Enseñanza de las ciencias; Ciudadanía; Emancipación humana

ABSTRACT:

This text aims to systematize some materialist and dialectical contributions to think about the category “citizenship” in scientific education from an emancipatory perspective. This is an opinion article that allows continuity with the reflections contained in the article by Rosa, Lima and Cavalcanti (2023) entitled “What citizenship are we talking about? A literature review of research in science education with a perspective on training for citizenship”. From the mobilization of thoughts from sociology, philosophy and psychoanalysis, we chose four topics as contributions to the notions of citizenship and emancipation in science education: citizenship as a slogan that needs to be problematized, the ideological nature of the democratic rule of law, a critical look in relation to democratic horizons and paths to human emancipation in the context of scientific education. This is an invitation to scientific education to discuss the foundations of our current society and envision new forms of socialization and civilization.

Keywords:
Science teaching; Citizenship; Human emancipation

INTRODUÇÃO

O presente texto se configura como um artigo-parecer oportunizado pelos editores da Revista Ensaio devido ao alinhamento da Revista com a ciência aberta. Ele possibilita um espaço de continuidade das reflexões contidas no artigo intitulado “De que cidadania estamos falando? Uma revisão da literatura das pesquisas em educação em ciências com perspectiva de formação para a cidadania”, de Gabriela Gomes Rosa, Nathan Willig Lima e Cláudio Cavalcanti.

Trata-se de um ensaio que não visa retomar todos os elementos contidos no artigo original e nem mesmo se colocar como um prolongamento do parecer concretizado, mas sim se coloca como uma contribuição reflexiva construída a partir e para além do referido artigo. Tem como pano de fundo os horizontes formativos críticos que podemos ou devemos considerar quando falamos sobre educação científica e educação cidadã no contexto da nossa sociedade capitalista contemporânea.

Inicio o texto por ressaltar a importância e a simbologia de redigir um texto na forma ensaio perante os moldes e normas “da modernidade” que estamos acostumados a lidar, naturalizadas nas nossas relações e constituições acadêmicas.

O ensaio não segue as regras do jogo da ciência e da teoria organizadas, segundo as quais, como diz a formulação de Spinoza, a ordem das coisas seria o mesmo que a ordem das ideias. Como a ordem dos conceitos, uma ordem sem lacunas, não equivale ao que existe, o ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva. [...] Se a verdade tem, de fato, um núcleo temporal, então o conteúdo histórico torna-se, em sua plenitude, um momento integral dessa verdade. [...] O ensaio, porém, não quer procurar o eterno no transitório, nem destilá-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitório (ADORNO, 2012Adorno, Theodor W. (2012) O ensaio como forma. In: Notas de Literatura I. Trad. Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34., p. 25-27).

Assim, na contramão da nossa tradição de ciência positivista e fundamentalmente racionalista da ciência, cujas premissas se assentam na validação prévia dos conceitos diante a realidade e na concatenação estritamente lógica das ideias, o ensaio traz consigo uma certa rebeldia à formalidade - contendo aí seu elemento dialético. Segundo o pensador alemão Theodor Adorno, “Ele [o ensaio] toma a lógica hegeliana ao pé da letra: a verdade da totalidade não pode ser jogada de modo imediato contra os juízos individuais, nem a verdade pode ser limitada ao juízo individual” (Adorno, 2012Adorno, Theodor W. (2012) O ensaio como forma. In: Notas de Literatura I. Trad. Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34., p. 39), o que nos remente à necessária mediação permanente entre um tema particular e o todo - entendendo este todo (ou a realidade concreta) como constituída por múltiplas determinações. Para o autor, a relação entre natureza e cultura é o principal objeto desta forma de reflexão, e este é um modus operandi típico de abordagens dialéticas de mundo, pois priorizam não só as coisas como são, mas também a sua constituição histórica e o seu vir-a-ser.

No artigo de Rosa e colaboradores, os autores realizam uma revisão da literatura para investigar como o Ensino de Ciências tem tratado a formação para a cidadania e neste caminho trazem elementos muito pertinentes, que aqui neste ensaio serão objetos de reflexão e de elaboração sob uma perspectiva materialista dialética. Alguns questionamentos ajudarão a nortear as ideia: Por que é importante aos sujeitos se apropriarem da educação em ciências? Que sociedade temos e que sociedade queremos ter? Como a educação científica se relaciona com a sociedade concreta e que tipo de horizonte de mundo ela ajuda a construir?

Como forma de proceder, iremos partir de alguns pontos de interlocução com o artigo original e desdobrar alguns aspectos que consideramos relevantes para a discussão sobre a noção de cidadania no bojo da educação científica numa abordagem materialista dialética.

A CIDADANIA COMO SLOGAN QUE PRECISA SER PROBLEMATIZADO

Este primeiro tópico decorre de uma experiência pessoal que acredito elucidar minha entrada no tema em questão. Trata-se da participação em um congresso de ciências sociais no qual, dentre outras coisas, participei como ouvinte de um minicurso sobre os modelos de regimes democráticos.

Era o ano de 2019 e vivíamos no Brasil um fenômeno político fervoroso movido a paixões e ódios, polarizações e visões estereotipadas do que era o país naquela época, quais nossos reais problemas enquanto sociedade e como seria possível caminhar para algo construtivo diante um governo retrógrado que se instaurava. Conscientemente ou não, a matrícula no minicurso era uma forma de eu - professor e pesquisador na área da educação em ciências - tentar dialogar com os conhecimentos das ciências sociais em busca de caminhos, respostas, ou mesmo melhor formulação das perguntas.

O minicurso definitivamente não aconteceu desse jeito, mas sim de uma maneira estritamente técnica e categorial. Foram apresentados de forma abstrata quatro ou cinco modelos democráticos a partir dos quais se discutia os elementos em comum entre eles e aquilo que era particular de cada um. Lembro claramente de que, quanto mais avançávamos nas distinções dos modelos teóricos entre, mais distantes ficávamos da realidade que se fazia tão presente a nós naquele momento.

Naturalmente, como pesquisador e téorico, compreendo o valor e a importância das categorias teóricas como formas de sistematizar nosso conhecimento sobre o mundo com compromisso analítico, profundo e fundamentado. Mas, naquele contexto, me perguntava “como pode uma categoria teórica valer por si mesma, sem ‘demandar’ um vínculo com as condições concretas que lhe constituem?” - isso a nível epistemológico. Já sobre a relevância do tema: “A quem interessa um modelo ou outro?”, “Como os diferentes atores e setores da sociedade estão articulados? De que maneira se mobilizam para instaurar, manter ou romper cada um destes modelos?”.

Em contato com o artigo de Rosa e colaboradores, foi impossível não ter esse déjà-vu. Ao dizer que “Todo modelo de sociedade concebe um ideal de cidadão (Silva, 2010, Apud RosaRosa, Gabriela Gomes; Lima, Nathan Willig; Cavalcanti, Cláudio José de Holanda. (2023). De que cidadania estamos falando? Uma revisão de literatura das pesquisas em educação em ciências com perspectiva de formação para cidadania. Ensaio - Pesquisa em Educação e Ciências, Belo Horizonte, Volume 25.et al, p. 6) e que “Para cada modelo democrático, ademais, existe um cidadão ideal concebido” (p. 6), os autores nos convidam para refletirmos que sociedade é a nossa e que tipo de cidadãos ela concebe.

Para desenvolver esta reflexão, os autores utilizam como referencial teórico cinco diferentes modelos democráticos organizacionais (Pinhão e Martins, 2016): modelo democrático liberal clássico, modelo democrático liberal multicultural, modelo democrático procedimentalista, modelo democrático republicano e modelo democrático participativo. Tais tipologias foram detalhadas e desenvolvidas com rigor e interface com o ensino de ciências, de forma que minhas reflexões vão no sentido de trazer elementos da sociologia, filosofia e até da psicanálise para desnudarmos e desnaturalizarmos a própria noção de democracia - uma ideia tão estabelecida nas sociedades ocidentais que chega a ser tomada como ponto de partida, algo dado, indiscutível e inquestionável.

A NATUREZA IDEOLÓGICA DO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO

Vivemos hoje uma situação paradoxal: ao mesmo tempo em que a humanidade globalizada e virtualmente conectada está ancorada no veloz desenvolvimento das mídias sociais, dos aplicativos digitais e da “inteligência” artificial, nossa sociedade é profundamente cindida e desigual, de forma que, ao contrário de contribuir à diminuição das diferenças estruturais que assolam a população, proporciona experiências distintas entre os sujeitos. Ao mesmo tempo, a ideia de democracia aparece para nós como algo naturalizado, que parece dizer tudo quando na verdade não se compromete com nada.

Alguns pensadores fundadores da Escola de Frankfurt tinham grande preocupação com a linguagem e as formas com que uma certa perspectiva racionalista da ciência pensava materializar a essência dos fenômenos em conceitos.

A repetição cega e rapidamente difundida de palavras designadas liga à palavra de ordem totalitária. O tipo de experiência que personalizava as palavras ligando-as as pessoas que as pronunciavam foi esvaziado, e a pronta apropriação das palavras faz com que a linguagem assuma aquela frieza que era própria dela apenas nos cartazes e na parte de anúncios dos jornais. Inúmeras pessoas usam palavras e locuções que elas ou não compreendem mais de todo, ou empregam segundo seu valor behaviorista, assim como marcas comerciais que acabam por aderir tanto mais compulsivamente a seus objetos, quanto menos seu sentido linguístico (Adorno; Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W. Horkheimer, Max. (1985) Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar., p. 78).

Historicamente o campo educacional sempre foi uma esfera recheada de slogans e propagandas salvacionistas de metodologias ou perspectivas de ensino “inovadoras” e/ou tecnológicas - seja na perspectiva tecnicista da década de 60 quanto na colonização mercadológica da educação a partir da década de 90 (Laval, 2019Laval, Christian. (2019) A escola não é uma empresa: neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Boitempo.) - entre outras. É sempre urgente uma apropriação crítica do referencial teórico mobilizado no contexto educacional a fim de não repetirmos acriticamente ou mesmo não nos comprometermos com ideologias que nos são impostas sub-repticiamente.

No tema em questão, entram em cena pelo menos dois elementos: por um lado, o papel do Estado como definidor e possível garantidor dos direitos e deveres dos sujeitos - em um nível normativo, conceitual e, por isso, abstrato -, por outro, as condições concretas da vida humana, com suas contradições e idiossincrasias, que impõem condicionantes mais ou menos diretos que interferem nessa transferência linear entre o que é direito e o que se efetiva na realidade de cada sujeito ou grupo social.

Nas discussões sobre a natureza do direito, é necessário nos contrapor à ideia de que o direito se constrói em uma dimensão elevada e distanciada dos interesses imediatos dos seres humanos e se coloca como uma doutrina sacra que deve ser aceita, respeitada e nunca questionada. Pelo contrário, historicamente as legislações surgem para formalizar (ou seja, legitimar, normalizar e legalizar) as práticas que já acontecem na sociedade mas ainda sem respaldo jurídico.

Ao apresentar uma crítica do direito a partir do jurista russo Evgeni Pachukanis, Márcio Brilharinho Naves afirma que “A característica fundamental do fenômeno jurídico é que ele, como um sistema de relações sociais, corresponde ao interesse da classe dominante, e esse sistema é garantido pelo Estado que o tutela” (Naves, 2008Naves, Márcio Bilharinho. (2008) Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo., p. 30). O autor cita o referido jurista russo no seu livro A teoria geral do direito e o marxismo,

[...] a forma jurídica [...] é um produto da mediação real das relações de produção. [...] O poder estatal empresta clareza e estabilidade à estrutura jurídica, mas ele não cria os seus pressupostos, os quais se enraízam nas condições materiais, isto é, nas relações de produção”; [...] onde quer que se encontre uma camada de superestrutura jurídica, a relação jurídica é diretamente gerada pelas relações materiais de produção existentes entre os homens (Pachukanis apud Naves, 2008Naves, Márcio Bilharinho. (2008) Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo., p. 73-74).

Neste sentido, uma legislação nunca é alheia aos interesses, ideologias e motivações que permeiam a sociedade, mas antes, é decorrência deles e também dos seus legitimadores. A isso corresponderia o papel que o direito cumpre em regular e fazer-se cumprir sob determinadas normas as relações de produção que acontecem no bojo da sociedade mercantil e da exploração do trabalho no capitalismo.

O direito seria assim um reflexo da relação mercantil de troca, característica do sistema capitalista, “[...] uma relação entre os proprietários de mercadorias” (Pachukanis, 2017Pachukanis, Evigeny. (2017) Teoria Geral do Direito e Marxismo. Trad: Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo., p. 95 apud Pereira, 2018, p. 42). Dentro dessa ideologia burguesa, a noção de um sujeito - noção abstrata, universal, que aparentemente corresponderia a todas as pessoas de uma sociedade - “[...] se difere do indivíduo concreto, este com suas vicissitudes, vivências sociais, enquanto aquele uma abstração pela qual passamos a nos reconhecer” (Pereira, 2018, p. 40-41). Desse processo resulta que

O fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico [...] Somente em situações de economia mercantil nasce a forma jurídica abstrata, ou seja, a capacidade geral de possuir direitos se separa das pretensões jurídicas concretas. Somente a transferência contínua de direitos que tem lugar no mercado cria a ideia de um portador imutável. No mercado, aquele que obriga simultaneamente se obriga. Ele passa a todo momento da posição de credor à posição de obrigado. Dessa maneira, cria-se a possibilidade de abstrair as diferenças concretas entre os sujeitos de direitos e reuni-los sob um único conceito genérico (Pachukanis, 2017Pachukanis, Evigeny. (2017) Teoria Geral do Direito e Marxismo. Trad: Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo., p. 124-125 apud Pereira, 2018, p. 45).

Assim, o direito, como reflexo da práxis social mercantil atua como ideologia que naturaliza a falsa equivalência entre o sujeito abstrato e o indivíduo concreto, no mesmo sentido em que a troca mercantil trata como iguais a mão de obra de trabalho e o salário a ela destinado. A lógica da troca “justa” se enraíza nas diferentes dimensões da sociedade e impõe todo um amálgama enviesado a toda nova relação social estabelecida sob elas. No nosso caso, tratando do cidadão, “Esse ‘portador de direitos’ possui a capacidade jurídica para contratar, adquirir bens, alienar sua força de trabalho por mais direitos, sempre baseado na fórmula burguesa de igualdade e liberdade” (Pereira, 2018, p. 45). Este sujeito de direitos é central para entendermos a organização jurídica atual:

A passagem do caos para a civilização, onde as condições naturais não mais exercem seu poder de maneira imediata, mas através da consciência dos homens, nada modificou no princípio da igualdade. Aliás, os homens expiaram essa passagem justamente com a adoração daquilo a que estavam outrora submetidos como as demais criaturas. Antes, os fetiches estavam sob a lei da igualdade. Agora, a própria igualdade torna-se fetiche. A venda sobre os olhos da Justiça não significa apenas que não se deve interferir no direito, mas que ele não nasceu da liberdade (Adorno; Horkheimer, p. 11).

Se o direito não nasceu da liberdade, a própria compreensão de cidadania como um horizonte emancipatório para a humanidade deve ser questionado, uma vez que esta mesma cidadania está amplamente vinculada aos direitos e deveres dos sujeitos dentro da sociedade capitalista. Dependendo do enquadramento teórico que consideramos, a cidadania é uma categoria que, nos moldes societários atuais, mais restringe do que permite pensar a formação dos sujeitos - devendo, portanto, ser considerada de forma crítica.

Naturalmente esta não é uma reflexão fácil, ainda mais quando estamos imersos no sistema que pretendemos avaliar ou ainda viemos de heranças teóricas e metodológicas próprias das nossas áreas no campo da educação em ciências e áreas correlatas. Um caminho possível pode ser insistir na dualidade entre “Estado político” e “sociedade civil”. Se “Os seres humanos particulares só se tornam genéricos através do Estado como membros da sociedade civil (burgeois) ou cidadãos” (Iasi, 2005Iasi, Mauro Luis. (2005) Direito e emancipação humana. Revista do Curso de Direito, Universidade Metodista de São Paulo, v. 2, n. 2, p. 170-192., p. 175), há que se pensar que a materialidade do cotidiano real é desigual e conflituosa (IASI, 2005Iasi, Mauro Luis. (2005) Direito e emancipação humana. Revista do Curso de Direito, Universidade Metodista de São Paulo, v. 2, n. 2, p. 170-192.). Tem-se assim que a aparente igualdade dos cidadãos é permeada por uma desigualdade política real, de forma que qualquer referência à noção de cidadão ou cidadania que desconsidere isso torna-se idealista e acaba por apaziguar as contradições dos fenômenos sociais aos quais se referem.

Aprendemos com esta problemática que, quando tratamos dos rumos da sociedade, isso deve ser feito de uma perspectiva dialética e, portanto, de transformação. A partir das coisas como estão, podemos refletir como elas poderiam ser, e isso como algo inerente à própria reflexão da cidadania, e não como algo externo a ela. Se considerarmos que a cidadania permitida é aquela possibilitada por um determinado regime societário, os próprios rumos da sociedade devem ser objetos de reflexão do cidadão-que-é e do cidadão-que-pode-vir-a-ser. Isso porque, se partimos das desigualdades concretas entre os cidadãos, a própria noção de “cidadania individual” só pode ser realizada se for pensada em vias de uma emancipação para todos, no sentido do que Marx diz na Introdução à Filosofia do Direito de Hegel:

Na Alemanha, nenhum tipo de servidão é destruído sem que se destrua todo tipo de servidão. A profunda Alemanha não pode revolucionar sem revolucionar desde os fundamentos. A emancipação do alemão é a emancipação do homem (Marx, 2010Marx, Karl. (2010) Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad: de Rubens Enderle e Leonardo de Deus - [2.ed revista]. - São Paulo: Boitempo., p. 157).

Assim, pensar na emancipação humana, apesar de parecer mais abstrato, é mais concreto do que pensar nos direitos políticos de alguns grupos da sociedade segundo a igualdade jurídica e formal do Estado burguês. Vale lembrar que a emancipação política por meio da concessão de direitos pelo Estado a esses grupos não é desconsiderada por Marx. Ao contrário, ele ressalta o ganho histórico das constituições burguesas, mesmo que limitadas (Oliveira e Carvalho, 2021Oliveira, Juliano Cordeiro da Costa; Carvalho, Mayra Carneiro de. (2021) Secularismo, religião e o problema da emancipação humana em Marx. Veritas, Porto Alegre, v. 66, n. 1, p. 1-13, jan.-dez., p. 4)

A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro: estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação prática (MARX, 2010Marx, Karl. (2010) Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad: de Rubens Enderle e Leonardo de Deus - [2.ed revista]. - São Paulo: Boitempo., p. 41).

Concordando com esta colocação, Habermas também pondera que “O indivíduo não pode ser livre se nem todos forem livres, e nem todos podem ser livres se nem todos forem livres no que é comum. Esta última frase é o que as tradições empiristas e individualistas não conseguem mensurar” (Habermas, 2015Habermas, Jürgen. (2015) A nova obscuridade: pequenos escritos políticos. Trad: Luiz Repa. - I. ed.- São Paulo: Editora Unesp., p. 124). Neste sentido,

O Estado de direito em seu todo aparece, dessa perspectiva histórica, não como um constructo acabado, mas como um empreendimento suscetível, vulnerável, voltado seja para produzir, conservar, renovar ou ampliar, sob circunstâncias cambiantes, uma ordem jurídica legítima. Visto que esse projeto é inconcluso, também os órgãos constitucionais de modo algum se excetuam dessa suscetibilidade (Habermas, 2015Habermas, Jürgen. (2015) A nova obscuridade: pequenos escritos políticos. Trad: Luiz Repa. - I. ed.- São Paulo: Editora Unesp., p. 138-140).

E isso aponta para a reflexão de que o Estado não é uma instância estritamente fechada, e por isso pode estar aberto à discussões propositivas sobre suas bases e fundamentos. A partir da discussão sobre emancipação política e emancipação humana, é possível portanto pensar num ensino de ciências cujo significado seja uma educação científica que esteja alinhada - ou ao menos orientada - segundo horizontes formativos mais amplos do que assumir a perspectiva do estado democrático de direito como algo já dado imediatamente, que está posto, que devemos partir dele e nele permanecer.

UM OLHAR CRÍTICO EM RELAÇÃO AOS HORIZONTES DEMOCRÁTICOS

O que nos propusemos era de fato, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando numa nova espécie de barbárie (Adorno; Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W. Horkheimer, Max. (1985) Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar., p. 8).

O artigo original faz menção aos elementos antidemocráticos que vivenciamos em território nacional e internacional e isto deve ser pauta do debate sobre que formação queremos para os sujeitos do século XXI. Diante as recentes ondas de ataques ao Estado democrático de Direito no Brasil, em contexto de notícias falsas, movimentos anticiência e negacionistas, como fica a função e o papel da educação?

Desde muito tempo a humanidade lida com as contradições que surgem dentro do ato de educar, mesmo no contexto em que “trabalho e educação são atividades especificamente humanas” (Saviani, 2007Saviani, Dermeval. (2007) Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Rev. Bras. Educ., vol.12, n.34, pp.152-165., p. 152). Mesmo sendo duas principais características do gênero humano, há muitos obstáculos e complicações neste processo civilizatório.

Retomando uma herança de pensar a humanidade para além da ciência moderna, Freud faz provocações pertinentes na sua obra O mal estar na civilização (Freud, 2011Freud, Sigmund. (2011) O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Penguin - Companhia das Letras.). Sendo um animal considerado racional, foi muito impactante em termos de conhecimento do próprio ser humano saber que a mesma sociedade que criamos, a civilização, só existe ao impor certas restrições aos sujeitos, estabelecendo os acordos sociais, normas e valores que, conscientemente ou não, fundamentam e condicionam as relações sociais. Porém, se por um lado a repressão (aqui não usada com sentido pejorativo) é necessária para a civilização, por outro, isso gera certas consequências na forma como os indivíduos compreendem o mundo e a si mesmos. Começava lá uma longa tradição de questionamento dos rumos racionais da civilização e a preocupação com a recepção dos sujeitos dentro deste cenário.

Revisitando a discussão da herança da psicanálise para compreender a relação entre ser humano e sociedade, é preciso desmistificar a ideia de que haveria uma composição triádica totalmente estruturada e equilibrada entre o id, o ego e o superego, muito pelo contrário: as relações estabelecidas entre estas diferentes instâncias psíquicas não se alinham ao discurso do homem moderno racional, autônomo e construtor do próprio caminho - como as vertentes mais recentes do liberalismo tentam requentar. Nesta seara, Vladimir Safatle pode auxiliar da constituição Eu (Safatle, 2021Safatle, Vladimir. (2021) Introdução a Jacques Lacan. 4. ed. 2. reimp. - Belo Horizonte: Autêntica.):

[...] ao falar do desejo como pura negatividade, Lacan tinha em mente essa potência de indeterminação, essa presença, em todo sujeito, daquilo que não se submete integralmente à determinação identitária da unidade sintética de um Eu, que não se submete à forma positiva de um objeto finito. Ou seja, a falta própria ao desejo é, na verdade, o modo de descrição de uma potência de indeterminação e de despersonalização que habita todo sujeito (Safatle, p. 87).

Assim, dentro da relação (inatingível) do sujeito faltante com seu objeto de desejo, não devemos considerar este faltar como algo necessariamente ruim, um prejuízo, uma perda não alcançada; mas sim uma constatação do “estado normal” da consciência, uma evidência da não identidade intrínseca entre sujeito e seu mundo imediato. O sujeito é um agente transformador, porém o Eu é um sintoma da patologia do social na qual se encontra submerso (Safatle et al., 2018Safatle, Vladimir, Silva Junior, Nelson; Dunker, Christian. (2018) Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica.), e isso no sistema capitalista não é algo gratuito ou meramente acidental.

[...] a produção de patologia sociais é um processo ideológico que tenta neutralizar as possibilidades de se posicionar criticamente em relação à racionalidade dominante em um determinado contexto, assim como tenta anular o potencial transformativo presente no mal-estar” (Souza e Laureano, 2020Souza, Vinicius José de Lima; Laureano, Pedro Sobrino. (2020) Patologias sociais e a gestão ideológica do mal-estar. Tempo psicanalítico. Rio de Janeiro, v. 52.2, p. 214-229., p. 226).

Portanto, esta incongruência entre sujeito e mundo seria reflexo da pouca abertura do mundo atual para os desejos e realizações das pessoas. Assim, não se trata do caso de um sujeito que precisa aprofundar e radicalizar a sua identidade, mas de um mundo que constantemente impede a realização plural dos sujeitos e ao mesmo tempo limita as esferas de sua transformação. Este desencontro consigo mesmo e descontentamento com o mundo, na ausência de uma mediação social que auxilie a compreender a complexidade das relações humanas e dos rumos civilizatórios, pode se converter na adesão a movimentos autoritários.

Desde a década de 50, Adorno constatava que “[...] vêm se tornando evidentes em todo o mundo diversos movimentos de massa nos quais as pessoas parecem agir contra seus próprios interesses racionais de autoconservação e ‘busca da felicidade’” (Adorno, 2008Adorno, Theodor W. (2008) As estrelas descem à Terra: a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstição secundária/ Theodor W. Adorno; tradução Pedro Rocha de Oliveira. - São Paulo: Editora UNESP., p. 29). Ou ainda, refletia as influências dos elementos psicanalíticos da personalidade autoritária no desdobramento do movimento e dos apoios ao nazi-fascismo (Adorno, 2019Adorno, Theodor W. (2012) O ensaio como forma. In: Notas de Literatura I. Trad. Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34.). Recentemente temos vivenciado no contexto brasileiro movimentos de massa relacionados à política com muitas convergências às denúncias dos movimentos autoritários da primeira metade do século XX.

Por exemplo, Levitsky e Ziblatt (2018), em Como as democracias morrem, estão preocupados com os riscos que a democracia norte-americana corre, refletindo como este processo pode ocorrer não sob mãos de generais armados, mas de líderes eleitos. Os autores elencam alguns principais indicadores de comportamento autoritário do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump: Rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas); Negação da legitimidade dos oponentes políticos; Tolerância ou encorajamento da violência; Propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia (p. 70-71). Muito semelhante com o que observamos no Brasil e em outros países do mundo. No final da sua empreitada, chegam a uma conclusão simples, porém profunda: “A democracia é um empreendimento compartilhado. Seu destino depende de todos nós” (p. 217). Ou seja, autores advindos do maior país liberal do mundo, ao analisarem seu próprio país, reconhecem que há um elemento de coletividade e um horizonte compartilhado de mundo que deve fazer parte de qualquer processo civilizatório que reflita minimamente em melhores condições de existência para o ser humano. Um mundo compartilhado, e não individualizado.

Isso nos remete à discussão sobre cidadania no âmbito da educação e educação científica. É imprescindível que as abordagens teóricas e metodológicas que mobilizam a formação cidadã do ponto de vista do “cidadão abstrato” ou do “cidadão particular” incorporem ou problematizam também um olhar real, concreto e coletivo para o tema. A possibilidade da existência categorial de uma “democracia participativa” demanda um movimento dialético e crítico importante: por um lado, nos cobra a reconhecer o mundo político totalmente esvaziado de possibilidade de participação social nas tomadas de decisões e ao mesmo tempo, por outro, ela pode ajudar a fazer a crítica do mundo atual, anunciando novas configurações de mundo que ainda não estão dadas - mas isso sempre por meio do exercício de mediação, partindo dos fenômenos e das tendências reais para a transformação ou manutenção da realidade. É importante problematizar se a categoria mobilizada é uma contradição teórica que não considera a prática concreta, ou se é um anúncio teórico que diagnostica um embaraço prático que precisa ser transformado.

No mundo atual, em que prevalece a lógica neoliberal de meritocracia e individualização, quando a luta pela emancipação política (e/ou cidadã) não dá um passo para além do “cidadão de direitos”, ela acaba atribuindo toda a responsabilidade pela mudança sistêmica ao indivíduo, reproduzindo contra ele toda a força da lógica capitalista hegemônica. Em uma sociedade que estabelece uma diferença entre o cidadão abstrato e o cidadão real, há um grande perigo de que os sujeitos se identifiquem com esta sociedade ideal “[...] como se fosse algo irresistível. O seu interesse em que cuidem deles [dos homens] paralisou o interesse por uma liberdade que eles temem não ser outra coisa senão ausência de proteção.” (Adorno, 2009Adorno, Theodor W. (2009) Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., p. 182). Um ciclo eterno de identificação e imobilismo diante uma realidade falsa.

CAMINHOS PARA A EMANCIPAÇÃO HUMANA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA

Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo (Freire, 1987Freire, Paulo. (1987) Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra., p. 39)

Considerando que a educação científica não está alheia às questões explicitadas neste ensaio - sejam elas sociológicas, psicológicas e mesmo jurídicas -, e é um compromisso ético e social do campo educacional procurar sempre fazer a mediação entre estes elementos a partir da forma concreta como eles aparecem na sociedade, com vistas à formação das novas gerações que atuam e atuarão no mundo.

Em seu artigo Educar para a cidadania ou para a liberdade? Tonet (2004Tonet, Ivo. (2005) Educar para a cidadania ou para a liberdade?Perspectiva, 23(2), 469-484.) se posiciona de forma análoga:

Se entendemos que a nossa atividade educativa deve ser articulada (falamos em termos de fins e não de meios) com a emancipação humana e não com a emancipação política (cidadania), então a pergunta que naturalmente pode nos ocorrer é esta: em que consiste uma atividade educativa emancipadora? De que modo este objetivo último pode influenciar a realização da atividade educativa? Questões muito complexas e que não é nosso objetivo abordar aqui. Nossa intenção é responder a uma questão muito mais delimitada, qual seja: quais seriam os requisitos, na presente situação histórica marcada pela crise estrutural do capital, para uma atividade educativa que pretendesse contribuir para a emancipação humana? E, além disso, quais seriam esses requisitos nessa situação histórica concreta, de crise estrutural do capital, em que essa forma de sociabilidade já não tem mais como oferecer alternativas dignas para a humanidade?

O autor nos alerta e sugere quatro requisitos para uma atividade educativa emancipadora. O primeiro se relaciona ao conhecimento sólido e profundo da natureza da emancipação humana e os fins aos quais se pretende atingir. “Não basta desejar um mundo melhor, é preciso saber quais são, pelo menos em termos gerais, os lineamentos essenciais desse mundo” (p. 479). Não se trataria aqui de concepções idealizadas e inalcançáveis de mundo, mas de reconhecer quais são os valores que orientam, conscientemente ou não, a práxis do educador e o sistema educacional em que se encontra. Na sequência,

Um segundo requisito - igualmente importante - é o conhecimento do processo histórico real, em suas dimensões universais e particulares, poiso processo educativo se desenvolve em um mundo historicamente determinado e em situações concretas. É preciso conhecer, pelo menos em linhas gerais, o processo histórico humano e especialmente a realidade do mundo atual (capitalista), a lógica do capital que o preside e a natureza da crise em que está mergulhado o mundo, hoje (Tonet, 2004Tonet, Ivo. (2005) Educar para a cidadania ou para a liberdade?Perspectiva, 23(2), 469-484., 480).

Trata-se aqui de uma dimensão fundamental para toda perspectiva dialética de mundo: reconhecer as múltiplas determinações da realidade e as relações de determinação ou condicionamento entre os seus elementos - que pode ser colocado como relação entre o universal, o particular e o singular (Pasqualini; Martins, 2015Pasqualini, Campregher Pasqualini; Martins, Lígia Márcia. (2015) Dialética singular-particular-universal: implicações do método materialista dialético para a psicologia. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 362-371.). Estudos sobre as transformações dos currículos de ciências ao longo dos tempos são elucidativos para mostrar como os diferentes valores e ideologias que permeiam a sociedade conformam desde o tipo de formação que se espera para os alunos até os materiais, metodologias e organizações de conteúdos que se trabalha em sala de aula. Uma reflexão importante não é o que os sujeitos podem ganhar com a educação científica, mas como a educação científica pode contribuir para formar os sujeitos deste mundo contemporâneo.

O terceiro requisito seria o conhecimento da natureza essencial do campo específico da educação, uma vez que “Não é qualquer conceito de educação que é consistente com o objetivo da emancipação humana” (Tonet, 2004Tonet, Ivo. (2005) Educar para a cidadania ou para a liberdade?Perspectiva, 23(2), 469-484., p. 480). O quarto requisito seria o domínio dos conteúdos específicos, próprios de cada área do saber, de maneira que “[...] a apropriação do que há de mais avançado em termos de saber e técnicas [...]” (Tonet, 2004Tonet, Ivo. (2005) Educar para a cidadania ou para a liberdade?Perspectiva, 23(2), 469-484., p. 481) sempre esteja articulada com a prática social.

Por fim, o quinto requisito para uma prática educativa emancipadora encontra-se na articulação da atividade educativa com as lutas desenvolvidas pelas classes subalternas, especialmente com as lutas daqueles que ocupam posições decisivas na estrutura produtiva:

Certamente, não cabe à educação a tarefa de liderar a construção de uma nova sociedade. Contudo, ela pode dar uma contribuição importante na medida em que desperte e fundamente as consciências para a necessidade de uma transformação revolucionária e, ao mesmo tempo, transmita o que de mais avançado existe em termos de conhecimento (Tonet, 2004Tonet, Ivo. (2005) Educar para a cidadania ou para a liberdade?Perspectiva, 23(2), 469-484., p. 481).

É a partir do reconhecimento da profundidade ideológica que o capitalismo nos impõe e que muitas vezes não podemos imaginar outros cenários para além dele que podemos encontrar amparo crítico em Theodor Adorno e Max Horkheimer “[...] uma verdadeira práxis revolucionária depende da intransigência da teoria em face da inconsciência com que a sociedade deixa que o pensamento se enrijeça” (Adorno; Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W. (2019) Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp., p. 45).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A desesperança é a melhor esperança de nosso tempo. É só ao reconhecer que as formas de sociabilidade capitalista são contraditórias, conflituosas, portadoras inexoráveis de crise e de exploração e, portanto, incapazes de serem distintas do que sempre foram e são que então será possível agir no sentido de transformar as condições presentes (Mascaro, 2018Mascaro, Alysson Leandro. (2018) Crise e golpe. São Paulo: Boitempo. - 1. ed., p. 189).

Encaminhando para o fim do ensaio, além das contribuições da sociologia e da filosofia para pensar a natureza dos processos democráticos e suas configurações nas sociedades contemporâneas, é importante pontuar a necessidade de incluirmos as questões psíquicas relacionadas ao sujeito em seu processo reflexivo. No contexto da discussão sobre cidadania e democracia, não pode haver espaço para naturalização como algo que “já existe e deve ser assim” - herança da forma da ciência moderna compreender o mundo. É preciso que a educação científica pense para além da nossa sociedade atual, mas isso exige o rompimento com certezas absolutas, o desvio de caminhos já traçados, a lida com frustrações, incertezas e incompletudes.

Retomando o título do livro de Mark Fisher (2021Fisher, Mark. (2021) Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?São Paulo: Autonomia Literária.) “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?”, nota-se a necessidade de um resgate dialético de olhar para o mundo e para o desenvolvimento da sociedade como um vir-a-ser, algo que está acontecendo mas que é histórico, e por isso sujeito a transformações. O que ela significa e como ela se movimenta sempre está em disputa, chegando inclusive em casos em que as personalidades políticas mais autoritárias podem ser eleitas via sistemas democráticos, e as maiores atrocidades sociais podem serem feitas via normatização jurídica - vide os estados de exceção que se aproveitam de vias jurídicas para impor regimes autoritários (Agamben, 2004Agamben, Giorgio. (2004) Estado de exceção. Trad: Iraci D. Poleti. - São. Paulo: Boitempo.; 2008Agamben, Giorgio. (2008) O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho. São Paulo: Boitempo Editorial.).

Se a realidade é constituída por múltiplas determinações, pode parecer difícil se posicionar dentro desta estrutura complexa. Porém, na melhor perspectiva da teoria crítica, “[...] a prática nos diz que as coisas poderiam ser diferentes, mas não são” (Nobre, 2004Nobre, Marcos. (2004) A teoria crítica. - 1.ed. -Rio de Janeiro: Zahar .), e há que se considerar a importância concreta das utopias em adentrar e orientar os movimentos sociais (Habermas, 2015Habermas, Jürgen. (2015) A nova obscuridade: pequenos escritos políticos. Trad: Luiz Repa. - I. ed.- São Paulo: Editora Unesp.).

Destacamos assim que não há nenhum tipo de possibilidade de reconciliação entre a sociedade capitalista e qualquer perspectiva emancipatória de formação, visto que é a própria sociedade organizada que restringe a liberdade (Adorno, 2009Adorno, Theodor W. (2009) Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.). Neste sentido, “Há a necessidade da crítica permanente, compreensão deste tempo presente enquanto ‘histórico’ e na recusa de um curso pré-traçado para a história” (Carnio, 2017Carnio, Michel Pisa. (2017) A experiência formativa de professores no trabalho com uma questão sociocientífica: potencialidades e obstáculos em um Pequeno Grupo de Pesquisa.306 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru., p. 99). Urge considerar reflexões sobre qual é essa sociedade, quais são esses direitos, quem se beneficia com a estrutura social prevalecente e como desbloquear o medo da liberdade dos sujeitos - cidadãos - para que vislumbrem novas formas de socialização e civilização. Só assim a educação científica conseguirá parar de reproduzir o mundo como é e passará a ajudar a construir novas possibilidades de mundo e de sociabilidade.

REFERÊNCIAS

  • Adorno, Theodor W. (2008) As estrelas descem à Terra: a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstição secundária/ Theodor W. Adorno; tradução Pedro Rocha de Oliveira. - São Paulo: Editora UNESP.
  • Adorno, Theodor W. (2009) Dialética negativa Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Adorno, Theodor W. (2012) O ensaio como forma. In: Notas de Literatura I Trad. Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34.
  • Adorno, Theodor W. (2019) Estudos sobre a personalidade autoritária São Paulo: Unesp.
  • Agamben, Giorgio. (2004) Estado de exceção Trad: Iraci D. Poleti. - São. Paulo: Boitempo.
  • Agamben, Giorgio. (2008) O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho. São Paulo: Boitempo Editorial.
  • Adorno, Theodor W. Horkheimer, Max. (1985) Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar.
  • Carnio, Michel Pisa. (2017) A experiência formativa de professores no trabalho com uma questão sociocientífica: potencialidades e obstáculos em um Pequeno Grupo de Pesquisa.306 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru.
  • Fisher, Mark. (2021) Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?São Paulo: Autonomia Literária.
  • Freire, Paulo. (1987) Pedagogia do Oprimido 17 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • Freud, Sigmund. (2011) O mal-estar na civilização Rio de Janeiro: Penguin - Companhia das Letras.
  • Habermas, Jürgen. (2015) A nova obscuridade: pequenos escritos políticos. Trad: Luiz Repa. - I. ed.- São Paulo: Editora Unesp.
  • Iasi, Mauro Luis. (2005) Direito e emancipação humana. Revista do Curso de Direito, Universidade Metodista de São Paulo, v. 2, n. 2, p. 170-192.
  • Laval, Christian. (2019) A escola não é uma empresa: neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Boitempo.
  • Mascaro, Alysson Leandro. (2018) Crise e golpe São Paulo: Boitempo. - 1. ed.
  • Marx, Karl. (2009) Para a questão judaica São Paulo: Expressão Popular.
  • Marx, Karl. (2010) Crítica da filosofia do direito de Hegel Trad: de Rubens Enderle e Leonardo de Deus - [2.ed revista]. - São Paulo: Boitempo.
  • Naves, Márcio Bilharinho. (2008) Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo.
  • Nobre, Marcos. (2004) A teoria crítica - 1.ed. -Rio de Janeiro: Zahar .
  • Oliveira, Juliano Cordeiro da Costa; Carvalho, Mayra Carneiro de. (2021) Secularismo, religião e o problema da emancipação humana em Marx. Veritas, Porto Alegre, v. 66, n. 1, p. 1-13, jan.-dez.
  • Pachukanis, Evigeny. (2017) Teoria Geral do Direito e Marxismo Trad: Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo.
  • Pasqualini, Campregher Pasqualini; Martins, Lígia Márcia. (2015) Dialética singular-particular-universal: implicações do método materialista dialético para a psicologia. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 362-371.
  • Rosa, Gabriela Gomes; Lima, Nathan Willig; Cavalcanti, Cláudio José de Holanda. (2023). De que cidadania estamos falando? Uma revisão de literatura das pesquisas em educação em ciências com perspectiva de formação para cidadania. Ensaio - Pesquisa em Educação e Ciências, Belo Horizonte, Volume 25.
  • Safatle, Vladimir. (2021) Introdução a Jacques Lacan 4. ed. 2. reimp. - Belo Horizonte: Autêntica.
  • Safatle, Vladimir, Silva Junior, Nelson; Dunker, Christian. (2018) Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica.
  • Santos de Brito, R. D. (2018) A crítica de Marx ao conceito de cidadania. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 1, n. 39.
  • Saviani, Dermeval. (2007) Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Rev. Bras. Educ, vol.12, n.34, pp.152-165.
  • Souza, Vinicius José de Lima; Laureano, Pedro Sobrino. (2020) Patologias sociais e a gestão ideológica do mal-estar. Tempo psicanalítico Rio de Janeiro, v. 52.2, p. 214-229.
  • Tonet, Ivo. (2005) Educar para a cidadania ou para a liberdade?Perspectiva, 23(2), 469-484.
  • O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pela verba para a editoração deste artigo.

Editado por

Editores responsáveis: Paula Cristina Cardoso Mendonça, Luiz Gustavo Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2023
  • Aceito
    22 Jan 2024
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antonio Carlos, 6627, CEP 31270-901 Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, Tel.: (55 31) 3409-5338, Fax: (55 31) 3409-5337 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: ensaio@fae.ufmg.br