Acessibilidade / Reportar erro

BIOGRAFIA CIENTÍFICA COMO POSSIBILIDADE PARA A VALORIZAÇÃO DE UMA CIÊNCIA QUÍMICA MAIS FEMININA E NEGRA

LA BIOGRAFÍA CIENTÍFICA COMO POSIBILIDAD DE VALORAR UNA CIENCIA QUÍMICA MÁS FEMENINA Y NEGRA

SCIENTIFIC BIOGRAPHY AS POSSIBILITY TO VALUE A MORE FEMININE AND BLACK CHEMICAL SCIENCE

RESUMO:

Esse trabalho enfoca o papel de uma biografia científica na discussão de características da produção do conhecimento científico, incluindo condicionantes sociais de gênero e raça. Foi realizada uma pesquisa exploratória interpretativa com 61 estudantes de licenciatura em química de quatro universidades federais brasileiras, investigando-se os sentidos produzidos com a leitura da biografia de Alice Ball no que tange às possibilidades para o debate de aspectos epistemológicos. Os dados foram obtidos por meio de questionário avaliado externamente por especialistas e testado internamente com um grupo de estudantes. Os aspectos práticos do trabalho científico foram mais percebidos na leitura em relação a outras características (ciência como produção coletiva, mutabilidade, influências do contexto sociocultural, estruturas sociais da ciência). A biografia demonstrou potencial para promover a história da biografada. Aspectos epistemológicos necessitam de problematização para maior compreensão da atividade científica por meio da biografia.

Palavras-chave:
Alice Ball; História da ciência; Educação em ciências e diversidade

RESUMEN:

Este trabajo se centra en el papel de una biografía científica en la discusión de las características de la producción del conocimiento científico, incluidos aspectos de género y raza. Para ello, se llevó a cabo una investigación exploratoria interpretativa con 61 estudiantes de química de cuatro universidades públicas brasileñas, se investigando los sentidos producidos con la lectura de la biografía acerca del posibilidades para discutir aspectos epistemológicos. Los datos fueran obtenidos por médio de un instrumento validado externamente por especialistas y previamente probado con un grupo de estudiantes. Aspectos prácticos del trabajo científico fueron más percibidos en la lectura en relación con otras características (ciencia como producción colectiva, mutabilidad, influencias del contexto sociocultural, estructuras sociales). La biografía mostró el potencial para promover la historia de la cientista. Las cuestiones epistemológicas necessitan de discussión para fomentar una mejor comprensión de la actividad científica por medio de la biografia.

Palabras clave:
Alice Ball; Historia de la ciencia; Educación en ciencias y diversidade

ABSTRACT:

This work focuses on the role of a scientific biography in discussing characteristics of the construction of scientific knowledge, including the influence of social issues of gender and race. For this, an interpretative exploratory study was carried out with 61 undergraduate chemistry students from four Brazilian federal universities. It was investigated senses produced from the reading concerning the possibilities for debating epistemological aspects. The data were gathered by means of an instrument previously analyzed by two experts and previously tested with a group of students. The practical dimension of the scientific work was more recognized than other characteristics (science as a collective enterprise, changeable, sociocultural influences, social-institutional structure). The biography showed the potential to promote the scientist’s history. Epistemological questions need to be discussed to foster better understandings of the scientific activity by means of the biography.

Keywords:
Alice Ball; History of Science; Science Education and Diversity

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como tema central as biografias científicas na discussão de aspectos da epistemologia da ciência, incluindo questões sociais de gênero e raça. As biografias permitem conferir um caráter mais humanístico e valorizar a história de personagens que raramente ocupam um primeiro plano na educação científica. Considerando as iniquidades históricas que permeiam a produção do conhecimento científico, (re)conhecer a história de mulheres cientistas e negras pode ser inspiração para que jovens se identifiquem com as lutas sociais e a necessidade de se afirmarem em ambientes dominados pelo patriarcado, ao mesmo tempo em que é possível debater características da atividade científica (Trindade, Beltran & Tonetto, 2016Trindade, L. D. S. P.; Beltran, M. H. R & Tonetto, S. R. (2016). Práticas e estratégias feministas: histórias de mulheres nas ciências da matéria. São Paulo: Livraria da Física.; Santana, Pereira & Silva, 2022Santana, C.; Pereira, L., & Silva, I. (2022). Contribuições para escrita de biografias de mulheres nas ciências a partir das experiências de Keller, Ferry e Goldsmith. Cadernos Pagu, 65, e226524.). Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Tradução Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Martins Fontes.) argumenta que a (auto)identificação com determinados grupos sociais, neste caso mulheres negras cientistas, pode levar à construção de um sentimento de pertencimento. A representatividade assumiria papel relevante para a construção de processos de (auto)identificação com as mulheres na ciência (El Jamal & Guerra, 2020El Jamal, N., & Guerra, A. (2020). O lado invisível na história da ciência: uma revisão bibliográfica sob perspectivas feministas para a educação científica. Revista Debates em Ensino de Química, 6(2), 311-333.). A ciência, como um produto cultural, social e histórico, foi moldada na dicotomia entre o masculino e o feminino presente na sociedade, sendo majoritariamente representada pelo padrão: homem branco, ocidental, elitista e colonial (Lowy, 2009Löwy, I.(2009). Ciências e gênero. In: Hirata, H.; Laborie; F.; Le Doare, H.; & Senotier, D. (ed.), Dicionário crítico do feminismo (pp. 40-44). São Paulo: Editora UNESP.). Nesse contexto, Trindade, Beltran & Tonetto (2016Trindade, L. D. S. P.; Beltran, M. H. R & Tonetto, S. R. (2016). Práticas e estratégias feministas: histórias de mulheres nas ciências da matéria. São Paulo: Livraria da Física.) argumentam que:

[...] pode-se justificar o empenho em se organizar e difundir biografias de mulheres que tiveram atuação na construção, transformação e comunicação de conhecimentos sobre a natureza e as artes em diferentes épocas e culturas com o fim de apontar e/ou analisar questões de gênero contribuindo para que os jovens procurem carreiras em ciência e tecnologia. (Trindade, Beltran & Tonetto, 2016Trindade, L. D. S. P.; Beltran, M. H. R & Tonetto, S. R. (2016). Práticas e estratégias feministas: histórias de mulheres nas ciências da matéria. São Paulo: Livraria da Física., p. 13)

Diante dessas considerações, este trabalho investigou a seguinte questão central: quais as possibilidades e limites de uma biografia científica para a discussão de características da atividade científica, incluindo questões sociais de desigualdade na ciência? Para tanto, os objetivos centrais foram: i) mapear alguns conhecimentos prévios sobre cientistas de licenciandos em química; ii) avaliar, a partir da leitura da biografia, possibilidades, limites, bem como sentidos produzidos para o debate da história e epistemologia da ciência.

BIOGRAFIAS CIENTÍFICAS PARA O DEBATE HISTÓRICO, EPISTEMOLÓGICO E SOCIAL

A produção do conhecimento científico envolve muitas engrenagens que trabalham coletivamente. Algumas poucas personagens ficam marcadas para toda a história, como se tudo fizeram sozinhas; enquanto a maioria é pouco ou nada (re)conhecida (Scerri, 2016Scerri, E. (2016). A tale of seven scientists and a new philosophy of science. New York: Oxford University Press.). Todavia, a ciência não é construída por poucos indivíduos heroicos, mas é uma sofisticada e complexa construção coletiva cujo trabalho desenvolvido por protagonistas foi possível somente em função de outros cientistas que, por muitas razões, permanecem quase desconhecidos (Scerri, 2016Scerri, E. (2016). A tale of seven scientists and a new philosophy of science. New York: Oxford University Press.). É importante destacar também que os materiais didáticos, em geral, ao se referirem a cientistas, costumam citar apenas data de nascimento, morte, o que foi estudado, mas raramente descrevem as pesquisas, ou seja, os procedimentos, a análise dos dados, condicionantes externos, entre outros (Vidal & Porto, 2012Vidal, P. H. O., & Porto, P. A. A história da ciência nos livros didáticos de química do PNLEM 2007. Ciência & Educação, 18(2), 291-308, 2012.).

Nesse contexto, biografias tornam-se possibilidade para a inserção de aspectos da história e epistemologia da ciência, sobretudo conferindo um caráter mais humanístico e valorizando figuras que raramente ocupariam um primeiro plano. Segundo Nye (2006Nye, M. J.(2006). Scientific biography: history of science by another means?Isis, 97(2), 322-329.) e Terrall (2006Terrall, M. (2006). Biography as cultural History of Science. Isis, 97(2), 306-313), as biografias configuram-se como um dos gêneros literários mais atrativos aos que ingressam no mundo da ciência, pois a partir delas pode-se promover processos de (auto)identificação. Isso porque, além de aspectos científicos, são colocados em perspectiva os dilemas, esforços, falhas e sucessos na construção do conhecimento. Trindade, Beltran & Tonetto (2016Trindade, L. D. S. P.; Beltran, M. H. R & Tonetto, S. R. (2016). Práticas e estratégias feministas: histórias de mulheres nas ciências da matéria. São Paulo: Livraria da Física.) corroboram ao argumentar que por meio da vida das pessoas é possível interpretar o passado. A biografia científica permitiria assim uma aproximação ao cotidiano do cientista mediante o relato sobre a natureza e a construção do conhecimento. Seu papel não seria apenas mostrar o que cientistas fazem, mas abordar os fatores científicos, externos e sociais que envolvem uma pesquisa, de modo que os leitores compreendam o contexto em que aquele cientista estava inserido.

Levando em conta que o estudo da história da ciência se dá por meio de 3 esferas da análise: epistemológica, historiográfica e conceitual, a biografia se transforma em uma ferramenta para se expressar a integração da vida individual e os contextos cultural, intelectual e social. (Trindade, Beltran & Tonetto, 2016Trindade, L. D. S. P.; Beltran, M. H. R & Tonetto, S. R. (2016). Práticas e estratégias feministas: histórias de mulheres nas ciências da matéria. São Paulo: Livraria da Física., p 49)

Com os relatos de história de vida do biografado, imerso em suas características mais humanas, é possível entender não só seus momentos de glória, mas as preocupações que o cercaram, o contexto social inserido, dilemas e frustrações ao longo da vida, assim como questões políticas e culturais vividas (Nye, 2006Nye, M. J.(2006). Scientific biography: history of science by another means?Isis, 97(2), 322-329.; Trindade, Beltran & Tonetto, 2016Trindade, L. D. S. P.; Beltran, M. H. R & Tonetto, S. R. (2016). Práticas e estratégias feministas: histórias de mulheres nas ciências da matéria. São Paulo: Livraria da Física.). Com isso, a realidade de cientistas pode aproximar-se da realidade dos estudantes, potencializando o processo de identificação (Urias & Assis, 2014Urias, G., & Assis, A. (2014). As biografias de cientistas e suas aplicações no ensino de ciências. ComCiência, 155, 1-4.). A biografia como caminho historiográfico pode desvelar não apenas os aspectos conceituais científicos, mas a gênese das questões epistemológicas e sociais da produção do conhecimento. Para Porter (2006Porter, T. M. (2006). Is the life of the scientist a scientific unit?Isis, 97(2), 314-321.), acompanhar a vida de cientistas potencializa possibilidades de se compreender o amplo escopo dessa profissão. Além de realizar experimentos e analisar dados, cientistas consultam horóscopos, têm práticas religiosas, buscam fundos de pesquisa, ministram palestras para diferentes públicos, fundam empresas (Porter, 2006Porter, T. M. (2006). Is the life of the scientist a scientific unit?Isis, 97(2), 314-321.).

Söderqvist (2020Söderqvist, T. The Meaning, nature, and scope of scientific (auto)biography. In: Forstner, C.; & Walker, M. Biographies in the History of Physics(pp. 301-318). Cham: Springer, 2020.) destaca, entre os objetivos de uma biografia: (i) retratar mais amplamente um dado contexto histórico; (ii) abordar o trabalho científico como um estudo de caso, explicitando a elaboração de teorias, conceitos e aspectos da prática científica; (iii) possibilitar o entendimento público da ciência, ou seja, a biografia como caminho de divulgação da ciência; (iv) valorizar a biografia como gênero textual; e (v) enaltecer a figura biografada. A partir disso o autor acrescenta a biografia como um projeto existencial, destacando também as aspirações e paixões individuais como parte de sua existência. Para Santana, Pereira & Silva (2022Santana, C.; Pereira, L., & Silva, I. (2022). Contribuições para escrita de biografias de mulheres nas ciências a partir das experiências de Keller, Ferry e Goldsmith. Cadernos Pagu, 65, e226524., p. 14):

Tais histórias de vida não apenas oferecem oportunidades de nos entendermos, intelectualmente e emocionalmente, mas podem também nos mudar e criar. Portanto, as biografias de mulheres cientistas são edificantes, pois podem nos ajudar a reorientar nossos modos de pensar como as relações de gênero exercem poder sobre nossa própria existência e nossa relação com a ciência.

Por outro lado, é importante assinalar que ao enfocar uma personalidade central, a biografia pode reforçar uma visão de ciência como fruto do trabalho individual e não coletivo. O puro enaltecimento ou crítica exacerbada dessa personalidade sem a devida problematização também pode contribuir para uma visão maniqueísta da ciência. De um lado, ao posicionar a personagem em um pedestal de genialidade extraordinária, em oposição à defesa de que o trabalho científico é ordinário dentro do tecido social e fruto de uma profissionalização. De outro lado, ao vilanizar a pessoa pelas consequências dos atos. Nessa direção, a investigação cuidadosa, com o cotejamento de fontes e a integração de uma narrativa intelectual, social, cultural e institucional é útil para atingir equilíbrio na elevação necessária ao protagonismo do personagem biografado (Shortland & Yeo, 1996Shortland, M., Yeo, R. Telling lives in science: essays on scientific biography. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.). Nesse viés histórico-científico, Terrall (2006Terrall, M. (2006). Biography as cultural History of Science. Isis, 97(2), 306-313, p. 309) destaca alguns constituintes fundamentais para as biografias:

Se uma biografia também deve ser uma obra de história da ciência, ela deve analisar ideias, fontes, treinamentos, controvérsias, cálculos, experimentos e assim por diante, e colocar esses elementos na vida. Não se trata simplesmente de explorar o “pensamento” de um ser humano, embora isso seja parte, mas, sim, de descobrir como livros, ideias e metafísica ou compromissos teóricos - todas as múltiplas vertentes do trabalho científico - foram usados por este indivíduo para fazer o seu caminho na ciência e no mundo.

As biografias científicas, portanto, precisariam se aproximar de tais aspectos caros aos estudos de história, filosofia e sociologia da ciência. Vislumbra-se, com essa perspectiva, a potencialidade para uma discussão necessária acerca da atividade científica, além de trazer à tona figuras pouco (re)conhecidas.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta é uma pesquisa qualitativa, cuja ênfase está mais no processo do que no produto, se preocupando em retratar a perspectiva dos participantes. Nesse sentido, como abordagem metodológica, trata-se de uma investigação exploratória de cunho interpretativo. Estudos exploratórios baseiam-se na aproximação inicial a um fenômeno de interesse novo ou relativamente pouco explorado. De acordo com Babbie (1999Babbie, E. (1999). Métodos de pesquisas de Survey, Editora UFMG: Belo Horizonte.), ao menos três propósitos podem ser caracterizados em um estudo exploratório: satisfazer um interesse inicial e o desejo de melhor compreensão do tema; testar a possibilidade de investigações mais acuradas e; desenvolver métodos que possam ser empregados em investigações futuras. Tendo em vista os poucos estudos sobre leitura de biografia no contexto da educação em ciências brasileira, assim os objetivos apresentados para a pesquisa, especialmente o de avaliar, a partir da leitura da biografia, possibilidades, limites, bem como sentidos produzidos para o debate da história e epistemologia da ciência, há forte correlação entre a metodologia e suas finalidades. O caráter interpretativo relaciona-se à tentativa da pesquisa em gerar compreensões sobre os fenômenos estudados (Mattar & Ramos, 2021Mattar, J., Ramos, D. K.(2021). Metodologia da pesquisa em educação: abordagens qualitativas, quantitativas e mistas. São Paulo: Edições 70 .). Operacionalmente, a pesquisa foi dividida em três etapas.

A primeira delas configurou-se pela produção da biografia, contemplando características de uma visão mais crítica sobre a história da ciência, a partir da qual se incluem critérios epistemológicos, historiográficos e conceituais (Terrall, 2006Terrall, M. (2006). Biography as cultural History of Science. Isis, 97(2), 306-313; Trindade, Beltran & Tonetto, 2016Trindade, L. D. S. P.; Beltran, M. H. R & Tonetto, S. R. (2016). Práticas e estratégias feministas: histórias de mulheres nas ciências da matéria. São Paulo: Livraria da Física.). A biografia foi construída com base na vida e trabalho da química estadunidense Alice Augusta Ball (1892-1916?7), a primeira mulher negra a obter o título de mestrado em química nos EUA, responsável por um processo pioneiro de síntese de derivados do óleo de chaulmoogra, empregados no primeiro tratamento de hanseníase com resultados mais eficazes. A escolha por Alice Ball foi pautada em quatro motivos centrais: i) discussão e valorização da mulher na ciência; ii) visão positiva da intelectualidade e trabalho negro; iii) resgate de personagens da ciência pouco (re)conhecidos e; iv) trabalho científico envolvendo conceitos basilares de química para a educação básica. A construção da biografia2 2 A biografia completa pode ser acessada no endereço https://doi.org/10.48331/scielodata.L5XGRP. tomou por base referências primárias e secundárias. O texto foi dividido em seções que se interconectam, abordando: vida, trabalho e discussão epistemológica, conforme ilustrado pelo Quadro 1.

Quadro 1
Principais seções da biografia e síntese do conteúdo abordado

A produção do texto contemplou características apontadas por Carmona & Dias (2016Carmona, A. G., & Díaz, J. A. (2016). Learning about the nature of science using newspaper articles with scientific content. Science & Education, 25(5/6), 523-546.) para textos que visam a discutir a natureza da ciência, tais como: evidências empíricas (incluindo referências aos originais), inferências, relações com teorias científicas, métodos, objetividade, subjetividade e hesitação no trabalho científico.

A segunda etapa da pesquisa foi a avaliação da biografia por duas pesquisadoras em Educação Química com doutorado versando sobre ensino, história e filosofia da ciência. O texto foi avaliado, no formato duplo-cego, quanto à coesão, coerência e concordância com aspectos epistemológicos da ciência. Para tanto, foram convidadas a emitir comentários e sugestões que pudessem deixar o texto mais compreensível e menos dúbio. As sugestões contemplaram alterações pontuais da estrutura textual e da língua portuguesa e foram incorporadas ao texto.

A terceira e última etapa configurou-se pela pesquisa com estudantes em formação docente inicial em química. Para a construção dos dados foi utilizado instrumento (Apêndice 1) contendo questões em escala de intensidade com justificativas e questões abertas elaborado de modo a contemplar três diferentes dimensões: I) conhecimento prévio sobre cientistas (perguntas 1 a 6); II) o papel da história da ciência e influências da biografia (perguntas 7 a 9); III) aspectos da epistemologia da ciência (questões 10 e 11). A ordem das questões foi pensada para promover reflexões progressivas à luz da biografia, envolvendo um exercício metacognitivo (O que eu sei sobre mulheres/negros na ciência/Por que eu (não) sei? Qual sentido vejo em estudar história da ciência? Como a ciência é produzida e o que interfere no trabalho científico?).

Anteriormente à obtenção de dados, o instrumento também passou por um processo de análise para aumentar sua confiabilidade, sendo lido pelas mesmas especialistas em Educação Química que avaliaram parâmetros de ambiguidade, compreensibilidade e conteúdo das questões propostas em relação à biografia (Apêndice I). Após, foram incorporadas todas as sugestões de ordem linguística e as sugestões de conteúdo quando apontadas por ambas as pesquisadoras. Em caso de alterações indicadas apenas por uma das avaliadoras, a recomendação foi enviada e analisada pela segunda, sendo incorporada quando havia concordância. Inicialmente, o instrumento foi testado com um grupo de 15 estudantes e as respostas avaliadas quanto à adequação aos propósitos da pesquisa e possíveis ambiguidades. Verificou-se que o instrumento atendia aos critérios de validade, sendo estes dados incorporados aos resultados da pesquisa, procedendo-se então sua continuidade.

No total, participaram 61 licenciandos em química de diferentes universidades públicas brasileiras, a citar: Universidade Federal de Alagoas (22), Universidade Federal de Sergipe (22), Universidade Federal da Integração Latino-Americana (10) e Universidade Federal de Goiás (07). Destes, 17 identificaram-se como sendo do gênero masculino, 42 do gênero feminino e dois não responderam. A idade variou de 19 a 49 anos com média de 24,5. A escolha dos participantes procurou contemplar variedade geográfica de modo a aumentar a confiabilidade dos resultados. A opção por docentes em formação está relacionada à necessidade de ampliar a discussão e o incentivo de mulheres na ciência. Um critério adicional era de que os participantes não tivessem cursado disciplinas que contemplassem história e filosofia da ciência, com o intuito de diminuir a interferência de conhecimentos prévios teóricos sobre a temática na leitura da biografia.

A recolha de dados foi realizada por intermédio de docentes das supracitadas universidades atuantes na área de Educação Química. Foi cedido tempo em disciplinas ou atividades formativas dos Programas de Residência Pedagógica (RP) e Iniciação à Docência (PIBID) para a apresentação da pesquisa e da biografia, fornecida em formato de arquivo digital aos participantes. No período as atividades se encontravam no modo remoto. Os estudantes consultados que se voluntariaram e consentiram à participação leram a biografia como atividade e em horários extra-acadêmicos. Após a leitura, responderam ao instrumento de coleta dos dados de modo virtual. Na pesquisa não houve ações de intervenção na leitura ou de caráter didático-pedagógico anteriores ou posteriores. Ressalta-se que o projeto foi apreciado e aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa.

Para a análise dos dados, as questões em escala de intensidade foram contadas e suas médias calculadas, sendo apresentadas descritivamente. Já as justificativas passaram por análise de conteúdo, que se divide basicamente em três etapas: i) pré-análise; ii) exploração do material e; iii) inferência e a interpretação dos resultados (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo, São Paulo: Edições 70.). Tal técnica é útil na descrição e interpretação de textos com base em significantes (palavras) e significados (unidades temáticas), o que a torna particularmente oportuna aos propósitos desta pesquisa.

Durante a pré-análise, caracterizada pelo contato inicial por meio de uma leitura flutuante, as repostas foram lidas em sua íntegra, identificando-se palavras/excertos por semelhanças de significado. Foi utilizado um editor de texto para a marcação e separação de trechos aos quais foi atribuído um descritor (código) em comum, conforme exemplificado pela Quadro 2. Em um primeiro momento, o procedimento foi realizado por uma pesquisadora (primeira autora) individualmente. Após, o conjunto de informações foi discutido com o segundo pesquisador, mais experiente, até consenso, visando-se ao aumento de confiabilidade.

Quadro 2
Exemplo do procedimento de codificação

Na etapa seguinte, a exploração do material, as informações separadas foram relidas e então agrupadas em unidades com semelhanças de significado a fim de descrevê-las com maior acurácia (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo, São Paulo: Edições 70.), considerando-se também o questionamento. Por exemplo, as respostas ilustradas na Tabela 1 referem-se às justificativas para o interesse dos estudantes na história da ciência. Desse modo, os trechos destacados (caminho percorrido/contexto sociopolítico/como era seu local de trabalho) foram agrupados por indicarem que a história da ciência tornar-se-ia interessante por ajudar a entender as influências no processo científico, ou, em quais as condições (sociais e físicas), os cientistas trabalham. Após, nova leitura integral de todas as respostas foi realizada separadamente pelos pesquisadores para buscar outras semelhanças e refinar aquelas já identificadas. Em seguida, divergências foram debatidas até consenso. A unidade de significado atribuída no exemplo da Tabela 1 foi “Condições da produção do conhecimento”. O refinamento das unidades de significação atribuídas às categorias foi realizada conjuntamente. Por meio de tal processo foram construídas as categorias, descritas com maiores detalhes na seção de resultados. A discussão foi realizada à luz de referenciais acerca de biografias científicas, bem como o papel das mulheres e negros nas ciências. Durante a apresentação dos resultados foram escolhidos alguns excertos das respostas de participantes para fundamentar a discussão de modo interpretativo. Para tanto, foi atribuído um código a cada participante, mantendo-se o seu anonimato.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados foram divididos em três blocos. No primeiro deles, foi explorado o conhecimento prévio sobre cientistas mulheres e homens. O segundo bloco focou em como os participantes viam o papel da história da ciência e como foram influenciados pela biografia. O terceiro bloco refere-se à identificação, durante a leitura, de aspectos da epistemologia da ciência na biografia. Diferenças nos resultados em relação à distribuição geográfica ou gênero de participantes não foram evidentes. Logo, os resultados foram apresentados de modo conjunto.

CONHECIMENTOS PRÉVIOS SOBRE CIENTISTAS

Para melhor compreender os conhecimentos sobre as mulheres na ciência, inicialmente foi realizado um levantamento para saber se o tema já havia sido vivenciado durante o processo educativo. A maioria (31) indicou não ter experienciado debates a respeito. Apenas quatro tiveram algum contato com o tema na Educação Básica, enquanto os demais (26) somente na universidade, em disciplinas (12) ou atividades extracurriculares (07). Devido à falta de descrição, algumas respostas não foi possível identificar em algumas respostas em quais ações tal contato ocorreu na universidade. É importante também destacar que grande parcela dos participantes (49) relatou não conhecer Alice Ball. Esses resultados desvelam a importância de um olhar para a discussão sobre as mulheres na ciência durante o processo escolar, tanto pela identificação e atração para a carreira, quanto pela negação dessa possibilidade. Ademais, mesmo no Ensino Superior, esse é um tema ainda pouco aprofundado (Silva & Pinheiro, 2019Silva, A. S., & Pinheiro, B. C. S. (2019). Químicxs negros e negras do século XX e o racismo institucional nas ciências. Revista Exitus, 9(4), 121-146.).

Isso é reforçado pelos conhecimentos prévios sobre cientistas mulheres. Ao ser solicitada a menção de duas cientistas mulheres e dois homens, assim como uma breve descrição do trabalho de cada, apenas 23 participantes conseguiram citar ao menos duas mulheres, sendo mencionadas um total de dez (Quadro 3).

Quadro 3
Cientistas mulheres citadas e descrição do trabalho científico (Questão 3)

Marie Curie foi a que mais apareceu e a única em que maiores detalhes de seu trabalho foram mencionados. Foram citadas com alguma descrição do trabalho científico Alice Ball, Rosalind Franklin, Jaqueline de Jesus e Ester Sabino, ao passo que nas outras menções não houve descrição (Tabela 2).

O número de participantes que citou ao menos dois cientistas homens foi mais do que o dobro (50), bem como a variedade de nomes lembrados (22) (Quadro 4). Além disso, a descrição sobre as pesquisas apareceu com maior detalhamento. Albert Einstein e Isaac Newton foram citados com maior frequência.

Quadro 4
Cientistas homens citados e descrição do trabalho científico (Questão 4)

O “silenciamento” de mulheres cientistas entre estudantes apresenta-se em concordância com outros estudos. Cavalli & Meglhioratti (2018Cavalli, M. B., & Meglhioratti, F. A. (2018). A participação da mulher na ciência: um estudo da visão de estudantes por meio do teste DAST. ACTIO, 3(3), 86-107.), por exemplo, analisaram desenhos de cientistas entre estudantes do Ensino Fundamental, os quais revelaram apenas duas representações de mulheres para treze de homens. Também solicitando a menção de nomes de cientistas, Teixeira & Costa (2008Teixeira, R. R. P., & Costa, P. Z. (2008). Impressões de estudantes universitários sobre a presença de mulheres na ciência. Ensaio - Pesquisa em Educação em Ciências, 10(2), 217-234.) indicaram severa dificuldade de estudantes de física mencionarem cientistas mulheres.

Tais resultados reforçam a necessidade dessa discussão na Educação Básica e Superior, não apenas com a apresentação de exemplos, mas a partir do debate acerca da atividade científica, suas características e condicionantes para, de fato, se caminhar na construção de maior representatividade. Conforme pontuam El Jamal & Guerra (2020El Jamal, N., & Guerra, A. (2020). O lado invisível na história da ciência: uma revisão bibliográfica sob perspectivas feministas para a educação científica. Revista Debates em Ensino de Química, 6(2), 311-333., p. 315):

No caso das meninas, é importante que elas se sintam representadas por mulheres na História da Ciência e se identifiquem com o conhecimento científico para construírem identidades científicas. Para que as mulheres se identifiquem com os grupos que fazem ciência, é, assim, necessário que, no mínimo, haja diversos exemplos de mulheres nestes grupos.

Quanto à inclusão de cientistas negros, 37 participantes não citaram ou desconheciam. Oito citaram mulheres negras, dentre as quais: Jaqueline Goes de Jesus, Jane Cooke Wright, Enedina Alves, Nise da Silveira, Alice Ball e Katherine Johnson. Apesar de seis entre as dez mulheres mencionadas terem sido negras, houve um forte desconhecimento de seus trabalhos. Sobre a diferença na capacidade de citar e descrever o trabalho de cientistas mulheres e negros, a grande maioria fez uma análise crítica do ponto de vista histórico-social, ao passo que menor parcela atribuiu à falta de divulgação ou citou fatores mais genéricos (Quadro 5).

Quadro5
Justificativas para as dificuldades em (re)conhecer citar mulheres e negros como cientistas (Questões 5 e 6)

Esse primeiro bloco aponta resultados importantes. Apesar da maioria ter se identificado pelo gênero feminino e serem capazes de uma análise histórico-social crítica, há uma falta de referência de cientistas mulheres, tanto na menção de nomes, em menor número e variedade em relação aos homens, quanto no conhecimento dos trabalhos por elas desenvolvido. Vale ainda assinalar, que além da questão de gênero, a estratificação racial amplia as desigualdades. Isso indica a necessidade de maior aprofundamento da discussão, incluindo exemplos do trabalho científico de mulheres negras e negros ao longo do tempo, associado à análise histórico-social crítica das condições desse trabalho. É preciso construir um sentimento de pertencimento à carreira científica, assim como analisar o contexto, caracterizado historicamente pelo domínio patriarcal (e branco).

Ressalta-se a importância de que os temas de gênero e raça nas ciências possam ser cada vez mais abordado na educação básica, para que (re)existam referências femininas negras e o reconhecimento de seus trabalhos, ante à dificuldade mesmo de referências didáticas (Silva & Pinheiro, 2019Silva, A. S., & Pinheiro, B. C. S. (2019). Químicxs negros e negras do século XX e o racismo institucional nas ciências. Revista Exitus, 9(4), 121-146.). Logo, as biografias configuram-se como um caminho para fomentar a maior participação de mulheres na ciência, ao valorizar figuras femininas e questionar ideias sobre a falta de inclinação feminina às ciências naturais. Conforme Trindade, Beltran & Tonetto (2016Trindade, L. D. S. P.; Beltran, M. H. R & Tonetto, S. R. (2016). Práticas e estratégias feministas: histórias de mulheres nas ciências da matéria. São Paulo: Livraria da Física., p. 12): “[...] levantamentos biográficos sobre mulheres que realizaram ou, de alguma forma, participaram de algum destacado episódio científico, constituíram um dos pontos de partida das pesquisas sobre mulheres na ciência”. Aspectos acerca da biografia para a introdução da história da ciência e constituição de representatividade, tanto para a questão de gênero como de raça, são debatidos a seguir.

O PAPEL DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA E SENTIDOS PRODUZIDOS

Nesse bloco, inicialmente buscou-se compreender o nível de interesse dos participantes em história da ciência. Dos 61 participantes, 31 identificaram-se como tendo alto interesse por história da ciência (escala 5), 21 como interessados (escala 4) e 09 como razoavelmente interessados (escala 3), alcançando valor médio de 4,36 na escala de 1 a 5. Esse resultado demonstra que a história da ciência é um tema em potencial a ser explorado na formação de professores. Nas justificativas, as categorias depreendidas referem-se ao papel da história na compreensão do processo de construção da ciência, como recurso potencial para o interesse geral e ensino, bem como destacam as condições de produção da ciência (Quadro 6). Na categoria de processo, a mais evidente, as respostas foram mais genéricas, usualmente mencionando que o conhecimento científico tem um caráter processual, o que indica certa superficialidade sobre os condicionantes desse processo. Na categoria interesse geral e ensino figura o papel informativo e descritivo como potencialidade da biografia. Já na categoria condições da produção do conhecimento, as respostas foram mais elaboradas, exemplificando-se condicionantes que interferem no trabalho científico.

Quadro 6
Justificativas para interesse por história da ciência (Questão 7)

O valor médio de influência da biografia para se pensar sobre as questões de gênero e raça na ciência foi de 4,31 na escala de 1 a 5. A maioria (29) julgou que foi altamente influenciada pelo texto (escala 5) ou influenciada (22 assinalaram a escala 4), enquanto dez medianamente (escala 3). As justificativas acenam para a contribuição da diversidade (31 respostas), das influências sócio-históricas (22 respostas) e de um processo de identificação (20 respostas).

Fiquei muito satisfeita e feliz em conhecer mais sobre a história de Alice Ball, já havia escutado seu nome em uma aula onde um professor citou o nome de cientistas mulheres, mas não obtive conhecimento nenhum sobre ela até então. Creio que sua trajetória como cientista, mulher e negra deve ter sido difícil, pois se hoje, no século XXI, o racismo e o machismo são tão presentes, não consigo imaginar o quão perturbador era no século XX. Acredito que se a história de Alice Ball e suas contribuições forem trazidas para dentro da sala de aula, isso trará muito inspiração para todas as mulheres. (E52)

O texto foi muito importante para ter em mente a situação de desigualdade racial e de gênero que mulheres negras enfrentavam e enfrentam para demonstrar seu conhecimento e seu trabalho. (E07)

O texto me trouxe a ideia de que as mulheres são capazes de muito, com a descrição de detalhes da vida corriqueira dela me deu o parecer de algo mais próximo de se realizar, pois em momento algum colocou ela em um pedestal e sim os caminhos da conquista. (E53)

A leitura da biografia parece contribuir com a produção de sentidos sobre uma visão processual e dos condicionantes sociais da produção do conhecimento, além de não ser percebida exclusivamente como recurso de ensino, mas como possibilidade de valorizar o contexto histórico e cultural em que a prática científica ocorre, adquirindo contornos para a divulgação da ciência. Tais aspectos estão em concordância ao que apontam Nye (2006Nye, M. J.(2006). Scientific biography: history of science by another means?Isis, 97(2), 322-329.) e Söderqvist (2020Söderqvist, T. The Meaning, nature, and scope of scientific (auto)biography. In: Forstner, C.; & Walker, M. Biographies in the History of Physics(pp. 301-318). Cham: Springer, 2020.), que a biografia é um dos gêneros textuais de maior penetração entre a população. As biografias parecem comungar de uma abordagem da história das ciências vinculada ao contexto sociocultural dos estudantes, o que pode trazer contribuições a discussões historiográficas na formação de professores. Assim, o estudo da história da ciência por meio de biografias para os licenciandos pode despertar a curiosidade de descobrir e conhecer seu mundo, aprofundar conhecimentos, bem como valorizar o ambiente que o cerca, valorizando uma postura positiva em relação à história da ciência. Todavia, a compreensão mais profunda exige novos questionamentos e leituras que não apenas a biografia. Parcela significativa das respostas abordam superficialmente condicionantes da atividade científica.

Quanto ao estímulo da biografia para o ensino e aprendizagem da temática mulheres e negros na ciência na química, o valor médio foi de 4,74, tendo 45 assinalados a escala máxima e o restante a escala quatro. As justificativas (Quadro 7) denotaram principalmente potencialidades da biografia para o (re)conhecimento do trabalho e (auto)identificação de mulheres, aprofundamento na temática, bem como para o ensino.

Quadro 7
Justificativas para o ensino e aprendizagem sobre gênero e raça na ciência (Questão 9)

O processo identitário é apontado como responsável para o sentimento de pertencimento (Dubar, 2005Dubar, C. (2005). A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Tradução Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Martins Fontes.; El Jamal & Guerra, 2020El Jamal, N., & Guerra, A. (2020). O lado invisível na história da ciência: uma revisão bibliográfica sob perspectivas feministas para a educação científica. Revista Debates em Ensino de Química, 6(2), 311-333., Santana, Pereira & Silva, 2022Santana, C.; Pereira, L., & Silva, I. (2022). Contribuições para escrita de biografias de mulheres nas ciências a partir das experiências de Keller, Ferry e Goldsmith. Cadernos Pagu, 65, e226524.), fortalecendo esta característica como uma das principais potencialidades para a biografia. Nota-se que o papel da biografia científica na percepção dos licenciandos conjuga a história da biografada com ampliação de possibilidades para o ensino. Segundo Terrall (2006Terrall, M. (2006). Biography as cultural History of Science. Isis, 97(2), 306-313, p. 307):

Pensar no lugar da biografia nas disciplinas deve nos levar a pensar também a relação entre as vidas de indivíduos e argumentos históricos sobre cultura, política, movimentos intelectuais, e assim por diante. Que lugar uma vida particular ocupa no quadro geral, em que está emoldurado? O que uma história de vida individual pode dizer sobre tendências maiores ou questões mais amplas? Como a ciência é integrada na vida, bem como na sociedade e na cultura? Não há respostas simples para tais perguntas, é claro, mas indicam o potencial de escrever para expandir além dos limites do indivíduo.

As biografias podem não apenas despertar interesse e mostrar aplicações do conhecimento, mas ir além, inter-relacionando a vida da cientista na complexa tessitura da sociedade que, apesar de circunscrita em um dado momento histórico, possibilita questionar o presente.

SENTIDOS SOBRE A COMPREENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

As últimas questões visaram a estabelecer relações entre a leitura da biografia e a compreensão de aspectos presentes na produção do conhecimento com o objetivo de provocar reflexões nos leitores. A biografia destacava questões como: problema, hipóteses, fatos, métodos, fins, conhecimento como construto social, mutabilidade e não neutralidade (influência de questões sociais, geográficas, de raça, de gênero, econômicas e políticas). No que se refere às características da ciência e da produção do conhecimento depreendidos a partir da leitura da biografia, a análise revelou a prevalência de variáveis mais ligadas ao trabalho empírico, com destaque para o método, perseguição de um problema, bem como implicações e fins que se originam de um trabalho experimental (Quadro 8).

Quadro 8
Sentidos sobre características da ciência e da produção do conhecimento (Questão 10)

Os resultados indicam uma perspectiva mais relacionada à atividade empírica. Verifica-se uma forte presença do método científico, seus procedimentos e etapas como o ponto mais importante para a geração de conhecimento e aplicações ou finalidades da ciência. O fato de a ciência química privilegiar fortemente o método experimental como forma de investigação e até mesmo como forma de validação de seus achados, provavelmente tem influência nas concepções formadas. As respostas podem ter sido influenciadas tanto por visões pré-formadas a respeito da ciência, bem como pela própria biografia que destaca, entre outras coisas, o desenvolvimento do “Método Ball”. Ainda que se tenha outras características da ciência na biografia construída, as visões pré-concebidas se aliam ao principal produto fruto da investigação de Alice Ball, que se configurou como um procedimento experimental. Juntamente ao método, a ênfase no problema que origina as investigações também foi destacada na biografia.

Conquanto essas características sejam limitantes para a compreensão da complexidade da atividade científica, elas compõem o que Dagher e Erduran (2016Dagher, Z., & Erduran, S. (2016). Reconceptualizing the nature of science for science education: why does it matter?Science & Education, 25(1-2), 147-164.) denominaram de dimensão cognitiva-epistêmica da ciência. São as práticas próprias da ciência, dentro de uma comunidade, que conduzem à certificação social do conhecimento. Dentre essas práticas, os procedimentos, os dados e sua confiabilidade, a argumentação, as hipóteses e demais componentes que dão suporte aos resultados são fundamentais, mas não emergem descoladas das variáveis sociais e dos mecanismos estruturais e de poder institucionais, políticos e econômicos.

A ciência como uma construção social, a importância da comunicação no processo científico, especialmente com o público amplo, assim como uma visão de complexidade, também foi destacada. Na ciência como construção social há o reconhecimento do trabalho coletivo no processo (“trajetória dos cientistas e seus colaboradores”). Já na categoria ciência como anseio público, as respostas denotam a necessária divulgação daquilo que é produzido para a população (“possam ter um amplo saber mesmo que essa população não seja acadêmica”). Na categoria complexidade são apresentados mais de dois fatores como características (“não é feita de verdades e é mutável [...], porém não inacessível”). Oito respostas foram genéricas sem construção de sentidos com correlação epistemológica (Tabela 7).

Esses resultados permitem inferir que, apesar de a biografia buscar um viés mais complexo da ciência, realçando os interferentes das estruturas sociais e políticas, o texto necessita de uma mediação pedagógica para problematizar esses diferentes aspectos. Hwang (2015Hwang, S. (2015). Making sense of scientific biographies: scientific achievement, nature of science, and storylines in college students’ essays. Journal of Biological Education, 49(3), 288-301.), investigando a leitura de biografias científicas com estudantes universitários de cursos não ligados às ciências da natureza, aponta sobre a potencialidade em engajar criticamente os estudantes em aspectos da natureza da ciência, mas alerta também a necessidade de discutir a interpretação dos textos. A construção de sentidos é idiossincrática e o texto não é transparente, sobretudo considerando-se aspectos complexos sobre a ciência que vão na contramão de ideias pré-concebidas.

Buscando ampliar as informações, foi solicitado que expressassem fatores de interferência na produção do conhecimento. As respostas foram múltiplas, mas abarcaram 3 grandes categorias (Quadro 9): as estruturas hierárquicas institucionalizadas (sociais, econômicas, políticas, históricas), dinâmica acadêmica e aspectos pessoais (interesses e aptidões individuais).

Quadro 9
Fatores que interferem na produção do conhecimento (Questão 11)

Muitas respostas sinalizaram para a forte atuação das estruturas institucionais que compreendem diferentes fases da produção da ciência, desde seu financiamento à exclusão de grupos minoritários, desvelando um ponto de vista da complexidade inerente à ciência como uma atividade social circunscrita num contexto histórico-social particular. A falta de investimentos, por questões políticas, econômicas, de valorização social ou até negacionismo surgiram, muito provavelmente em função do contexto vivenciado. Parcela das respostas, todavia, ainda denota uma dimensão individual e pessoal do trabalho científico. A dinâmica acadêmica (pós-graduação, sistema de publicações) da produção científica também foi evidenciada.

Os resultados possibilitam aventar uma inter-relação entre pontos de vistas pessoais com influências da biografia, especialmente nas respostas que mencionam as questões de gênero e raça como prevalecentes na atividade científica. Ainda assim, infere-se que, desde esse ponto de vista epistemológico, a biografia interferiu em menor grau na problematização/reconhecimento de características da produção da ciência, reforçando o papel de mediação para a discussão de questões epistemológicas (Hwang, 2015Hwang, S. (2015). Making sense of scientific biographies: scientific achievement, nature of science, and storylines in college students’ essays. Journal of Biological Education, 49(3), 288-301.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos objetivos desta pesquisa foi o levantamento de conhecimentos prévios de estudantes acerca de cientistas. Os resultados revelaram dificuldade, mesmo de mulheres, em citar figuras femininas na ciência e descrever minimamente seus trabalhos. Além da questão de gênero, há a questão de raça, revelando que os padrões de homem branco e europeu ainda prevalecem no conhecimento sobre cientistas. Por outro lado, a grande maioria foi capaz de (auto)analisar as razões para isso, atribuindo às questões histórico-sociais o apagamento de cientistas mulheres e negros. Logo, destaca-se que é preciso problematizar na educação científica o debate sobre cientistas mulheres e negros em geral.

As biografias científicas podem ser uma possibilidade para tal a partir das dimensões conceituais, historiográficas e epistemológicas da vida e trabalho de cientistas. Sob essa ótica, foram avaliadas, a partir da leitura da biografia de Alice Ball, as possibilidades e limites em termos dos sentidos produzidos para o debate sobre aspectos da história e epistemologia da ciência. Os resultados acenam que a biografia produzida tem potencial para estimular o aprofundamento das questões de gênero e raça, assim como explorar condicionantes variados na produção do conhecimento científico.

As informações presentes na biografia parecem atuar em correlação com as concepções prévias sobre ciência na produção de sentidos acerca de aspectos epistemológicos. Isso pode ter influenciado o enfoque maior dado pelos participantes aos aspectos práticos da ciência, como o problema e métodos científicos, ao passo que outras características do trabalho científico (ciência como produção social, mutabilidade, influências do contexto sociocultural e o papel de estruturas sociais da ciência) foram menos percebidas, ainda que se tenha tentado enfatizá-los na biografia. Uma limitação do próprio estudo nesse sentido é o fato de que, como pesquisa exploratória, não houve um levantamento mais aprofundado sobre concepções prévias em termos da epistemologia da ciência. Ainda que um dos critérios de inclusão na pesquisa pressupunha a não participação em disciplinas de história e filosofia da ciência, não é possível concluir se os sentidos produzidos foram mais influenciados pela leitura ou vivências anteriores. Variações de repostas e em sua profundidade podem estar relacionadas à composição dos participantes, cujo conhecimento difere em função dessas experiências anteriores.

Por fim, a história da ciência pelo viés da biografia parece promissora, pois, além de a maioria dos participantes ter demonstrado interesse pela temática, as caraterísticas da biografia como gênero textual sugerem uma visão positiva para se conhecer a vida e trabalho de cientistas. Entretanto, a complexidade da produção do conhecimento em seus aspectos epistemológicos necessita de maior problematização que apenas a leitura da biografia não garante. Destaca-se, portanto, o papel de mediação do texto para a discussão de questões sobre a epistemologia e funcionamento da ciência. Novos estudos, especialmente no nível básico, de mediação da leitura e debate epistemológico, são potenciais campos de estudo para as biografias científicas, um tema ainda pouco explorado no campo da educação em ciências.

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de externar sinceros agradecimentos às/aos docentes e discentes que contribuíram para que a presente pesquisa se fizesse exequível, cedendo espaço e tempo em suas atividades acadêmicas, tempo de leitura do material e de respostas aos questionários. W. E. Francisco Junior também agradece ao CNPq pela bolsa de produtividade em pesquisa.

REFERÊNCIAS

  • Babbie, E. (1999). Métodos de pesquisas de Survey, Editora UFMG: Belo Horizonte.
  • Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo, São Paulo: Edições 70.
  • Dubar, C. (2005). A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Tradução Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Martins Fontes.
  • Carmona, A. G., & Díaz, J. A. (2016). Learning about the nature of science using newspaper articles with scientific content. Science & Education, 25(5/6), 523-546.
  • Cavalli, M. B., & Meglhioratti, F. A. (2018). A participação da mulher na ciência: um estudo da visão de estudantes por meio do teste DAST. ACTIO, 3(3), 86-107.
  • Dagher, Z., & Erduran, S. (2016). Reconceptualizing the nature of science for science education: why does it matter?Science & Education, 25(1-2), 147-164.
  • El Jamal, N., & Guerra, A. (2020). O lado invisível na história da ciência: uma revisão bibliográfica sob perspectivas feministas para a educação científica. Revista Debates em Ensino de Química, 6(2), 311-333.
  • García-Carmona, A. (2021). Improving pre-service elementary teachers’ understanding of the nature of science through an analysis of the historical case of Rosalind Franklin and the structure of DNA. Research in Science Education, 51, 347-373.
  • Hwang, S. (2015). Making sense of scientific biographies: scientific achievement, nature of science, and storylines in college students’ essays. Journal of Biological Education, 49(3), 288-301.
  • Löwy, I.(2009). Ciências e gênero. In: Hirata, H.; Laborie; F.; Le Doare, H.; & Senotier, D. (ed.), Dicionário crítico do feminismo (pp. 40-44). São Paulo: Editora UNESP.
  • Mattar, J., Ramos, D. K.(2021). Metodologia da pesquisa em educação: abordagens qualitativas, quantitativas e mistas. São Paulo: Edições 70 .
  • Nye, M. J.(2006). Scientific biography: history of science by another means?Isis, 97(2), 322-329.
  • Porter, T. M. (2006). Is the life of the scientist a scientific unit?Isis, 97(2), 314-321.
  • Santana, C.; Pereira, L., & Silva, I. (2022). Contribuições para escrita de biografias de mulheres nas ciências a partir das experiências de Keller, Ferry e Goldsmith. Cadernos Pagu, 65, e226524.
  • Scerri, E. (2016). A tale of seven scientists and a new philosophy of science New York: Oxford University Press.
  • Shortland, M., Yeo, R. Telling lives in science: essays on scientific biography. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
  • Silva, A. S., & Pinheiro, B. C. S. (2019). Químicxs negros e negras do século XX e o racismo institucional nas ciências. Revista Exitus, 9(4), 121-146.
  • Söderqvist, T. The Meaning, nature, and scope of scientific (auto)biography. In: Forstner, C.; & Walker, M. Biographies in the History of Physics(pp. 301-318). Cham: Springer, 2020.
  • Soihet, R. (1997). História, mulheres, gênero: contribuições para um debate. In: N. Aguiar(ed.), Gênero e Ciências Humanas: desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres (pp. 95-114). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.
  • Teixeira, R. R. P., & Costa, P. Z. (2008). Impressões de estudantes universitários sobre a presença de mulheres na ciência. Ensaio - Pesquisa em Educação em Ciências, 10(2), 217-234.
  • Terrall, M. (2006). Biography as cultural History of Science. Isis, 97(2), 306-313
  • Trindade, L. D. S. P.; Beltran, M. H. R & Tonetto, S. R. (2016). Práticas e estratégias feministas: histórias de mulheres nas ciências da matéria. São Paulo: Livraria da Física.
  • Urias, G., & Assis, A. (2014). As biografias de cientistas e suas aplicações no ensino de ciências. ComCiência, 155, 1-4.
  • Vidal, P. H. O., & Porto, P. A. A história da ciência nos livros didáticos de química do PNLEM 2007. Ciência & Educação, 18(2), 291-308, 2012.
  • 2
    A biografia completa pode ser acessada no endereço https://doi.org/10.48331/scielodata.L5XGRP.
  • O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pela verba para a editoração deste artigo.

APÊNDICE I - INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS E ORIENTAÇÕES DE AVALIAÇÃO EXTERNA

Editado por

Editora responsável: Marina Rodrigues Martins
Editora de dados: Nathália Helena Azevedo

Disponibilidade de dados

Os dados subjacentes a pesquisa estão depositados no dataverse Scielo EPEC e podem ser acessados em .https://doi.org/10.48331/scielodata.L5XGRP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2023
  • Aceito
    29 Jan 2024
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antonio Carlos, 6627, CEP 31270-901 Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, Tel.: (55 31) 3409-5338, Fax: (55 31) 3409-5337 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: ensaio@fae.ufmg.br