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A autonomia de uma ciência bona fide

RESENHA

A autonomia de uma ciência bona fide1 1 Resenha de Biologia, ciência única. Reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica, de Ernst Mayr. Prefácio de Drauzio Varela. 266 páginas. Publicado em 2005 pela Editora Companhia das Letras. Tradução de Marcelo Leite, do original What makes biology unique?: considerations on the autonomy of a scientific discipline, publicado em 2004, por Cambridge University Press.

Maria Angela Guimarães Feitosa

Universidade de Brasília

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia Universidade de Brasília Campus Darcy Ribeiro Brasília, DF; CEP 70910-900 Tel.: (61) 3307-2620 E-mail: afeitosa@unb.br

Ernst Mayr (1904-2005), o grande teórico da biologia moderna, foi um dos arquitetos da teoria sintética da evolução, empreendimento que mergulhou na teoria originalmente proposta por Charles Darwin, corrigindo-a, incorporando-lhe mecanismos de evolução inicialmente não disponíveis e consolidando sua base empírica. O impacto do trabalho de Mayr na consolidação da biologia evolucionista conferiu-lhe referência como o Darwin do século XX. Em Biologia, ciência única, Mayr torna acessível ao não especialista o caminho conceitual da teoria de Darwin à teoria sintética, permitindo ao psicólogo (foco da presente resenha) superar um entendimento ainda presente em alguns livros da área, de que o processo da evolução opera apenas sobre a forma dos organismos, e apreciar o impacto para teorias em Psicologia, dos mecanismos de evolução, que reconhecem o papel do comportamento. Permeiam esta obra de vocação didática a crítica ferina à filosofia pela adoção da física como referencial de análise da biologia e a proposição de incorporação de referenciais advindos da própria identidade da biologia. Esta crítica é inspiradora para análises equivalentes pela Psicologia.

Mayr inicia o "Prefácio", esclarecendo que Biologia, ciência única é seu último levantamento de conceitos controversos em biologia, explicita sua crítica aos filósofos pela escolha da lógica como estratégia suficiente para resolução dos problemas da filosofia da ciência e propõe que uma abordagem empírica é mais apropriada. Tem o anúncio de uma despedida, retomada com os "Agradecimentos" aos colaboradores de vida. Permeia o livro a proposição de que o desenvolvimento de uma filosofia da biologia requer uma abordagem diferente da tradicionalmente empregada na filosofia da ciência e exige uma análise comparativa do quadro conceitual da biologia e da física. A análise que se segue permite a clarificação de conceitos centrais sobre evolução. Na organização primorosa do livro revela-se a atenção de Mayr ao leitor não familiarizado com seu trabalho. O texto propriamente dito inicia com uma "Introdução", que explicita a natureza de sua autoridade e de suas inquietações para falar sobre filosofia da biologia, justifica e resume cada um dos capítulos. Seguem-se ao texto, um "Índice remissivo", um "Glossário" e a "Literatura citada". Na publicação pela Companhia das Letras livro e autor são apresentados por Drauzio Varella em um "Prefácio à edição brasileira". A tradução de Marcelo Leite é literariamente apropriada e atenta à terminologia técnica.

Mayr mostra no Capítulo 1 – "Ciência e ciências", que a biologia tem as características indispensáveis das verdadeiras ciências como a química e a física, mas algumas propriedades não encontradas nesta última. Em decorrência, argumenta no Capítulo 2 – "A autonomia da biologia" que a caracterização de uma ciência genuína com propriedades não encontradas em outras ciências confere à biologia o status de ciência autônoma. Justificando os capítulos seguintes, defende que a fundamentação de uma filosofia da biologia requer a plena compreensão de vários aspectos da biologia.

No Capítulo 3 – "Teleologia", o autor alerta que a palavra teleologia vem sendo usada para explicar cinco diferentes tipos de fenômenos e processos da natureza, e procura mostrar que quatro deles dispõem de explicações empíricas satisfatórias e diferentes. Continuando o tratamento de conceitos filosóficos, no Capítulo 4 – "Análise ou reducionismo?", esclarece a confusão entre os conceitos de análise e redução, argumenta sobre a origem fisicalista do conceito de redução e seu embasamento em premissas inválidas, adverte sobre os diferentes significados de redução e a importância do conceito de emergência para a compreensão da polarização reducionismo-não reducionismo, e propõe que a análise é uma metodologia importante no estudo de sistemas complexos, uma reflexão pertinente para discussões equivalentes nas neurociências. Concluindo essa fundamentação, Mayr argumenta no Capítulo 5 – "A influência de Darwin sobre o pensamento moderno", que o entendimento da autonomia da biologia exige análise do darwinismo, assim justificando os capítulos 5 a 8.

No Capítulo 6 – "As cinco teorias da evolução de Darwin", Mayr apresenta a compreensão contemporânea de que o paradigma evolucionista consiste em cinco teorias independentes: a evolução propriamente dita, a descendência comum, o gradualismo, a multiplicação de espécies e a seleção natural. A evolução de cada uma destas teorias é objeto do Capítulo 7 – "Maturação do darwinismo", no qual Mayr analisa as diferentes proposições do darwinismo e mudanças no próprio conceito de darwinismo. Este capítulo prepara a fundamentação específica para a tese desenvolvida no Capítulo 9 – "As revoluções científicas de Thomas Kuhn acontecem mesmo?" de que na biologia não há base empírica para a proposição de que a ciência avança por mudanças de paradigma.

Já no início do Capítulo 8 – "Seleção", Mayr alerta sobre a dificuldade atual de um tratamento cabal sobre a teoria da seleção, porque os biólogos custaram a perceber a limitação do entendimento oferecido por Darwin, e porque este componente da evolução foi objeto de grande resistência entre os religiosos. Analisa que embora as práticas dos criadores de animais, fonte de inspiração de Darwin, envolvessem os métodos, também utilizados na natureza, de seleção dos melhores e de eliminação dos piores, Darwin restringiu-se ao primeiro. Apresenta o entendimento contemporâneo de seleção natural englobando dois processos, o de seleção propriamente dita (seleção de sobrevivência) e a produção diferencial de prole devida à variação na capacidade de lidar com fatores ambientais além de parceiros e seleção sexuais (seleção por sucesso reprodutivo), uma conceituação pertinente à discussão em Psicologia sobre variabilidade e regularidade no comportamento. Finalizando, Mayr argumenta que o objeto de seleção é o organismo individual fenotipicamente expresso, e não o gene, como proposto por Lewontin ou Dawkins; e que fenótipo se refere a características estruturais, comportamentais e aos produtos do comportamento.

No Capítulo 10 – "Um outro olhar sobre o problema da espécie", os biólogos são exortados a adotar a espécie como unidade de estudo. Segue uma longa discussão sobre o conceito de espécie. É de interesse da Psicologia o entendimento de que membros de espécies diferentes, mesmo quando simpátricos, são separados por uma barreira invisível em comunidades reprodutivas, cuja identidade biológica é verificável a partir de evidência empírica de entrecruzamento diferencial, que inclui estratégias comportamentais de isolamento.

A reconstrução da história humana só é plausível, argumenta Mayr no Capítulo 11 – "A origem dos seres humanos", porque a biologia, diferentemente da física, pode recorrer à narrativa histórica. É manifesta a preocupação com o caráter provisório dessa história, em razão da precariedade da evidência fóssil e da compreensão das condições ambientais em que viveram os ancestrais humanos. A possibilidade de evolução paralela em outros planetas de formas de vida que se aproximem aos humanos é contestada no Capítulo 12 – "Estamos sozinhos neste vasto universo?". A leitura deste livro de Mayr prepara o leitor para trabalhos anteriores mais densos, como a fascinante incursão na história da biologia registrada em O desenvolvimento do pensamento biológico, obra na qual o leitor poderá constatar que a análise do meio no qual são desenvolvidas as teorias em biologia é pertinente à compreensão do desenvolvimento das idéias em Psicologia.

Nota

Recebido em 16.jun.06

Revisado em 17.out.06

Aceito em 22.dez.06

Maria Angela Guimarães Feitosa, doutora em Psicobiologia por The University of Michigan Ann Arbor (EUA), é Professora Associada I e Diretora do Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília.

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    Resenha de
    Biologia, ciência única. Reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica, de Ernst Mayr. Prefácio de Drauzio Varela. 266 páginas. Publicado em 2005 pela Editora Companhia das Letras. Tradução de Marcelo Leite, do original
    What makes biology unique?: considerations on the autonomy of a scientific discipline, publicado em 2004, por Cambridge University Press.
  • Endereço para correspondência:
    Instituto de Psicologia
    Universidade de Brasília
    Campus Darcy Ribeiro
    Brasília, DF; CEP 70910-900
    Tel.: (61) 3307-2620
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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