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DO CARREIRO E DA CACIMBA: EXPERIÊNCIAS QUE EXPLICAM AS RELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÕES E “SER GENTE” EM COMUNIDADES

FROM CARREIRO AND CACIMBA: EXPERIENCES THAT EXPLAIN THE RELATIONSHIPS BETWEEN EDUCATION AND “BEING PEOPLE” IN COMMUNITIES

DE CARREIRO Y DA CACIMBA: EXPERIENCIAS QUE EXPLICAN LAS RELACIONES ENTRE EDUCACIÓN Y “SER PERSONAS” EN LAS COMUNIDADES

RESUMO

Pelas inquietações levantadas durante a matéria Educação e Sociedade no doutoramento do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí, fomos instigados a ampliar as discussões tecidas com as experiências das comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente em Paulistana, Piauí (2018-2019)1. Assim, temos como objetivo compreender quais e como as experiências educacionais envolvendo práticas de organização e constituição quilombola constroem o “espírito” de comunidade (SOMÉ, 2003) em meio aos discursos da colonialidade-modernidade em quilombos em Paulistana. Para isso, dialogamos com os dizeres de Bader Sawaia (2001), Carlos Brandão (2009) e Paulo Freire e Sérgio Guimarães (2011) e suas implicações e práticas educativas que “ensinam a ser gente”. As narrativas direcionaram aos saberes e fazeres das comunidades que descrevem a relação com a/na terra por intermédio de uma simbologia de pertencimento e de construção do ser quilombola.

Palavras-chave
Carreiro; Cacimba; Educações; Ser gente; Comunidades

ABSTRACT

From the concerns raised during the subject Education and Society in the doctorate of the Postgraduate Program in Education of the Universidade Federal do Piauí, we were instigated to expand the discussions woven with the experiences of the quilombola communities of Barro Vermelho and Contente in Paulistana, Piauí, Brazil (2018-2019). Thus, we aimed to understand which and how the educational experiences involving practices of quilombola organization and constitution build the “spirit” of community (SOMÉ, 2003) amid the discourses of coloniality-modernity in quilombos in Paulistana. For this, we dialogued with the sayings of Bader Sawaia (2001), Carlos Brandão (2009) and Paulo Freire and Sérgio Guimarães (2011) and their implications and educational practices that “teach to be people”. The narratives directed to the knowledge and actions of the communities that describe the relationship with/on the land through a symbology of belonging and construction of the quilombola being.

Keywords
Carreiro ; Cacimba ; Educations; Being people; Communities

RESUMEN

A partir de las preocupaciones planteadas durante la asignatura Educación y Sociedad en el doctorado (PPGED-UFPI), fuimos instigados a ampliar las discusiones tejidas con las experiencias de las comunidades quilombolas de Barro Vermelho y Contente en Paulistana-Piauí (2018-2019). Por lo tanto, nuestro objetivo es comprender cuáles y cómo las experiencias educativas que involucran prácticas de organización y constitución quilombola construyen el “espíritu” de comunidad (SOMÉ, 2003) en medio de los discursos de colonialidad-modernidad en quilombos en Paulistana-PI. Para esto, todavía dialogamos con los dichos de Paulo Freire y Sérgio Guimarães (2011), Bader Sawaia (2001) y Carlos Brandão (2009), sus implicaciones y prácticas educativas que “enseñan a ser personas”. Las narrativas dirigidas a los conocimientos y acciones de las comunidades que describen la relación con/sobre la tierra a través de una simbología de pertenencia y construcción del ser quilombola.

Palabras clave
Carreiro; Cacimba; Educación; Ser personas; Comunidades

Introdução Sobre as Lentes-Espelhos do Desenvolvimento, Reflexos do-para o Ocidente

“Ah, Ave Maria, meu Deus...”

“A primeira vez que eles vieram nós nem sabia. Vieram e tiraram carreiro”

(Edivaldo Camilo, Paulistana, PI, 2019)

Pelos debates tecidos no componente curricular Educação e Sociedade, que tratou das relações entre educação e a estrutura social, bem como suas inferências e constituições na-para a realidade social, somos instigados à discussão e ao reconhecimento de experiências de organização comunitária e agenciamento identitário enunciados como práticas educacionais e transmissão cultural. Os processos educativos não podem ser dissociados dos condicionantes da teia social, como parte de uma superestrutura com vistas a alcançar os objetivos traçados. As implicações sobre a indissociável relação entre as categorias educação e sociedade ainda nos estimularam a uma escrita em que pudéssemos usar os fios-vozes dessas discussões e, assim, (re)pensar a educação escolar com base nas inter-relações de sujeitas/os por meio de suas práticas pluriversais, e, como tais, educações reverberam na organização social e coesão coletiva, o que justifica esta escrita na primeira pessoa do plural.

O convite é desafiador, pois envolve uma problematização em torno de duas categorias complexas e polissêmicas, mas que não podem ser trabalhadas de forma separada, principalmente quando a proposta é pensarmos as concepções do direito de ser-humano na sociedade brasileira, humanidades constituídas na intersubjetividade e na diferença como ampliação das possibilidades de existir-ser (JACOBO, 2015JACOBO, Z. Direitos humanos e inclusão: uma reflexão crítica a partir da subjetividade e de propostas alternativas. In: SILVA, A. M. M.; COSTA, V. A. (org.). Educação inclusiva e direitos humanos: perspectivas contemporâneas. São Paulo: Cor, 2015. p. 54-88.; KRENAK, 2019KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).

Para isso, baseamo-nos nos dizeres de Paulo Freire e Sérgio Guimarães (2011)FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. quando tratam da necessidade de (re)aprender com outras experiências que “ensinam a ser gente”. Embora os autores se reportem às vivências coletivas em diversos contextos-tempos do continente africano, estas são trazidas aqui para (re)pensarmos-olharmos e nos enxergarmos em espelhos-lentes para além do reflexo ocidentalizante hegemônico do sistema de escolarização brasileiro.

O chamamento de Freire e de seu coautor (2011) sobre as práticas educativas socioculturais desenvolvidas em alguns países africanos e o que aprendemos com elas também é parte das orientações dos professores que dialogaram com os discentes do doutorado em Educação, ao proporem uma discussão que nos ajude a “(re)inventar a educação” para orientar as relações sociais. Ou, seria melhor dizermos, não precisamos reinventar processos educativos, mas devemos ser capazes de (re)conhecer experiências de “ser” por meio das vivências e práticas educativas já existentes para além dos muros da escola.

Sendo assim, tratamos de uma realidade concreta, de ser-sendo-existente, para dizer neste trabalho que as possibilidades de existência não são projeções imaginárias, mas experiências sociais do nosso cotidiano, do ser/fazer-se enquanto micro e macroforças que explicam as relações e as educações nas comunidades quilombolas do sertão do Piauí, as quais organizam o ambiente social pela oralidade, defendida por Freire e Guimarães (2011)FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. como uma linguagem, um microcosmo da consciência, pois “não comunica o mundo em unidade pensamento discursivo-palavra como à fala, mas compõem o encontro” (FREIRE; GUIMARÃES, 2011FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011., p. 52), não podendo ser reduzida à palavra, porém entendida por meio dos significados e expressões, gestos e contextos que fazem parte do diálogo.

Para essa discussão, voltamo-nos para os encontros dialógicos estabelecidos com as comunidades de Barro Vermelho e Contente (2018-2019) para a escrita da dissertação de mestrado da primeira autora. Trata-se de comunidades localizadas no município de Paulistana (PI) que reivindicam o reconhecimento de um território tradicional de ancestralidade quilombola e direito à territorialidade ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Naquele momento da pesquisa (submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa e aprovada pelo parecer nº 3.545.761, em 2019), as narrativas já nos direcionavam a questionamentos de como os discursos de desenvolvimento econômico e progresso social-tecnológico “atravessavam” as comunidades ao meio. A descrição indignada é com as práticas da ferrovia Transnordestina e da Unidade Escolar Eusébio André de Carvalho, escola que atende os educandos das duas referidas comunidades. Tomamos ambas como referência neste texto.

Já para o doutoramento, ampliamos os diálogos por intermédio de mais quatro possibilidades e experiências de ser comunidade nessa região. O total de seis comunidades no município, já certificadas pela Fundação Cultural Palmares, conforme tabela de 4 de julho de 2023 (Chupeiro, Angical, São Martins, Contente, Sombrio e Barro Vermelho) (BRASIL, 2023BRASIL. Fundação Cultural Palmares. Certidões expedidas às comunidades remanescentes de quilombos (CRQS). Diário Oficial da União. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/palmares/pt-br/midias/arquivos-menu-departamentos/dpa/comunidades-certificadas/tabela-crq-completa-certificadas-04-07-2023.pdf. Acesso em: 13 set. 2023.
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), desde 2005 utiliza as narrativas dos loci geopolíticos e corpos-políticos de enunciação como forma de legitimar a regularização fundiária.

Na busca por palavras ao modo freireano (palavras que façam sentido na construção ontológica de ser comunidade-sociedade) que pudéssemos relacionar à proposta deste texto, percebemos que os diálogos (2018-2019)1 1 Os diálogos foram estabelecidos com as comunidades de Barro Vermelho e Contente em Paulistana (PI) durante a pesquisa de mestrado em História do Brasil, pela Universidade Federal do Piauí, intitulada “Já conheci com essa nação, o chamado negro”: etnicidade, territorialidade e educação nas comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente em Paulistana-PI (2000–2019). eram intercalados por silêncios, risos e expressões como “Ah! Ave Maria... Meu Deus, a Transnordestina abrindo carreiro”. Assim, resolvemos, então, tratar desses silêncios e de outras manifestações (expressões), assim como de “palavras do não dito”, na forma da presença da ferrovia nas comunidades, bem como das relações estabelecidas mediante esses instrumentais.

Então, para este trabalho, elegemos dois termos, do carreiro e da cacimba, usados pelas comunidades de Barro Vermelho e Contente (localizadas em áreas limítrofes, em que as vivências e experiências com a escola e a Transnordestina são atravessadas e suturadas sem diálogo), para tratar dos impactos das referidas instituições como a “linguagem que vem de fora” e que infere na dinâmica e na organização das comunidades. Vale ressaltar que a Transnordestina, enquanto projeto ferroviário, “legitima” os impactos às comunidades como “um mal necessário”, com ideias e ideais modernistas e de progresso que têm como propósito explicitado nos discursos mandatórios o escoamento da produção de minério para o desenvolvimento, geralmente sem definição objetiva, do estado do Piauí.

Assim, com base nos termos, discutimos os objetivos e métodos do desenvolvimentismo, mecanismos que tornam “linguagem e opressão colonial” atemporais, com novas máscaras, inferências e afetações pelo discurso da modernidade e suas tentativas de cindir o “espírito de comunidade” (SOMÉ, 2003SOMÉ, S. O espírito da intimidade. São Paulo: Odysseus, 2003.). Para a autora africana Somé (2003)SOMÉ, S. O espírito da intimidade. São Paulo: Odysseus, 2003., fundamentada na escrita de vivências com o coletivo, comunidade “é onde as pessoas se reúnem para realizar um objetivo específico para ajudar os outros a realizarem seu propósito e para cuidar umas das outras” (SOMÉ, 2003SOMÉ, S. O espírito da intimidade. São Paulo: Odysseus, 2003., p. 35)

No que se refere ao termo carreiro, usado pelas comunidades para expressar o ato de abrir caminho com a construção da ferrovia, ele passa a ter a conotação de fechar-encerrar conversas que se fazem por ditames verticalizados, em que o “direito” de ser-ter a terra dos habitantes de Barro Vermelho e Contente não se faz pela escuta das demandas das comunidades nem dos seus direitos territoriais, mas pelo verbalismo da modernidade e progresso, na tentativa de justificar a construção de um aparato de exploração de fora para dentro, como benefício do desenvolvimento. Já o termo cacimba se relaciona “ao dito, mas não escrito”, às práticas educativas constituídas em meio à realização de atividades domésticas, na roça e na própria dinâmica organizacional e interativa do território como processos que ensinam por intermédio das vivências cotidianas a “ser gente” quilombola, participante ativa da comunidade das/os quilombolas.

Gostaríamos ainda de ressaltar que a passagem da ferrovia acontece no mesmo contexto-tempo em que as comunidades Barro Vermelho e Contente estão em debate em torno das questões identitárias de ser quilombola no sertão do Piauí. Assim, em meio às transformações locais, com os projetos de “modernização” com a Transnordestina, bem como as políticas educativas do Estado, sobretudo aquelas aplicadas na Unidade Escolar Eusébio André de Carvalho (escola municipal referenciada na-para a escrita deste texto), os habitantes passam a reivindicar a territorialidade e ser-a-terra por um forte viés étnico e de reconhecimento quilombola.

Essas problematizações também direcionaram a proposta para o doutoramento com base nas experiências que explicam as relações entre educações e sociedade como experiências de “ser” vivências/viventes em comunidades. Portanto, temos como objetivo compreender quais e como as experiências educacionais em sua totalidade e práticas de organização e constituição quilombola constroem o “espírito” de comunidade em meio aos discursos da colonialidade-modernidade nas comunidades de Barro Vermelho e Contente, em Paulistana.

Não podemos esquecer que, quando tratamos de comunidades quilombolas em Paulistana, não oferecemos uma percepção fechada de quilombos constituídos isoladamente, mas que se constroem pelas trocas e que, por isso, estão sujeitos à noção de desenvolvimento que considera as estruturas sociais tecidas e mantidas sob uma linguagem de violência e desrespeito e que ainda impõe os condicionantes socioeconômicos de um ser-que-não-pode-ser-ter (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 339f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.), mas que ao mesmo tempo tensiona, negocia a luta e (re)existência do ser-estar quilombola que existe e não pode ter posse territorial.

Quilombo é ainda entendido com base nas narrativas dos territórios de Paulistana, cuja definição se imbrica com os saberes e fazeres no/com o território. A categoria não se remete a uma espacialidade geográfica em si, porém a uma identidade indissociável da territorialidade. Nos dizeres de Clóvis Moura (2020)MOURA, C. Quilombos: resistência ao escravismo. São Paulo: Expressão Popular, 2020., quilombos são compreendidos como espaços com organização plural, dialética radical e reelaboração social que constroem a sua reumanização.

Na pesquisa realizada por Rodrigo Gomes (2018)GOMES, R. P. Quilombos, constitucionalismo e racismo: famílias negras na luta pela propriedade em Barro Vermelho e Contente no Piauí. 219f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018. Disponível em http://repositorio.unb.br/handle/10482/32158. Acesso em: 25 abr. 2018.
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sobre as concepções de organização política e social estabelecidas nas comunidades de Barro Vermelho e Contente mediante o reconhecimento identitário próprio, em debate com o que é estabelecido nas prerrogativas constitucionais para garantir direitos territoriais e sociais, o referido autor orienta-nos que compreender os conflitos com os símbolos da modernidade, como a implantação da ferrovia Nova Transnordestina nas comunidades, é também “compreender como a dimensão racial está imbricada nos contornos institucionais que dão legitimidade à obra em detrimento da violação de direitos e garantias fundamentais” (GOMES, 2018GOMES, R. P. Quilombos, constitucionalismo e racismo: famílias negras na luta pela propriedade em Barro Vermelho e Contente no Piauí. 219f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018. Disponível em http://repositorio.unb.br/handle/10482/32158. Acesso em: 25 abr. 2018.
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, p. 83), da estruturação e da institucionalização do racismo na sociedade brasileira.

Essas orientações levam-nos a questionar as interferências nos construtos das subjetividades, bem como a problematizar os processos constitutivos de uma realidade objetiva como “naturalizados”. Sendo assim, indagamos: qual é o discurso por trás do desenvolvimentismo? Que realidade esconde? Como as permanências da colonialidade para a-na modernidade estabelecem estruturas hierarquizadas nas relações entre o local e o global? Quem dita o que é moderno? Quais são as intencionalidades?

Na ânsia de respondermos a esses questionamentos como forma de compreender as dinâmicas de organização social e práticas educativas como construção/ser comunidades sob a égide da modernidade-colonialidade, travamos diálogos com Aníbal Quijano (2005)QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2005. (Colección Sur Sur.) p. 33-49. e Walter Mignolo (2008)MIGNOLO, W. D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, n. 34, p. 287-324, 2008., quando discutem a sistêmica da colonialidade e os mecanismos de opressão nos projetos da “modernidade”, para entender como a “linguagem e opressão colonial” se mantêm com a hegemonia de modelos universalizantes, estruturados e institucionalizados socialmente pela colonialidade-modernidade, bem como se estabelecem no ser (não europeu) pela colonialidade do saber e inferem sobre ele.

Assim, a colonialidade-modernidade, aliada ao capitalismo, é entendida aqui como projeto de permanências sistêmicas de modelos repressivos mascarados como autodeterminantes que estruturam o social por intermédio da institucionalização de práticas opressivas apresentadas-mantidas como libertadoras a determinados grupos da sociedade. Designa as ações e estruturação implantadas com o modelo colonial, mas que se reinventam no presente como forma de manter as classificações nas relações de poder pela inferiorização e desumanização de sujeitas e sujeitos em nome da maior participação, melhor inclusão social dessa maioria, feita minoria pelas ausências e invisibilidades históricas.

Por isso, ao tratarmos do lado mais obscuro da modernidade, o da opressão-exploração, precisaríamos também ressaltar como os “modelos” de educação escolar reproduzem a “história única” pelas lentes-espelhos ocidentalizantes. Desta feita, o diálogo, nesse momento, é com Ramon Grosfoguel (2016)GROSFOGUEL, R. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistémico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 25-49, 2016. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003
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sobre o privilégio epistêmico para tratar da reprodução dos epistemicídios pela “estrutura do conhecimento nas universidades” como “missão civilizadora” nas realidades colonizadas, chamamento feito no início deste trabalho a respeito da ampliação das possibilidades de existências em que possamos estabelecer encontros dialéticos de pesquisa, mediante outras experiências que possam dizer-se, evidenciando-se objetivamente como alternativas e existências outras.

Logo, os discursos sobre modernidade e progresso, que atravessam as comunidades em Paulistana pelas violências e violações nos trilhos da ferrovia Nova Transnordestina, também são pensados no campo do saber e reproduzidos pelas práticas educacionais nas escolas das comunidades, que estão estritamente ligadas ao projeto das lentes ocidentais por uma historiografia que seguiu as “linhas abissais” da afirmação da evolução e do desenvolvimento social naturalizado, a “imagem do ocidente usada para justificar o colonialismo e depois a modernidade” (FERREIRA; RAPOSO, 2017FERREIRA, B.; RAPOSO, R. Evolução do(s) conceito(s) de desenvolvimento. Um roteiro crítico. Cadernos de Estudos Africanos, n. 34, p. 113-144, jul.-dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/cea/n34/n34a06.pdf. Acesso: 03 out. 2020.
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, p. 117).

É sobre essa imagem “uno”, caricata e falseada que não serve para compreender a realidade, relações e práticas das comunidades quilombolas de Paulistana que Ferreira e Raposo (2017)FERREIRA, B.; RAPOSO, R. Evolução do(s) conceito(s) de desenvolvimento. Um roteiro crítico. Cadernos de Estudos Africanos, n. 34, p. 113-144, jul.-dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/cea/n34/n34a06.pdf. Acesso: 03 out. 2020.
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sugerem a problematização da evolução dos conceitos de desenvolvimento:

Face a estas problemáticas globais, suscitadas, em grande medida, pelos modelos de desenvolvimento prosseguidos, é urgente analisar de que forma é que o estudo do(s) desenvolvimento(s) pode contribuir para identificar e ajudar a resolver os problemas e desafios actuais

(FERREIRA; RAPOSO, 2017FERREIRA, B.; RAPOSO, R. Evolução do(s) conceito(s) de desenvolvimento. Um roteiro crítico. Cadernos de Estudos Africanos, n. 34, p. 113-144, jul.-dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/cea/n34/n34a06.pdf. Acesso: 03 out. 2020.
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, p. 116).

As autoras incentivam a pensarmos alternativas para resolver os problemas provocados pelo imediatismo desenvolvimentista pela escuta da voz do local como a diferença, que constitui o global, a unidade, referências além dos parâmetros ocidentalizados. Por isso, Ferreira e Raposo (2017)FERREIRA, B.; RAPOSO, R. Evolução do(s) conceito(s) de desenvolvimento. Um roteiro crítico. Cadernos de Estudos Africanos, n. 34, p. 113-144, jul.-dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/cea/n34/n34a06.pdf. Acesso: 03 out. 2020.
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apresentam a evolução do conceito de desenvolvimento para questionar “os métodos aprendidos” nos processos de escolarização e análise da realidade social, só que agora sob orientações de “novas soluções, mais participativas e ajustadas à diversidade cultural”, com base nas “linhas do desenvolvimento comunitário e local e o desenvolvimento participativo” (FERREIRA; RAPOSO, 2017FERREIRA, B.; RAPOSO, R. Evolução do(s) conceito(s) de desenvolvimento. Um roteiro crítico. Cadernos de Estudos Africanos, n. 34, p. 113-144, jul.-dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/cea/n34/n34a06.pdf. Acesso: 03 out. 2020.
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, p. 116).

A ideia é discutir o termo não só com base nas concepções vinculadas às relações de poder das “teorias da dependência” com uma atuação alinhada às perspectivas capitalistas de desenvolvimento e entendidas como processos assimétricos socioespaciais que foram acentuados pela chamada globalização, a “(des)localização” como fortalecimento da polarização e hierarquização (FERREIRA; RAPOSO, 2017FERREIRA, B.; RAPOSO, R. Evolução do(s) conceito(s) de desenvolvimento. Um roteiro crítico. Cadernos de Estudos Africanos, n. 34, p. 113-144, jul.-dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/cea/n34/n34a06.pdf. Acesso: 03 out. 2020.
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, p. 121), mas fundamentados também em outras experiências, contextualizando os usos e entendimentos do desenvolvimento, como as formas plurais de ser, entender e desenvolver o espaço-território.

Nesse sentido, Bader Sawaia (2001)SAWAIA, B. As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001. chama a atenção para não cairmos nas “artimanhas da exclusão” ao tomarmos a diferença haja vista as concepções e os usos pelos projetos desenvolvimentistas em que essa diferença é colocada como o que está “à margem da sociedade”. O chamamento aqui é para partimos de significados locais sobre os usos da diferença como forma de evitar os modelos hierarquizantes, principalmente nas reflexões acerca dos direitos sociais e das políticas públicas.

A autora, continuando, reforça que os processos excludentes da diferença pela classificação e hierarquização de quem-pode-ser “não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema” (SAWAIA, 2001SAWAIA, B. As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001., p. 9) e, poderíamos acrescentar, é projeto e objetivo da colonialidade-modernidade, que impõe projetos de igualdade e unidade sem levar em consideração a pluriversalidade de existências e experiências, já determinando quem precisa de políticas públicas sem discutir as questões estruturais que acarretam as desigualdades. Temos vítimas, mas não temos um problema social. Há explorações e pobrezas sem exploradores e empobrecedores – conteúdo básico dos discursos da modernidade e suas práticas modernizantes continuadas e autossustentáveis.

Quando trazemos essas implicações para a educação escolar, na tentativa de compreender a realidade brasileira de uma legislação voltada para legitimar o discurso da seguridade dos direitos sociais, bem como de um currículo na escola “da inclusão”, discrepâncias estão evidenciadas. Assim, Alfredo Veiga Neto (2001)VEIGA NETO, A. Incluir para excluir. In: LARROSA, J.; SKLIAR, C. (org.). Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 105-118. orienta-nos sobre os riscos das políticas públicas “em nome da igualdade”, um operador a serviço da distinção e classificação, um datum prévio, natural, no qual a “própria organização do currículo e da didática, na escola moderna, foi pensada e colocada em funcionamento para, entre várias outras coisas, fixar quem somos nós e quem são os outros” (VEIGA NETO, 2001VEIGA NETO, A. Incluir para excluir. In: LARROSA, J.; SKLIAR, C. (org.). Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 105-118., p. 111). O acesso marcado pela “igualdade”, uma exclusão em nome do processo de inclusão.

Assim, pautamos as discussões deste trabalho em dois subtópicos para (re)pensarmos experiências concretas de ser/fazer-se enquanto lutas de resistência e existência em meio ao discurso e à violência material e simbólica estabelecidos pela passagem da Transnordestina, bem como práticas educativas na relação e concepção do ser comunidade para a constituição do ser quilombola como pertencimento e acesso à territorialidade pelo direito do ser-sendo-existindo-fazendo como possibilidade em meio à universalizante “igualdade” da colonialidade-modernidade.

Do Carreiro à Força de Ser “Gente”

Como ressaltamos anteriormente, neste tópico, abordamos a passagem da ferrovia nas comunidades quilombolas em Paulistana. Tratar da Transnordestina com os moradores de Barro Vermelho e Contente é tocar na parte mais dolorosa dessas comunidades, pois envolve desterritorialização, indenizações irrisórias, racismo e violências psicológica e moral.

Durante as entrevistas e rodas de conversa (2018/2019), quando perguntávamos sobre os impactos da Transnordestina nas comunidades, por minutos, ficavam emudecidos pela indignação e angústia dos fatos vivenciados, tanto pelas violências simbólicas quanto pelas materiais sofridas pelos habitantes. Somente depois eram ditas expressões que definem a ferrovia para os moradores, como “desgraça... caos... vai acabar com tudo”, complementadas por expressões de apelo: “Ah! Ave Maria, meu Deus” (LEAL, 2020LEAL, S. P. “Já conheci com essa nação, o chamado negro”: etnicidade, territorialidade e educação nas comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente em Paulistana-PI (2000–2019). 151f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História do Brasil, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2020.).

Primeiro que nem a gente falou, eles chegaram e não consultou a Comunidade por voz, pra chegar e dizer assim: – Rapaz nós estamos chegando e vai ser assim e assado. E quando fizeram toda a bagaceira que fizeram foi que a gente acordou, mas já não teve mais jeito...

(FRANCISCO RODRIGUES, Barro Vermelho, Paulistana, PI, 2019).

Já chegaram fazendo o roço, depois foi que disseram que era a Transnordestina” (FRANCISCO MATIAS, Barro Vermelho, Paulistana, PI, 2019).

As narrativas em torno da ferrovia estão relacionadas aos silenciamentos e às negações do “ser-e-ter-a-terra” dos quilombolas, justificados pelos discursos da colonialidade e do capital que mantêm o sistema capitalista sob a lógica da modernidade e do desenvolvimento. O objetivo da passagem da Transnordestina “é elevar a competitividade da produção agrícola e mineral da região com uma moderna logística que una uma ferrovia de alto desempenho ao escoamento da produção para exportação” (MACHADO, 2016MACHADO, R. A. Condicionantes institucionais à execução do investimento em infraestrutura no Brasil: estudo de caso sobre a implementação da ferrovia Transnordestina. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2016. (Série Texto para Discussão.), p. 22). Os “benefícios” à região pela facilidade de escoamento da produção de minério aparecem na contramão do direito quilombola ao território.

Os trâmites para a construção da ferrovia acontecem contemporaneamente às discussões e concepções de autoatribuições do ser quilombola como forma de legitimar um pertencimento étnico e garantir o direito à terra.

A própria [Transnordestina Logística S/A] TLSA solicitou ao INCRA informações sobre territórios quilombolas titulados ou em processo de titulação localizados no traçado da ferrovia. Em fevereiro de 2009, o órgão público informou sobre a existência de territórios quilombolas na região da ferrovia e que seriam afetados, diretamente ou indiretamente, à época constava no documento as comunidades com título de território ou em processo de titulação. No Piauí foram indicadas 13 comunidades, sendo 3 delas localizadas no município de Paulistana. Não foi consultada a [Fundação Cultural Palmares] FCP para informar as comunidades em processo de certificação, dentre as quais constariam as comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente

(GOMES, 2018GOMES, R. P. Quilombos, constitucionalismo e racismo: famílias negras na luta pela propriedade em Barro Vermelho e Contente no Piauí. 219f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018. Disponível em http://repositorio.unb.br/handle/10482/32158. Acesso em: 25 abr. 2018.
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, p. 122).

A Transnordestina é um projeto de implementação da malha ferroviária como ampliação do setor de transporte no nordeste. Um empreendimento executado ainda no primeiro mandato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, porém trata-se de uma idealização da Lei Provincial nº 649, de 20 de abril de 1866. Em 2006, o projeto foi retomado, as construções iniciaram-se, com alterações no traçado original do século XIX. O traçado aprovado parte de Eliseu Martins (PI) e dirige-se até Salgueiro (PE) (MACHADO, 2016MACHADO, R. A. Condicionantes institucionais à execução do investimento em infraestrutura no Brasil: estudo de caso sobre a implementação da ferrovia Transnordestina. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2016. (Série Texto para Discussão.); GOMES, 2018GOMES, R. P. Quilombos, constitucionalismo e racismo: famílias negras na luta pela propriedade em Barro Vermelho e Contente no Piauí. 219f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018. Disponível em http://repositorio.unb.br/handle/10482/32158. Acesso em: 25 abr. 2018.
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; LEAL, 2020LEAL, S. P. “Já conheci com essa nação, o chamado negro”: etnicidade, territorialidade e educação nas comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente em Paulistana-PI (2000–2019). 151f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História do Brasil, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2020.).

O processo de regularização territorial no Incra das comunidades começou em 2011 pelos processos Barro Vermelho 54380.001387/2014-27/2014 e Contente 54380.000192/2011-17/ 2011. Mas, de acordo com as narrativas dos habitantes das comunidades, as lutas em torno do ser comunidade e quilombola se dão desde a década de 1990, quando as primeiras reuniões foram feitas nas comunidades para organização em torno de associações quilombolas na luta pela certificação da Fundação Palmares e regularização fundiária pelo Incra.

Edivaldo Camilo, então presidente da Associação Quilombola de Barro Vermelho, faz questão de afirmar o quanto essa “força” na década de 1990 foi importante para garantir a organização da comunidade em prol dos seus direitos: “A gente não tinha força para nada antes do quilombo, mas a nossa associação, como quilombo, não é só pra trazer projetos, é para defender a nossa comunidade, defender a nossa cultura” (Edivaldo Camilo, Barro Vermelho, Paulistana, PI, 2019). Igualmente, é uma forma de se organizar e fazer frente a quem ousar burlar esses direitos, como os danos causados pela passagem da Transnordestina pelas comunidades: “Como passa essas firmas meio malucas, como passou agora, acabando com tudo, é nessa hora que a gente está junto. Não só a minha região, mas nós juntamos todos os quilombos, fazendo força” (Edivaldo Camilo, Barro Vermelho, Paulistana, PI, 2019).

A fala do então presidente da Associação Quilombola de Barro Vermelho esclarece que o acesso à terra em comunidades tradicionais no Brasil é uma luta constante. Para as comunidades se autoafirmarem, segundo as garantias da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais (BRASIL, 2011BRASIL. Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da Organização Internacional do Trabalho. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2011.), que por si só não foram suficientes para constituir a seguridade de pertença das terras, é preciso provar constantemente e ressaltar a sua importância em meio aos discursos de desenvolvimento da modernidade.

A ferrovia é justificada no Brasil como símbolo da modernidade. No entanto, do outro lado dessa “ferrovia abissal”, está uma produção tradicional que se relaciona com a terra por meio de uma simbologia de pertencimento e de construção do “ser quilombola”. O discurso de “o progresso” chega não para escuta nem conhecimento das peculiaridades identitárias dos habitantes de Barro Vermelho e Contente, conforme evidenciado na fala de Edivaldo Camilo (2019): “A primeira vez que eles vieram, nós nem sabia. Vieram e tiraram carreiro. Nós não tínhamos noção do que podia acontecer”.

A invisibilidade, a negação e a representação de um Estado que acredita que pode falar e agir em nome de também aparecem na fala de Francisco Rodrigues, membro da Coordenação Estadual de Comunidades Quilombolas do Piauí, então presidente da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo Contente:

Ave Maria, meu Deus! Isso foi o maior pátio que teve na comunidade, foi a Transnordestina. Primeiro, para eles, tudo é o bom. Que eles acham que só vai sair melhoria pra o município, não fala nem para a comunidade, só para o município. Sim, a gente acha que vai ser um recurso para o município mesmo, mas também, primeiro, tem que ver os obstáculos das comunidades. Meu avô nasceu aqui nessa comunidade e desde quando nasceu que ele trabalha nessa área. Todos os negros aqui têm a terra do norte ao sul, de nascente ao poente, vamos dizer assim. Aí todo mundo tem direito em um pedacinho de riacho para os animais beber água e pastar nas matas...

(FRANCISCO RODRIGUES, Contente, Paulistana, PI, 2019).

A luta pelo direito à terra e pela existência das tradições é colocada como empecilho em face do discurso da modernidade e do desenvolvimento da região de Paulistana. De acordo com os presidentes das associações quilombolas, não há uma oposição à passagem da Transnordestina, mas é preciso problematizar as suas formas de execução, violação dos direitos fundamentais de ser e ter a terra, além das violências simbólicas e dos danos imateriais que não podem ser apagados. O que os habitantes esperam é que os direitos e a reparação dos danos materiais sejam executados como foram acordados em processos judiciais.

Quando se trata dos impactos de cunho territorial e econômico provocados pela passagem da Transnordestina, os habitantes de Barro Vermelho e Contente também expressam indignação em relação aos prejuízos provocados e às indenizações irrisórias. Pois a empreiteira usou dinamites para fazer explosões, provocando rachaduras nas residências das duas comunidades, abriu roças para construção dos trilhos, mexendo na dinâmica de organização territorial e social das comunidades.

De acordo com os moradores, os danos são incalculáveis, porque os prejuízos foram analisados e avaliados pela Transnordestina levando em consideração apenas os danos físicos, deixando de lado o patrimônio imaterial e o fato de se tratar de uma área quilombola, que está com processo aberto para regularização fundiária pelo Incra. Isso representa uma perda coletiva do território.

No Relatório Antropológico da Comunidade Contente também são encontradas referências às práticas de racismo institucional; podemos “compreender como [a] dimensão racial está imbricada nos contornos institucionais” (GOMES, 2018GOMES, R. P. Quilombos, constitucionalismo e racismo: famílias negras na luta pela propriedade em Barro Vermelho e Contente no Piauí. 219f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018. Disponível em http://repositorio.unb.br/handle/10482/32158. Acesso em: 25 abr. 2018.
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, p. 83) diante das negações e da construção da Transnordestina:

Ninguém considera a gente, não. Tu vê Andressa, olha isso aqui, tu acha que alguma vez eles se deram o trabalho de pedir a gente? A gente que somos os donos dessa terra, pra passar por aqui e fazer isso tudinho aí que tu tá vendo? Vieram não. Para eles a gente não somos nada não. Mas nós somos sim. Eles que pensam. Tu acredita que a Magnólia – assistente social – chegou à minha cara e disse que se a gente não quisesse poeira na porta da casa da gente, se não quisesse pegar poeira... Vão se mudar de país

(INCRA, 2015INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (INCRA). Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural. Lote 28, Comunidade Quilombola Contente, Paulistana/PI. Brasília: Incra, 2015., p. 47).

As narrativas ainda nos direcionam a uma “força” e existência de ser “gente” e ser-sendo-ter-tendo a terra. Os discursos de modernidade, com as suas ameaças e problemas provocados pelos “desafios globais”, deparam com uma organização social marcada pela consciência do direito e acesso à terra pelo “lembrar/escutar/falar/ser” gente, o que Ferreira e Raposo (2017)FERREIRA, B.; RAPOSO, R. Evolução do(s) conceito(s) de desenvolvimento. Um roteiro crítico. Cadernos de Estudos Africanos, n. 34, p. 113-144, jul.-dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/cea/n34/n34a06.pdf. Acesso: 03 out. 2020.
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chamam de “respostas locais” expressas pelo desejo de autonomia e ânsia de “desposicionar o lugar-poder de fala” (JACOBO, 2015JACOBO, Z. Direitos humanos e inclusão: uma reflexão crítica a partir da subjetividade e de propostas alternativas. In: SILVA, A. M. M.; COSTA, V. A. (org.). Educação inclusiva e direitos humanos: perspectivas contemporâneas. São Paulo: Cor, 2015. p. 54-88.).

Perguntei: “Vocês estão fazendo isso aí, marcação para o lado de dentro da empresa...”. Eu digo: “mas por quê?”, “porque nós vamos trabalhar”. Eu digo: “Não é só assim não, filho. Não é só assim”. Aí ele disse: “A senhora sabe onde é o canteiro?”. Eu falei: “Sei”. “A senhora tem que ir lá conversar com o chefe”. Eu digo: “Olha, me respeite. Saiba falar comigo.”. Eu, sozinha. Eram quatro homens. “Respeite-me. Saiba falar comigo. Porque eu não tenho obrigação de ir a canteiro não. Ele, se quiser, que venha até a mim”. Para isso aí, o chefe veio na minha casa, quinta-feira. E não ficou nada decidido. “E vocês são simples empregados. Saiba respeitar as pessoas”. E desci para a roça. Quando eu voltei, eles estavam na saída daqui de Barro Vermelho...

(MACHADO, 2016MACHADO, R. A. Condicionantes institucionais à execução do investimento em infraestrutura no Brasil: estudo de caso sobre a implementação da ferrovia Transnordestina. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2016. (Série Texto para Discussão.), p. 70).

Por meio da citação, ainda é possível refletir sobre a condição e subalternização da mulher nos conflitos. Pela narrativa, a quilombola reconhece essa imposição ao afirmar o fato de estar sozinha: “Eram quatro homens. Respeite-me. Saiba falar comigo”. Era a autorrepresentação de uma mulher sem intermediários de outros e que exigia o lugar-poder-ser de fala-escuta em contextos situacionais fortemente marcados pela “linguagem colonial”, em que a mulher não pode falar fora de um contexto patriarcal sem a representação do masculino.

Todavia, as ações das mulheres quilombolas ante os impactos e danos provocados pela passagem da Transnordestina não se limitam às falas. As mobilizações acontecem além da área jurídica e ganharam as ruas no I Encontro Estadual de Mulheres Quilombolas, na sede do município de Paulistana, onde lideranças, moradores e movimentos sociais fecharam a via de tráfego das máquinas da construtora Odebrecht. A reabertura só se deu depois de negociações entre as comunidades, movimento quilombola, governo federal e construtora (LEAL, 2020LEAL, S. P. “Já conheci com essa nação, o chamado negro”: etnicidade, territorialidade e educação nas comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente em Paulistana-PI (2000–2019). 151f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História do Brasil, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2020.).

As reinvindicações e “forças” são formas de lutar pelos e fazer valer seus direitos individuais e coletivos, garantias constitucionais, mas também de exigir o reconhecimento da sua existência de ser “gente”, indivíduos-pessoas-cidadãs e em comunidade. Para isso, utilizam as experiências construídas pela tradição e memória compartilhada como processos educativos e constitutivos de ser, discussão da qual tratamos a seguir.

Tradição Oral e Ancestralidade “na” Modernidade: O que NosEnsina a Relação com o Passado

Quando direcionamos neste tópico a discussão para a tradição-ancestralidade “na” modernidade, não pretendemos fazer uma contraposição dos entendimentos em torno dessas categorias, ratificando as relações binárias das quais o próprio sistema se aproveita para manter as “linhas abissais” que separam e hierarquizam as práticas sociais. O que queremos aqui é nos basearmos nas experiências das comunidades em Paulistana para falar das suas existências como alternativas, como ser-sendo que sempre esteve e sempre se fez “gente” em meio ao sistema.

Assim, voltamo-nos às práticas realizadas nas comunidades, desde as rodas de conversa até as relações estabelecidas nos afazeres no território – como buscar água nas “cacimbas” e a lida nas roças como práticas educativas que exemplificam a construção e a constituição de ser “gente” quilombola. As narrativas direcionam as partilhas de saber-se e dizer-se pela herança do lembrar, de uma memória compartilhada, de situações em que a identidade é construída mediante uma existência em coletividade.

A oralidade vai sendo desenhada pelos relampejos de memória para a construção ontológica pelas narrativas contadas/escutadas e vivenciadas como pertencimento e ser mediante a ancestralidade (CROCHIK, 2015CROCHIK, J. L. Educação e inclusão, subjetividade, preconceito e direitos humanos: qual sua relação? In: SILVA, A. M. M.; COSTA, V. A. (org.). Educação inclusiva e direitos humanos: perspectivas contemporâneas. São Paulo: Cor, 2015. p. 23-53., p. 35). Ancestralidade é entendida aqui como os fios-raízes familiares, culturais e territoriais que constitui a/o sujeita/o e dá “forças” para ela/e não ser cindida/o pela “igualdade” das políticas da colonialidade-modernidade.

Na Comunidade Barro Vermelho, a ancestralidade está ligada ao casal Eusébio André de Carvalho e Antônia Cecília da Conceição por intermédio da compra de um terreno na região. As narrativas não direcionam a uma memória/oralidade que estabelece relações com um passado de experiências escravistas ligadas aos primeiros moradores da comunidade. Com os silêncios historiográficos e a ausência de documentação sobre a construção da comunidade, foi preciso lançar mão de dispositivos acionados pelos seus usos e significados do território pela memória e pela oralidade em torno dos sentidos dados à ancestralidade (CECOQ/PI, 2012COORDENAÇÃO ESTADUAL DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO PIAUÍ (CECOQ/PI). Perfil histórico da comunidade quilombola Barro Vermelho, Paulistana/PI. Teresina: Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí, 2012., p. 6).

Já na Comunidade Contente, há relação direta com a “memória de cativeiro” e da senzala, pois a ancestralidade está relacionada ao “negro alforriado” Elias Mariano Rodrigues, que se casa com uma “cabocla branca”, a Lediogária, a memória/oralidade coletiva associada a uma ancestralidade comum na busca de uma significação em torno da identidade quilombola de Contente.

Ao tratarmos de tradição-ancestralidade, não pretendemos reforçar o pensamento reducionista de relacionar essas categorias a um passado fixo, “incomunicável” e “puro”, por isso naturalizado como “dado”, nem mesmo criar uma narrativa da “superioridade ocidental e da sua missão ‘civilizadora’ ou ‘modernizadora’” (FERREIRA; RAPOSO, 2017FERREIRA, B.; RAPOSO, R. Evolução do(s) conceito(s) de desenvolvimento. Um roteiro crítico. Cadernos de Estudos Africanos, n. 34, p. 113-144, jul.-dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/cea/n34/n34a06.pdf. Acesso: 03 out. 2020.
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, p. 117), na base da estruturação e classificação do que é constituído enquanto “ciência” e “conhecimento” (GROSFOGUEL, 2016GROSFOGUEL, R. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistémico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 25-49, 2016. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003
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).

Para compreendermos as relações com o “passado ancestral”, fundamentamo-nos nos dizeres de Walter Benjamin (1994)BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. (Obras Escolhidas.) e Sobonfu Somé (2003)SOMÉ, S. O espírito da intimidade. São Paulo: Odysseus, 2003., que, mesmo pensando de realidades e contextos diferentes, tomaram “narração” por meio da oralidade como fazer-se ontológico. Ao tratarem de oralidade e temporalidades, a relação passado-presente é apresentada como uma ponte, uma ligação, conexão sempre aberta, ponto que, ao mesmo tempo, podemos visualizar o que está do outro lado, bem como nos passa a ideia de movimento, experiências do passado que se comunicam pelas trocas estabelecidas com o/no presente. Esse passado é acionado sempre que precisa dizer a formação e construção de “ser” e ligar-se a ela, e não como um retorno em busca de uma pureza que o defina.

Assim, para tratar de práticas educativas e de tornar-se “gente” em um contexto com cosmovivências de ser “comunidade”, os quais se baseiam nas próprias experiências para “criar mundos” e “humanidades” possíveis (KRENAK, 2020KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.), não caberia aqui entendermos a educação somente como um processo e espaço escolarizado. As educações, nas suas modalidades escolar e sociocultural, fazem a vida em comunidade-sociedades.

Aqui, a escola são as comunidades; aprende-se e ensina-se no fazer no território “nos pedaços de vida com elas”. Como enfatiza Carlos Brandão (2009)BRANDÃO, C. R. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 2009., não temos um único “modelo” e/ou processo fechado de nos educarmos. Por isso se amplia a discussão para educações, pois “não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar que ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante” (BRANDÃO, 2009BRANDÃO, C. R. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 2009., p. 9).

Brandão (2009)BRANDÃO, C. R. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 2009. aponta para práticas educativas constituídas em outros espaços para além dos muros da escola. É com base nessa percepção que vemos a tradição oral das rodas de conversa nas comunidades como processos educativos, pois são narrativas que direcionam a uma relação memória/oralidade/ancestralidade/cotidiano que se conecta ao passado como metodologia de pertencer e ser, fazendo o território: “Marianim contava a história dele todinha... Foi o pessoal, no tempo véi, vivam mais os cativeiros, foi nesse tempo ele deu uma novilha e botou o nome de Contente” (Maria de Jesus, Contente, Paulistana, PI, 2019).

As rodas de conversa aparecem como eventos de sociabilidade que aconteciam em torno da imagem simbólica “dos mais velhos” em uma relação com a ancestralidade e ao mesmo tempo demarcando etnicamente o grupo social e o grau de parentesco. Um processo de “endoculturação” definido por Brandão (2009, p. 24)BRANDÃO, C. R. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 2009. como o “aprender-se/tornar-se através do envolvimento direto do corpo, da mente e da afetividade, entre as incontáveis situações de relação com a natureza e de trocas entre os homens”. No caso das referidas comunidades, de trocas entre as mulheres também, pois vale ressaltar o papel do feminino como guardiãs dos saberes e fazeres das comunidades, bem como na transmissão das suas práticas cotidianas nas rodas de conversa, nas trocas e cuidados com os quintais produtivos e nos rituais religiosos, e/ou nos rituais cotidianos que descrevem a lida com a/na terra como construção da identidade de ser quilombola.

Os fazeres no território também são constituídos como processos educativos, como nas narrativas de Maria de Jesus (moradora mais “velha” da comunidade Contente) sobre como conseguiu ter acesso à educação escolar durante as idas e vindas – uma educação no movimento da realização dos fazeres: o tempo das atividades domésticas era dividido com o contato com as professoras da região “para pegar a lição”.

Podemos ressaltar as práticas da lida com as roças, com a atividade de algodão, com os projetos de apicultura. Tais práticas, enquanto definiam a subsistência da família, também são narradas como momentos de vivenciar e aprender com o “meu pai que me ensinou assim” (DIÁRIO DE CAMPO, 2018/2019), uma relação que nos diz sobre processos educativos que se fazem por relações intersubjetivas e geracionais.

Quando se trata de “educação” nas comunidades, a discussão também gira em torno da escola, nas reivindicações de torná-la uma extensão das comunidades, com uma proposta “dialógica” (e não unilateral), reconhecendo as educações necessárias para a formação do “humano”. Para isso, o educador precisa estar “deseducado” do saber da colonialidade-modernidade (MIGNOLO, 2008MIGNOLO, W. D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, n. 34, p. 287-324, 2008.; BRANDÃO, 2009BRANDÃO, C. R. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 2009.) para compreender as relações escola-comunidade-família-pessoa pelas lentes da autoatribuição e do direito de saber-se, fazer-se e dizer-se “gente”.

A Unidade Escolar Eusébio André de Carvalho é um empreendimento do governo municipal de Paulistana, mas foi implantada por reinvindicação das comunidades como forma de acesso à escolarização. A construção, segundo as narrativas dos moradores das comunidades, data de 1976, mediante a doação de Matias Eusébio de Carvalho (bisneto de Eusébio André de Carvalho, primeiro morador de Barro Vermelho, ancestral da comunidade). De acordo com o Censo Escolar de 2018 e 2019, disponível na referida escola, a oferta na instituição foi de turmas do 1º ao 7º ano do ensino fundamental, além da educação de jovens e adultos – primeiro segmento séries iniciais –, da primeira à quarta etapa.

Todos os professores são da cidade de Paulistana e fazem o trajeto até a comunidade todos os dias. A escola é uma reivindicação apresentada pelas narrativas dos habitantes das comunidades como um lugar para trocas dos saberes-fazeres desses e nesses territórios, que tenham espaços nos currículos e no cotidiano escolar visando potencializar uma metodologia de saber-conhecer mais sobre pertencimentos e ancestralidades.

Provocações que Finalizam, mas não Concluem

As experiências aqui apresentadas são tomadas como alternativas, como uma ampliação das fronteiras epistêmicas para pensar processos educativos “suleados”, com base em vivências que historicamente foram negadas e silenciadas, mas que não deixaram de ser/existir e compartilhar. Não estamos propondo um descarte do “Norte”, mas descentralizar os olhares-narrativas da direção nortista como “uno” e apresentar experiências como alternativas. Por isso, temos de sair da ideia de uma legislação educacional que pensa só a forma, para não cairmos na malha da colonialidade do saber que reduz os processos às “técnicas”, e problematizarmos “conteúdos” carregados de uma diversidade de experiências-intersubjetividades e, nessa perspectiva, sermos capazes de ampliar os entendimentos de práticas educativas por meio de relações dialéticas e reconhecimentos plurais de humanidades, rompendo com a lógica da hierarquização e classificação das relações sociais e produção de conhecimento.

Ao tratar de relações sociais e humanidades possíveis pela cosmovivência e experiências em ser comunidades, Ailton Krenak (2019)KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. afirma que as possibilidades para adiarmos o fim do mundo são a criação de alternativas de contar-se e saber-se. É nesse sentido que o trabalho se insere, “desposicionando” o lugar-poder de falar-escutar para dialogar com comunidades que sempre se fizeram em meio ao sistema, mas sem fazer parte totalmente dele, sem deixar que ele sucumbisse com as narrativas que o fizeram ser sendo, existindo e resistindo. Assim como as comunidades de Barro Vermelho e Contente, em Paulistana, Krenak (2019)KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. apresenta mundos possíveis fundamentado nas suas vivências e práticas de ser e educar em/com as comunidades tradicionais no Brasil. Comunidades quilombolas como as discutidas aqui e outras de outros lugares geográficos, também pelo cotidiano e pelas histórias, validam esse chamamento do autor.

Assim, o convite aqui proposto é o de (re)pensar práticas educativas escolares que reconheçam subjetividades que foram gestadas nas inter-relações, nas trocas com “os outros” e com o/no território. Para isso, precisamos superar as naturalizações costumeiras e as questionarmos a fim de substituirmos a “linguagem/opressão colonial” vigente por meio do discurso do desenvolvimento e da modernidade, uma superação por subjetividades construídas pela práxis em uma realidade objetiva e concreta, na qual os subalternizados possam reconstruir as narrativas e redimensionar os significados das suas próprias histórias e, assim, sustentar as subjetividades historicamente esmagadas.

Nota

  • 1
    Os diálogos foram estabelecidos com as comunidades de Barro Vermelho e Contente em Paulistana (PI) durante a pesquisa de mestrado em História do Brasil, pela Universidade Federal do Piauí, intitulada “Já conheci com essa nação, o chamado negro”: etnicidade, territorialidade e educação nas comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente em Paulistana-PI (2000–2019).

Referências

  • BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. (Obras Escolhidas.)
  • BRANDÃO, C. R. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 2009.
  • BRASIL. Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da Organização Internacional do Trabalho Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2011.
  • BRASIL. Fundação Cultural Palmares. Certidões expedidas às comunidades remanescentes de quilombos (CRQS). Diário Oficial da União Brasília, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/palmares/pt-br/midias/arquivos-menu-departamentos/dpa/comunidades-certificadas/tabela-crq-completa-certificadas-04-07-2023.pdf Acesso em: 13 set. 2023.
    » https://www.gov.br/palmares/pt-br/midias/arquivos-menu-departamentos/dpa/comunidades-certificadas/tabela-crq-completa-certificadas-04-07-2023.pdf
  • CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser 339f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
  • COORDENAÇÃO ESTADUAL DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO PIAUÍ (CECOQ/PI). Perfil histórico da comunidade quilombola Barro Vermelho, Paulistana/PI Teresina: Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí, 2012.
  • CROCHIK, J. L. Educação e inclusão, subjetividade, preconceito e direitos humanos: qual sua relação? In: SILVA, A. M. M.; COSTA, V. A. (org.). Educação inclusiva e direitos humanos: perspectivas contemporâneas. São Paulo: Cor, 2015. p. 23-53.
  • FERREIRA, B.; RAPOSO, R. Evolução do(s) conceito(s) de desenvolvimento. Um roteiro crítico. Cadernos de Estudos Africanos, n. 34, p. 113-144, jul.-dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/cea/n34/n34a06.pdf Acesso: 03 out. 2020.
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Editor de seção: Anderson Ricardo Trevisan https://orcid.org/0000-0002-8174-8699

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2021
  • Aceito
    24 Jul 2023
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