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UNIVERSIDADE E FORMAÇÃO NO CONTEXTO NEOLIBERAL

UNIVERSITY AND EDUCATION IN THE NEOLIBERAL CONTEXT

UNIVERSIDAD Y FORMACIÓN EN EL CONTEXTO NEOLIBERAL

RESUMO

O presente ensaio discute, ancorado em uma pesquisa bibliográfica, a relação entre universidade e formação no contexto neoliberal. Inicia-se com um breve diagnóstico de época, mostrando alguns aspectos do efeito destrutivo do neoliberalismo nos âmbitos social, econômico, cultural e político. Na sequência, trata tais efeitos especificamente no âmbito educacional, evidenciando como a lógica econômica neoliberal se apodera da educação, transformando escola e universidade em empresas voltadas quase que exclusivamente para a concorrência, a eficiência e a lucratividade. Por fim, baseando-se na convicção de que a força poderosa do neoliberalismo não é insuperável, o ensaio procura refletir sobre algumas formas possíveis de resistência, sinalizando para o alcance de uma filosofia da educação transformada.

Palavras-chave
Universidade; Neoliberalismo; Formação; Filosofia da educação

ABSTRACT

The present essay discusses, anchored in bibliographical research, the relation between university and education in the neoliberal context. It begins with a brief diagnosis of the current era, showing some aspects of the destructive effect of neoliberalism in the social, economic, cultural, and political spheres. Next, it deals with such effects specifically in the educational field, showing how the liberal economic logic takes over education, converting schools and universities into companies focused almost exclusively on competition, efficiency, and profitability. Lastly, based on the conviction that the powerful force of neoliberalism is not insurmountable, the essay seeks to reflect on some possible forms of resistance, signalling the achievement of a transformed philosophy of education.

Keywords
University; Neoliberalism; Education; Philosophy of education

RESUMEN

Este ensayo discute, basado en una investigación bibliográfica, la relación entre universidad y formación en el contexto neoliberal. Empieza con un breve diagnóstico de época, mostrando algunos aspectos del efecto destructivo del neoliberalismo en los ámbitos social, económico, cultural y político. En la secuencia, abarca tales efectos específicamente en el ámbito educacional, evidenciando cómo la lógica económica neoliberal se apodera de la educación, transformando escuela y universidad en empresas con énfasis casi exclusivas en la concurrencia, en la eficiencia y en la rentabilidad. Finalmente, partiendo de la convicción de que la fuerza poderosa del neoliberalismo no es insuperable, el ensayo busca reflexionar sobre algunas maneras posibles de resistencia, señalando el logro de una filosofía de la educación transformada.

Palabras-clave
Universidad; Neoliberalismo; Formación; Filosofía de la educación

Introdução

O cenário educacional contemporâneo está sendo pouco a pouco mais colonizado pelo neoliberalismo. Com o prefixo neo, queremos indicar, inicialmente, sem ignorar possíveis vínculos com o liberalismo clássico, o conjunto de novidades trazidas pelo neoliberalismo desde a década de 1970, que tornam cada vez mais sutil e intenso o processo de assujeitamento do sujeito contemporâneo. Seguindo de perto as análises empreendidas por Michel Foucault, sobretudo no curso proferido no Collège de France no período de 1978-1979 e publicadas, posteriormente, com o título Nascimento da biopolítica, podemos afirmar que o neoliberalismo consiste basicamente em uma forma de governamentalidade que combina, de maneira inteiramente nova e original, dois vetores importantes, o homo economicus e a teoria do capital humano. Resulta dessa combinação a ideia do sujeito empreendedor de si mesmo, do qual é exigido, pelo modelo empresarial da economia neoliberal de mercado, que se oriente quase que exclusivamente pelos princípios da concorrência, eficiência e lucratividade (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.).

Dessa maneira, o neoliberalismo invade, em suas diferentes dimensões, social, econômica, cultural e política, a vida diária dos indivíduos, pretendendo moldar sorrateiramente suas formas de ser e viver. Dados seus efeitos altamente destrutivos, se o neoliberalismo não for parado a tempo, ele poderá nos conduzir à extinção da humanidade, com o risco de destruir também o próprio planeta. Felizmente, embora poderoso, o neoliberalismo não é um modo definitivo de organização social nem cultural, razão pela qual sua força destrutiva pode ser interrompida. Contudo, e esta é a primeira parte de nossa hipótese, somente o reavivamento da dimensão democrático-participativa da esfera pública é capaz de detê-lo. E, para fazê-lo, e esta é a segunda parte da hipótese, a apropriação reconstrutiva da ideia ampliada de formação humana cumpre papel indispensável.

Dividimos o ensaio em três partes. Na primeira, oferecemos um breve diagnóstico de época, mostrando alguns aspectos da crise do neoliberalismo nos âmbitos social, econômico, cultural e político, bem como a emergência de um mundo multipolar. Na segunda parte, investigamos os efeitos do neoliberalismo no âmbito educacional, evidenciando como a lógica econômica neoliberal se apodera da educação, transformando escola e universidade em empresas voltadas quase que exclusivamente para a concorrência, eficiência e lucratividade. Por fim, com base na convicção de que a força poderosa do neoliberalismo não é insuperável, procuramos tratar de algumas formas possíveis de resistência. Considerando nossa procedência investigativa, focamos na ideia de uma filosofia da educação transformada, tomando-a como força reflexiva capaz de pensar a formação em uma direção pós-humanista.

Um Breve Diagnóstico de Época: a Crise do Neoliberalismo e a Emergência de um Mundo Multipolar

Enquanto teoria econômica e política, o neoliberalismo, assim como o liberalismo clássico, ergue-se sobre a base do capitalismo moderno. Nessa perspectiva, seu impacto precisa ser entendido, ao menos em parte, como a amplificação de algumas tendências desde o início presentes no sistema do capital. A utilidade prática como critério máximo para avaliação dos processos, incluindo daqueles ligados à produção do conhecimento e à formação humana, à busca do lucro como imperativo e à compreensão dos indivíduos em vista da produção econômica, por exemplo, são aspectos que já estavam presentes, de modo mais ou menos explícito, desde os primórdios do capitalismo moderno. O neoliberalismo que se tornou hegemônico nos últimos 50 anos “apenas” potencializou e escancarou sua gravidade. Mas essa hegemonia, até então assegurada por um mundo unipolar de globalização unidimensional, parece agora iniciar seu doloroso ocaso.

Embora o primeiro laboratório desse modelo de globalização tenha sido o Chile de 1973, sua hegemonia consolidou-se simbolicamente com a queda do muro de Berlim, em 1989, e escancarou seu declínio com a guerra entre Rússia e Ucrânia, que começou em 2022. Sua força, ao longo das últimas décadas, deveu-se, sobretudo, de um lado, à capacidade de impor sua visão de mundo baseada na lógica competitiva do mercado projetada sobre todos os setores da vida humana e de um imaginário social apresentado com a pretensão de ser a única alternativa possível, no sentido de que o mundo é o que está aí. Por outro lado, necessitou da forte projeção de uma visão atomizada de ser humano, individualista e ultracompetitivo, transformando-o em capital humano, empresário de si mesmo, bem como do incansável esforço de conformar não apenas a subjetividade, mas também o próprio sujeito, como tão bem o percebeu o psicanalista Jorge Alemán (2018)ALEMÁN, J. O que é a subjetivação neoliberal? Instituto Humanitas Unisinos, 31 maio 2017. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/568182-o-que-e-a-subjetivacao-neoliberal. Acesso em: 19 fev. 2023.
http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/...
.

O neoliberalismo pretende aceder à constituição estrutural e ontológica do sujeito, na medida em que cria um sofisticado dispositivo de performance que consiste em levar esse sujeito sempre para muito além de suas possibilidades, em um exercício de autodominação que visa extrair o máximo rendimento de si mesmo. Com isso, a razão de mundo neoliberal passou a influenciar diretamente também aspectos que incidem decisivamente sobre a qualidade de vida das pessoas, como é o caso da saúde e da doença individual e global. A força de tal influência faz propagar pandemias, gerar alterações climáticas irreversíveis e provocar o crescimento de doenças crônicas, assim como o ressurgimento de doenças já erradicadas.

Freudenberg (2022)FREUDENBERG, N. A que custo? O capitalismo (moderno) e o futuro da saúde. São Paulo: Elefante, 2022., identificando com precisão a origem da responsabilidade por esses problemas, fá-la residir em fatores como “a globalização controlada pelas empresas, a financeirização, a desregulamentação, a concentração monopolista e a captura corporativa das novas tecnologias, características que definem o capitalismo do século XXI” (FREUDENBERG, 2022FREUDENBERG, N. A que custo? O capitalismo (moderno) e o futuro da saúde. São Paulo: Elefante, 2022., p. 465), tendo em vista que essas são “causas fundamentais de múltiplas e crescentes ameaças ao bem-estar” (FREUDENBERG, 2022FREUDENBERG, N. A que custo? O capitalismo (moderno) e o futuro da saúde. São Paulo: Elefante, 2022., p. 465). Em consonância, pois, com determinada visão de mundo e de subjetividade, a ética neoliberal vinculou um modo de vida consumista, desigual, excludente, adoecedor, dessolidário, violento, autodestrutivo e destrutivo do meio ambiente.

No plano econômico, uma das marcas típicas do neoliberalismo é a economia oligopolizada, com a forte predominância de grandes corporações que dominam o mundo e em boa proporção definem o modo de vida das pessoas1 1 A esse respeito, ver, entre outros, Dowbor (2017), Brand e Wissen (2021) e Freudenberg (2022). . Outra de suas características essenciais é o capitalismo financeiro. Sua agenda padrão sempre foi norteada por privatização, desregulamentação, corte de impostos e austeridade fiscal. Todavia, a hybris neoliberal gerou uma forma disfuncional de capitalismo – um “filho bastardo”, para usar a expressão de Wendy Brown (2019)BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019. – que paradoxalmente se alimenta das próprias ruínas e das disfuncionalidades por ele geradas. Mazzucato (2022, p. 28)MAZZUCATO, M. Missão economia: Um guia inovador para mudar o capitalismo. São Paulo: Portfólio-Penguin, 2022. identifica quatro “forças profundas” aí presentes: “1) o curto-prazismo do setor financeiro, 2) a ‘financeirização’ dos negócios, 3) a questão climática, e 4) governos morosos ou ausentes”.

No âmbito da democracia, a tática neoliberal foi corroer as instituições políticas por dentro e por fora, subjugando-as fortemente à lógica fundamentalista de sua economia de mercado. Esse processo não pode ser entendido apenas como um efeito colateral da razão de mundo neoliberal, mas como algo claramente concebido já em sua matriz teórica hayekiana, cerca de meio século atrás. Para Hayek (1983)HAYEK, F. Os fundamentos da liberdade. São Paulo: Visão, 1983., democracia resume-se apenas a um método de governo, ou seja, de determinação ou de decisão de quais leis deverão ser aprovadas. A questão central é, pois, segundo o autor, de ordem legal, e não a da vontade livre e soberana da nação. Nas suas palavras, “liberalismo é uma doutrina que define as características da lei; democracia é uma doutrina que define o método pelo qual se determinará que leis serão aprovadas” (HAYEK, 1983HAYEK, F. Os fundamentos da liberdade. São Paulo: Visão, 1983., p. 112). É por essa clara limitação da democracia e pelo consequente destronamento da política que Brown (2019)BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019. constata que, das teorizações de autores como Hayek (1983)HAYEK, F. Os fundamentos da liberdade. São Paulo: Visão, 1983., surge, como efeito colateral, o neoliberalismo como uma figura frankensteiniana para proteger o capitalismo de qualquer forma de estado de justiça social.

Essa fragilização da democracia impulsionou o processo de massificação e de despolitização das pessoas, da sociedade e do Estado mundo afora, assim como a neutralização da participação e da vontade soberana das populações. Vale destacar que as consequências desse fenômeno já haviam sido muito bem estudadas por Hannah Arendt (2012)ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. na metade do século passado, alertando para o risco, representado em relação à política, da conversão das sociedades ocidentais em massas. Dele resultou a desdemocratização e a fragilização da política regida pela lógica privada e de mercado e, pois, a corrosão do sistema político e da estrutura de pesos e contrapesos entre os poderes da democracia liberal. Outra de suas consequências foi a geração de grandes corporações privadas, castas estatais (legislativo, judiciário, executivo, militares), bem como grandes rentistas e determinados setores religiosos, que, nas sociedades ocidentais, se apropriam do Estado contra a sociedade. Resultou daí uma situação de profunda desigualdade social e de canalização do descontentamento, do ódio e da violência para a captura da política.

Para tal, o neoliberalismo precisou demonizar o Estado e vendê-lo como mínimo e ineficiente. Sua ideologia retrata o Estado e os governos como paquidermes ou máquinas burocráticas desengonçadas que dificultam ou suprimem o “ímpeto animal do setor privado”, este sim, supostamente, criador de riqueza. Mazzucato (2022, p. 37)MAZZUCATO, M. Missão economia: Um guia inovador para mudar o capitalismo. São Paulo: Portfólio-Penguin, 2022. refere-se oportunamente a cinco mitos repetidos à exaustão como mantras pela ideologia neoliberal: as empresas criam valor e assumem riscos, ao passo que o Estado apenas reduz riscos e facilita a ação daquelas; o papel do Estado limita-se a corrigir falhas do mercado; os governos devem funcionar como empresas; terceirizar significa poupar dinheiro público e reduzir riscos; e o governo não deve escolher “vencedores” ao estimular a atividade econômica. Na ideologia neoliberal, a eficiência do mercado contrastaria com a ineficiência intrínseca ao Estado, seja ele qual for.

Todavia, como também destaca Mazzucato (2022)MAZZUCATO, M. Missão economia: Um guia inovador para mudar o capitalismo. São Paulo: Portfólio-Penguin, 2022., os mercados não resultam apenas de decisões individuais, mas sobretudo da maneira como se governa cada agente criador de valor, incluindo o próprio governo. Nesse sentido, os mercados estão sempre estruturados em torno de regras, normas e contratos que influenciam diretamente “comportamentos organizacionais” e “interações e desenhos institucionais” (Mazzucato, 2022MAZZUCATO, M. Missão economia: Um guia inovador para mudar o capitalismo. São Paulo: Portfólio-Penguin, 2022., p. 33).

Essa compreensão do mercado defendida pela autora implica outra visão de Estado e da relação deste para com aquele e com a sociedade. Prossegue Mazzucato (2022, p. 33)MAZZUCATO, M. Missão economia: Um guia inovador para mudar o capitalismo. São Paulo: Portfólio-Penguin, 2022.: “O governo [...] não pode se limitar a corrigir mercados reativamente, mas ‘coestruturá-los’ para que entreguem os resultados necessários para a sociedade”. Por essa razão, os governos não apenas podem, mas devem orientar os rumos da economia, de modo a servirem “como ‘investidor de primeira instância’ e assumir riscos; podem e devem estruturar os mercados para atender a um propósito” (Mazzucato, 2022MAZZUCATO, M. Missão economia: Um guia inovador para mudar o capitalismo. São Paulo: Portfólio-Penguin, 2022., p. 33). Essa noção de orientação da economia é central em razão de que, em última instância, a visão neoliberal destitui o Estado de qualquer propósito ao naturalizar a ideia de que ele deveria restringir-se a corrigir as falhas do mercado2 2 Essa noção de propósito está na base da concepção de Mazzucato (2022) ao entender a economia por missões. .

O neoliberalismo somente conseguiu difundir a ideia de Estado mínimo em razão de ter esvaziado a noção de “propósito” na economia, que, em última instância, reside em uma sociedade mais inclusiva, sustentável e justa. Trata-se de uma postura moralmente questionável, dado que resta ao Estado consertar as irresponsabilidades do mercado, por muitas vezes com o socorro a bancos e empresas por meio da injeção de recursos públicos, como ocorreu nas crises de 2008 (subprimes), de 2020–22 (Covid-19) e de 2023 (de bancos americanos e do Credit Suisse). A ideologia neoliberal do Estado mínimo sempre procurou esconder que o mínimo se refere apenas à sua dimensão social e que o mercado é intrinsecamente eficiente apenas em sua propaganda. Trata-se, em sua verdadeira feição, de um Estado máximo em seu braço coercitivo e débil em seu braço social. Os focos do neoliberalismo sempre foram o desmonte do Estado social – sobretudo as redes de proteção social – e o fortalecimento da dimensão coercitiva e repressora do Estado.

Uma consequência bastante plausível das disfuncionalidades de seu sistema econômico ao apropriar-se do Estado é a profunda desigualdade e, no limite, a anomia social. Por essa razão, Piketty (2020)PIKETTY, T. Capital e ideologia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. lembra que o aprofundamento das desigualdades não é apenas perverso pelo mal que causa às condições de vida digna das pessoas, mas também porque trava o crescimento econômico. A violência, nesse caso, tende a tornar-se estrutural e capilarizada como linguagem social, dando margem ao avanço de forças paralelas ao poder do Estado, como paraísos fiscais, grupos nazifascistas, máfias e milícias armadas ou digitais.

No âmbito cultural, é acertada a leitura de Dany-Robert Dufour (2005)DUFOUR, D.R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005. de que o capitalismo, no fim, acaba também por consumir o ser humano, no sentido de reduzir-lhe o espírito. O autor mostra como, no interesse supremo de favorecer a livre circulação e troca de mercadorias, o novo capitalismo, dito neoliberal, favorece o florescimento de toda sorte de contestação e transgressão, supostamente em nome de maiores autonomia individual e tolerância, mas ao custo de minar as bases simbólicas, fontes de sentido para o existir humano. Toda referência ao simbólico, aos valores culturais que tradicionalmente acompanham as trocas humanas se torna, para os interesses do livre mercado, entraves que precisam ser eliminados. O “novo capitalismo”, afirma Dufour (2005, p. 200)DUFOUR, D.R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005., “persegue um ideal de fluidez, de transparência, de circulação e de renovação que não pode se conciliar com o peso histórico desses valores culturais”. A lógica neoliberal força, por assim dizer, o despontar de uma nova humanidade, reduzida a um grupo de indivíduos simbolicamente empobrecidos em sua subjetividade, movidos por interesses racionais, em concorrência selvagem uns com os outros.

Outra marca do neoliberalismo é a destruição irrefreável dos recursos naturais para além da capacidade de renovação deles. Catástrofes ambientais e sanitárias, fenômenos climáticos extremos, perda de terras agricultáveis, destruição das florestas e da biodiversidade, contaminação da água, do solo e do ar, migrações forçadas, guerras e fome ou, ainda, insegurança alimentar resultam da sanha autofágica do lucro e do acúmulo a qualquer preço. Trata-se de um regime de crises que se alimenta cruelmente das crises. A de 2008 mostrou os limites da financeirização da economia, a concentração da riqueza e a brutal desigualdade social. A pandêmica, de 2020, ressaltou a catástrofe ambiental e os limites da falsa lógica autorreguladora do mercado com a crise sanitário-pandêmica (a pandemia não atingiu a todos de modo igual). Por fim, a bélica, agudizada desde 2022, deflagrou os limites de um modelo de globalização unidimensional e de dominação belicista, imperialista, concentrador de riquezas e excepcionalista.

A lógica autofágica deparou com sua consequência necessária, a de que em algum momento a gravidade da crise deixaria de retroalimentar o próprio sistema que dela vive em razão da simples exaustão de sua dinâmica, uma vez que os recursos naturais são finitos. Ronald Wright (2007)WRIGHT, R. Breve história do progresso. Rio de Janeiro: Record, 2007. lembra, em sua Breve história do progresso, que o sistema de extração natural e acúmulo de riquezas hoje apresenta evidentes tendências suicidas, de modo a tratar-se de um risco de extinção civilizacional. O autor destaca que várias civilizações ao longo da história alimentaram seu próprio processo de destruição ao abusar insensatamente dos elementos que permitiram seu avanço. Ou seja, foram vítimas de seu próprio desenvolvimento.

Na mesma direção, Wallace-Wells (2019)WALLACE-WELLS, D. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. faz um alerta sobre nosso futuro próximo e as consequências dos problemas climáticos que nos afetarão dramaticamente, implicando importantes mudanças políticas e culturais, acompanhadas de uma radical transformação na forma como entendemos a vida. O autor toma como base dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas e indica que ações conjuntas entre os países consistem no único caminho para a minimização dos efeitos da crise em curso.

É em meio a esse cenário permeado por crises de várias ordens que se delineia o doloroso nascimento do mundo multipolar e do lento deslocamento da hegemonia do Ocidente para o Oriente. Vários fatores sinalizam nessa direção, bem como para um ponto de inflexão, na medida em que as profundas crises e contradições do mundo ocidental apontam para o esgarçamento da lógica neoliberal. É o que sugere o economista Jeffrey Sachs (2022)SACHS, J. Desenvolvimento e saúde global: Agenda 2030 e HLPF 2022 (Palestra). In: Seminários Avançados em Saúde Global e Diplomacia da Saúde “José Roberto Ferreira”. Rio de Janeiro: Cris/Fiocruz, 27 jul. 2022. Disponível em: https://youtube.com/live/u92Kjx0pOu4?feature=shares. Acesso em: 16 fev. 2023.
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. A exemplo do que já apontaram outros importantes autores, como Dowbor (2017)DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017. e Piketty (2020)PIKETTY, T. Capital e ideologia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020., Sachs (2022)SACHS, J. Desenvolvimento e saúde global: Agenda 2030 e HLPF 2022 (Palestra). In: Seminários Avançados em Saúde Global e Diplomacia da Saúde “José Roberto Ferreira”. Rio de Janeiro: Cris/Fiocruz, 27 jul. 2022. Disponível em: https://youtube.com/live/u92Kjx0pOu4?feature=shares. Acesso em: 16 fev. 2023.
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entende que todas as grandes crises que afetam o planeta na atualidade têm origem na profunda concentração de riquezas e em um sistema de produção que se tornou claramente disfuncional. São elas: a(s) pandemia(s), especialmente da Covid-19; a já referida iminente catástrofe climática; a nova corrida armamentista; e a brutal desigualdade social. Esta última é a principal causadora de mortes e, assim como o faz de modo contundente Piketty (2020)PIKETTY, T. Capital e ideologia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020., em Capital e ideologia, Sachs (2022)SACHS, J. Desenvolvimento e saúde global: Agenda 2030 e HLPF 2022 (Palestra). In: Seminários Avançados em Saúde Global e Diplomacia da Saúde “José Roberto Ferreira”. Rio de Janeiro: Cris/Fiocruz, 27 jul. 2022. Disponível em: https://youtube.com/live/u92Kjx0pOu4?feature=shares. Acesso em: 16 fev. 2023.
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indica que sua origem e solução é fundamentalmente política, e não apenas econômica. Um dado muito simples o prova: se a estimativa de vida das pessoas na Europa é de mais de 80 anos, enquanto na África se limita a cerca de 60, é porque no continente africano as pessoas estão morrendo mais cedo em razão exclusiva da pobreza.

O início do fim de décadas de dominação neoliberal lideradas pelo Estados Unidos e países da Europa ocidental sobre o Oriente é indicado por vários fatores, tais como os blocos de integração euroasiáticos (novas rotas da seda) e do Sul global (BRICS+); o papel ativo do Estado assumido em países como China, Rússia, Irã, Turquia e Índia; a política de integração comercial com o respeito à soberania das nações; a economia e a moeda lastreada em produtos e energia (Rússia, China etc.); o acordo sino-russo de 2022; o fortalecimento dos BRICS+ como alternativa ao atlanticismo/à Organização do Tratado do Atlântico Norte; o novo sistema financeiro em desenvolvimento, alternativo ao ocidental, baseado em uma moeda comum, mas sem eliminar as moedas próprias dos países nele envolvidos; a autonomização e o crescimento industrial e bélico dos países, impulsionados pelas sanções ocidentais; o progressivo fim da hegemonia do dólar e do capital financeiro especulativo; o forte investimento da indústria nacional bélica e de transformação nos países euroasiáticos; o acentuado investimento em educação, ciência e tecnologia; o grande fomento de fontes de energias limpas; e a integração comercial com o mundo, sobretudo com o Sul global.

Esse diagnóstico de época, esboçado em largos traços, mostra o fracasso do neoliberalismo atual em se efetivar como organização econômica apta a distribuir socialmente a riqueza e a proporcionar formas de vida solidárias capazes de oportunizar interações livres e responsáveis dos seres humanos entre si e com o meio ambiente. Ao contrário disso, o neoliberalismo, em suas múltiplas dimensões, social, econômica, cultural, política e climático-ambiental, está conduzindo à autodestruição a humanidade e o próprio planeta.

No tópico seguinte do ensaio, vamos analisar alguns efeitos do desenvolvimento destruidor que o neoliberalismo provoca no âmbito educacional, no sistema do ensino superior e, mais especificamente, na universidade.

Universidade e Precarização da Formação nas Sociedades Neoliberais Ocidentais

Com o diagnóstico anteriormente apresentado, procuramos esboçar uma visão geral da sociedade atual em aspectos que importam para avançarmos na reflexão sobre os impactos do neoliberalismo na educação em geral e, mais pontualmente, na educação de nível superior. Decisivo, nesse ponto, parece-nos ser a corrosão da dimensão formativa da educação universitária em decorrência da intromissão crescente da lógica capitalista neoliberal nas políticas e na gestão da educação superior. Tal corrosão facilmente resulta na deformação (Unbildung)3 3 Para uma análise atual dos efeitos “deformadores” que o neoliberalismo provoca na esfera cultural mais ampla e, especificamente, na esfera universitária, ver o interessante livro do filósofo da educação austríaco Konrad Paul Liessmann (2011). do espírito investigativo e de inquietude permanente que marca a perspectiva da filosofia enquanto educadora desde sua origem.

Também nesse caso cabe pontuar que o neoliberalismo não é a origem da corrosão formativa identificada na atualidade, mas seu máximo potencializador. Assim como o próprio liberalismo e sua versão atual, a universidade moderna e a ideia de formação a ela vinculada sofrem uma profunda influência do sistema capitalista. É ilustrativo disso o fato de que já nos primórdios da ciência moderna a universidade foi impulsionada por financiamento privado e direcionada pelo interesse utilitário de suas descobertas. No plano formativo, já cedo, na modernidade, a demanda do capital por mão de obra qualificada passou a pautar os objetivos educacionais. Isso ficou especialmente claro com a universidade napoleônica e sua ênfase na formação profissional. São esses e outros elementos do sistema capitalista moderno que o neoliberalismo agrava a ponto de descaracterizar a função social da universidade e o sentido humano da formação.

A universidade precisa ser compreendida também como um produto de seu tempo, mas não apenas como tal. Em sua longa história, de quase mil anos, ela sobreviveu enquanto instituição adaptando-se às transformações da própria sociedade, no entanto essa narrativa da adaptação, nas últimas décadas, tem se convertido no discurso falacioso pelo indispensável alinhamento da universidade aos preceitos e princípios da sociedade neoliberal. Nessa levada, o conhecimento foi perdendo gradativamente seu valor crítico-formativo para se transformar em um produto cujo valor se torna relativo à sua pertinência para o desempenho de funções específicas no mercado de trabalho e para a produção direta ou indireta de mercadorias.

Sendo assim, do mesmo modo como constatamos, do ponto de vista antropológico-ontológico, a dessubjetivação dos indivíduos provocada pela ideologia neoliberal do empreendedor de si mesmo, ocorre aqui, no âmbito educacional, uma pauperização cultural crescente, à medida que a formação ampla cede lugar à profissionalização aligeirada e tecnicista crescente. É preciso considerar, nesse contexto, que o enfraquecimento progressivo do papel crítico-reflexivo do conhecimento se refere a um fenômeno mundial, sobretudo ocidental, e, portanto, não só brasileiro. Esse fenômeno tem sido investigado em detalhes, por exemplo, na Alemanha, por Reinhard Brandt (2011)BRANDT, R. Wozu noch Universitäten? Hamburgo: Felix Meiner Verlag, 2011. e, nos Estados Unidos, por Martha Nussbaum (2015)NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.. Enquanto Brandt (2011)BRANDT, R. Wozu noch Universitäten? Hamburgo: Felix Meiner Verlag, 2011. mostra a redução da noção ampla de conhecimento ao modelo do saber gerenciado, Nussbaum (2015)NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. denuncia, por sua vez, o desaparecimento silencioso das humanidades no currículo universitário norte-americano. No bojo de ambas as críticas está, como se pode observar, o esfacelamento de princípios decisivos à formação da cidadania democrática, como o pensamento crítico, a cidadania universal e a imaginação narrativa (DALBOSCO, 2021DALBOSCO, C. A. Educação e condição humana na sociedade atual: formação humana, formas de reconhecimento e intersubjetividade de grupo. Curitiba: Appris, 2021., p. 157-175).

No âmago desse movimento de transformação, verificamos a conversão da universidade em empresa, dos professores em burocratas e dos estudantes em clientes (ORDINE, 2016ORDINE, N. A utilidade do inútil: um manifesto. Rio de Janeiro: Zahar, 2016., p. 101). Tal tendência encontra, infelizmente, ainda poucos nichos de resistência, pois é impulsionada pela necessidade introduzida pelo mercado da educação superior de as universidades disputarem entre si e com outras instituições de ensino os apoio e público necessários para se legitimarem politicamente e para se manterem em termos financeiros. A bandeira neoliberal do Estado mínimo cumpre um papel decisivo nesse processo, uma vez que inibe os investimentos do Estado em educação e lança as instituições em uma luta por recursos que invariavelmente perverte suas finalidades educativas. Não bastasse isso, o Estado, que é mínimo em investimento, tampouco costuma ser máximo em políticas sociais, de sorte que mesmo a qualidade da educação ofertada acaba por se pautar pelos interesses imediatos do mercado.

A consequência disso, facilmente observável e já bem documentada, é o aparecimento de cursos universitários cada vez mais curtos, restritos ao mínimo de treinamento técnico-científico e com o máximo de flexibilidade na modalidade de oferta (híbridos, a distância, sem horários fixos etc.). Em tese, cursos dessa natureza conseguem atender melhor à demanda de uma geração de trabalhadores que precisa adequar-se a um mercado de trabalho precarizado e em constante transformação e que não pode, por isso, despender muito tempo para a formação, uma vez que corre o risco de estar obsoleto ainda antes da conclusão do processo. A internalização da ideologia do empreendedor de si, subjacente ao neoliberalismo, complementa essa visão com a premissa de que o tipo relevante de formação é o economicamente vantajoso e de retorno imediato, tornando os indivíduos ávidos por cursos baratos, curtos e rentáveis. Essa tendência também fortalece políticas educacionais públicas que incentivam o enxugamento dos currículos e a formação cada vez mais tecnicista e aligeirada de professores, desacoplando-a da perspectiva de uma formação cultural mais ampla.

Assim, por influência da lógica neoliberal, a formação profissional acabou ganhando peso desproporcional no entendimento do papel social da universidade, em detrimento da formação crítico-científica e cidadã dos indivíduos. Nussbaum (2015)NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015., no livro-manifesto Sem fins lucrativos, mostra como todo esse movimento tem consequências profundas para o tipo de formação que vem sendo ofertado para as gerações atuais. Com base em longa pesquisa empírica realizada sobretudo nos Estados Unidos, na Europa e na Índia, mas que vale paradigmaticamente para muitas outras partes do mundo e, de maneira especial, para o Brasil, ela chama atenção, como já referido, para o movimento silencioso que está eliminando as humanidades e as artes dos currículos da educação básica e da educação superior. Essas disciplinas são tomadas como ornamentos inúteis pela mentalidade estreita de gestores obcecados pela competitividade e rentabilidade. Não bastasse, também perdem aceitação entre os novos “consumidores” educacionais, que preferem formação profissional barata e rápida, tendo em vista a diminuição crescente do investimento público na educação. Esse enfraquecimento das humanidades vem acontecendo, assegura Nussbaum (2015)NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015., sem que tenhamos verdadeiramente refletido a respeito e escolhido conscientemente seguir por esse caminho. Pois, trata-se, no fundo, de uma imposição da economia neoliberal, que, em sua fase da financeirização, transforma a educação não apenas em mercadoria, mas também em capital de investimento em bolsas de valores.

Se esse estreitamento formativo prosseguir, alerta Nussbaum (2015, p. 4)NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015., “todos os países logo estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado dos sofrimentos e das realizações dos outros”. Tomados pela racionalidade capitalista neoliberal, continua a autora, “estamos indo atrás dos bens que nos protegem, satisfazem e consolam”, mas esquecendo-nos da “capacidade de pensar e de imaginar que nos torna humanos e que torna nossas relações humanas e ricas, em vez de relações meramente utilitárias e manipuladoras” (NUSSBAUM, 2015NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015., p. 7).

O futuro democrático de nossa sociedade é, para a autora, a grande vítima dessa crise silenciosa. Porque, essas disciplinas “inúteis”, do ponto de vista da produtividade econômica, possuem valor inestimável para o funcionamento saudável da democracia, na medida em que fortalecem a capacidade de pensar criticamente, de transcender os compromissos locais em direção a questões mais amplas e, por fim, de imaginar, com simpatia, a situação dos outros. A democracia depende do fortalecimento e da proliferação dessas capacidades na forma de um ethos. Sem elas, perde o poder de mobilizar transformações em vista da ampliação dos direitos individuais e da qualidade de vida geral dos cidadãos, esvaziando-se como um mero sistema de criação de leis para regulação do capital.

Nussbaum (2015)NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. deixa claro que não se trata de combater a pertinência de uma educação consequente em termos econômicos, da mesma forma que não se trata de combater a gestão empresarial das instituições e, enquanto isso, representar adequadamente um uso mais racional dos recursos. Trata-se, sim, de denunciar a redução da formação ao aspecto econômico e a interferência perniciosa de princípios gerenciais nas finalidades educativas das instituições de ensino. Ou seja, a questão, além do conteúdo específico da educação que vem sendo oferecida, refere-se principalmente ao valor daquilo que ela vem deixando pelo caminho.

Passando do discurso mais amplo da política educacional para os discursos pedagógicos, observamos que essa redução da noção de formação ao atendimento das finalidades econômicas profissionalizantes vem acompanhada da ascensão daquilo que Gert Biesta (2013)BIESTA, G. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. chamou de “linguagem da aprendizagem” em prejuízo de uma mais ampla “linguagem da educação”. Também aqui opera um reducionismo que perde de vista o aspecto humano e social da formação, passando a concentrar-se em uma concepção estreita da aprendizagem centrada apenas em competências e habilidades.

Dito de um modo talvez caricatural, o ensino passa a ser entendido como facilitação para o aprendizado ou, de forma ainda mais reducionista, para a busca do êxito em avaliações de larga escala. Tem-se, em decorrência, a educação como produção de oportunidades de aprendizagem e o estudante como aquele que aprende o que é ensinado na linguagem da aprendizagem como treinamento. Há, nisso, um nítido enfraquecimento dos aspectos relacionais e sociais da educação e, o que é mais preocupante na direção da formação para a cidadania democrática, o enfraquecimento de processos educacionais voltados à preparação para o pensar por si mesmo. Por outro lado, essa guinada vem ao encontro da visão neoliberal que almeja submeter a educação aos princípios da eficiência, uma vez que a aprendizagem compreendida conforme essa lógica é mais afeita à mensuração.

Por conseguinte, com o intuito de garantir maior retorno dos investimentos em educação, criam-se instrumentos de avaliação que quantificam e ranqueiam os índices de aprendizagem, como os propostos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Essa abordagem, cujo locus de origem é a educação básica, não tardou em estender sua influência também para a educação superior, em que a mensuração do aprendizado que se concentra em áreas técnico-científicas, importantes para o ranqueamento das instituições, acaba por reforçar ainda mais o descaso com aquelas capacidades associadas às humanidades e às artes, difíceis de verificar e, mais ainda, de quantificar.

Concentrando seus esforços em uma formação profissional enxuta, marcada conceitualmente pela linguagem da aprendizagem, a universidade busca acompanhar a dinâmica de rápida transformação que afeta a sociedade atual, ao custo de comprometer o ideal da liberdade acadêmica, há muito enaltecido como traço essencial da universidade moderna (HUMBOLDT, 2002HUMBOLDT, W. Schriften zur Politik und zum Bildungswesen. Band IV. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2002.). A própria pesquisa, no Brasil ainda feita predominantemente nas universidades, encontra-se limitada em grande parte pela lógica do capitalismo neoliberal, tanto pela dependência de financiamento, como também, em decorrência, pela necessidade de produzir conhecimentos úteis ao capital, que possam ser, direta ou indiretamente, vertidos em novos produtos comercializáveis. A busca livre e desinteressada pelo conhecimento é um tipo cada vez mais raro de privilégio que, quando contrastado com os valores dominantes, tem dificuldade até de se justificar eticamente.

Existem nas universidades grupos que ainda remam contra a correnteza, fazendo pesquisa independente dos interesses mercantis e oportunizando uma formação ampliada, não restrita às fronteiras desta ou daquela prática profissional. Essas exceções não invalidam, no entanto, a leitura geral de uma tendência ao reducionismo da formação e da pesquisa na universidade, que, quanto mais comprometida com a lógica neoliberal, mais distante fica da possibilidade de contemplar também aspectos de uma formação humana e cidadã, comprometida com temas relacionados a crises como as das mudanças climáticas e as das desigualdades sociais (assuntos que apenas muito timidamente aparecem no ensino e na pesquisa de nossas universidades, em que pese sua urgência).

Que um sentido ampliado de formação tenha de ser acolhido pela universidade em substituição daquela formação reducionista que viemos caracterizando é uma questão que ainda precisa ser enfrentada. O momento parece mais do que oportuno para fazê-lo, considerando a reviravolta social em curso, decorrente sobretudo do impacto da revolução digital que transforma, por um lado, a produção e circulação do conhecimento e, por outro, o tipo e a demanda de trabalho.

O estrondoso desenvolvimento da microeletrônica, associado à melhoria da qualidade e à ampliação do acesso à internet, tornou obsoleta uma das funções tradicionais da escola e, principalmente, da universidade enquanto guardiãs e propagadoras do conhecimento. Com algumas exceções, o conhecimento encontra-se hoje em dia disponível em amplas e diversas bases de dados, a maior parte delas de livre acesso para qualquer pessoa conectada à rede mundial de computadores. Há, além disso, um número crescente de cursos e palestras disponíveis para serem usufruídos a qualquer tempo, demandando baixo ou nenhum investimento financeiro.

Nesse cenário, que já vem se constituindo há décadas, começam a proliferar discursos que questionam abertamente a relevância de se fazer um curso superior, sobretudo da parte daqueles incapazes de vislumbrar o sentido mais amplo da formação universitária para além do simples repasse de conhecimento. Tais discursos foram coroados, mais recentemente, pela decisão de algumas empresas, entre elas gigantes como a Google e a Amazon, de não mais exigir diploma universitário como critério para novas contratações4 4 Esse é um fato que vem recebendo relativo destaque nos meios de comunicação, especialmente naqueles voltados ao mundo dos negócios e carreira. Ver, por exemplo, a notícia publicada na revista Exame, em 22 de fevereiro de 2019 (BARBOSA, 2019). s razões apresentadas como justificativa dessa decisão, estão o reconhecimento de que habilidades e conhecimentos não se vinculam necessariamente à titulação e, também, a dificuldade de os cursos universitários acompanharem em ritmo acelerado as mudanças que afetam as diferentes áreas de atuação profissional, em vista do que as empresas acabam investindo na capacitação in company.

Um baque ainda maior para o modelo de universidade centrado na formação profissional é a ameaça que acompanha a terceira onda de automação viabilizada pelas conquistas mais recentes no campo da inteligência artificial. Como faz notar Harari (2018)HARARI, Y. N. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., no capítulo que dedica ao tema do trabalho em 21 lições para o século 21, diferentemente do que aconteceu nos processos anteriores de automação, agora a mão de obra substituída por algoritmos dificilmente encontrará espaço suficiente em outros setores para seguir trabalhando. Quando, por exemplo, na segunda onda de automação, o trabalho manual nas fábricas passou a ser feito predominantemente por robôs, surgiram postos de trabalho no setor de serviços que requeriam o tipo de habilidade cognitiva que só os humanos possuíam, como aprender, analisar, comunicar e compreender as emoções humanas. Agora, no entanto, à medida que programas inteligentes aprendem a lidar com essas tarefas até então tipicamente humanas (análise e resolução de problemas, comunicação etc.), aqueles que perdem seus empregos vão ficando pelo caminho, sem um campo de atuação exclusivamente humano para onde possam migrar com sua mão de obra.

Essa terceira onda de automação já está em curso. Podemos trocar nosso plano de telefonia, fazer compras e abastecer o carro sem o auxílio de qualquer atendente humano. Há programas, alguns até mesmo disponíveis ao grande público, capazes de produzir textos autorais e outros que até fazem arte. Isso tudo é apenas o alvorecer do desenvolvimento da inteligência artificial. Ao longo desse movimento, muitos novos e diversificados postos de trabalho acabarão surgindo (operadores de drones, analistas de dados etc.), mas dificilmente serão em quantidade suficiente para compensar aqueles que desaparecerão e, além disso, provavelmente demandarão alto nível de qualificação que não poderá ser prontamente adquirido pela massa de novos desempregados.

Embora seja muito difícil prever todas as consequências dessa transformação em curso no mundo do trabalho, o pouco que já podemos observar dá indícios de uma crise que se instala no seio do modelo de formação universitária que se tornou hegemônico nas últimas décadas, cuja diretriz principal no ensino é a transmissão de pacotes de conhecimento direcionados à capacitação para atuação em profissões específicas. Ao tornar caduco esse modelo de formação reduzida, as transformações em curso também põem em xeque o valor da instituição que o promove. Por esse caminho enviesado, surge, no entanto, a oportunidade de a universidade repensar sua função social e, sobretudo, o tipo de formação por ela promovido.

O enfrentamento dessa iminente instabilidade no mundo do trabalho, bem como daquela “dessimbolização” de que fala Dufour (2005)DUFOUR, D.R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005., geradora de sujeitos precários, demanda uma contrainvestida para recuperação da dignidade dos indivíduos e de ressimbolização da cultura, de tal modo que se possa também fazer o enfrentamento do conjunto mais amplo das crises deflagradas pela expansão predatória da lógica neoliberal. Em vista disso, talvez, hoje, mais que em qualquer outro tempo, seja preciso promover a formação ampliada dos indivíduos para que possam enfrentar as provações de um mundo cada vez mais incerto, capacitando-os para um posicionamento crítico e responsável em favor de uma vida significativa e de uma sociedade mais justa. Para dar conta desse desafio, será decisiva a atuação das instituições, entre as quais a universidade. Cabe, então, a tarefa de pensarmos, política e academicamente, que universidade e que formação estará à altura dessa tarefa e, no nosso caso específico, que filosofia da educação pode contribuir para repensar a própria ideia de formação que ocorre no contexto universitário atual.

A Modo de Conclusão: Tarefas Formativas Colocadas à Universidadepor uma Filosofia da Educação Transformada

Oferecemos, nos dois tópicos anteriores, um breve diagnóstico de época do neoliberalismo atual, desdobrando-o em duas dimensões: uma econômico-político-social mais ampla, e outra, especificamente educacional, focada na questão da universidade. No que se refere à primeira dimensão, destacamos, do ponto de vista filosófico (antropológico-ontológico), o modo como o sujeito contemporâneo é assujeitado à figura empobrecedora do empreendedor de si mesmo, que para poder cumpri-la precisa desfigurar-se em sua dimensão propriamente humana, uma vez que nega ou limita excessivamente sua liberdade para poder cumprir com as exigências de competição desenfreada, de eficiência reducionista e de lucratividade cega. Essa desfiguração ontológico-antropológica do sujeito é acentuada pelo predomínio da economia de mercado dirigida pelo capital financeiro.

O capital financeiro deixa mover-se inteiramente pela ideologia neoliberal, que pretende colocar o Estado e o próprio governo unicamente a serviço da financeirização privada. Como resultado desse amplo processo, destacamos a barbarização cultural crescente e seus efeitos destrutivos no espectro especificamente político. Também frisamos, nesse contexto, como uma das consequências destrutivas da ideologia neoliberal, a redução da noção de democracia ao “método de governo”, ignorando, com isso, a dimensão ético-política ampla, plural e rica que a constitui, enquanto forma participativa de governo e, propriamente, como forma de vida. A depreciação da dimensão ético-política da democracia se faz acompanhar pelo crescente enfraquecimento da esfera pública, dialógico-participativa, concebida desde as sociedades republicanas modernas como âmbito de constituição legítima do comum.

O diagnóstico dessa dimensão mais ampla do neoliberalismo preparou o terreno para a compreensão da dimensão mais específica do âmbito educacional. Grandes reformas educacionais mundiais do ensino superior, como aquelas realizadas especialmente na Alemanha e nos Estados Unidos, precursoras do que também vemos acontecer com toda força no Brasil, promovem o desaparecimento progressivo do conhecimento crítico-reflexivo nos currículos universitários, resultando no próprio enfraquecimento da ideia ampla de formação humana, voltada à preparação do exercício democrático da cidadania. A colonização neoliberal crescente da educação conduz a uma formação excessivamente profissionalizante, voltada ao atendimento de demandas mercadológicas transitórias, em menosprezo ao fortalecimento de formas de vida responsáveis e comprometidas social e politicamente com o bem comum, com os outros e com a questão climático-ambiental.

Em síntese, podemos concluir, como ideia diretriz da exposição dos tópicos anteriores, que a crise e os limites do neoliberalismo revelam, na prática, a incapacidade de o mercado ser o centro e o princípio articulador da sociabilidade e, também, de dar conta do grave conjunto de crises (ambiental, sanitária, bélica, social – desigualdade, fome, refugiados, laboral, seguridade social etc.) que coloca em risco a civilização atual e o próprio planeta. Considerando tal diagnóstico de crises e mudanças geopolíticas, demarcamos, ainda no primeiro tópico, a urgência, nos tempos atuais, de se repensar a difícil relação envolvendo mercado, Estado, governo e sociedade, pondo como agenda do dia o debate sobre a responsabilidade social tanto do Estado como do governo, servindo isso também como princípio orientador da relação do Estado com o mercado e com a sociedade. É no âmbito dessa transformação mais ampla que se torna possível retomar o sentido público da educação como bem comum, atribuindo ao próprio Estado o papel de garanti-la.

Logo, podemos nos perguntar: qual é, então, o papel da filosofia da educação? Tem ela ainda alguma tarefa relevante a cumprir? Ela não pode mais querer arvorar-se para si a pretensão metafísica de ser indicadora de lugar para a cultura como um todo nem, menos ainda, querer determinar de modo vertical a maneira ética e política das mais diferentes formas de exercício profissional. No contexto de sociedades cada vez mais plurais e complexas, nas quais nenhum âmbito do conhecimento humano tem o monopólio da última palavra, a própria filosofia já perdeu faz tempo, pelos menos desde Hegel, a condição de ser a prima ciência. Em vez disso, ao renunciar à condição de indicadora de lugar, ela pode assumir a condição mais modesta de intérprete mediadora, esforçando-se, desse modo, para colocar em diálogo, entre si, a pluralidade cultural e profissional e as diferenças singulares que a constituem (HABERMAS, 1999HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999., p. 9-28; DALBOSCO, 2007DALBOSCO, C. A. Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo. São Paulo: Paulinas, 2007., p. 27-52; DALBOSCO, 2010DALBOSCO, C. A. Pragmatismo, teoria crítica e educação. Campinas: Autores Associados, 2010., p. 179-210).

Ademais, abrindo mão da pretensão de fundamentação última, a filosofia pode assumir uma noção mais fraca de racionalidade, capacitando-se para interagir com os resultados do diagnóstico do tempo presente, construído criticamente pelo trabalho interdisciplinar das ciências humanas e sociais, de maneira especial pela crítica histórica, econômica, sociológica, jurídica e literária (história, economia, sociologia, direito e literatura). Também é o conceito fraco de racionalidade inerente à condição de intérprete mediadora que permite à filosofia atualizar o próprio conceito de formação humana, despindo-o de seus “restos” metafísicos fundamentalistas e deixando de lado, ao mesmo tempo, a postura prescritiva em relação ao ethos das mais diferentes profissões. Pois, em tempos atuais, não cabe à filosofia em geral nem menos ainda à filosofia da educação de modo particular querer determinar prescritivamente como cada profissional deve agir em sua área de atuação específica, nem querer impor uma ideia de cidadania democrática. Tal ideia, como ampliação necessária da formação profissional, precisa ser construída de maneira dialógico-participativa, com base na escuta e na pergunta de fundo hermenêutico.

É dessa mudança paradigmática que brota uma filosofia da educação transformada, capaz de assumir ao menos três tarefas principais: a primeira repousa no trabalho crítico-conceitual de atualização da ideia de formação; a segunda diz respeito à reivindicação incessante, com o apoio interdisciplinar das ciências humanas e sociais, do retorno, no currículo da educação escolar e universitária, da ampla formação concebida em uma perspectiva pós-humanista5 5 Da crítica que tanto Martin Heidegger como Michel Foucault fazem ao sentido metafísico do humanismo, resulta a possibilidade de uma formação pós-humanista. Sobre isso, ver Dalbosco e Doro (2019, p. 63-83). ; e, por fim, a terceira tarefa consiste em levar adiante, de maneira crítico-interpretativa, na condição de uma filosofia da educação como intérprete mediadora, o inesgotável tensionamento entre formação humana e formação profissional. Vejamos, separadamente, cada uma dessas três tarefas.

No que se refere à primeira tarefa, esta pressupõe o diálogo crítico e criativo com a tradição filosófico-pedagógica clássica, retendo dessa tradição referências que permitam pensar criticamente o nexo reducionista entre a economia neoliberal de mercado e o paradigma da aprendizagem, dominado pela linguagem das competências e habilidades. Nesse sentido, há um fio condutor definido na tradição filosófico-pedagógica, que se inicia com a paideia grega e chega até nossos dias, passando pela humanitas latina e pela Bildung alemã, que concebe a formação em sentido amplo, não voltada exclusivamente para o exercício somente de um ou de outro ofício determinado, mas sim para a vida como um todo. Por conseguinte, torna-se decisivo desconstruir teoricamente a noção de competência que avaliza a ideia reducionista de formação profissional, resgatando do diálogo crítico com a tradição filosófico-pedagógica a noção de capacidade, ancorando-a na ideia de formação entendida precisamente como o desdobramento educacional da pluralidade das próprias capacidades humanas6 6 Um dos trabalhos atuais mais consistentes nessa perspectiva é o de Martha Nussbaum (2011). Na vertente clássica, que argumenta com a noção ampla de formação (Bildung) como desdobramento de todas as capacidades humanas, Wilhelm von Humboldt (2002) ainda é uma referência indispensável. .

De qualquer forma, podemos reter do diálogo crítico com essa longa tradição o papel teórico que a ideia de formação possui: assegurar a tensão, indispensável para a constituição plural do si mesmo (self/selbst), entre coerção e liberdade (KANT, 1998KANT, I. Schriften zur Anthropologie, Geschichtsphilosophie, Politik und Pädagogik. Band VI. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998.), ou entre adaptação e resistência (ADORNO, 1971ADORNO, T. Erziehung zur Mündigkeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971.). Em um contexto socioeconômico e político-cultural, no qual quase tudo tende a se orientar para a coerção e adaptação, visando fortificar diferentes formas de assujeitamento humano, torna-se decisivo investigar o sentido amplo de educação como prática de liberdade, revelando sua importância à formação do pensamento crítico-reflexivo das novas gerações, pois uma das variantes do sentido amplo de educação repousa em sua dimensão ético-estética, na qual a educação encontra a própria ideia de formação e se embrica profundamente com ela, tornando-se quase que uma só ideia7 7 No âmbito da filosofia da educação brasileira, cabe menção para os inúmeros trabalhos de Nadja Hermann, que procuram pensar de maneira criativa a imbricação entre ética e estética como possibilidade de ampliar a noção de formação humana. Ver, a esse respeito, especialmente Hermann (2005; 2010). .

Também como tentativa de síntese produtiva dessa longa tradição, encontra-se a hermenêutica gadameriana, alicerçada na capacidade de escutar e perguntar (GADAMER, 1999aGADAMER, H.G. Gesammelte Werke 1: Hermeneutik I. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999a.). É esse sentido amplo de formação que precisa ser apropriado reconstrutivamente e ser colocado não em oposição negadora, mas em confronto crítico-interpretativo permanente com a formação profissional especializada8 8 Vários esforços coletivos estão sendo feitos nessa direção. Ver, de interesse especial para este ensaio, duas coletâneas: a primeira é organizada por Cenci, Dalbosco e Mühl (2009); e a segunda, por Dalbosco, Mühl e Flickinger (2019). . Ora, é esse tensionamento permanente entre formação humana e formação profissional que faz brotar referências ético-políticas indispensáveis para a preparação do exercício democrático de uma profissão cidadã. Igualmente, é de tal tensionamento que surge a compreensão dos limites inerentes ao paradigma da aprendizagem orientado estritamente pela lógica da economia neoliberal de mercado e centrado na formação profissional tecnicista com fins voltados predominantemente à concorrência, eficiência (desempenho) e lucratividade.

A segunda tarefa, referente ao retorno no currículo da educação escolar e universitária da formação em perspectiva pós-humanística ampla, é tão complexa e difícil quanto a primeira. Ela exige, antes de tudo, o empenho em rever e revogar, quando for o caso, o núcleo das reformas educacionais autoritárias que conduziram à eliminação progressiva das humanidades nos currículos da educação básica e superior. Isso só é possível, no entanto, no bojo de lutas políticas mais abrangentes de retomada da dimensão pública da educação e, com ela, do papel do Estado como agente garantidor insubstituível da educação pública de qualidade. A concretização desse pano de fundo político-estrutural permite avançar no trabalho investigativo sobre o sentido formativo do ensino, repondo novamente o debate a respeito da finalidade da educação (para que educação?) e seu papel ético-estético-político na formação das novas gerações. Tal debate constrói sua solidez com base em um intenso trabalho investigativo que permite projetar a escola e a universidade muito além do sentido empresarial, redutor da relação pedagógica professor-aluno à mera relação mercadológica empresário-cliente.

Por fim, no que tange à terceira tarefa, como intérprete mediadora, a filosofia da educação, deixando-se inspirar pela longa tradição hermenêutica, pode levar adiante, de maneira crítico-interpretativa, o inesgotável tensionamento entre formação humana e formação profissional. De tal inspiração, brotam dois princípios ético-formativos, atualmente quase esquecidos na prática epistemológico-pedagógica de formação das novas gerações: a escuta e a pergunta. A ampla despolitização democrática levada a cabo pela governamentalidade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.; BROWN, 2019BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.) também atinge em cheio o mundo acadêmico, fortalecendo posturas autoritárias à medida que deforma as capacidades eminentemente humanas de escutar e perguntar. Desse modo, o diálogo crítico com a tradição intelectual faz ressurgir a escuta e a pergunta com dois núcleos constitutivos de uma Bildung atualizada (rejuvenescida), que permite oxigenar a práxis acadêmica em suas mais diferentes dimensões.

Na contramão do dispositivo neoliberal de governamento autoritário da vida, das profissões e de muitas instituições, essas duas capacidades humanas fundamentais à vida social (capacidades de escutar e de perguntar) possibilitam, portanto, a indispensável postura de abertura em direção ao outro, permitindo que cada um seja reconhecido no outro e se prepare honestamente “para dar respostas exigidas pela pergunta do outro” (FLICKINGER, 2010FLICKINGER, H.G. A caminho de uma pedagogia hermenêutica. Campinas: Autores Associados, 2010., p. 53). Essa ideia posta por Flickinger (2010)FLICKINGER, H.G. A caminho de uma pedagogia hermenêutica. Campinas: Autores Associados, 2010. de tomar a sério a pergunta do outro é considerada pelo próprio Gadamer (1999b)GADAMER, H.G. Gesammelte Werke 1: Hermeneutik II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b. como exigência ética fundamental da práxis dialógica com pretensão formativa. Em um clássico ensaio publicado na década de 1970 intitulado “A incapacidade para o diálogo”, Gadamer (1999b, p. 213)GADAMER, H.G. Gesammelte Werke 1: Hermeneutik II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b. coloca como condição decisiva para que o diálogo possa assumir postura formativa o reconhecimento do outro como outro, e, para que isso aconteça, é preciso saber escutar.

Em síntese, como se pode observar, a práxis dialógica depende de um preparo constante e inesgotável da escuta, sendo precisamente nessa preparação inesgotável que repousa o próprio sentido formativo do diálogo: embora nunca estejamos suficientemente prontos para escutar, o importante, em termos pedagógicos, é o fato de estarmos abertos (disposição para abertura) para escutar o outro.

Uma filosofia da educação movida pela capacidade de escutar e perguntar – algo cada vez mais raro na práxis acadêmica contemporânea, dominada pelo empreendedorismo neoliberal embrutecedor – é capaz de despotencializar a conduta autoritária que orienta a relação interdisciplinar entre as áreas do conhecimento. Tal postura filosófico-formativa torna-se mais adequada para respeitar a singularidade de cada profissão, provocando-a, simultaneamente, a pensar seu exercício profissional específico como algo inserido na perspectiva cultural, ética e política mais ampla, pois é pela condução dialógico-participativa que o tensionamento entre formação humana e formação profissional pode desaguar na cidadania democrática, a ser ela própria reinventada pela escuta ativa, questionadora e participativa de cada nova geração.

Em suma, esperamos ter contribuído para mostrar, neste ensaio, as imensas dificuldades e desafios que permeiam o cenário educacional contemporâneo. A mesma força destruidora que o avanço neoliberal exerce nas diferentes esferas da sociedade também se faz notar cada vez mais no âmbito educacional, transformando, desse modo, a olhos vistos, a escola e a universidade em empreendimentos empresariais lucrativos. Essa força só pode ser contida pelo revigoramento democrático da esfera pública, o qual depende da ideia ampliada de formação, que se torna força movente das capacidades humanas, alicerçadas no pensamento crítico, na cidadania universal e na imaginação criativa. Afinal, da dimensão formativa da educação, isto é, de uma educação formadora, que brota a força ético-estético-política capaz de resistir à barbarização crescente provocada pela ideologia neoliberal e que chega cada vez com maior força também à universidade.

Notas

  • 1
    A esse respeito, ver, entre outros, Dowbor (2017)DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017., Brand e Wissen (2021)BRAND, U.; WISSEN, M. Modo de vida imperial: sobre a exploração dos seres humanos e da natureza no capitalismo global. São Paulo: Elefante, 2021. e Freudenberg (2022)FREUDENBERG, N. A que custo? O capitalismo (moderno) e o futuro da saúde. São Paulo: Elefante, 2022..
  • 2
    Essa noção de propósito está na base da concepção de Mazzucato (2022)MAZZUCATO, M. Missão economia: Um guia inovador para mudar o capitalismo. São Paulo: Portfólio-Penguin, 2022. ao entender a economia por missões.
  • 3
    Para uma análise atual dos efeitos “deformadores” que o neoliberalismo provoca na esfera cultural mais ampla e, especificamente, na esfera universitária, ver o interessante livro do filósofo da educação austríaco Konrad Paul Liessmann (2011)LIESSMANN, K. P. Theorie der Unbildung. Munique: Piper Verlag, 2011..
  • 4
    Esse é um fato que vem recebendo relativo destaque nos meios de comunicação, especialmente naqueles voltados ao mundo dos negócios e carreira. Ver, por exemplo, a notícia publicada na revista Exame, em 22 de fevereiro de 2019 (BARBOSA, 2019BARBOSA, S. Google, Apple e mais estas empresas não exigem diploma. Exame, 22 fev. 2019. Disponível em https://exame.com/carreira/google-apple-e-mais-estas-empresas-nao-exigem-diploma/. Acesso em: 8 ago. 2023.
    https://exame.com/carreira/google-apple-...
    ).
  • 5
    Da crítica que tanto Martin Heidegger como Michel Foucault fazem ao sentido metafísico do humanismo, resulta a possibilidade de uma formação pós-humanista. Sobre isso, ver Dalbosco e Doro (2019, p. 63-83)DALBOSCO, C. A.; DORO, M. J. Ontologia da formação pós-humanista em Heidegger e Foucault. ETD - Revista Educação Temática Digital, Campinas, v. 1, n. 21, p. 63-83, 2019. https://doi.org/10.20396/etd.v21i1.8650840
    https://doi.org/10.20396/etd.v21i1.86508...
    .
  • 6
    Um dos trabalhos atuais mais consistentes nessa perspectiva é o de Martha Nussbaum (2011)NUSSBAUM, M. Creating capabilities: the human development approach. Cambridge: Belknap Press, 2011.. Na vertente clássica, que argumenta com a noção ampla de formação (Bildung) como desdobramento de todas as capacidades humanas, Wilhelm von Humboldt (2002)HUMBOLDT, W. Schriften zur Politik und zum Bildungswesen. Band IV. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2002. ainda é uma referência indispensável.
  • 7
    No âmbito da filosofia da educação brasileira, cabe menção para os inúmeros trabalhos de Nadja Hermann, que procuram pensar de maneira criativa a imbricação entre ética e estética como possibilidade de ampliar a noção de formação humana. Ver, a esse respeito, especialmente Hermann (2005HERMANN, N. Ética e estética: a relação quase esquecida. Porto Alegre: Edipucrs, 2005.; 2010)HERMANN, N. Autocriação e horizonte comum. Ijui: Editora Unijuí, 2010..
  • 8
    Vários esforços coletivos estão sendo feitos nessa direção. Ver, de interesse especial para este ensaio, duas coletâneas: a primeira é organizada por Cenci, Dalbosco e Mühl (2009)CENCI, Â. V.; DALBOSCO, C. A.; MÜHL, E. H. (org.). Sobre filosofia e educação: racionalidade, diversidade e formação pedagógica. Passo Fundo: UPF Editora, 2009.; e a segunda, por Dalbosco, Mühl e Flickinger (2019)DALBOSCO, C. A.; MÜHL, E. H.; FLICKINGER, H.G. (org.). Formação humana (Bildung): despedida ou renascimento? São Paulo: Cortez, 2019..

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Editor de seção: Antônio Alvaro Soares Zuin https://orcid.org/0000-0002-6850-2897

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2023
  • Aceito
    31 Jul 2023
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