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PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS: ATUAÇÃO DO INSTITUTO AYRTON SENNA NA EDUCAÇÃO PÚBLICA DO ESTADO DO RS

PUBLIC-PRIVATE PARTERNSHIPS: PERFORMANCE OF THE AYRTON SENNA INSTITUTE IN THE PUBLIC EDUCATION OF THE BRAZILIAN RS STATE

ALIANZAS PÚBLICO-PRIVADAS: DESEMPEÑO DEL INSTITUTO AYRTON SENNA EN LA EDUCACIÓN PÚBLICA DEL ESTADO DE RS EN BRASIL

RESUMO

Neste trabalho, investiga-se a atuação do Instituto Ayrton Senna (IAS) nas redes municipais e estadual do estado do Rio Grande do Sul (RS). A pesquisa subsidiou-se no viés da sociologia crítica, especificamente da metodologia de etnografia de rede, de Stephen Ball, a fim de analisar o contexto de influência, envolvendo as políticas educacionais por meio do uso de novas fontes de dados virtuais. Situam-se as parcerias público-privadas (PPP) como novos mecanismos de privatização, no contexto da globalização, das redefinições do Estado e dos movimentos de Nova Gestão Pública (NGP) e governança. A pesquisa sobre o IAS revelou sua forte atuação e rede de influência política com programas de alfabetização e gestão da educação, e desdobramentos importantes nas concepções e práticas educacionais.

Palavras-clave
Educação pública; Parceria público-privada; Instituto Ayrton Senna

ABSTRACT

This work investigates the performance of Instituto Ayrton Senna (IAS) in the city and state networks of education of the Brazilian state of Rio Grande do Sul (RS). The research is subsidized from the perspective of Stephen Ball’s critical sociology, aiming to analyze the influence context involving educational policies through the utilization of new sources of virtual data. The Public-Private Partnerships (PPP) are understood as new mechanisms of privatization in the context of globalization, the redefinitions of the State, and the New Public Management (NPM) and governance movements. The research about IAS revealed its strong performance and network of influences, with programs for literacy and management in education, and important developments in educational concepts and practices.

Keywords
Public education; Public-private partnership; Instituto Ayrton Senna

RESUMEN

Este trabajo investiga la actuación del Instituto Ayrton Senna (IAS) en las redes municipales y estadual del estado brasileño de Rio Grande do Sul (RS). La investigación se desarrolla desde la perspectiva de la sociología de Stephen Ball, específicamente desde la metodología de la etnografía en red, para analizar el contexto de influencia que involucra políticas educativas a través del uso de nuevas fuentes de datos virtuales. Se entienden las Asociaciones Público-Privadas (APP) como nuevos mecanismos de privatización en el contexto de globalización, de las redefiniciones del Estado y de los movimientos de la Nueva Gestión Pública (NGP) y gobernanza. La investigación acerca de IAS ha revelado su sólido desempeño y red de influencias, con programas de alfabetización y gestión en educacióny desarrollos importantes en conceptos y prácticas educativas.

Palabras-chave
Educación pública; Asociación público-privada; Instituto Ayrton Senna

Introdução

A atuação de instituições privadas no campo da educação pública não é novidade. No entanto, o que se percebe é sua intensificação, ocorrida nos últimos anos, trazendo à tona novos e diferentes atores, com diversas propostas e reflexos importantes na educação.

Parte-se do pressuposto de que esse movimento segue tendências mundiais, identificadas por Ball (2014)BALL, S. Educação Global S.A.: novas redes políticas e o imaginário neoliberal. Ponta Grossa: UEPG, 2014., como influências e estratégias políticas adotadas pelo contexto de globalização, pressupondo alto grau de transferência e aplicação nos mais diversos sistemas educacionais ao redor do mundo. O intuito é ampliar o papel do setor privado, na figura de empreendimentos sociais e filantrópicos de prestação de serviços educacionais e condução de políticas educacionais, o que culmina no surgimento síncrono de novas formas de governança em rede ou de redes políticas (CÓSSIO, 2015CÓSSIO, M. F. Agenda transnacional e governança nacional: as possíveis implicações na formação e trabalho docente. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 13, p. 616-40, 2015.; BALL, 2018BALL, S. J. Política Educacional Global: reforma e lucro. Revista de Estudios Teóricos y Epistemológicos en Política Educativa, Ponta Grossa, v. 3, p. 1-15, 2018. https://doi.org/10.5212/retepe.v.3.0105
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).

Compreender as políticas educacionais é, certamente, uma tarefa complexa. Tal complexidade intensifica-se no contexto da ampliação, sem precedentes, do processo de globalização. Para Dale, “esta forma e extensão da globalização é diferente de qualquer outra que tenha acontecido anteriormente; ela torna possível, pela primeira vez, falar de uma economia global que inclui todas as nações do mundo” (2004, p. 437). O autor argumenta que a globalização não é um fenômeno puramente econômico, implicando mudanças políticas e uma nova sociabilidade, resultante da mercadorização de todas as coisas, “conduzindo a novas formas de governação supranacional” (DALE, 2004DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “cultura educacional mundial global” ou localizando uma “agenda globalmente estruturada para a educação?” Educação & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, maio–ago. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200007
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, p. 437). O que remete à compreensão de que, em maior ou menor escala, as políticas nacionais são influenciadas por forças supranacionais, assim como por forças político-econômicas nacionais. É nessa perspectiva que se entende a configuração das políticas educacionais na atualidade.

Nesse esteio, a globalização implica vários movimentos de redefinição do Estado e de sua forma de atuação, com repercussões na configuração e na materialidade das políticas educacionais, especialmente, tendo como base as ideias de governança (ROBERTSON, 2013ROBERTSON, S. As implicações em justiça social da privatização nos modelos de governança da educação: um relato relacional. Educação & Sociedade, Campinas, v. 34, n. 34, p. 679-703, jul.–set. 2013. https://doi.org/10.1590/S0101-73302013000300003
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; CÓSSIO, 2015CÓSSIO, M. F. Agenda transnacional e governança nacional: as possíveis implicações na formação e trabalho docente. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 13, p. 616-40, 2015.; SHIROMA, 2016SHIROMA, E. O. Redes de políticas públicas e governança da educação: pesquisando a convergência das políticas para docentes nas agendas para a próxima década. Relatório de pesquisa. Florianópolis: UFSC, 2016.) e de Nova Gestão Pública (NGP) ou gerencialismo (CAVALCANTE, 2018CAVALCANTE, P. Convergências entre a governança e o pós-nova gestão pública. Boletim de análise Político-Institucional, Brasília, DF, n. 19, p. 17-23, dez. 2018.), sendo que, entre uma variedade de práticas e relações que podem emergir desse cenário, as parcerias público-privadas (PPP) representam uma das principais expressões (ROBERTSON; VERGER, 2012ROBERTSON, S.; VERGER, A. A origem das parcerias público-privada na governança global da educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 121, p. 1133-1156, out.–dez. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000400012
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), sobretudo no Brasil (PERONI, 2013PERONI, V. M. Redefinições no papel do Estado: parcerias público-privadas e a democratização da educação. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, Tempe, v. 21, n. 47, p. 1-14, 2013. https://doi.org/10.14507/epaa.v21n47.2013
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).

Este estudo problematiza uma instituição específica, o Instituto Ayrton Senna (IAS), a respeito de sua destacada atuação nos municípios, tanto pela abrangência quanto pela quantidade de programas que desenvolve nas redes de ensino municipais e estadual do Rio Grande do Sul (RS), quais sejam: Se Liga; Acelera; Gestão Nota 10; e Letramento em Programação Digital. Tais dados derivam da pesquisa mais ampla, desenvolvida no período de 2017 a 2019, que objetivou investigar as instituições privadas que firmaram parcerias com as redes públicas no estado do RS em diferentes áreas da educação básica, com a finalidade de mapear aquelas que despontavam no cenário estadual. Após identificar as que apresentavam maior recorrência, realizou-se o aprofundamento do estudo de cada uma das instituições, identificando a proposta/projeto, as formas de atuação e suas implicações para a educação pública.

Como metodologia de coleta de dados, utilizou-se o método de etnografia de redes proposto por Ball (2014)BALL, S. Educação Global S.A.: novas redes políticas e o imaginário neoliberal. Ponta Grossa: UEPG, 2014., entendido como nova forma de pesquisar as relações sociais, levando em conta o cenário atual, por meio do uso de dados virtuais e eletrônicos, no rol da perspectiva da sociologia crítica, a qual pretende contemplar o contexto de influência e estratégia que permeia as políticas educacionais. O campo de influência e estratégia política é aquele em que grupos de interesse e poder, redes e estratégias de ação, sujeitos individuais e coletivos, na figura de partidos políticos, do governo e do processo legislativo, bem como comissões e movimentos representativos disputam a definição das finalidades e os significados educacionais (MAINARDES, 2006MAINARDES, J. Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 94, p. 47-69, 2006. https://doi.org/10.1590/S0101-73302006000100003
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).

Em seus estudos, Ball (2018)BALL, S. J. Política Educacional Global: reforma e lucro. Revista de Estudios Teóricos y Epistemológicos en Política Educativa, Ponta Grossa, v. 3, p. 1-15, 2018. https://doi.org/10.5212/retepe.v.3.0105
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vem procurando elucidar os laços duradouros ou transitórios e as intrincadas interdependências, das quais participam Organismos Multilaterais (OM), governos nacionais, organizações não governamentais (ONG), think tanks, consultores, empreendedores sociais e sujeitos individuais ou coletivos, voltados a produzir mudanças nas concepções e nos discursos usados para tratar as questões sociais, entre elas a educação.

Para o levantamento das parcerias firmadas entre as redes públicas de educação e entes privados no estado RS, o recorte temporal compreendeu o período de 2008 a 2018, considerando a Lei n. 12.234, de 13 de janeiro de 2005. Essa lei estabeleceu normas para licitação e contratação de PPP em nível estadual e instituiu o Programa de Parcerias Público-Privadas do Estado do Rio Grande do Sul (PPP/RS), além de dar outras providências, permitindo aos municípios instituírem leis próprias.

Com essa finalidade, usou-se o agrupamento das 497 cidades do estado em 36 Coordenadorias Regionais de Educação (CRE) da Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul (SEDUC/RS). Os instrumentos de pesquisa foram os sites oficiais dos entes pesquisados, de entidades representativas dos Secretários de Educação (municipais e estadual), dos Conselhos de Educação, das Secretarias de Educação, bem como materiais disponíveis nas mídias impressa e/ou digital de empresas consultoras, vídeos promocionais, páginas do Facebook, blogs etc.

Como resultado do mapeamento inicial da pesquisa, identificaram-se cinco instituições privadas com maior atuação no estado do RS, em ordem de recorrência: IAS; Instituto Natura; Sistema de Crédito Cooperativo (SICREDI); Associação dos Fumicultores do Brasil (AFUBRA); e Federação Nacional das Associações Atléticas do Banco do Brasil (FENABB). Na fase seguinte, da exploração de cada um desses entes, novamente foram adotadas as perspectivas do método de etnografia de redes, sendo investigados materiais e documentos como diagnósticos, textos políticos e notícias nas páginas oficiais dos entes e parceiros, capazes de contribuir com a apreensão da proposta e a forma de atuação do ente, bem como com as redes de relações e influências formadas. Por fim, para a análise dos dados coletados nessa etapa, foi utilizada a análise de conteúdo de Bardin (2011)BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011., considerando os eixos investigativos construídos a priori – quais sejam: proposta do ente; formas de atuação; e redes de políticas – com a combinação de técnicas de recorte, seleção e convergência do conteúdo de textos, mensagens e palavras de referência, para além de sua mera descrição.

Este artigo está organizado em três seções. A primeira seção discute o cenário em que ocorreram as redefinições no papel e nas formas de atuação e de relações do Estado em decorrência das transformações e do avanço do projeto capitalista neoliberal atual em escala planetária, propiciado pela ampliação do processo de globalização econômica e política e pelas propostas da NGP e da governança. A segunda seção trata da agenda global para a educação e suas repercussões nas políticas educacionais brasileiras, destacando o papel assumido por OM, como as orientações do Banco Mundial. Por fim, a terceira seção analisa os programas desenvolvidos pelo IAS em parceria com as redes públicas no estado do RS e seus reflexos na a educação.

A Globalização Neoliberal e as Redefinições do Papel do Estado

Uma das questões importantes para o entendimento das mudanças relacionadas à educação atualmente está vinculada ao processo de globalização. Segundo Dale, “a globalização, na medida em que pode afectar as políticas e as práticas educativas nacionais, implica a apreciação da natureza e da força do efeito extra nacional, o que é que pode ser afectado e como é que esse efeito acontece” (2004, p. 425). Tais mudanças exigem repensar os conceitos “nacional”, “educação” e “sistemas”, ao tratar das pesquisas em educação. Nesse sentido, Dale (2010)DALE, R. A sociologia da educação e o estado após a globalização. Educação & Sociedade, Campinas,v. 31, n. 113, p. 1009-1020, out.–dez. 2010. https://doi.org/10.1590/S0101-73302010000400003
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alerta para o fato de que os Estados Nacionais, referindo-se aos países centrais, não são vítimas da globalização, mas, sim, estão entre os agentes mais fortes e são participantes conscientes ou parceiros com outros agentes da globalização.

Dessa maneira, acredita-se que é preciso analisar em que medida as mudanças no cenário mundial (economia, produção) refletem-se nas redefinições do papel do Estado e em suas relações com a sociedade. No caso em discussão, devem-se analisar quais são os impactos na educação. Destaca-se que, em se tratando de linha histórica, a democratização do acesso à educação e a garantia de oferta com qualidade para todos, tendo o poder público como responsável pelo provimento, são relativamente recentes no cenário brasileiro, notadamente a partir do processo de redemocratização do país, na segunda metade da década de 1980. No entanto, esse processo, ainda incipiente no país, foi interpelado pela inserção dos princípios da globalização da economia e do neoliberalismo como estratégia de superação da crise capitalista. Adensou-se como projeto social e político hegemônico em escala global, no sentido de garantir a supremacia do mercado e um tipo específico de democracia: a democracia formal burguesa. Assim, os direitos universais perdem espaço para ações e políticas focalizadas voltadas ao alívio da pobreza e à recuperação da economia (WOOD, 2011WOOD, E. M. Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2011.).

Na interpretação dos formuladores do ideário neoliberal, a crise econômica passa a ser entendida como crise do Estado, cujo déficit público tornou-se insustentável. O Estado gasta muito e gasta mal, pelo que precisa ser reformulado para tornar-se mais eficiente, eficaz e enxuto. Com esse entendimento, entra em ação a agenda reformista, visando modernizar e agilizar a gestão pública. Nesse sentido, podem ser destacados dois eixos principais da agenda: reduzir tamanho e alcance do governo e fazê-lo funcionar melhor.

Para impulsionar o governo a melhorar seu funcionamento, o projeto neoliberal adota o conceito de NGP, também chamado gestão pública gerencial (CAVALCANTE, 2018CAVALCANTE, P. Convergências entre a governança e o pós-nova gestão pública. Boletim de análise Político-Institucional, Brasília, DF, n. 19, p. 17-23, dez. 2018.). Esse modelo de gestão propõe mudanças na estrutura, nos procedimentos e nas práticas do setor público, traduzidas pelas ideias de eficiência e de redução de gastos públicos, bem como pela adoção de critérios e princípios da administração privada, tais como: ênfase no desempenho, por meio de mensuração de indicadores de custos, processos e resultados/impactos; organizações multifuncionais; e remuneração por desempenho e foco no tratamento de usuários de serviços como clientes.

Cavalcante (2018)CAVALCANTE, P. Convergências entre a governança e o pós-nova gestão pública. Boletim de análise Político-Institucional, Brasília, DF, n. 19, p. 17-23, dez. 2018. situa duas gerações da NGP, cuja primeira já foi citada neste texto. A segunda geração é complementada pela priorização da qualidade dos serviços prestados, pela escolha dos serviços pelos usuários – produzindo competitividade e concorrência entre os órgãos – e por accountability e transparência.

Na segunda geração da NGP, ficam visíveis a flexibilização, a descentralização e, sobretudo, a incorporação de novos princípios e diretrizes que se orientam na direção da permeabilidade do setor público à inserção de atores não públicos na formulação e na implementação de políticas antes exclusivas do Estado. Observa-se, assim, a convergência das tendências gerenciais com o conceito de governança na organização e no funcionamento do setor público (MENICUCCI; GONTIJO, 2016MENICUCCI, T.; GONTIJO, J. G. L. Gestão e políticas públicas no cenário contemporâneo: tendências nacionais e internacionais. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2016.), uma vez que pressupõem a atuação em sociedades fundamentada nas redes de parcerias e colaborações. Sobre a noção de governança, Cóssio assinala que:

[...] a ideia é de alargamento das relações e de ampliação das possibilidades de atingir objetivos e metas em favor do “bem comum”, contando com a participação e colaboração de parceiros, quer sejam países, instituições, pessoas, para além do Estado, visto que este, sozinho, na acepção dos formuladores, não é capaz de fazer frente aos grandes desafios dos tempos atuais (2015, p. 624).

É importante frisar que governança não se confunde com governo, dado que esse conceito quer indicar justamente menos governo e mais atores operando na regulação e no provimento de serviços públicos. Nessa perspectiva, Tripodi e ZákiaTRIPODI, Z; ZÁKIA, S. Do governo à governança: permeabilidade do Estado às lógicas privatizantes na educação. Cadernos de Pesquisa, Rio de Janeiro, v. 48, n. 167, p. 228-253, 2018. https://doi.org/10.1590/198053144800
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destacam que:

[...] os argumentos favoráveis a essa lógica são construídos a partir de certo reconhecimento da complexidade crescente da ordem social e de suas demandas, o que supostamente exigiria um Estado dotado de maior flexibilidade, capaz de descentralizar funções, transferir responsabilidades e alargar o universo dos atores participantes, sem abrir mão dos instrumentos de controle e supervisão [...]. Trata-se, em última análise, do entendimento de que a atuação de atores diversos na oferta de políticas públicas tenderia a gerar um resultado ótimo, já que esses atores teriam supostamente mais capilaridade que o próprio Estado para entender e alcançar determinados grupos sociais nas suas demandas (2018, p. 238-239).

É necessário que se tenha clareza que o movimento em favor da NGP e da governança, no contexto das reformas produzidas no aparelho estatal, em decorrência do atual modelo capitalista que se tornou hegemônico, manifesta-se de formas diferentes. De acordo com a organização político-institucional de cada contexto, com o ordenamento legal prevalente e as concepções de Estado, bem como com as tradições políticas e culturais de cada país, é possível verificar a potência e as implicações desse ideário na configuração dos sistemas educacionais atuais. Lima colabora com essa análise ao dizer que:

[...] o “novo gerencialismo”, não obstante a diversidade dos seus pressupostos teóricos e das suas manifestações empíricas, constituiu-se, ao longo das últimas décadas, como uma poderosa ideologia gestionária na educação. Elegeu como referencial não apenas um corpo de “imagens otimistas do envolvimento empresarial no setor público”, designadamente através de parcerias público-privadas, do mecenato e da filantropia empresarial na educação [...], mas, para além disso, exportou o modelo de empresa privada e de governança empresarial como símbolos de modernização, racionalização e inovação dos sistemas educativos e das escolas (2018, p. 138).

Robertson e Verger (2012)ROBERTSON, S.; VERGER, A. A origem das parcerias público-privada na governança global da educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 121, p. 1133-1156, out.–dez. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000400012
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reconhecem as PPP como uma das principais ferramentas de promoção da governança, visto que substituem a ideia clássica de privatização pela inserção da esfera privada no setor público de diferentes formas. Observa-se que, em geral, a educação mantém-se pública, podendo destinar recursos para que instituições privadas adquiram materiais (kits pedagógicos, sistemas apostilados etc.) e executem ações diretas nas redes e nas escolas. Ainda que não ocorra o repasse de recursos diretos para a iniciativa privada, é possível a obtenção de isenções e subsídios. Além disso, se o contrato de parceria não tem contrapartida financeira, pode ocorrer o esvaziamento dos sentidos político-sociais do bem público, uma vez que a lógica que passa a ser adotada, de acordo com o tipo de ação desenvolvida, inclina-se à predileção pela lógica do mercado.

Em sua análise, Robertson (2013)ROBERTSON, S. As implicações em justiça social da privatização nos modelos de governança da educação: um relato relacional. Educação & Sociedade, Campinas, v. 34, n. 34, p. 679-703, jul.–set. 2013. https://doi.org/10.1590/S0101-73302013000300003
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alerta que é preciso problematizar o que afinal está em jogo no paradigma de governança vigente, já que não são claros quais são os propósitos e os espaços, tampouco quem são os atores que operam na educação, considerando, nesse campo, a questão da justiça social. Para a autora, trata-se de um movimento que não reside somente no redesenho das fronteiras entre público e privado, pois “os significados de categorias fundamentais, como conhecimento, aprendizado e aprendizes, são transformados em credenciais, consumo e capital humano” (ROBERTSON, 2013ROBERTSON, S. As implicações em justiça social da privatização nos modelos de governança da educação: um relato relacional. Educação & Sociedade, Campinas, v. 34, n. 34, p. 679-703, jul.–set. 2013. https://doi.org/10.1590/S0101-73302013000300003
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, p. 685). Portanto, mesmo que se reconheçam os limites da ideia de justiça presente na noção de educação para todos – pois tem assento na lógica distributiva, não na mudança estrutural da sociedade, tampouco no enfretamento de grandes problemas de desigualdade social –, é inegável reconhecer o que ela representa em termos de possibilidades sociais e o que pode acarretar sua ausência como paradigma educacional. Essa discussão é importante porque coloca em questão o debate sobre as mudanças que vêm ocorrendo na educação de maneira mais ampla, auxiliando no entendimento sobre as políticas educacionais nos diferentes níveis e esferas de governo.

Nesse contexto, a perspectiva de governança educacional tem reflexos importantes na orientação e na condução das políticas educacionais, uma vez que o poder fica cada vez mais concentrado em atores e agências econômicas com força e abrangência globais, levantando questões sobre onde as decisões são tomadas, além de quando e como as responsabilidades podem ser negociadas e julgadas. Destaca-se, aqui, a forte influência que assumem as instituições internacionais na promoção de agendas para a educação pública, tendo destaque o Banco Mundial.

Influência dos Organismos Internacionais nas Políticas Locais

A política de governança permite novos espaços para que grandes grupos econômicos e até mesmo bancos insiram a lógica de mercado na educação. Para Shiroma, os OM atuam como “verdadeiros intelectuais orgânicos a serviço da expansão da economia de mercado e do engajamento do setor privado na governança da educação” (2016, p. 135-136). Com sua capacidade de poder e pressão e pelo dinheiro com que contam, eles fornecem suporte material e financeiro, bem como cooperação técnica, além de desenvolverem tarefas cruciais de coleta e organização de dados, produção de indicadores, comparações, interpretações e diagnósticos, formando recursos humanos e quadros de trabalho e disseminando ideias e opiniões como vias rápidas para transferir e difundir um modelo de sociedade e, assim, de educação.

A corporação de maior destaque atuando nesse contexto é, sem dúvida, o Banco Mundial. A instituição financeira, criada inicialmente para realizar empréstimos aos países devastados pela Segunda Guerra Mundial, assumiu papel-chave na promoção da proposta de governança com vistas a contribuir para o desenvolvimento das economias mundiais. Essa entidade, ao longo do tempo, constituiu o grupo que incorporou organizações internacionais como o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) – que faz empréstimos para países em desenvolvimento com renda per capita média, como o Brasil, ou a países de baixa renda solventes – e a Associação Internacional de Desenvolvimento (AID). No âmbito educacional, dada a influência que assume, o Banco Mundial passou a incidir sobremaneira na macropolítica e no direcionamento dos rumos da educação, sobretudo de nações em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.

Para MelloMELLO, H. D. O Banco Mundial e a educação no Brasil: convergências em torno da agenda global. 2012. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituito de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012., é surpreendente a ampliação da área de atuação desse grupo em escala geográfica,

[...] de agência de assistência no combate à pobreza, propositora da redução do Estado sob a rubrica do ajuste estrutural, e, mais recentemente, atuante em questões tão amplas quanto reconstrução pós-conflitos, biodiversidade, crime e governança, o Banco parece ter, de fato, uma habilidade ímpar de reestruturar as suas práticas e, sobretudo, o seu discurso (2012, p. 27).

Para o autor, é impressionante como se obtém sucesso, por meio dessa forma de atuar, para promover a agenda global de governança ou como globalizes. Além disso, o Banco Mundial se constrói e se apoia em um discurso sobre a importância do seu saber (supostamente de caráter técnico e, em consequência, na construção discursiva, ideologicamente neutro), do conhecimento que produz, recolhe e dissemina, ao ponto de ter se autodenominado, a certa altura, de banco do conhecimento (CÓSSIO, 2015CÓSSIO, M. F. Agenda transnacional e governança nacional: as possíveis implicações na formação e trabalho docente. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 13, p. 616-40, 2015.).

Os consultores e os documentos orientadores do grupo indicam vários objetivos para o alívio à pobreza, conforme Shiroma (2016)SHIROMA, E. O. Redes de políticas públicas e governança da educação: pesquisando a convergência das políticas para docentes nas agendas para a próxima década. Relatório de pesquisa. Florianópolis: UFSC, 2016. analisa, e, assim sendo, para a redução das desigualdades e o desenvolvimento econômico, afirmando que a educação para todos é uma estratégia fundamental, uma vez que poderá desenvolver habilidades e competências necessárias a uma vida saudável e produtiva, bem como à obtenção de um bom emprego.

De modo geral, na área da educação, Altmann (2002)ALTMANN, H. Influências do Banco Mundial no projeto educacional brasileiro. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 77-89, jan.–jun. 2002. https://doi.org/10.1590/S1517-97022002000100005
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, com base em Torres (1996)TORRES, R. M. Melhorar a qualidade da educação básica? As estratégias do Banco Mundial. In: TOMMASI, L.; WARDE, J. M.; HADDAD, S. (orgs.). O Banco Mundial e as políticas educacionais. São Paulo: Cortez/Ação Educativa/PUC-SP, 1996. p. 125-194., explicita que o pacote de reformas proposto pelo BIRD tem como propósito:

  1. A prioridade depositada sobre a educação básica;

  2. A melhoria da qualidade e da eficácia da educação como eixo essencial da reforma educativa;

  3. A prioridade sobre os aspectos financeiros e administrativos da reforma, na qual a descentralização torna-se essencial;

  4. A descentralização e as instituições escolares autônomas e responsáveis por seus resultados;

  5. A convocação para uma participação maior da sociedade (comunidade escolar e pais) nos assuntos escolares;

  6. A abertura para o setor privado e os organismos não governamentais como atores no campo da educação;

  7. A mobilização e a alocação eficazes de recursos adicionais para a educação como temas principais do diálogo e da negociação com os governos;

  8. Um enfoque setorial; e

  9. A definição de políticas e estratégias baseadas na análise econômica.

De acordo com Mota Júnior e Maués (2014)MOTA JUNIOR, W. P.; MAUÉS, O. C. O Banco Mundial e as políticas educacionais brasileiras. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 39, n. 4, p. 1137-1152, out.–dez. 2014. https://doi.org/10.1590/S2175-62362014000400010
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, tal proposta do Banco Mundial para a educação de países periféricos organiza-se, a partir de 1990, como paradigma para o novo século, voltando-se a manter o ciclo capitalista com a atenuação dos impactos do modelo de Estado mínimo neoliberal ortodoxo, aplicado entre 1970 e 1990. Uma das estratégias, então, é o reconhecimento da educação, não apenas como fronteira econômica a ser explorada, mas também como espaço funcional, para gerar trabalhadores e consumidores para os novos tempos.

No Brasil, as políticas educacionais foram influenciadas pela agenda dos organismos internacionais a partir dos anos 1990. O cerne se torna a valorização da educação básica e a inserção da gestão gerencial com a descentralização da gestão e a centralização da avaliação dos sistemas escolares. Chama atenção aqui o papel dos sistemas de avaliação externos e em larga escala: o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Trata-se de indicadores de qualidade da educação, reverberando em currículos padronizados, práticas pedagógicas e programas de formação de professores para atender o que é avaliado pelos testes, numa forma bastante reducionista, pragmática e descomplexificadora da educação.

Ainda que melhorar a qualidade, como objetivo educacional, seja desejável, é preciso colocar em pauta qual concepção de qualidade se defende, o que fazer para atingi-la e que funções são esperadas da escola, do professor e da rede de ensino nesse processo. Embora se reconheça a importância dos resultados educacionais, a perspectiva de qualidade que se aspira compreende a necessidade de ir além, pois considera o sujeito em sua totalidade e a educação como um locus de formação do ser humano, processo altamente subjetivo e complexo que não pode ser quantificado e comparado, conforme proposto pelos sistemas de avaliações elaborados externamente às escolas (AFONSO, 2007AFONSO, A. Estado, políticas educacionais e obsessão avaliativa. Revista Contrapontos, Itajaí, v. 7, n. 1, p. 11-22, jan.–abr. 2007.; CÓSSIO, 2014CÓSSIO, M. F. Avaliação em larga escala e as novas formas de regulação da educação nacional. In: CONGRESSO NACIONAL DE AVALIAÇÃO EDUCACIONAL, 3., 2014, Bauru. Anais […]. Bauru: UNESP, 2014, p. 1-14.).

Aliado a esse movimento de governança transnacional, que se refere às formas de regulação que emergem e não são operadas exclusivamente pelo Estado nacional, situam-se, em larga expansão no Brasil, as já referidas PPP. A fim de atingir os objetivos propostos pelos organismos internacionais, os governos locais veem-se estimulados a firmarem parcerias com instituições privadas, tanto pelo apelo de elevar a qualidade e pela expertise desses setores na gestão de processos, quanto pela narrativa de que os governos sozinhos não conseguem atender a todas as demandas.

Percebe-se que tais movimentos articulam-se de acordo com as orientações do Grupo Banco Mundial manifestadas no documento Notas de Políticas Públicas – Por um Ajuste com Crescimento Compartilhado, no qual se destaca o item 9: “Proposta para realinhar as políticas da educação”, em que é declarado o seguinte:

O Brasil gasta mais em educação do que a média dos países da OCDE e muito mais do que vários países de renda média. No entanto, os resultados continuam pobres. Se o Brasil quiser melhorar seus resultados em educação, deve desviar a atenção dos níveis de gastos e se concentrar em:

  • Aumentar a matrícula e a qualidade da educação infantil;

  • Atualizar currículos, particularmente no Ensino Médio;

  • Reestruturar a formação inicial e a seleção de professores, bem como o apoio em serviço para melhorar a qualidade do ensino;

  • Melhorar a governança da escola e da educação para torná-las mais voltadas para o desempenho e reduzir a interferência política;

  • Revisitar a rigidez orçamentária (“vinculação”) e redesenhar as transferências de equalização para criar incentivos para melhorias de desempenho e reduzir as desigualdades espaciais e de renda (BANCO MUNDIAL, 2018BANCO MUNDIAL. Notas de políticas públicas – por um ajuste justo com crescimento compartilhado. The World Bank, 23 ago. 2018. Disponível em: http://www.worldbank.org/pt/country/brazil/brief/brazil-policy-notes#reformadoestado123. Acesso em: 22 jan. 2019.
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    ).

Entre as várias instituições privadas que atuam em parceria com as redes públicas de educação brasileira, o IAS é uma das que têm maior destaque no estado do RS, conforme se identificou nesta pesquisa, tanto em número de programas quanto na quantidade de municípios em que realiza alguma ação. A próxima seção aborda mais detidamente as propostas, a atuação e a influência dessa instituição na educação do estado.

Proposta, Atuação e Influência do IAS na Educação do Estado do RS

O IAS é uma organização privada, originada em 1994 e identificada juridicamente como Organização Social (OS) sem fins lucrativos. Suas atividades iniciaram com o programa Educação pelo Esporte, na forma de extensão universitária, que perdurou entre 1995 e 2012, em doze estados brasileiros, na formação de educadores, em parceria com catorze universidades (IAS, s. d.IAS [INSTITUTO AYRTON SENNA]. Instituto Ayrton Senna, [S. l.; s. d.]. Disponível em: https://www.institutoayrtonsenna.org.br/pt-br.html. Acesso em: 10 out. 2019.
https://www.institutoayrtonsenna.org.br/...
).

Identificou-se que, no ano de 2004, a entidade assumiu o regime jurídico de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), propiciado pela Lei Federal n. 9.790, de 1999. Desde então, pôde firmar contratos de parcerias com as redes públicas e captar recursos. É importante dizer que esse reconhecimento acontece no mesmo ano em que se configura a Lei Federal n. 11.079, de 2004, a qual normatiza as regras gerais para licitação e contratação de PPP. Sendo assim, essa é uma legislação importante, que passa a respaldar tal expansão.

Nesta pesquisa, conforme pode ser visto na Tabela 1, foi possível apurar a presença do IAS em dezesseis redes municipais e em três programas: as propostas de alfabetização Se Liga e Acelera, e o programa Letramento em Programação Digital.

Tabela 1
Programas do IAS presentes nas redes municipais e estadual do RS.

Já no caso da rede estadual, dados coletados no site da SEDUC/RS demonstraram a presença dos programas Se Liga, Acelera e Gestão Nota 10. Pela linha histórica das notícias recolhidas on-line, observou-se que as atividades do IAS na rede estadual começaram com os programas Acelera e Se Liga, em 2007. Entre 2008 e 2018, perpassaram vários governos no poder e houve diversas capacitações na metodologia e na avaliação para coordenadores, professores e estudantes, além de visitações de acompanhamento às escolas da rede.

O programa Acelera Brasil, criado em 1997, deu início ao investimento do IAS em soluções educacionais replicáveis, que, ao longo do tempo, se solidificaria com o programa Se Liga. Tais programas viriam a se tornar carros-chefe da atuação do instituto na área de alfabetização. Além disso, a gestão escolar se converteria em outro importante campo de atuação.

Nesse sentido, o Acelera Brasil visa à correção de fluxo, consolidada por meio da criação de turmas específicas para acelerar, no mínimo, dois anos escolares de estudantes, entre o 3º e o 5º anos do Ensino Fundamental, na faixa etária de 10 a 15 anos. Nos seus primórdios, para sua expansão, o programa teve o apoio do Governo Federal, por intermédio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE/MEC) e da Petrobras, além do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que assumiu o financiamento do programa em questão até o ano 2000.

O programa Se Liga foi criado em 2001 a fim de atender ao diagnóstico de alunos que frequentavam o Acelera Brasil e não sabiam ler nem escrever, os quais, por consequência, tinham dificuldades em obter sucesso na proposta de avanço. Basicamente, a finalidade desse novo programa era promover reforço nos conhecimentos de leitura, escrita e matemática. A proposta dos dois programas está compilada em uma coleção de apostilas, de autoria do IAS, voltada a professores, alunos e orientações gerais aos gestores e comercializada pela Global Editora, com os órgãos públicos que adquirem os programas.

Resumidamente, ambos os programas se baseiam na pedagogia do sucesso com finalidade de assegurar a obtenção de êxito. Nessa perspectiva, os professores são treinados a utilizar as metodologias para a execução das ações, sendo avaliados durante todo o processo de seu trabalho via mecanismos de acompanhamento, controle e avaliação externa dos estudantes, da rede e dele próprio para assegurar o cumprimento da proposta. Além disso, são previstas a supervisão e a assistência técnica permanente dos docentes, com formações continuadas, lideradas pela equipe de profissionais da secretaria de educação, corresponsáveis pelos resultados das turmas, a fim de apoiar o professor na execução de suas atividades em sala de aula, além de reuniões de planejamento e assessoria da equipe do IAS, constituída de gerentes e agentes técnicos.

Tendo em vista essa forma de gerenciamento, o que se observa é a ideia de que o fracasso escolar é consequência da falta de competência de professores; por isso, os materiais orientadores das ações docentes precisam ser prescritivos e o trabalho, monitorado, valorizando o saber fazer. Tal ênfase na prática e o forte controle sobre o processo pedagógico fragilizam a autonomia docente e desconsideram o papel intelectual do professor. Sobre isso, Cóssio assinala que:

[...] a tendência tem sido a de retirar a Pedagogia e os pedagogos de cena [...] e, em seu lugar, irem se instalando os tecnólogos da prática: economistas, administradores, empresários, e até mesmo pesquisadores e professores defensores dessa lógica, que reduz a educação à instrução. A complexidade da aprendizagem e da ação de ensinar fica subsumida ao treino dos alunos em atividades elaboradas e disponibilizadas pelos expertises atuais da educação, para que sejam utilizadas fartamente em sala de aula, como forma de “qualificar a educação” e “melhorar a aprendizagem”, baseadas no saber fazer, na prática (2015, p. 635).

Dessa maneira, entende-se que a responsabilidade pela qualidade educacional não pode ficar restrita ao compromisso do professor e à sonegação de outros fatores importantes, como: infraestrutura, equipamentos e materiais didáticos e pedagógicos existentes; condições de trabalho e valorização docente; situações social, econômica e cultural da comunidade e dos estudantes; e políticas nacionais e locais para a educação. Portanto, é preciso questionar em que medida essas propostas de ensino podem ser entendidas como meios reais de melhoria da qualidade educacional ou como meios de responsabilizar escola, gestores e professores pelo sucesso da educação, compensada pela retirada do Estado de seu papel de real ente responsável por prover e qualificar a educação.

Em suas análises sobre o IAS, Peroni e Comerlatto (2017)PERONI, V. M.; COMERLATTO, L. P. Parceria público-privada e a gestão da educação: o Programa Gestão Nota 10 do Instituto Ayrton Senna. Perspectiva, Florianópolis, v. 35, n. 1, p. 113-133, jan.–mar. 2017. https://doi.org/10.5007/2175-795X.2017v35n1p113
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elucidam que, apesar do anúncio do instituto sobre focar na melhoria dos resultados como sinal de qualidade, não há comprovação de melhorias nos indicadores dos municípios onde seus programas atuam. Os monitoramentos, apresentados em relatórios do IAS, são pouco elucidativos, pois mostram dados gerais em termos de estados e municípios atendidos, programas desenvolvidos e professores e alunos beneficiados com as ações dos programas. Não explicitam, porém, que ações são desencadeadas, em quais áreas e onde foram os avanços.

No caso da rede estadual do RS, por exemplo, mesmo considerando a presença do IAS em diversas ações, o diagnóstico apresentado pelo próprio instituto, em 2018, aponta percentuais da rede desfavoráveis em relação à média nacional quanto à superação da defasagem idade–série, notadamente acerca da proficiência em Matemática e Português ao fim do 5º ano do Ensino Fundamental, o que coloca em questão o papel desempenhado pelas PPP na melhoria dos resultados educacionais.

Observa-se que as mesmas concepção e forma de materialização da educação assumidas pelos programas Acelera e Se Liga e ofertadas pelo IAS têm sido recorrentes em muitas políticas educacionais. Nelas, a orientação com respeito à alfabetização acompanha a ideia de atingir resultados, dando ênfase ao controle desses resultados via avaliações externas e materiais prescritos, e priorizando-se competências e habilidades – inclusive socioemocionais –, bem como mecanismos de responsabilização dos professores, dos gestores e dos próprios alunos para com tais indicadores.

Uma das grandes expressões desse modelo de política, em nível nacional, foi o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado em 2007, como proposta do Ministério da Educação. Ao modo de programa estratégico, com vistas à melhoria da qualidade da educação nacional, o governo estabeleceu um plano de metas chamado Compromisso Todos pela Educação, tomando como base o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). A isso, articularam-se estratégias de assessoramento técnico e financeiro aos estados e municípios, mediadas pelo Plano de Ações Articuladas (PAR), a ser elaborado pelas escolas-alvo a fim de captarem financiamento e desenvolverem ações.

Mais tarde, em 2009, o governo lançou um Guia de Tecnologias, atualizado em versões subsequentes em 2011 e 2013, no qual foi compilada uma série de soluções educacionais para orientar as redes públicas de educação na elaboração do PAR. Os dois programas de alfabetização do IAS – Acelera e Se Liga – foram inseridos nas versões de 2009 e 2011 do guia. Nesta pesquisa, pôde-se elucidar que o pico de atuação do instituto nas redes públicas acontece exatamente no período de sua inclusão nesse material. Nele, os dois programas são apresentados como alternativas de baixo custo e eficazes na melhoria de resultados, capazes de abranger desde o plano de política pública assumido pelo prefeito ou governador, bem como o eixo gestor com o modelo gerencial (com implantação e avaliação dos resultados a partir das equipes das secretarias de educação), até o campo pedagógico, no qual o sucesso do aluno é o objetivo final (BRASIL, 2009BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Guia de tecnologias educacionais 2009. Brasília: MEC, 2009. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/guia_tecnologias_atual.pdf. Acesso em: 29 fev. 2020.
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).

Cabe salientar que a compreensão do fenômeno educativo assumida pelo IAS é a de um problema passível de ser resolvido pela adoção de técnicas adequadas, elaboradas e testadas por institutos privados, as quais são, posteriormente, replicadas em grande escala para redes, escolas e pessoas que pretendam corrigir os fluxos de reprovação e evasão escolar e, com isso, melhorar os indicadores educacionais – o que nada mais é senão o método gerencialista típico do ambiente empresarial.

No que tange o programa Gestão Nota 10, cujo desenvolvimento na rede estadual do RS foi identificado em nossa pesquisa, percebe-se que é sustentado pela lógica gerencial. Segundo o IAS, a iniciativa foi construída em 2005 com a missão de atuar na qualificação das políticas públicas de educação por meio da gestão por evidências, priorizando princípios de eficácia e eficiência. Não obstante, em fase mais recente, no ando de 2015, o programa passou por uma reorganização e foi substituído pelo programa Gestores em Rede, promovido em parceria com a empresa Suzano Papel e Celulose. A partir de então, sua proposta consiste em selecionar e replicar as experiências de boas práticas em gestão escolar já desenvolvidas nas redes públicas ao redor do país. Conforme o IAS apresenta, em seu site oficial, a adoção sistemática de práticas gerenciais e processos administrativos na educação é importante, sendo promovida por meio de diagnósticos, registros de informações, análises e planejamentos de curto, médio e longo prazos, relacionados ao ciclo que o instituto denomina “virtuoso” (diagnóstico situacional, planejamento, execução, acompanhamento e avaliação, novo diagnóstico e replanejamento).

É perceptível que não é um modelo público de gestão o que ampara os programas desenvolvidos pelo IAS, mas a lógica privada. A gestão dos indicadores das redes de ensino, por exemplo, é entendida como fator-chave para o alcance das metas e o sucesso dos programas. Usam-se mecanismos gerenciais, via protocolos de controle dos resultados, consultorias de formação dos gestores escolares e docentes e acompanhamento do processo de ensino e avaliação. As informações do desempenho e do processo cotidiano do aluno, do professor e da rede são registradas regularmente pelos sujeitos envolvidos (professores e gestores) em um sistema próprio – o Sistema Instituto Ayrton Senna de Informação (SIASI): “uma ferramenta de gestão que registra os dados educacionais dos municípios ‘parceiros’ com o objetivo de permitir a ‘rápida tomada de decisão’ a partir de relatórios de análise e de intervenção” (SOARES, 2010SOARES, L. B. A ação do Instituto Ayrton Senna na rede municipal de educação de Joinville/SC (2001–2008): subordinação da escola pública a princípios e métodos da gestão empresarial. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010., p. 73).

Na perspectiva do instituto, a gestão educacional de qualidade implica a adoção de princípios gerenciais, fundamentada em metas e resultados, o que configura um dos compromissos a ser assumidos pelos setores públicos que aderem aos seus programas. A responsabilização de gestores das redes e das escolas com o monitoramento dos resultados para o cumprimento das metas estabelecidas pelo instituto é um dos requisitos para a superação do fracasso educacional (PERONI; COMERLATTO, 2017PERONI, V. M.; COMERLATTO, L. P. Parceria público-privada e a gestão da educação: o Programa Gestão Nota 10 do Instituto Ayrton Senna. Perspectiva, Florianópolis, v. 35, n. 1, p. 113-133, jan.–mar. 2017. https://doi.org/10.5007/2175-795X.2017v35n1p113
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).

Com a tese de que o ensino público brasileiro é ineficiente e ineficaz, tal entidade se reconhece como capaz de criar oportunidades para o desenvolvimento humano das novas gerações. Nessa tônica, considera que as fórmulas para superar o fracasso escolar devem envolver a orientação da educação às necessidades da economia, no sentido de preparar os futuros trabalhadores e consumidores para esse novo ambiente.

Por isso, em fases mais recentes, segundo registrado em seu site oficial, a atuação do instituto tem se voltado a promover Políticas de Gestão de Alfabetização alinhadas com as premissas do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014–2024. Como efeito dessa orientação, em dezembro de 2018, o IAS apresentou um diagnóstico educacional, a pedido do Governo Federal, em que indicava que os problemas identificados poderiam ser solucionados por meio de uma gestão orientada por evidências –consideradas experiências de boas práticas – e comprometida com resultados, como aqueles abalizados nas avaliações externas (SAEB e ENEM) e promulgados pelo Ideb.

A partir de tal diagnóstico, realizado pelo IAS, o movimento Todos Pela Educação (TPE) foi consultado e, juntas, as duas organizações elaboraram o documento Educação Já!, reunindo um plano de medidas e soluções para qualificar a educação brasileira. É preciso destacar as extensas parcerias entre o IAS e o TPE, não só pelo fato de o primeiro fazer parte desse último desde sua criação, em 2006, como também pelas relações mantidas dentro do PDE 2007 – o qual explicitou muitas das premissas do TPE e abriu espaço para a atuação de programas do IAS e de outros grupos privados, como no caso do Observatório do PNE 2014–2024, criado para monitorar as metas e as estratégias da educação, ou, ainda, do Movimento pela Base (MPB).

O caso do MPB é especial, uma vez que constitui grupo suprapartidário formado em 2013, o qual, no ano de 2016, contava com aproximadamente sessenta integrantes individuais e coletivos, unidos em favor da criação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação básica nacional. A proposta da construção da BNCC entrou em discussão no Governo Federal em 2014 e sua versão final para Ensino Fundamental e educação infantil foi homologada em 2017, contemplando muitas das recomendações do modelo de educação defendido pelo IAS e pelos atores com os quais esse se relaciona.

Cabe ressaltar os interesses por trás da BNCC, uma vez que ela incide diretamente na modificação dos currículos e dos materiais escolares, bem como nas práticas pedagógicas. Isso permite espaço para que entidades privadas de diversos tipos se qualifiquem na venda de sistemas pedagógicos e avaliativos e de propostas de apostilas, bem como nas formações e na certificação de professores.

Além disso, salienta-se que a BNCC vai ao encontro à ideia de direitos de aprendizagem, minimizando a histórica defesa do direito à educação. Tal mudança de enfoque, protagonizada especialmente por instituições privadas, está em sintonia com a lógica dos OM de que alguns conhecimentos são indispensáveis para o preparo de pessoas aptas à inserção no mercado de trabalho atual, o que exige a inclusão do desenvolvimento de capacidades socioemocionais que subsidiem esse processo formativo, como: autonomia, resiliência, autorresponsabilização, proatividade, iniciativa, entre outras competências requeridas pelo processo produtivo. Trata-se, em resumo, de uma perspectiva de educação e de formação escolar em que se assume o conhecimento mais como commodity do que como direito subjetivo e bem público.

É nesse contexto que se insere o programa Letramento em Programação, uma das mais recentes iniciativas do IAS, encontrado em desenvolvimento na rede estadual e em redes municipais do RS. Criado em 2015, descreve-se como proposta com foco no desenvolvimento de competências socioemocionais, baseada em estudos de evidências científicas na área de neurociência. Seu objetivo é preparar o aluno para o século XXI mediante o desenvolvimento de competências como autonomia, cooperação, raciocínio lógico e facilidade de resolver problemas, bem como criatividade, a fim de articular as demandas do mundo do trabalho às tecnologias de informação e de comunicação contemporâneas.

Claro que alinhar a educação ao processo produtivo não é algo negativo por si só. O que se apresenta como passível de questionamentos é a vinculação da educação pública formal e obrigatória aos princípios e fins do mercado. Todavia, as tarefas da educação escolar, como direito de cidadania e bem público, não se resumem apenas a isso, devendo formar para a vida – inclusive propiciando a crítica ao modelo de sociedade e ao próprio modelo de trabalho.

Pode-se perceber a influência que o IAS, mesmo sendo um ente privado, vem conquistando, ao longo dos anos, no que se refere à elaboração e à execução das políticas públicas educacionais. A entidade usa o forte apelo do nome do piloto Ayrton Senna para legitimar o viés social de defensor da causa da educação e se autoproclamar como instituição capacitada para propor e realizar soluções efetivas para a educação nacional. Fica evidente que é pelo nome que carrega que a causa circula. Conforme elucidam seus relatórios, o grande campo das arrendações para o seu funcionamento advém dos produtos que são comercializados com o selo Senna e Seninha, seguidos por contribuições derivadas da chamada de marketing relacionada à causa, que combina várias formas de repasse de dinheiro por parte de pessoas jurídicas e físicas. Em 2019, por exemplo, ano do aniversário de 25 anos da organização, o IAS firmou uma grande parceria com a Arcos Verde, maior cadeia de licenciamento do McDonald’s.

Tais apontamentos coadunam com as indicações de Ball a respeito do que ele chama de filantropia 3.0 ou filantrocapitalismo – um movimento no qual as filantropias passam a “assemelhar-se a uma economia capitalista na qual os benfeitores tornam-se consumidores de investimento social e que opera como mercados com fins lucrativos, com investidores e retornos sociais” (2018, p. 10).

Fica nítida a forma pela qual o IAS consegue ampliar sua abrangência ao longo do seu percurso de atuação, em termos de diversificação de programas, de redes públicas conveniadas e de parceiros (financiadores, colaboradores etc.). Atualmente, o instituto pode ser reconhecido como uma das principais instituições privadas em atuação no Brasil, atuando em larga escala na disseminação e na implementação de seus princípios e propósitos educacionais. A entidade participa ativamente na definição de políticas educacionais, graças à inserção de seu corpo diretivo em espaços importantes de tomada de decisões públicas. Também na mídia geral é comum seus consultores serem constantemente ouvidos e chamados para falar sobre seus diagnósticos suas soluções para a educação do país.

As parcerias do IAS ocorrem não apenas com governos, professores, gestores e pesquisadores, mas também com empresários e vários outros atores da sociedade, seja em nível nacional, seja internacional. Para o IAS, “todos os atores sociais precisam trabalhar em rede, num espírito de corresponsabilidade, para cumprir os compromissos estabelecidos e fazer avançar a agenda da educação” (s. d.). Assim sendo, o instituto consegue constituir e incentivar redes de políticas de diversos tipos e formas, as quais se empoderam para orientar o modelo de educação que está em voga globalmente.

A atuação da entidade, por meio de seus programas, propõe qualificar a educação básica com ações em várias áreas nas redes públicas, em geral, com o propósito de melhorar os indicadores educacionais. Contudo, os diagnósticos da educação básica que essa atuação produz mostram que não há transparência. A investigação de seus relatórios anuais mostra que os resultados, em termos de melhoria, são apresentados sempre de modo muito geral e genérico e que, especificamente, consideram critérios o desempenho dos alunos em testes de Português e Matemática. Não são explicitados, de forma clara e objetiva, os contextos nos quais o processo pedagógico é desenvolvido, tampouco são apresentadas outras formas de avaliação para além do desempenho cognitivo ou mesmo fatores econômicos e sociais e condições das escolas e do trabalho dos professores. Por tudo isso, põe-se em dúvida se esses são indicadores apurados e considerados – o que nos incita a questionar o critério de qualidade envolvido nessa perspectiva.

Dessa forma, entende-se que é preciso problematizar o modo pelo qual as PPP incitam a inserção de instituições privadas e criam espaços para a lógica e os preceitos de mercado na educação pública, a partir de novas formas de privatização, encobertas e mascaradas (LIMA, 2018LIMA, L. C. Privatização lato sensu e impregnação empresarial na gestão da educação pública. Currículo sem Fronteiras, Braga, v. 18, n. 1, p. 129-144, jan.–abr. 2018.). Conforme afirma Lima, pode-se dizer que, no cerne dessa proposta, “registram-se processos de desestatização, de empresarialização, de mercantilização” (2018, p. 132), visto que o privado se apresenta como política pública e metamorfoseia a educação mediante processos de abertura política a empresas cotadas em bolsa de valores, em busca de novos meios para expandir seus negócios. Tais empresas entram na cena pública sob o regime de direito privado e funcionam como suposto ente que não é público nem privado. Todavia, passam a interferir sensivelmente nos diferentes espaços e questões educacionais, como currículo, gestão, concepções e práticas pedagógicas.

Portanto, faz-se necessário questionar a falta de representatividade social, bem como de compromissos com justiça social e com a materialização de direitos quando os grupos e/ou redes substituem o poder público e reconfiguram os princípios e os propósitos da educação na perspectiva mercantil. Como alerta Peroni (2015)PERONI, V. M. As nebulosas fronteiras entre o público e o privado na educação básica brasileira. In: REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 37., 2015, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: UFSC, 2015, p. 1-15., tais grupos não são uma abstração; são formados e operados por sujeitos concretos dentro de um projeto de classe, que precisa ser analisado e explicitado.

Considerações Finais

Neste estudo, assumiu-se a tese de que a globalização, como estratégia do modelo capitalista neoliberal, tem provocado mudanças em diversos setores da vida em sociedade em escala mundial, implicando a transformação do papel e das funções do Estado, reconfigurando a organização e o funcionamento dos setores públicos, bem como as relações do Estado com a sociedade civil e o mercado, além de interferir nas políticas e nas ações educacionais.

Diversos atores têm influenciado – e passado a participar diretamente – nos rumos, na execução e nas finalidades que a educação vem tomando, entre eles os OM, em que se destaca a atuação do Banco Mundial. Percebeu-se, por meio dos estudos ora apresentados, que tais organizações têm sido fortes influenciadoras das políticas educacionais. Elas se utilizam do status e do poder econômico que possuem a fim de orientar a agenda para a educação nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, uma vez que, na percepção de tais organismos, a educação tem função estratégica no desenvolvimento econômico.

Destacou-se que o movimento desencadeado pela globalização se articula em torno de uma agenda global para a educação, relacionada às transformações no setor público, em especial o avanço da perspectiva gerencialista, na esteira da disseminação da NGP e da ideia de governança como nova forma de relacionamento entre as esferas pública e privada.

Essas novas formas de relação entre Estado, sociedade civil e mercado propiciaram um tipo de privatização do setor educacional por meio de parcerias entre o setor público e o setor privado, em que a instituição continua pública, mas gerida ou influenciada por agentes privados com financiamento público. Assim, não é mais um movimento stricto sensu, como se verificava na década de 1990, quando o setor privado assumia integralmente empresas e setores de propriedade do Estado.

Tais reorientações implicam diretamente o contexto escolar, incidindo sobre a concepção de educação em voga e se refletindo nos currículos, nas práticas educacionais, na avaliação e, por consequência, no processo de ensino, nas formas de trabalho docente e nos modelos de gestão escolar. Desse modo, os conceitos de governança e gerencialismo são entendidos como centrais para elucidar novas formas políticas do setor público, tendo repercussões nas políticas educacionais e desdobramentos na organização, na gestão, na avaliação e nos processos escolares como um todo.

Com base na metodologia de etnografia de redes de Ball (2014)BALL, S. Educação Global S.A.: novas redes políticas e o imaginário neoliberal. Ponta Grossa: UEPG, 2014., em que a exploração de dados ultrapassa os limites físicos e terrestres e propicia a escavação em ambientes virtuais, foi possível evidenciar a expansão e a amplitude da permeabilidade das fronteiras entre o público e o privado, bem como das relações entre Estado e sociedade civil no que concerne aos processos políticos, de forma integrada e não hierarquizada, além dos movimentos global-regional-local.

Na exploração da especificidade da atuação do IAS e sua rede de relações, podem-se ilustrar alguns pontos importantes sobre os reflexos da lógica e dos atores privados e mercantis na educação pública (CÓSSIO, 2015CÓSSIO, M. F. Agenda transnacional e governança nacional: as possíveis implicações na formação e trabalho docente. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 13, p. 616-40, 2015.). Essa organização surgiu, inicialmente, como uma OS para atuar no plano socioeducacional, mas ganhou destaque sumário na direção da educação brasileira quando passou a propor soluções educacionais replicáveis, principalmente nas áreas de alfabetização e gestão. Seus programas sustentam-se em concepções de gestão gerencial e no desenvolvimento de conhecimentos mínimos, não em uma perspectiva de educação ampliada e integral do ser humano, nem em processos de gestão democráticos, de construção coletiva do projeto escolar, de valorização dos saberes docentes, tampouco em uma prática pedagógica reflexiva e crítica, na qual a escola é dotada de compromissos sociais e políticos.

Observa-se claramente que as principais conquistas do IAS aconteceram quando esse assumiu a natureza jurídica de OSCIP, o que, no quadro da proposta de governança, com vistas à maior permeabilidade estatal, permitiu a ele aprofundar parcerias com sistemas públicos, sobretudo no ano de 2004. Essas conquistas também ocorreram quando os programas do instituto passaram a compor as versões de 2009 e 2011 do Guia de Tecnologias Educacionais do PAR/PDE.

Nas análises realizadas, fica evidente o caminho percorrido pelo IAS, ao longo dos 25 anos de atuação completados em 2019, até se transformar em uma grande instituição privada na orientação das políticas públicas de educação no Brasil. Sua forma de atuação destaca-se pela faceta social a partir da qual se originou, para assumir um papel importante de protagonismo na agenda globalmente estruturada para a educação, criando uma expoente rede de relações e de influências com outros entes públicos e privados, nacionais e internacionais.

É preciso destacar, conforme alude Ball (2018)BALL, S. J. Política Educacional Global: reforma e lucro. Revista de Estudios Teóricos y Epistemológicos en Política Educativa, Ponta Grossa, v. 3, p. 1-15, 2018. https://doi.org/10.5212/retepe.v.3.0105
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, que a atuação de grupos privados na educação não se dá por acaso, sendo focada sobre a educação como oportunidade de comércio. Em tempos de austeridade, quando outros setores de negócios estão em recessão, os serviços educacionais oferecem alternativas atrativas de investimento. De modo geral, as empresas que se candidatam e apresentam propostas para atuar na educação pública são ambiciosas e buscam a expansão de seus negócios. Assim, concorda-se aqui com Ball (2018)BALL, S. J. Política Educacional Global: reforma e lucro. Revista de Estudios Teóricos y Epistemológicos en Política Educativa, Ponta Grossa, v. 3, p. 1-15, 2018. https://doi.org/10.5212/retepe.v.3.0105
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quando diz ser preciso contemplar os sujeitos e as relações imbricadas nesses arranjos, pois a educação tem sido uma importante arena de disputas e, além disso, uma oportunidade para combinar novas formas de investimento social. O enfoque na educação, portanto, possibilita a criação de espaços para a circulação do dinheiro, transformando os discursos, as sensibilidades e os valores da financeirização para celebrar a reforma da educação pública dentro de um projeto de mercado.

Pode-se, assim, compreender o motivo do avanço e da ampliação das ações do IAS, tendo em vista que estão sintonizadas com a política nacional que, entre outras questões, visa atender à perspectiva de melhoria da qualidade educacional pela lógica de resultados e da responsabilização, com foco na eficácia e na eficiência padronizadas e externamente definidas. Contudo, isso restringe sobremaneira a autonomia das escolas, dos gestores e dos professores, podendo comprometer os projetos educacionais locais e democráticos.

  • Este artigo é resultado da pesquisa intitulada “Redes políticas e as parcerias público-privadas no estado do RS”, desenvolvida entre os anos de 2017 e 2019 pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (NEPPE) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), coordenado pela professora doutora Maria de Fátima Cóssio.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2020
  • Aceito
    27 Out 2020
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