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Regulamentação e criminalização das drogas no Brasil

Resumo

Objetivo

O presente estudo visa avaliar, através de uma revisão narrativa da literatura, como o controle do Estado exerceu ao longo da história do Brasil a regulamentação do uso de drogas.

Método

Foram consultados livros, artigos de periódicos acadêmicos indexados, trabalhos completos apresentados em congressos e documentos históricos disponíveis na internet relativos ao tema.

Resultados

A primeira legislação penal em relação ao uso de drogas surge apenas no Brasil império. Nesse período começam a surgir também os primeiros problemas devido ao uso de drogas. A criação de cursos superiores nas áreas de saúde e de ciências naturais veio a formar profissionais capacitados na manipulação e fiscalização de produtos químicos e farmacêuticos. Com o tempo, observando-se os efeitos, algumas substâncias passam a ser proscritas.

Conclusão

Por toda história do país, o uso e a regulação das drogas, permearam todas as épocas influenciando na cultura, educação e no modo de vida da população. Atualmente há um grande debate acerca das políticas sobre drogas no Brasil, principalmente sobre a maconha e seus usos terapêuticos, mostrando novamente a influência do Estado sobre a saúde e a segurança da população.

Palavras-chave
Drogas ilícitas; Legislação de medicamentos; Toxicologia; Brazil; Uso recreativo de drogas

Abstract

Objective

The present study aims to evaluate, through a narrative review of the literature, how State’s control has exercised regulation of drug use throughout the history of Brazil.

Method

Books, articles from indexed academic journals, complete works presented at conferences and historical documents available on the internet relating to the topic were consulted.

Results

The first criminal legislation related to drug use only appeared in Imperial Brazil. During this period, the first problems due to drug use also begin to appear. The creation of higher education courses in the areas of health and natural sciences resulted in the training of professionals capable of handling and supervising chemical and pharmaceutical products. Over time, observing the effects, some substances become proscribed.

Conclusion

Throughout the country’s history, the use and regulation of drugs has permeated all eras, influencing culture, education and the population’s way of life. There is currently a great debate about drug policies in Brazil, mainly regarding marijuana and its therapeutic uses, once again showing the influence of the State on the health and safety of the population.

Keywords
Illicit drugs; Legislation, drug; Toxicology; Brazil; Recreational drug use

O Estado moderno é sustentado pela dominação racional legal devido ao estabelecimento de uma série de normas e limites que legitimam seu poder de controle. Para os contratualistas como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, esse poder é determinado pela relação entre o estado e a sociedade civil, garantindo a todas as pessoas, direitos naturais fundamentais inalienáveis (Hobbes, 2008Hobbes, T. (2008). Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Martin Claret.; Locke, 2008Locke, J. (2008). Segundo Tratado Sobre o Governo. Martin Claret.; Ribeiro, 2017Ribeiro, J. S. P. (2017). Os Contratualistas em questão: Hobbes, Locke e Rousseau. Prisma Jurídico, 16(1), 3-24. https://doi.org/10.5585/PrismaJ.v16n1.6863
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).

A sociedade civil nasce juntamente com o Estado no momento do contrato social sendo este um consentimento coletivo que instaura um corpo político no sentido de garantir a inviolabilidade dos direitos naturais (Rousseau, 2006Rousseau, J. J. (2008). Do Contrato Social. Martin Claret.). Numa visão ontológica a sociedade civil é fundada a partir do Estado. O Estado goza de soberania absoluta e questioná-lo é questionar sua soberania e, por conseguinte esse questionamento deixaria o Estado de ser absoluto, levando ao retorno do estado de natureza e por consequência a guerra. No estado de natureza cada indivíduo é árbitro de suas ações, gerando conflitos constantes que ameaçariam a preservação da espécie. O questionamento do Estado só deveria ocorrer quando este falha em sua função primordial de preservar a vida de seus cidadãos (J. M. A. Souza, 2010Souza, J. M. A. (2010). Estado e sociedade civil no pensamento de Marx. Serviço Social & Sociedade, 101, 25-39. https://doi.org/10.1590/S0101-66282010000100003
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).

Entretanto, para Georg Hegel o contrato social não viabiliza a passagem do estado de natureza para a sociedade civil. Nas sociedades sem a existência do Estado ocorrem contradições e conflitos entre os diferentes grupos. O Estado consiste então na entrada na sociedade política de princípios racionais e universais, permitindo a superação dos conflitos de interesse entre os diversos grupos. O Estado seria, portanto o responsável por evitar a desagregação social, no qual sem esse a sociedade civil ruiria pelo efeito das lutas de classes (Decothé-Junior & Heldt, 2021Decothé-Junior, J., & Heldt, M. (2021). A Concepção de Contrato da Filosofia do Direito Abstrato de Hegel. Pensando – Revista de Filosofia, 12(21), 2-16. http://dx.doi.org/10.26694/pensando.v12i27.11291
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).

No pensamento de Karl Marx, o Estado ergue-se a partir dos interesses de determinada classe social sendo a sociedade civil anterior ao Estado. Assim o Estado seria um estranho para a sociedade, com suas leis internas, sua burocracia e sua estrutura, chegando a parecer como algo independente, estando em um constante processo de centralização burocrática, policial e militar oprimindo a sociedade ao mesmo tempo em que exprime os interesses da classe dominante. O Estado então age como alienador das relações sociais (Harvey, 2013Harvey, D. (2013). Para Entender O Capital. Boitempo.).

O Estado é então produto da razão humana, surgindo como forma de sair do estado animalesco de medo por uma morte violenta, desejando paz e segurança. A obediência ao Estado é consequência de sua criação. Os homens firmam esse compromisso relegando suas liberdades do direito natural para garantir suas subsistências. Eles delegam ao Estado o direito de governá-los absolutamente (Lopes, 2012Lopes, J. G. (2012). Thomas Hobbes: a necessidade da criação do estado. Griot-Revista de Filosofia, 6(2), 170-187. https://doi.org/10.31977/grirfi.v6i2.526
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).

A concepção de vontade geral encontra suporte nos ideais de Rousseau nos quais o contrato social estabelece os limites do governo. Os indivíduos estabelecem as regras do contrato e nele está o poder. O contrato representa a vontade da maioria e o governante é apenas um instrumento o qual autoriza colocar em prática essa vontade da maioria que sufoca ou suplanta a vontade individual. Isso demonstra uma dinâmica racionalizada do estado ancorado em suas leis e regulações (E. S. Silva, 2020Silva, E. S. (2020). Vontade geral, soberania e liberadade política em Rousseau: algumas problematizações. Problemata, 11(5), 255-271. https://doi.org/10.7443/problemata.v11i5.51354
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). “O Estado se governa segundo as regras racionais que lhe são próprias, que não se deduzem nem das leis naturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoria ou da prudência; o Estado, como a natureza, tem sua racionalidade própria, ainda que de outro tipo” (Foucault, 1979Foucault. M. (1979). Microfísica do Poder. Graal., p. 168).

O uso de determinadas substâncias traz a ebriedade, tendo sido utilizadas durante milênios em usos festivos, terapêuticos e sacramentais. Devido esses usos acabaram-se tornando complexas entidades científicas, que começaram a preocupar a religião e incomodar o Estado, enquanto se comprometiam com a economia e tentavam a arte. Oportuna ou inconsistente, a contraposição a um sistema social estabelecido constitui uma operação política com funções sociais complexas, onde o que é exibido é contra o poder existente. No horizonte de ansiedades que acompanham qualquer mudança em profundidade da vida, as engrenagens das ciências tentam esclarecer estes problemas criando algo descrito como “drogas”, e seu contato com a questão mais ampla da relação que o homem contemporâneo mantém com sua liberdade real. Seria ingênuo esperar que a mudança de critérios de moralidade, estereótipos culturais e slogans de qualquer publicidade estão sujeitos ao escrutínio perseguidor da ciência. Mas uma maneira de formar conceitos em vez de dogmas e mitos sobre este objeto é para atender a sua própria gênese (Escohotado, 2008Escohotado. A. (2008). Historia general de las drogas. Editorial Espasa Calpe.).

Os problemas oriundos do consumo excessivo de algumas substâncias já eram observados desde o Renascimento por Phillipus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, conhecido por Paracelso. Em um de seus postulados ele comenta que todas as substâncias da natureza podiam exercer influências positivas (essentia) ou negativas (venena), sendo a diferença entre essentia e venena, a dose, portanto “a dose que faz o veneno” (dosis sola facit venenum) (Schmidt, 2019Schmidt, E. (2019). Paracelso e o Paragranum: ensaio de uma nova medicina? Revista Médica de Minas Gerais, 29, e-2022. https://doi.org/10.5935/2238-3182.20190016
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). A palavra “veneno” é oriunda do latim venenum que significa “remédio” ou “poção” e está ligada a “poção do amor” criada pela deusa Vênus. Posteriormente o termo veneno passa a ser associado a “substância tóxica”, sendo o termo “tóxico” de origem grega toxikos (τοξικός), referente às substâncias utilizadas para melar as pontas das flechas com finalidade bélica ou de caça, ou seja, para matar o atingido (Fukushima & Azevedo, 2008Fukushima, A. R., & Azevedo, F. A. (2008). História da toxicologia. Parte I – Breve panorama brasileiro. Revista Intertox de Toxicologia, Risco Ambiental e Sociedade, 1(1), 2-32. https://doi.org/10.22280/revintervol1ed1.3
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).

No Brasil, antes mesmo do descobrimento, várias tribos indígenas extraiam materiais de plantas para utilizar nas caça e nas guerras. Os índios brasileiros utilizavam diariamente também outras plantas com propriedades psicoativas. Mesmo nessas sociedades indígenas primitivas, já havia o conceito de viver em sociedade, apesar da liberdade individual, esta já era limitada devido o indivíduo estar sujeito àquele mais forte, como a figura do cacique. A força bruta definia quem determinaria as relações humanas por meio de seus interesses e instintos, fazendo dos mais fracos, vítimas da brutalidade e da arbitrariedade dos mais fortes, sobretudo nos combates entre as tribos. As restrições das liberdades individuais possibilitaram a existência das tribos. Assim, a maioria, o todo, tornou-se mais forte do que qualquer indivíduo.

Baseado no exposto este trabalho tem por objetivo analisar o processo de regulamentação e de criminalização das drogas no Brasil ao longo de sua história. Para isso foram consultados livros, artigos de periódicos acadêmicos indexados, trabalhos completos apresentados em congressos e documentos históricos disponíveis na internet relativos ao tema. Este trabalho visa refletir como o Estado gerou mecanismos regulamentadores ao uso de drogas durante a história do Brasil, desde o período pré-colonial, passando pelos períodos colonial, do império e da república. Será averiguado se essa regulamentação dialoga com o conhecimento científico produzido no país no decurso de sua história.

As drogas no Brasil Pré-Colonial

As diversas tribos indígenas brasileiras pré-coloniais já faziam uso de diversas substâncias psicoativas e tóxicas. O curare, palavra de origem indígena derivada dos termos woorari, woorali e urari, os quais significam “veneno”, era extraído das plantas do gênero Strychnos e da família Menispermaceae, e utilizado na ponta das flechas para a caça. Essas flechas eram arremessadas por meio de zarabatanas feitas de bambu oco atingindo pássaros e pequenos mamíferos. No curare são encontrados alcaloides como a tubocurarina, as quais causam paralisia do músculo esquelético, bem como a estricnina que causa grandes contrações musculares. Quando ingerida oralmente, a tubocurarina é metabolizada no fígado, perdendo sua eficácia de paralisia muscular, por isso causam efeitos quando administradas diretamente no sangue e não por via oral. As concentrações de estricnina nas plantas são muito baixas para causar efeitos observáveis nos seres humanos. Apesar do seu efeito quase imediato, 10 minutos em média, a extração do curare era trabalhosa, sendo pouco usado em guerras e mais utilizado na caça (Schvartsman, 1992Schvartsman. S. (1992). Plantas venenosas e animais peçonhentos. Sarvier.).

O tabaco (Nicotina tabacum) é natural do continente americano e conhecido pelas tribos tupis pelo nome de petyn. A planta era utilizada em rituais religiosos nos quais guerreiros da tribo eram defumados para ganharem força ao enfrentarem o inimigo. Havia também o hábito de beber o petume, outra designação para o tabaco, pois esse era estimulante e diminuía a fome (Mello Jr & Kockel, 2010Mello Jr, F. M., & Kockel, M. F. (2010). Aspectos do Tabaco e do cauim no Brasil quinhentista. XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH-SP; UNESP. http://legacy.anpuh.org/sp/downloads/CD%20XX%20Encontro/PDF/Pain%E9is/Marcelo%20Fidelis%20Kockel.pdf
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).

Diferentes tribos amazônicas usavam um rapé chamado cohoba, aspirado por um tubo em forma de “Y”, feito principalmente das plantas angico (Anadenanthera peregrina) e tabaco. Esses rapés eram ingeridos diariamente como estimulantes e usados pelos pajés e xamãs para fazerem profecias e adivinhações. Cascas pulverizadas de plantas do gênero Virola eram utilizadas para fazer o paricá, um tipo de rapé fumado. Essas plantas possuem em sua composição N,N-dimetiltriptamina (DMT), um potente alucinógeno. O paricá era soprado por um parceiro através de um tubo para as narinas de quem aspirava isso devido à inativação do DMT por via oral. A utilização do paricá está relacionada a celebrações religiosas indígenas, as quais as pessoas se reuniam, cantavam e invocavam os espíritos. Os pajés que utilizavam o paricá contorciam os músculos do corpo e da face, entravam em agitação e caiam em transe e tinham visões que trariam conhecimento ao seu povo. Esse estado era por conta dos efeitos do DMT e duravam de 30 minutos a 1 hora (Martinez et al., 2009Martinez, S., Almeida, M., & Pinto, A. (2009). Alucinógenos naturais: um voo da Europa medieval ao Brasil. Química Nova, 32(9), 2501-2507. https://doi.org/10.1590/S0100-40422009000900047
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).

Outras plantas utilizadas pelos indígenas também possuem o DMT em sua composição, como é o caso da Jurema preta (Mimosa hostilis), nas tribos do nordeste brasileiro. A Jurema era consumida fumando suas raízes ou através de um vinho, feito das suas folhas maceradas em água. Existem mais de 19 espécies de Jurema, sendo as mais utilizadas na preparação do vinho de Jurema a M. hostilis e a M. tenuiflora. Para algumas tribos indígenas como os Kariri-Xoko, apenas os mais velhos e sábios poderiam coletar e preparar o vinho da Jurema (R. S. O. Souza et al., 2008Souza, R. S. O., Albuquerque, U. P., Monteiro, J. M., & Amorim, E. L. C. (2008). Jurema-preta (Mimosa tenuiflora [Willd.] Poir.): A review of its tradicional use, phytochemistry and pharmacology. Brazilian Archives of Biology and Technology, 51(5) 937-947. https://doi.org/10.1590/S1516-89132008000500010
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). As raízes de Jurema secas eram fumadas em cachimbo junto com tabaco.

Como visto várias plantas e ervas com atividades psicoativas e tóxicas eram conhecidas pelas tribos indígenas brasileiras. Pode ainda ser citado o uso da coca pelos índios brasileiros. Chamada de ipadu pelas tribos da bacia amazônica fronteiriças com a Venezuela e a Colômbia, as folhas da Erythroxylum coca eram secas, transformadas em pó e misturadas com cinzas, formando pequenas bolas as quais eram ingeridas várias vezes por dia principalmente pelos idosos por conta do valor nutritivo e dos efeitos de bem-estar e excitação promovidos (Ferreira & Martini, 2001Ferreira, P. E., & Martini, R. (2001). Cocaína: Lendas, história e abuso. Revista Brasileira de Psiquiatria, 23(2), 96-99. https://doi.org/10.1590/S1516-44462001000200008
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).

Havia ainda o cauim, bebida feita das raízes da mandioca, ou do sumo de caju, ou do milho, contudo o cauim feito da mandioca era o mais apreciado. O processo de obtenção da bebida consistia em cozer em água a mandioca em panelas de barro. Quando cozidas, eram transferidas para outras panelas ou vasilhas para esfriarem. Em seguida as mulheres mastigavam o cozido e colocavam o mastigado em um vaso, o qual depois esse material era novamente cozido em água e estes vasos eram tampados e enterrados parcialmente no solo. Os vasos ficavam descansando por dois dias, sendo nesse período que ocorria a fermentação e a produção do etanol. A bebida era toda preparada apenas pelas mulheres da tribo, independente se solteiras ou casadas, pois os homens acreditavam que se preparassem a bebida a mesma não seria agradável (Mello Jr & Kockel, 2010Mello Jr, F. M., & Kockel, M. F. (2010). Aspectos do Tabaco e do cauim no Brasil quinhentista. XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH-SP; UNESP. http://legacy.anpuh.org/sp/downloads/CD%20XX%20Encontro/PDF/Pain%E9is/Marcelo%20Fidelis%20Kockel.pdf
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). Uma variedade da mandioca conhecida pelos indígenas como inaze ou mais recentemente pela denominação de mandioca-brava possui em sua composição ácido cianídrico (HCN), sendo extremamente tóxico e para isso é necessário lavagem ou aquecimento da mandioca para o consumo, pois o HCN é solúvel em água e possui baixo ponto de ebulição.

Mas não só de plantas os índios extraíam substâncias psicoativas. Sapos do gênero Bufo tinham sua pele retirada para a obtenção de um líquido, o qual continha bufotenina, um potente alucinógeno com efeitos parecidos com o DMT (Martinez et al., 2009Martinez, S., Almeida, M., & Pinto, A. (2009). Alucinógenos naturais: um voo da Europa medieval ao Brasil. Química Nova, 32(9), 2501-2507. https://doi.org/10.1590/S0100-40422009000900047
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).

Observa-se que o uso de várias substâncias entorpecentes era feito apenas ou sob supervisão de alguém de maior conhecimento, no caso das tribos indígenas, o pajé. Por conta dos vários anos de experiência e do conhecimento de gerações passadas, os pajés conheciam os poderes das plantas, sabendo quais eram letais e quais as traziam a cura para feridas e doenças. O uso muitas vezes de plantas sem a consulta ao pajé ou a uma pessoa mais velha poderia trazer consequências negativas como uma intoxicação.

O conhecimento sobre plantas e animais venenosos, bem como de plantas utilizadas como cicatrizantes ou em rituais religiosos para entrar em transe, era tido por poucos. Nas tribos indígenas esse conhecimento era consuetudinário, por conta disso existem vários nomes vulgares para uma determinada planta e não havia uma classificação sistemática. Era comum o uso de determinada erva por uma tribo e a mesma ter seu uso abolido em outra. Nessas civilizações muitas das experimentações para saber os efeitos de determinadas substâncias ou de plantas era por tentativa e erro ou por conta de experiências vividas por antepassados ou pelos mais velhos. O uso e consumo dessas substâncias estava de certa forma, regulamento pelos pajés e os estudos acerca de seus efeitos eram cercados de misticismo e ligado às divindades e forças da natureza (Gaudêncio et al., 2020Gaudêncio, J. S., Rodrigues, S. P. J., & Martins, D. R. (2020). Indígenas brasileiros e o uso das plantas: saber tradicional, cultura e etnociência. Khronos, Revista de História da Ciência, 9, 163-184. https://doi.org/10.11606/khronos.v0i9.171134
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).

Observa-se nessas civilizações então o poder exercido pelo Estado que estrutura a sociedade e a mantém organizada de forma hierárquica. Apesar disso o poder não é necessariamente um aparelho repressor do Estado (Danner, 2009Danner, F. (2009). A Genealogia do Poder em Michel Foucault. IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação, 4, 786-794. https://ebooks.pucrs.br/edipucrs/acessolivre/anais/IVmostra/IV_MOSTRA_PDF/Filosofia/71464-FERNANDO_DANNER.pdf
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). O poder pode produzir domínios de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção (Foucault, 1975Foucault, M. (1975). Vigiar e Punir. Editora Vozes.).

O período Colonial e as primeiras boticas

O período em que o Brasil esteve sob domínio de Portugal compreendido entre os anos de 1500 até 1822, é denominado de Brasil Colônia. Para compreender a estrutura judicial do Brasil colônia é preciso de antemão conhecer um pouco como era a estrutura jurídica portuguesa à época (Cezario, 2017Cezario, L. F. (2010 January 1). A estrutura jurídica no Brasil colonial. Criação, ordenação e implementação. Âmbito Jurídico. https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-72/a-estrutura-juridica-no-brasil-colonial-criacao-ordenacao-e-implementacao/
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).

Ao rei cabia a administração da justiça, sendo essa considerada a primeira responsabilidade pelos muitos documentos e leis. O ordenamento e toda a estrutura jurídica portuguesa estavam reunidos nas Ordenações (Cezario, 2010Cezario, L. F. (2010 January 1). A estrutura jurídica no Brasil colonial. Criação, ordenação e implementação. Âmbito Jurídico. https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-72/a-estrutura-juridica-no-brasil-colonial-criacao-ordenacao-e-implementacao/
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):

Três grandes compilações formavam a estrutura jurídica portuguesa. O primeiro a ordenar uma codificação foi D. João I, que reinou de 1385 a 1433. A elaboração atravessou o reinado de D. Duarte, a regência de D. Leonor, sendo promulgadas pelo recém-coroado Afonso V, que, apesar de nada ter contribuído para a obra, deu-lhe nome: Ordenações Afonsinas, que vigoraram de 1446 a 1521, ano em que D. Manoel promulgou a que levou seu nome: Ordenações Manoelinas, fruto da revisão das Afonsinas e da recompilação das leis extravagantes. Depois das Manoelinas, Duarte Nunes de Leão recompilou novas leis extravagantes, até 1569, publicação muito conhecida por Código Sebastiânico, apesar de não ter havido participação ativa de D. Sebastião. Uma nova revisão das Ordenações foi encomendada pelo rei Filipe II a grupo de juristas chefiado por Damião de Aguiar, que as apresentou e obteve aprovação, em 1595, somente impressa e entrada em vigor em 1605 com o nome de Ordenações Filipinas.

(Carrilho, 1997Carrillo, C. A. (1997). Memória da justiça brasileira. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.)

As Ordenações eram aplicadas não somente à metrópole, mas também suas colônias, contudo, nem todas as ordenações eram de fácil aplicação no Brasil, devido às peculiaridades culturais ou à falta de condições de aplicação, devendo ser adaptadas (Brasil & Meneguel, 2021Brasil, A. M. P., & Meneguel, R. (2021). A Execução Penal no Brasil Durante a Vigência das Ordenações Filipinas. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/4433/1/A%20Execu%c3%a7%c3%a3o%20Penal%20no%20Brasil%20Durante%20a%20Vig%c3%aancia%20das%20Ordena%c3%a7%c3%b5es%20Filipinas.pdf
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).

Portanto, a primeira legislação criminal no Brasil que punia o uso e o comércio de substâncias tóxicas estava contemplada nas Ordenações Filipinas, que tiveram vigência no Brasil de 1603 até 1830, até a criação do Código Penal Imperial. O texto das Ordenações Filipinas que tratava do uso e comércio de tóxicos estava descrito no Livro V, Título LXXXIX:

Que ninguém tenha em sua caza rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso.

Nenhuma pessoa tenha em sua casa para vender, rosalgar branco, nem vermelho, nem amarelo, nem solimão, nem agua delle, nem escamonea, nem ópio, salvo se for Boticario examinado, e que tenha licença para ter botica, a usar do Officio.

E qualquer outra pessoa que tiver em sua caza alguma das ditas cousas para vender, perca toda sua fazenda, a metade para nossa Camera, e a outra para quem o accusar, e seja degradado para Africa até nossa mercê.

E a mesma pena terá quem as ditas cousas trouxer de fora, e as vender a pessoas, que não forem Boticarios.

(Diário das leis, 2023Diário das leis. (2023). Ordenações Filipinas nº 89 de 5, abril de 1451. https://www.diariodasleis.com.br/tabelas/ordenacoes/1-274-103-1451-04-05-89.pdf
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)

Com a chegada dos portugueses à costa brasileira foram trazidas, dentre outras coisas, a maconha. Os cordões e as velas das embarcações eram feitos da fibra de cânhamo, material mais resistente em comparação às fibras de algodão, considerada permitida à época. As primeiras sementes de Cannabis sativa foram trazidas por volta de meados do século XVI pelos escravos africanos, daí surgia à denominação “fumo d’Angola” (Carlini, 2006Carlini, E. A. (2006). A história da maconha no Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 55(4), 314-317. https://doi.org/10.1590/S0047-20852006000400008
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).

Pela convivência com os indígenas, o europeu acaba por assimilar os conhecimentos das plantas da terra, somam-se a isso os conhecimentos trazidos por eles das plantas do velho continente. Ainda se tem a contribuição dos escravos africanos, os quais também detinham o conhecimento do uso de ervas e plantas. A união dessas três vertentes formou o conhecimento em relação aos vegetais de uso medicinal e tóxico (Braga, 2011Braga, C. M. (2011). Histórico da utilização de plantas medicinais [Unpublished bachelor’s monograph]. Universidade de Brasília/Universidade Estadual de Goiás.).

Somente em 1530 chega ao Brasil a primeira expedição colonizadora, chefiada por Martim Afonso de Sousa, ao qual foi concedido plenos poderes, tanto judiciais quanto policiais; assim como aos donatários das capitanias hereditárias, que também gozavam dos mesmos poderes (Cezario, 2010Cezario, L. F. (2010 January 1). A estrutura jurídica no Brasil colonial. Criação, ordenação e implementação. Âmbito Jurídico. https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-72/a-estrutura-juridica-no-brasil-colonial-criacao-ordenacao-e-implementacao/
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).

Devido a abusos nas funções judiciais que alguns cometiam, houve uma estruturação do judiciário e em 1549, Thomé de Sousa é nomeado governador-geral do Brasil, em sua armada composta de três naus, duas caravelas e um bergantim, foram trazidos a terra mais de mil pessoas que se instalaram na Bahia. Dentre essas pessoas, havia seis jesuítas, sob a chefia de Manuel da Nóbrega. Um dos jesuítas era José de Anchieta, considerado o primeiro boticário do país, o qual foi destinado para o sul na região de Piratininga. Por conta da intensa pirataria vivida no século XVI, os remédios que antes vinham preparados da metrópole, foram escasseando e acabaram por serem preparados com as plantas nativas e pela terapêutica dos pajés e raizeiros. Várias boticas foram instaladas nas regiões da Bahia, Olinda, Recife, Maranhão, Rio de Janeiro e São Paulo (Spada et al., 2006Spada, C., Chagas, J. R., Silva, K. F. F., & Castilho, S. R. (2006). A trajetória dos cursos de graduação na saúde: Farmácia. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.).

O contrato social estabelece os limites do governo regulando não só a relação Estado-soberano-população, mas também todas as relações sociais. O poder é operado pela prática do governo através do soberano (Harvey, 2013Harvey, D. (2013). Para Entender O Capital. Boitempo.), neste caso o detentor dos poderes judiciais.

Os índios e os negros proibidos de cultuar seus deuses devido à imposição religiosa do colonizador branco acabaram por fazerem suas cerimônias religiosas longe dos olhos dos portugueses. Apesar disso, muitos elementos da religião cristã foram absorvidos, sobretudo pelos negros em sincretismo, gerando as religiões afro-descendentes. No século XVII, surgem as figuras dos benzedeiros e dos raizeiros, oriundos desse sincretismo religioso. Profundo conhecedores das ervas e plantas eles indicavam quais as melhores para curar doenças ou como amuletos para a boa sorte. Os benzedores eram considerados como um intermediário entre a terra e o divino e se comunicavam com o sagrado por meio de preces e do uso de substâncias entrando em transe profundo, além de receitarem fórmulas, chás e cataplasmas feitos com ervas e plantas (Maciel & Guarim-Neto, 2006Maciel, M. R. A., & Guarim-Neto, G. (2006). Um olhar sobre as benzedeiras de Jurema (Mato Grosso, Brasil) e as plantas usadas para benzer e curar. Boletim de Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, 1(3), 61-77. https://doi.org/10.1590/S1981-81222006000300003
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). O contato do índio com o negro faz com que este último acabe assimilando aspectos culturais como o culto a Jurema. Apesar disso, o modo de preparo da Jurema pelos negros difere do modo indígena por levar muitas vezes mel e bebidas alcoólicas como o vinho e a cachaça, essa última já quando foram instalados os engenhos no Brasil (Martinez et al., 2009Martinez, S., Almeida, M., & Pinto, A. (2009). Alucinógenos naturais: um voo da Europa medieval ao Brasil. Química Nova, 32(9), 2501-2507. https://doi.org/10.1590/S0100-40422009000900047
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).

Na primeira metade do século XVII, surgem na Bahia as casas de cozer méis, designação dos primeiros engenhos produtores de açúcar e posteriormente aos locais detentores de alambiques para produção de cachaça. Além da cachaça os engenhos produziam outras bebidas alcoólicas oriundas da cana-de-açúcar como o rum e a tafia (Cavalcante, 2011Cavalcante, M. A. (2011). A verdadeira história da cachaça. Sá editora.).

As escravas negras muitas vezes eram abusadas sexualmente pelos senhores de engenho e como forma de se vingarem desses maus tratos, elas adicionavam à comida dos senhores o pó da raiz de amansa-senhor (Petiveria alliaceae) a qual causava demência, afasia e até a morte, caracterizando um mecanismo de microrresistência dos escravos a essas injúrias. A amansa-senhor recebeu vários outros nomes no país como: guiné, pipi e cangambá (Camargo, 2007Camargo, M. T. L. A. (2007). Amansa-senhor: a arma dos negros contra seus senhores. Revista Pós Ciências Sociais, 4(8), 31-42.).

O estudo dos efeitos das diversas substâncias utilizadas passa a ser um pouco mais sistemático devido ao conhecimento trazido pelo europeu, contudo ainda muito incipiente. Não havia uma regulamentação de fato, exceto pelas Ordenações Filipinas, e muito se baseava ainda na tentativa e erro e no conhecimento dos mais velhos. Muitos benzedeiros e raizeiros absorveram o conhecimento de antigos pajés, ficando a cargo deles agora a supervisão do uso de plantas e outras substâncias.

As primeiras boticas oficiais surgem no ano de 1640 e se multiplicam pelo país. Para conseguir uma autorização de funcionamento, bastava apenas a aprovação pelo físico-mor (denominação dada aos médicos da época) em Coimbra ou pelo delegado comissário da capitania. Por conta dessa facilidade vários boticários com parcos conhecimentos recebiam a autorização de funcionamento de suas boticas. Geralmente eram profissionais de conhecimento empírico e corriqueiro, muitas vezes analfabetos. Comerciantes de secos e molhados costumavam a se associar a esses boticários a fim de aumentarem seus ganhos pessoais, pois os boticários eram os únicos que podiam comercializar drogas e medicamentos. Em 1744 ocorreu uma intensificação da fiscalização do exercício da profissão de boticário em relação ao comércio ilegal de drogas e medicamentos, sendo aplicadas multas pesadas e o sequestro de estoques ilegais pelo governo, através do “Regimento do que devem observar os Comissários Delegados do Físico-mor do Reino do Estado do Brasil” (Spada et al., 2006Spada, C., Chagas, J. R., Silva, K. F. F., & Castilho, S. R. (2006). A trajetória dos cursos de graduação na saúde: Farmácia. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.).

No ano de 1760, o colégio dos jesuítas na Bahia foi saqueado e sequestrado, neste local havia uma das principais boticas do país onde possuíam várias receitas, inclusive da “tríade brasílica” utilizada contra a mordedura de animais peçonhentos e de várias doenças febris. Por conta desse fato o Marques de Pombal impõe diligências para reaver o colégio (Assunção 2019).

Construída em 1796, a Real Botica de São Paulo, é considerada a primeira farmácia oficial do país, instalada no Vale do Anhangabaú onde hoje funciona a central dos Correios. Os principais produtos eram plantas medicinais nativas e produtos importados da Europa como: mercúrio, arsênico e ópio (Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo, 2016Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo. (2016). Farmácia. 2nd ed. São Paulo. https://www.crfsp.org.br/images/cartilhas/farmacia.pdf
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).

O bispo José Joaquim de Azeredo Coutinho funda no ano de 1798 o Seminário de Olinda, onde eram ensinadas as disciplinas de filosofia, latim, história eclesiástica e ciências como química, desenho, geometria, história natural e geografia, além de francês. Era o primeiro currículo com ênfase em ciência no país e a primeira vez que a química e a física experimental, dentro da história natural, eram lecionadas em caráter de ensino superior (Maar, 2004Maar, J. H. (2004). Aspectos históricos do ensino superior de química. Scientiae Studia, 2(1), 33-84. https://doi.org/10.1590/S1678-31662004000100003
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).

Segundo Max Weber, o Estado seria um aparato administrativo e político de dominação. Sem um Estado forte ocorreria um retorno a anarquia, isso justifica a repressão de interesses particulares em prol dos interesses do Estado. Sendo assim o estado consiste na relação de dominação do homem sobre o homem, existindo sob a condição de que homens dominados submetam-se à autoridade reivindicada pelos dominadores (Santos-Filho, 2022Santos-Filho, J. C. M. (2022). Weber: reflexões sobre Estado, tipologia da dominação e família. XDOCZ. https://xdocz.com.br/doc/santos-filho-julio-weber-reflexoes-sobre-estado-tipologia-da-dominacao-e-familia-libre-vod761xdd9o6
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).

A instalação das boticas era uma das formas de tentar regulamentar o uso e a aquisição de determinadas substâncias. Apesar dos boticários deterem um conhecimento científico maior do que os benzedeiros e raizeiros, muitos eram charlatões e só se interessavam pelo dinheiro da venda de seus produtos. A metrópole tentava fiscalizar esse comércio, mas como não havia profissionais capacitados para tal, esse serviço padecia de mão-de-obra qualificada. Com o ensino de ciências naturais ganhando força no país, começam a surgir os primeiros estudos mais aprofundados de muitas substâncias e as primeiras tentativas de regulamentação.

A família real e a criação dos primeiros cursos superiores

Com a chegada da família real portuguesa no Brasil em janeiro de 1808, várias reformas estruturais foram implementadas para abrigar a corte e satisfazer os desejos da coroa. Vieram, também, os juízes, que eram chamados de ouvidores do cível e ouvidores do crime. Estes ouvidores formaram o que se denominou Casa da Justiça da Corte. Além das Ordenações Filipinas, as fontes normativas utilizadas pelo judiciário da época eram: “Lex Romana Wisigothorum – direito comum dos povos germânicos; Privilégios – direitos assegurados aos nobres pelos reis; Forais – leis particulares locais, asseguradas pelos reis”. (Martins-Filho, 1999Martins-Filho, I. G. S. (1999). Evolução Histórica da Estrutura Judiciária Brasileira. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, 65(5), 85-114.).

O Estado e o poder não mostram distinção. Segundo Foucault, não existe poder, mas sim relações de poder, ou seja, formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente (Foucault, 1979Foucault. M. (1979). Microfísica do Poder. Graal.). Por conta disso o poder funciona como um aparato através de toda a sociedade do qual ninguém escapa, caracterizado como algo que diz respeito à lei e a repressão. O poder estrutura a sociedade e a mantém de forma hierárquica e organizada (Danner, 2009Danner, F. (2009). A Genealogia do Poder em Michel Foucault. IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação, 4, 786-794. https://ebooks.pucrs.br/edipucrs/acessolivre/anais/IVmostra/IV_MOSTRA_PDF/Filosofia/71464-FERNANDO_DANNER.pdf
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).

A corte instalada primeiramente na capital da Colônia, Salvador, o então príncipe regente D. João de Bragança (futuro rei D. João VI), funda a primeira instituição de ensino superior do país, a Escola de Cirurgia da Bahia em fevereiro de 1808. Instalada no Hospital Real Militar e com dependência no Colégio dos Jesuítas, no Largo do Terreno de Jesus. Contudo, devido às condições precárias, ainda não se realizavam perícias médicas no local e somente em 1824 vieram a serem iniciados os primeiros estudos de farmácia. A família real passa apenas 36 dias na Bahia e ruma para o Rio de Janeiro onde se instala definitivamente. Em novembro deste mesmo ano, é fundada a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro, a segunda instituição de ensino superior do país, instalada no Real Hospital Militar no Morro do Castelo, onde eram ensinadas as disciplinas de medicina, química, matéria médica e farmácia (Fenelon, 2022Fenelon, S. (2022). Primeira faculdade de Medicina do Brasil. Imaginologia.com.br. http://www.imaginologia.com.br/dow/Primeira-Faculdade-de-Medicina-do-Brasil.pdf
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; Miziara et al., 2012Miziara, I. D. C. S., Miziara, C. S., & Muñoz, D. R. (2012). A institucionalização da medicina legal no Brasil. Saúde, Ética & Justiça, 17(2), 66-74. https://doi.org/10.11606/issn.2317-2770.v17i2p66-74
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).

O ministro da guerra, conde de Linhares, funda em 1810 a Academia Real Militar do Rio de Janeiro, onde era lecionada a disciplina de química pelo inglês Daniel Gardner, o qual escreveu “Syllabus ou Compêndio das Lições de Química”, primeiro livro de química editado no país. Ainda outras duas instituições militares viriam a ensinar química no país, o Laboratório Químico Prático do Rio de Janeiro, fundado em 1812 e o Laboratório Químico do Museu Nacional, criado em 1818, sendo o primeiro interessado somente na química prática e industrial. Em 1817 foi criada a cátedra de química na Escola de Cirurgia da Bahia. Transformada em Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no ano de 1832, a antiga Escola Cirúrgica, Anatômica e Médica do Rio de Janeiro, veio a regular o ensino de farmácia no país com a criação da Faculdade de Farmácia e em 1854 a disciplina de química é desdobrada em duas, química inorgânica e química orgânica (Maar, 2004Maar, J. H. (2004). Aspectos históricos do ensino superior de química. Scientiae Studia, 2(1), 33-84. https://doi.org/10.1590/S1678-31662004000100003
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).

A 1ª lei sobre as drogas no Brasil é de 4 de outubro de 1830 da Câmara Municipal do Rio de Janeiro regulamentando a venda de gêneros e remédios pelos boticários, que proibia a venda e uso do pito de pango, denominação de um cachimbo para se fumar maconha e que, por associação, também apelidou a própria droga. A lei determinava multa ao vendedor e três dias de cadeia aos que usarem, explicitando-se aí escravos e demais pessoas. O critério, por explicitar escravos, era certamente de controle social, demonstrando que pode haver na lei, inclusive, um viés discriminatório (Pelli, 2011Pelli, R. (2011). Histórico da criminalização de drogas. Revista de História Biblioteca Nacional. http://rhbn.com.br/secao/reportagem/historico-da-criminalizacao-de-drogas
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).

O Estado tem por finalidade proporcionar a máxima felicidade dividida pelo maior número, segundo Cesare Beccaria. As leis possibilitam e afirmam a proteção das liberdades políticas. Essas liberdades são igualmente cedidas pelo Estado sendo este devendo ser respeitado e o defensor das mesmas. As leis então são os corolários das vontades livres possibilitando a vida em sociedade suas legitimidades repousam em suas coerências com o objetivo do contrato social de resguardar o bem comum (Andrade, 2021Andrade, T. L. S. (2021). As contribuições do pensamento de Cesare Beccaria em Dos Delitos e das Penas para o Direito Penal brasileiro: uma análise doutrinária. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, 80, 231-241.).

Apesar das iniciativas do reino em controlar a desordem existente na produção e dispensação de medicamentos, como a fiscalização do exercício dos boticários, por exemplo, esses esforços eram frustrados, sobretudo por não haver especialistas na área (Brandão, 2012Brandão, A. (2012). Entrevista com Professora Marta de Lana – Memória farmacêutica: por que preservar? Phamacia Brasileira, 85, 22-26.). Interessante notar o fato da popularização do uso não-médico da maconha na época, sobretudo pelos escravos e índios que a cultivavam para consumo próprio. Isso não chamava a atenção dos dirigentes por serem camadas menos favorecidas da sociedade, excetuando-se a figura da rainha D. Carlota Joaquina, apreciadora do chá de maconha (Carlini, 2006Carlini, E. A. (2006). A história da maconha no Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 55(4), 314-317. https://doi.org/10.1590/S0047-20852006000400008
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).

Com a criação de cursos superiores na área de saúde, o ensino de química e de farmácia passa a ser mais sistemático. Contudo a formação de um profissional demanda tempo, e até que este profissional chegue a atuar muitos boticários ainda faziam suas prescrições e vendas sem uma fiscalização eficiente. Apesar dos estudos em química e farmácia, havia ainda no Brasil uma deficiência no estudo de substâncias tóxicas e drogas, todavia esta lacuna estava para ser preenchida e uma regulamentação mais exigente para o comercio de determinadas substâncias estava surgindo.

O Império e a legislação penal

O rompimento então do contrato social, seria o fundamento político do direito de punir. A necessidade da punição existe por conta da natureza do ser humano. O fundamento ético do direito de punir consiste na defesa das liberdades políticas, pois o Estado é o defensor dessas liberdades frente às usurpações particulares. A coerção é justificada para impedir que o homem volte ao seu estado de natureza uma vez que nessa situação não há garantias das liberdades políticas (Gerhard, 2010Gerhard, D. C. (2010). O fundamento ético do direito de punir na obra Dei Delitti e Delle Pene, de Cesare Beccaria [Master’s dissertation, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia]. Portal FAJE. https://faculdadejesuita.edu.br/wp-content/uploads/2022/05/191211-wAW7Bnl0myEwO.pdf
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).

O primeiro código penal brasileiro, data de 1830 e ficou conhecido como Código Imperial, contudo não trazia nenhuma disposição em relação ao consumo e tráfico de substâncias entorpecentes, sendo em 1851, acrescido o artigo 51 dispondo sobre a venda de produtos venenosos irregularmente (Góis & Amaral, 2009Góis, M. M. A., & Amaral, J. H. (2009). O uso de drogas lícitas e ilícitas e suas consequências sociais e econômicas. V Encontro de Iniciação Científica, IV Encontro de Extensão Universitária e I Encontro de Iniciação Científica para o Ensino Médio, 5(5), file:///C:/Users/anton/Desktop/2253-5631-1-PB.pdf), mas não tocava na questão de proibição, regulando o uso e a venda de medicamentos. Não havia referência a substâncias como maconha, cocaína ou ópio. O decreto legislava com a utilização do termo substâncias venenosas e, atrelado, notadamente, à prática sanitária (Pelli, 2011Pelli, R. (2011). Histórico da criminalização de drogas. Revista de História Biblioteca Nacional. http://rhbn.com.br/secao/reportagem/historico-da-criminalizacao-de-drogas
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). Neste mesmo ano, o decreto imperial nº 839, regulamenta a profissão de boticário como sendo técnico na preparação de medicamentos. Em seu artigo 28 ficava claro que “os médicos, cirurgiões, boticários, dentistas e parteiras apresentarão seus diplomas”.

Com o decreto nº 2.055 de 1857, ficou estabelecido que os farmacêuticos não habilitados continuariam a ter licença para ter suas boticas. Fato irônico, pois o legislador não fazia diferença entre um boticário e um farmacêutico. Somente em 1886 a profissão de boticário deixa de existir dando espaço ao farmacêutico nas suas atribuições (Spada et al., 2006Spada, C., Chagas, J. R., Silva, K. F. F., & Castilho, S. R. (2006). A trajetória dos cursos de graduação na saúde: Farmácia. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.).

O ramo do Processo Penal é instituído em 1832 e a realização de perícias médicas criminais, as quais os juízes eram obrigados a consultarem os médicos para proferirem as sentenças. Nesse mesmo ano a disciplina de Medicina Legal passa a ser lecionada nas faculdades de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Em 1854 o mais antigo catedrático de medicina legal da faculdade do Rio de Janeiro, José Martins da Cruz Jobim, foi imbuído pelo Ministério da Justiça para coordenar a comissão de uniformização das práticas dos exames médico-legais. E em 1856, pelo decreto nº 1.746, a profissão de médico legista foi regulamentada no país (Coêlho, 2010).

Um decreto imperial sancionado em 1835 transforma a Sociedade de Medicina em Academia Imperial, instituindo-se a seção de farmácia elevando a classe à categoria científica, igualando-a às ciências médicas (Spada et al., 2006Spada, C., Chagas, J. R., Silva, K. F. F., & Castilho, S. R. (2006). A trajetória dos cursos de graduação na saúde: Farmácia. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.). Em abril de 1839 é sancionada a lei nº 140 que criava duas escolas de farmácia, uma em Ouro Preto e outra em São João Del Rei nas Minas Gerais. Ambas destinadas ao ensino de farmácia e matéria médica (Brandão, 2012Brandão, A. (2012). Entrevista com Professora Marta de Lana – Memória farmacêutica: por que preservar? Phamacia Brasileira, 85, 22-26.). E em 1897, começa a funcionar a Escola Livre de Farmácia e Química Industrial na cidade de Porto Alegre, onde era lecionada a disciplina de Química Analítica e Toxicológica. No ano seguinte em 1898 as congregações da Escola Livre de Farmácia e do Curso de Partos unem-se e é fundada a Faculdade de Medicina e Farmácia de Porto Alegre, a terceira faculdade de medicina do país (Velloso, 2007Velloso, V. P. (2007). Farmácia na corte imperial (1851-1887): práticas e saberes [Doctoral thesis, Fiocruz]. ARCA - Repositório Institucional da Fiocruz https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/16161/544.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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).

Com a fundação dos cursos de farmácia e com o ensino da toxicologia, o estudo de substâncias tóxicas e de drogas passa a ser mais aprofundado e sistematizado. Com isso vão surgindo profissionais capacitados para supervisionar e orientar o consumo e venda dessas substâncias. As primeiras leis regulamentárias também são frutos desse conhecimento científico mais analítico e preciso, sobretudo da toxicologia.

Em 1836 na região de Pedra Bonita no interior de Pernambuco, surge o Reino Encantado, criado por João Antônio. Fundado após ter visões de D. Sebastião, o Reino das Pedras, como também era conhecido, tinha o ideal de não haver mais pobres e ser um reino de paz. O sucessor de João Antônio, João Ferreira, distribuía um vinho encantado entre seus adeptos, feito com uma mistura de Jurema e Manacá. O Manacá são plantas das espécies Brunfelsia hopeana e B. latifolia, nas quais são encontrados os alcaloides hopeanina, brunfelsina e manacina, substâncias que causam alucinações, delírios e mudanças de humor, sendo as duas últimas de estruturas ainda não elucidadas. Após o consumo do vinho, era feita uma orgia e nas pregações dominicais, João Ferreira orientava seu povo a regar as pedras sagradas com sangue, pois só assim D. Sebastião renasceria e traria riqueza a todos, os negros tornar-se-iam brancos e os velhos rejuvenesceriam. Em 1838, João Ferreira em uma de suas visões comunicou ao povo que D. Sebastião estava triste com seu povo com a falta de sacrifícios, levando toda população do local a um auto-sacrifício coletivo (Matinez et al., 2009Martinez, S., Almeida, M., & Pinto, A. (2009). Alucinógenos naturais: um voo da Europa medieval ao Brasil. Química Nova, 32(9), 2501-2507. https://doi.org/10.1590/S0100-40422009000900047
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).

No ano de 1851, a Junta do Proto-Medicato criada em 1782 para fiscalizar e aprender drogas adulteradas e pessoas sem autorização de exercer a medicina passa agora a também fazer inspeções em navios, alimentos, farmácias, armazéns de mantimentos, restaurantes, açougues, colégios, cadeias, cemitérios, oficinas, laboratórios, fábricas e vacinas. Todavia a Junta não conseguia realizar nem suas funções iniciais, muito menos as novas designadas devido à diversidade de suas atribuições, continuando os problemas a existirem (Campos et al., 2011Campos, M. A., Vendramini, A. L., & Oliveira, J. C. (2011). História da Ciência e Tecnologia dos Alimentos no Brasil no Pós II Guerra até os dias atuais: desenvolvimento e estruturação do alimento. Scientiarum Historia 1, 492-498. http://revistas.hcte.ufrj.br/index.php/RevistaSH/issue/view/10
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).

Apesar das primeiras leis de regulamentação e penais, a fiscalização por parte do governo ainda não era suficiente para controlar o comércio de tóxicos e drogas. Muito ainda era centrado nos médicos e nos poucos farmacêuticos formados. O uso de drogas começa a ficar mais intenso e problemas como o caso do Reino Encantado passam a chamar a atenção do governo e da opinião pública. O temor do uso de determinadas substâncias faz o governo restringir mais o uso através de leis mais rígidas. Há uma ampliação dos cursos superiores de saúde e de química no intuito haver mais estudos sobre os problemas causados pelo uso de substâncias tóxicas e drogas.

A República e o aumento do proibicionismo

Um dispositivo do poder que permite o controle minucioso das operações do corpo é a disciplina. Ela trabalha diretamente o corpo do indivíduo manipulando seus gestos e comportamento, formando-o e adestrando-o. Isso está relacionado com a dominação política sobre o corpo onde um tipo específico de homem é necessário para o funcionamento correto do Estado (Danner, 2009Danner, F. (2009). A Genealogia do Poder em Michel Foucault. IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação, 4, 786-794. https://ebooks.pucrs.br/edipucrs/acessolivre/anais/IVmostra/IV_MOSTRA_PDF/Filosofia/71464-FERNANDO_DANNER.pdf
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).

Dois mecanismos complementares e articulados são estabelecidos em esferas diferentes como forma do poder de controlar o indivíduo. O poder disciplinar, agindo na esfera do corpo e o biopoder, atuando na esfera da população. O biopoder pode ser entendido como um poder que se aplica à vida dos indivíduos e atua através dos mecanismos reguladores. O indivíduo sujeito ao biopoder subjuga seu corpo ao controle da sociedade sendo esta sociedade governada pelo Estado (D. R. Silva, 2018Silva, D. R. (2018). Biopoder na concepção de Michel Foucault: o poder do Estado no controle da sociedade. Periagoge, 1(1), 27-39. https://portalrevistas.ucb.br/index.php/periagoge/article/view/8909
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).

Com a República, o país passa agora a ter também um novo código penal instituído em 1890, baseado no direito romano (Miziara et al., 2012Miziara, I. D. C. S., Miziara, C. S., & Muñoz, D. R. (2012). A institucionalização da medicina legal no Brasil. Saúde, Ética & Justiça, 17(2), 66-74. https://doi.org/10.11606/issn.2317-2770.v17i2p66-74
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) e a partir de 1891 a disciplina de Medicina Legal passa a ser obrigatória em todos os cursos de direito do país (Coêlho, 2010). A partir do código penal republicano passa a figurar expressamente a proibição de substâncias psicoativas e venenosas, contudo era uma norma penal em branco, pois deveria ser complementada com regulamentos sanitários do poder executivo.

Até então no Brasil as penas aplicadas para quem consumisse ou vendesse sem autorização substâncias venenosas ou psicoativas eram de confisco de bens. Isso vigorou até o país aderir à Conferência Internacional do Ópio, de 1912. A visão de que as drogas seriam tanto um problema de saúde quanto de segurança pública, desenvolvida pelos tratados internacionais da primeira metade do século passado, foi paulatinamente trazida para a legislação nacional (A. F. Silva, 2019Silva, A. F. (2019). As mortes decorrentes de intervenção policial e os limites da legítima defesa à luz das propostas de abater criminosos. Revista de Artigos Científicas da EMERJ, 11(2), 101-117. https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/2semestre2019/tomos/tomoI/versao-digital/109/
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).

Com o aumento das complicações neuropsiquiátricas oriundas do uso de cocaína, observadas desde o final do século XIX até o início do século XX, isso leva aos Estados Unidos promulgar em 1914 o “Harrison Act” restringindo o uso da substância. No Brasil somente em 1921 é promulgado o decreto-lei federal nº 4.292 restringindo o uso de cocaína, ópio e morfina (Ferreira & Martini, 2001Ferreira, P. E., & Martini, R. (2001). Cocaína: Lendas, história e abuso. Revista Brasileira de Psiquiatria, 23(2), 96-99. https://doi.org/10.1590/S1516-44462001000200008
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). Na II Conferência Internacional do Ópio, realizada em 1924 em Genebra na Suíça, a pauta constava sobre discussões acerca do ópio e a cocaína. Entretanto o representante do Brasil no congresso, o Dr. Pernambuco Filho, juntamente com o representante egípcio, levantaram questionamentos acerca da maconha, descrevendo a planta como “mais perigosa do que o ópio”. A partir daí a maconha passa a figurar na lista de substâncias proibidas (Carlini, 2006Carlini, E. A. (2006). A história da maconha no Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 55(4), 314-317. https://doi.org/10.1590/S0047-20852006000400008
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).

Mesmo com a fundação de laboratórios de pesquisa e de fabricação de produtos farmacêuticos e de medicamentos, as leis de regulamentação sofriam de um forte apelo popular, muitas vezes baseado apenas em mitos. Mesmo alguns catedráticos, temiam o uso de algumas substâncias, por conta disso algumas leis e penas foram impostas sem haver um debate mais aprofundado.

A política criminal brasileira começou a adquirir uma configuração de “modelo sanitário”, caracterizado pelo aproveitamento dos saberes e técnicas higienistas, com as autoridades policiais, jurídicas e sanitárias exercendo funções contínuas, às vezes substituíveis. O dependente era tratado como doente, com técnicas similares às do contagio e infecção da febre amarela e varíola e não era criminalizado, mas objeto de notificações compulsórias para internação com decisão judicial informada com parecer médico. O próprio tráfico se alimentava do desvio da droga de seu fluxo autorizado, feito por farmacêuticos e funcionários da alfândega. O consumo de drogas não era massivo, mas ligado a grupos exóticos, a um universo misterioso, sem significação econômica (Guadanhin & Gomes, 2017Guadanhin, G. C., & Gomes, L. C. (2017). Política criminal de drogas: a viabilidade da redução de danos como uma alternativa ao proibicionismo no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 25(127), 263-294. http://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/109103
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).

Devido ao aumento no consumo de substâncias psicoativas, a legislação da época não atingia a eficácia necessária, então foi criado o artigo 159 na Consolidação das Leis Penais em 1932. O decreto nº 20.930, de 11 de janeiro de 1932 passou a considerar a toxicomania como doença de notificação compulsória e determinou, entre outras coisas, que a lista das substancias tóxicas deveriam ser revisadas periodicamente (A. F. L. M. Silva, 2011Silva, A. F. L. M. (2011). Histórico das drogas na legislação brasileira e nas convenções internacionais. Revista Jus Navigandi, 16(2934). http://jus.com.br/artigos/19551/historico-das-drogas-na-legislacao-brasileira-e-nas-convencoes-internacionais
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). Em 1938 é criado o Decreto-lei 891 trazendo normas proibitivas para a produção, tráfico e consumo bem como uma lista de substâncias tóxicas (Góis & Amaral, 2009). Dois anos antes em 1934 era promulgado o decreto nº 24.114 regulando a produção de organossintéticos considerados agrotóxicos, sendo esse decreto tendo ficado em vigor por 55 anos, substituído somente em 1989, pela lei nº 7.809, chamada de “Lei dos Agrotóxicos” (Garcia et al., 2005Garcia, E., Bussacos, M. A., & Fischer, F. M. (2005). Impacto da legislação no registro de agrotóxicos de maior toxicidade no Brasil. Revista de Saúde Pública, 39(5), 832-839. https://doi.org/10.1590/S0034-89102005000500020
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).

Ainda nos anos de 1930 passam a ter os primeiros registros de prisões pelo comércio agora considerado clandestino de maconha no Rio de Janeiro, e já nos anos de 1940 a polícia da Bahia começava a fazer suas detenções pelo comércio ilegal da droga (Carlini, 2006Carlini, E. A. (2006). A história da maconha no Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 55(4), 314-317. https://doi.org/10.1590/S0047-20852006000400008
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). Em 1942 é promulgado o Decreto-lei nº 4.720 no qual o cultivo de plantas como a maconha passa a ser penalizado (Góis & Amaral, 2009Góis, M. M. A., & Amaral, J. H. (2009). O uso de drogas lícitas e ilícitas e suas consequências sociais e econômicas. V Encontro de Iniciação Científica, IV Encontro de Extensão Universitária e I Encontro de Iniciação Científica para o Ensino Médio, 5(5), file:///C:/Users/anton/Desktop/2253-5631-1-PB.pdf).

A realização da Convenção Única sobre Drogas em Nova York nos Estados Unidos no ano de 1961 mostra como a questão do uso de drogas estava ganhando repercussão mundial, sendo o Brasil um dos signatários. Nesta convenção a maconha é considerada tão prejudicial à saúde quanto à heroína (C. H. P. Rodrigues & Bruni, 2023Rodrigues, C. H. P., & Bruni, A. T. (2023). Diálogo entre a química e o direito: uma aproximação necessária para a lei de drogas. Revista Brasileira de Ciências Policiais, 14(11), 387-423. https://periodicos.pf.gov.br/index.php/RBCP/article/view/972/767
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). Em 1967 o Decreto-lei nº 159 iguala às substâncias entorpecentes as substâncias capazes de causar dependência física e psíquica e em 1968 o Decreto-lei nº 385 oriundo do Ato Institucional nº 5 acrescenta os termos preparar e produzir no artigo 281 do Código Penal o qual regulava a questão das drogas no Brasil e equiparava traficante e usuário dependente tendo ambos a mesma sansão (Góis & Amaral, 2009Góis, M. M. A., & Amaral, J. H. (2009). O uso de drogas lícitas e ilícitas e suas consequências sociais e econômicas. V Encontro de Iniciação Científica, IV Encontro de Extensão Universitária e I Encontro de Iniciação Científica para o Ensino Médio, 5(5), file:///C:/Users/anton/Desktop/2253-5631-1-PB.pdf).

A edição da Lei nº 5.726 em 1971 retirava o dependente químico do âmbito penal, contudo não fazia distinção entre usuário eventual, experimentador e traficante, ainda os elencando sobre as mesmas penalidades. A Lei nº 6.368 de 1976 acrescenta os termos remeter, adquirir e prescrever em relação às substâncias elencadas como ilícitas e previa penalidades a quem portasse drogas em qualquer quantidade (Greco-Filho & Rassi, 2020Greco-Filho, V., & Rassi, J. D. (2020). Histórico-drogas. In C. F. Campilongo, A. A. Gonzaga, & A. L. Freire (Coords.), Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/428/edicao-1/historico-drogas
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). Em 1972 é fundada a Sociedade Brasileira de Toxicologia e em 1977 é realizado o primeiro Congresso Brasileiro de Toxicologia na cidade de Guarujá em São Paulo (Fukushima & Azevedo, 2008Fukushima, A. R., & Azevedo, F. A. (2008). História da toxicologia. Parte I – Breve panorama brasileiro. Revista Intertox de Toxicologia, Risco Ambiental e Sociedade, 1(1), 2-32. https://doi.org/10.22280/revintervol1ed1.3
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).

O Ministério da Saúde cria em 1980 o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) por conta da necessidade de documentar e informar a nível nacional os principais medicamentos e substâncias tóxicas para os gestores e profissionais de saúde, bem como a população em geral (Leoni, 2008Leoni, F. (2008). História do Sistema Nacional de Informações Toxico Farmacológicas. Fiocruz. http://www.fiocruz.br/sinitox_novo/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=5.
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).

Surge em 1985, vinda das Bahamas uma nova forma de apresentação da cocaína, conhecida como crack. A droga ganha rápida popularização nos Estados Unidos e chega ao Brasil na mesma década. Mas somente no ano de 1989 ocorrem os primeiros registros de apreensões dessa forma da droga no estado de São Paulo (Dunn et al., 1996Dunn, J., Laranjeira, R. R., Silveira, D. X., Formigoni, M. L. O. S., & Ferri, C. P. (1996). Crack cocaine: an increase in the use among patient attending clinics in São Paulo 1990-1993. Substance use Misuse, 31(4), 519-527. https://doi.org/10.3109/10826089609045824
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).

Desde o ano de 2002, começam a serem travados vários debates no Congresso Nacional e no Poder Executivo na tentativa de renovar o ordenamento jurídico em relação à questão das drogas. Somente em 2006 foi sancionada a Lei nº 11.343 ficando conhecida como “Lei de Drogas” dispondo sobre importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, determinando as penalidades legais para quem cometer quaisquer umas dessas condições, estando em vigor atualmente (Machado, 2022Machado, M. H. (2022). Entre o usuário e o traficante de drogas ilícitas. Revista Jus Navigandi, 27(7049). http://www.tjmt.jus.br/INTRANET.ARQ/CMS/GrupoPaginas/105/974/Entre_o_usu%C3%A1rio_e_o_traficante_de_drogas_il%C3%ADcitas_-_Juscombr_-_Jus_Navigandi.pdf
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).

Em novembro de 2014 o Conselho Federal de Medicina autoriza os médicos a prescreverem o canabidiol (CBD), substância encontrada na maconha que não causa efeitos alucinógenos ou psicotrópicos, no tratamento de doenças neurológicas graves. E em janeiro de 2015 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reclassifica o CBD de substância de uso proscrito no Brasil para substância sujeita a controle especial (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2015Agência Nacional de Vigilância Sanitária. (2015). Canabidiol é reclassificado como substância controlada. http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/anvisa+portal/anvisa/sala+de+imprensa/menu+-+noticias+anos/2015/canabidiol+e+reclassificado+como+substancia+controlada
http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/...
; A. Rodrigues, 2014Rodrigues, A. (2014 November 12). Conselho vai autorizar prescrição de canabidiol por médicos de todo o país. Agência Brasil https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-11/conselho-vai-regulamentar-prescricao-de-canabidiol-por-medicos-de-todo-o-pais
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/n...
). No ano de 2017, a maconha passou a integrar a farmacopeia brasileira (Ministério da Saúde & Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2017Ministério da Saúde & Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil). (2017). Resolução RDC nº 156, de 5 de maio de 2017. Dispõe sobre a alteração das Resoluções da Diretoria Colegiada - RDC nº 64/2012, nº 29/2013, nº 42/2014, nº 01/2015, nº 11/2015, nº 71/2016 e nº 104/2016, para a inclusão, alteração eexclusão de Denominações Comuns Brasileiras - DCB, na lista completa das DCB da Anvisa. Diário Oficinal da União. https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/20198336/do1-2017-05-08-resolucao-rdc-n-156-de-5-de-maio-de-2017-20198229
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_pu...
), foi permitida a importação de medicamentos feitos à base de maconha (Ministério da Saúde & Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2020Ministério da Saúde & Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil). (2020). Resolução - RDC nº 335, de 22 de janeiro de 2020. Define os critérios e os procedimentos para a importação de Produto derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde. Diário Oficinal da União. https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-rdc-n-335-de-24-de-janeiro-de-2020-239866072
https://www.in.gov.br/web/dou/-/resoluca...
), a comercialização nas farmácias desses medicamentos e a produção de medicamentos à base de maconha no Brasil (Ministério da Saúde & Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2019). A criação desses dispositivos vem facilitando o processo de importação e a comercialização da maconha medicinal em território nacional.

Recentemente no ano de 2022 a Anvisa através de uma reunião da diretoria colegiada concedeu uma Autorização Especial Simplificada para Estabelecimento de Ensino e Pesquisa (AEP) para que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) possa plantar e conduzir experimentos científicos com a planta Cannabis sativa, sendo a primeira vez que esse tipo de autorização é concedido no país (Leal, 2022Leal, A. (2022 December 15). Anvisa autoriza pesquisa com derivados da Cannabis na UFRN. Projetos serão conduzidos pelo Instituto do Cérebro. Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-12/anvisa-autoriza-pesquisa-com-derivados-da-cannabis-na-ufrn
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).

Também no ano de 2022 ocorreram modificações na Lei de Agrotóxicos. A Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que “fixa prazo para a obtenção de registro de agrotóxicos no Brasil, centraliza no Ministério da Agricultura as tarefas de fiscalização e análise desses produtos para uso agropecuário e prevê a concessão de registro temporário se o prazo não for cumprido”. Atualmente os pedidos de registro podem demorar cerca de sete anos. Com o novo projeto, basta que o produto seja utilizado por pelo menos três países membros da Organização para Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE) que o órgão registrante pode solicitar um registro temporário ou uma autorização temporária, caso não haja um parecer conclusivo num prazo de dois anos (Piovesan, 2022Piovesan, E. (2022 February 9). Câmara aprova projeto que altera regras de registro de agrotóxicos. Entre outros pontos, a proposta centraliza no Ministério da Agricultura as tarefas de fiscalização e análise de pesticidas. Agência Câmara de Notícias. https://www.camara.leg.br/noticias/849479-camara-aprova-projeto-que-altera-regras-de-registro-de-agrotoxicos/
https://www.camara.leg.br/noticias/84947...
). Já a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária aprovou o Projeto de Lei 1.459/2022 que revoga a atual Lei dos Agrotóxicos. A proposta foi aprovada no Senado e agora segue para sanção do Presidente da República. O texto é polêmico e opõe entidades ruralistas e ambientalistas. A proposta permite liberação de novos pesticidas com decisão apenas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), sem que a Anvisa e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) participem ou sejam consultados nesse processo de liberação. Isso pode acarretar em um aumento do uso e consequentemente do consumo de agrotóxicos que podem ocasionar efeitos indesejáveis no meio ambiente, nos trabalhadores rurais e nos consumidores (Pimenta, 2022Pimenta, P. S. (2022 December 2). PL dos agrotóxicos: entenda as mudanças propostas. Agência Senado. https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/12/pl-dos-agrotoxicos-entenda-os-principais-pontos-do-projeto
https://www12.senado.leg.br/noticias/inf...
).

Mesmo com a expansão dos cursos de saúde e de química, há um preconceito sobre o uso de determinadas substâncias e seus efeitos. O legislador ao elaborar a norma, teoricamente, toma por base o conhecimento científico dos especialistas e também a opinião da população. O processo de produção do conhecimento tornou-se amplo e acelerado, contudo, muitas vezes esse conhecimento é passado de forma questionável para a população. Apesar da atual legislação brasileira sobre tóxicos diferenciar usuário de traficante, na prática essa diferenciação torna-se complicada, sendo muitas vezes um usuário tido como traficante. Há ainda um agravante, inicialmente as políticas de tratamento de dependentes químicos seguiam uma tendência de redução de danos, contudo nos últimos anos, uma atualização da Lei nº 11.343/2006 feita pelo Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019 favorece políticas de tratamento de usuários de drogas baseadas em modelos de abstinência (Presidência da República, 2019Presidência da República (Brasil). (2019). Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019. Aprova a Política Nacional sobre Drogas. Diário Oficial da União. https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/decreto-no-9-761-de-11-de-abril-de-2019-1
https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acess...
) e as políticas de repressão estão cada vez mais intransigentes.

Conclusão

A história do Brasil está intimamente ligada com a história do uso de drogas. Os primeiros habitantes da terra já faziam o uso de substâncias capazes de alterar os sentidos, seja causando agitação, torpor ou alucinações. Muitas dessas substâncias eram plantas, consumidas ao acaso para saciar a fome e com o tempo foi-se associando a elas algumas das sensações obtidas. Já era relatado o uso de bebidas alcoólicas, a princípio feitas acidentalmente e posteriormente desenvolvidas seus métodos de produção. Venenos animais e de plantas eram muito utilizados nas caças e nas guerras. Apenas uma parcela da população detinha o conhecimento de qual planta ou animal poderia ser usado para se extrair algum veneno, ou alguma substância para curar as moléstias; geralmente essas pessoas eram sacerdotes ou curandeiros e mais tarde os alquimistas e boticários.

O processo de colonização traz uma nova dinâmica social e a necessidade da regulação. Governar é pactuar e subordinar-se a uma vontade maior, a vontade da população. O poder não é exercido sozinho, pois o poder de governar é baseado no consenso outorgado pelo outro. O poder para o governo tem por finalidade aproximar os objetivos e interesses defendidos pela vontade comum. Assim o governo arrebanha e conduz seus súditos ao bem viver em sociedade.

A garantia desta organização é feita pelo Estado que atua como centro de organização mental dos diversos grupos que refletem a coletividade. Então para Émile Durkheim, o indivíduo é fruto da sociedade como um todo e sua existência só é real devido a atuação do Estado. Este indivíduo é detentor de direitos e obrigações. Duas faculdades lhe são essenciais: a capacidade de estar em juízo e o direito de elaborar normas as quais deve obediência. A observância da lei constitui o cumprimento do contrato social.

O debate acerca do uso das drogas e de outras substâncias é mais amplo do que somente proibir ou regulamentar, pois substâncias como o tabaco e o álcool são regulamentadas e mesmo assim há o tráfico de produtos ilegais feitos deles. Conhecer o histórico do uso de drogas pode mostrar como elas um dia foram permitidas e atualmente algumas podem encontrar-se proscritas devido o controle do Estado. Essas proibições muitas vezes estão atreladas a preconceitos não tendo nenhum embasamento acadêmico.

References

Editado por

Editor responsável

André Luiz Monezi de Andrade

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2022
  • Revisado
    30 Jun 2023
  • Aceito
    30 Out 2023
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