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A noção de alteridade radical e sua importância na docência

The notion of radical alterity and its importance for the teacher's action

Resumos

Este artigo ensaia alguns passos na direção da dimensão ética do processo de ensinar e aprender, com a ajuda do pensamento de Emmanuel Lévinas. A noção de alteridade radical permite pensar o desejo de aprender como uma modalidade do desejo, que depende justamente daquilo que muitas vezes se busca suprimir: o contato, pelo discurso, com as coisas que se dão como excedente de sentido e que, por isso, são estranhas e inassimiláveis. Ideais de planejamento e cálculo do conteúdo a ser ensinado favorecem tal supressão. Assim, é possível suspeitar que esses ideais também respondem pelo enfraquecimento do desejo de aprender.

Lévinas; alteridade; desejo


This article gives some steps towards the ethics direction of the teaching and learning process with the help of Emanuel Lévinas›thought. The notion of radical alterity makes us think the desire of learning as a kind of desire which depends of what many times we try to supress: the contact through speech with the things that happen as surplus of sense and that, for this reason are strange and inassimilable. The ideals of planning and estimation of the content to be taught favor such suppression. Thus, it is possible to think that these ideals also account for the weakening of the desire to learn.

Lévinas; alterity; desire


A noção de alteridade radical e sua importância na docência

The notion of radical alterity and its importance for the teacher's action

Vera Lúcia Blum

Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Universidade Federal de Mato Grosso. Av. Fernando Correia - Boa Esperança. 78043-375 - Cuiabá, MT – Brasil. E-mail: verablum@terra.com.br

RESUMO

Este artigo ensaia alguns passos na direção da dimensão ética do processo de ensinar e aprender, com a ajuda do pensamento de Emmanuel Lévinas. A noção de alteridade radical permite pensar o desejo de aprender como uma modalidade do desejo, que depende justamente daquilo que muitas vezes se busca suprimir: o contato, pelo discurso, com as coisas que se dão como excedente de sentido e que, por isso, são estranhas e inassimiláveis. Ideais de planejamento e cálculo do conteúdo a ser ensinado favorecem tal supressão. Assim, é possível suspeitar que esses ideais também respondem pelo enfraquecimento do desejo de aprender.

Palavras-chave: Lévinas; alteridade; desejo.

ABSTRACT

This article gives some steps towards the ethics direction of the teaching and learning process with the help of Emanuel Lévinas›thought. The notion of radical alterity makes us think the desire of learning as a kind of desire which depends of what many times we try to supress: the contact through speech with the things that happen as surplus of sense and that, for this reason are strange and inassimilable. The ideals of planning and estimation of the content to be taught favor such suppression. Thus, it is possible to think that these ideals also account for the weakening of the desire to learn.

Keywords: Lévinas; alterity; desire.

A experiência e a concepção da intersubjetividade vêm sendo geradas e desenvolvidas por diversas linhas do pensamento contemporâneo. Elas se opõem à tradição subjetivista individualista e algo solipsista na filosofia e na psicologia, que concebe o eu (ou consciência) como entidade pura autofundante, independente da existência de um outro, por isso autossuficiente. O "penso, logo existo", de Descartes (1962[1641]), é o sustentáculo dessa tradição na Modernidade.1 1 Lévinas (1980, p. 31) nos lembra que as filosofias que dão precedência ao eu sobre o outro remontam a uma história anterior ao surgimento da filosofia de Descartes: "o primado do Mesmo foi a lição de Sócrates: nada receber de Outrem a não ser o que já está em mim, como se, desde toda a eternidade, eu já possuísse o que me vem de fora".

Entre os pensadores que se dedicaram ao tema da intersubjetividade, destaca-se Emmanuel Lévinas. Nascido em Kaunas, na Lituânia, em 1906, Lévinas faleceu no Natal de 1995, na capital da França, país para onde emigrara em 1923. Sua inserção no campo da filosofia contemporânea se dá pela interlocução com o pensamento de Husserl e de Heidegger e pela crítica à metafísica da presença e ao primado do pensamento teórico-representacional na filosofia ocidental. Pensador da ética, Lévinas percorre um caminho original em que o outro é a referência forte, em contraposição à tradição filosófica ocidental que põe o Eu livre e autônomo na determinação de seu agir ético.

Apesar de diversas linhas de pensamento da filosofia e da psicologia contemporâneas terem em comum, na noção de intersubjetividade, o traço da oposição aos subjetivismos individualistas e solipsismos, é sobre aquilo que os filósofos e psicólogos pensam acerca da intersubjetividade e, nesta, da alteridade, que residem as diferenças.

Em artigo intitulado "Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva: dimensões da alteridade", Coelho Junior e Figueiredo (2004) organizam e elucidam o campo em que o tema da intersubjetividade se desenvolve na filosofia e na psicanálise. Eles afirmam que inextrincáveis à noção de intersubjetividade encontram-se as várias concepções de alteridade (o Outro redutível ou assimilável ao mesmo, o Outro da diferença radical, o Outro acolhedor, o Outro do reconhecimento) que simultaneamente respondem pelos processos de constituição e elaboração subjetivas.

O Outro da diferença radical – aquele algo estranho, excessivo e inassimilável, quer pertença ao próprio, embora este não o reconheça (o inconsciente), quer pertença ao outro – comparece como uma concepção de alteridade, cuja referência ética parece oferecer uma nova perspectiva aos processos de ensino e "problemas de aprendizagem". A ideia de Lévinas, segundo a qual a subjetividade se constrói abrigando uma alteridade cujo encontro é sempre traumatizante, mas que é o disparador dos processos de subjetivação e ressubjetivação (FIGUEIREDO, 2003), abre um horizonte para pensarmos os meandros da sala de aula, palco onde se tecem as malhas intersubjetivas em relação com o saber.

A aproximação do pensamento de Lévinas ao campo da educação pode favorecer o desenvolvimento de uma sensibilidade do educador/professor em sala de aula para o dizer do outro/aluno. Ouvir o dizer não é a mesma coisa que ouvir o que está sendo dito, não é a mesma coisa que ouvir o conteúdo do dizer. Ouvir o dizer do outro, sem visar à sua compreensão a partir de representações prévias do eu, é se colocar na posição de quem se dirige a um interlocutor. Na interlocução estabelecemos uma relação em que a diferença de um ao outro se preserva, pois o dizer, fonte inesgotável de significação, sustenta uma relação que resiste à totalização: a palavra é remissão de um significado ao outro e o significado é sempre um significante para um outro significado. "A palavra consiste em explicar-se sobre a palavra, em ser ensinamento" (LÉVINAS, 1980, p. 84). Ensinar ou ser ensinado, falar ou poder ser dito é produzir sentido. Mas esse sentido provém da alteridade que não se assimila na percepção, que não se dá como objetividade ou como matéria de conhecimento, como quando se diz: "Fulano é um D.A., um deficiente auditivo". O outro que se mantém radicalmente outro não pode ser, compreendido ou abarcado por categorias, sejam elas quais forem: raciais, sexuais, religiosas, médicas, psicológicas, psicopatológicas etc. A relação com o radicalmente outro é o fulcro da Ética em Lévinas.

É comum estar-se habituado a pensar que a docência se efetiva no ato de ensinar daquele que, pelo lugar que ocupa, se reveste de uma autoridade intelectual, quase doutrinal. O magister é aquele que transmite algum ensinamento a outra pessoa de quem, dentro dos estabelecimentos escolares, se valoriza a faceta cognitiva. Na escola, os ensinamentos a serem transmitidos sistemática e formalmente têm por propósito prima facie mobilizar os processos cognitivos, lógicos e racionais do educando. Todavia, a transmissão do conhecimento, onde quer que ocorra – e a sala de aula é um desses lugares – pressupõe uma outra pessoa a quem o ensinamento se dirige. Portanto, em sala de aula, mesmo que tratemos de priorizar a transmissão de conteúdos técnicos, cognitivos e racionais, não podemos negar nem a existência da outra pessoa nem a ética que regula o modo pelo qual nos relacionamos com o outro. Em sala de aula, a subjetividade racional (cognição) e a subjetividade ética (socialidade) imbricam-se em pelo menos duas dimensões que se atravessam e pelas quais se movimentam professores e alunos: a dimensão cognitiva e a dimensão ética, em que se desenrolam as relações entre subjetividades.

Com o intuito de aproximar aspectos do pensamento de Lévinas ao campo da educação, o objetivo deste artigo é ensaiar alguns e primeiros passos na direção da dimensão ética do processo de ensinar e aprender, com a ajuda da noção de alteridade radical em Lévinas.

1. DESEJO DE APRENDER E DESEJO DE OUTREM: APROXIMAÇÕES

Mrech (1999), psicanalista e supervisora de professores nas redes públicas e privadas, anuncia: "muitos dos professores e alunos não têm mais vontade de aprender. Eles não querem mais estudar" (p. 88). Ela constata que o desejo de saber a respeito do que acontece com ele, professor, está enfraquecido. No lugar dos mútuos investimentos afetivos que promovem ligações relativamente duradouras entre os participantes da sala de aula e que fenomenologicamente podemos descrever como coesão grupal e entusiasmo, instala-se a apatia que, por sua vez, sinaliza para o desligamento afetivo operado pela pulsão de morte. O efeito visível é um cotidiano escolar em que as atividades se repetem e fazem brotar, nos professores, sentimentos, que eles identificam como desmotivação, desânimo e desmoralização.

A "descrença do professor em relação ao seu próprio trabalho" está, segundo MRech (1999, p. 92), na base de uma "postura de autodesimplicação" perante os distúrbios de aprendizagem de seus alunos. Tal postura, de não responsabilidade pelo outro de quem o eu está próximo, se mostra nos encaminhamentos (desejados ou efetivados) do "aluno-problema" ao técnico especializado (por exemplo, ao psicólogo, ao psicopedagogo). Souza (2005, p. 90), ao analisar os prontuários de crianças e adolescentes encaminhados às clínicas-escola de psicologia, revela haver uma criticável desconsideração de ações no campo educacional que poderiam ajudar a enfrentar muitos dos problemas das crianças e poupar o encaminhamento aos serviços psicológicos. Segundo ela,

não se quer afirmar que não existam problemas emocionais graves. Mas sim que estes recaem sobre a maciça maioria de crianças das nossas escolas (públicas e privadas) e que mesmo que tais problemas aconteçam, as experiências recentes mostram a importância do espaço pedagógico como um elemento estruturante do psiquismo e promotor de relações mais saudáveis.

Há de se perguntar se os professores dispõem dos recursos psíquicos necessários para trabalhar em meio às turbulências emocionais, em meio às experiências desalojadoras do eu, que os fluxos intersubjetivos geram. A hipótese é que os professores estão desamparados afetivamente e estão convivendo mal com a ignorância e a incerteza implicadas na relação com o saber. Com o fortalecimento do papel dos especialistas – da "competência especializada" (BAUMAN, 1999) – o inapreensível é visado com o intuito de perder sua qualidade de inapreensível.

Segundo Bauman (1999), o indivíduo moderno é visto como um agente autocontido e fechado em si mesmo, potencialmente no controle do seu próprio projeto de vida, capaz de escolher racionalmente, dentre as inúmeras possibilidades, aquela que melhor se ajusta às suas capacidades. A injunção de certeza e de domínio sobre si, bem como a crença na existência de soluções técnicas e racionais para os problemas práticos fazem com que "a identidade persistentemente ambígua e a permanência da incerteza" sejam vividas como "sintomas de ignorância ou negligência pessoal, degradantes e embaraçantes" (p. 220). É o caso, por exemplo, do professor que não admite afirmar "não sei" perante a indagação, muitas vezes singela, de um aluno, porque a afirmação do não saber é imaginada como o primeiro passo para a perda da autoridade, portanto, para a destituição desonrante de seu cargo. Contra o desconforto que a ambiguidade, a incerteza e a ignorância geram, o professor pode reagir de modo quase ditatorial na tentativa de se manter na posse do que ele supõe ser a verdade cabal, decisiva e inapelável.

Se a competência especializada supõe que o desconforto pessoal é uma condição essencialmente remediável – para qualquer mal há de ser encontrado um remédio – o desconforto não pode nem deve ser tolerado. A crença dominante em uma sociedade tecnologizada é que, para qualquer problema, há de ser encontrada uma solução técnica, de modo que o mal-estar deixa de ser visto como uma condição com que, muitas vezes, é preciso aprender a conviver.

A noção de alteridade radical de Lévinas caminha na contramão dos ideais modernos de resolução, sem resto, dos problemas relacionados ao existir humano. Segundo Coelho Júnior e Figueiredo (2004, p. 20-21),

a cada momento da emergência do outro, algo não poderá ser simplesmente assimilável ao campo do já sabido e já disponível para o uso e o controle. [Assim,] a forma de subjetivação que reconhece a alteridade, [...] ação, adaptação e perfeiatuaçque reconhece que algo do outro excede sempre a mim, será por sua vez sempre traumática. Trauma e excesso que exigem trabalho por parte do sujeito.

Há sempre uma inadequação e uma opacidade em operação nas relações intersubjetivas e nestas com os objetos de conhecimento. Por mais que nos esforcemos na busca da mais clara e transparente forma de expressar nossas intenções, sentimentos ou pensamentos, sempre haverá algum desajuste entre o eu emissor e o outro receptor. Cada um de nós já experimentou o desconforto de ver o que supunha serem as palavras precisas, concisas e justas a explicar com clareza o pensamento, serem "deturpadas" pelo outro leitor ou ouvinte. Quem é este outro que deturpa minhas intenções? Tenho o direito de desqualificá-lo para me manter protegido em minha consciência? Ou será que posso recebê-lo como um dizer que excede minha compreensão e que exige de mim um questionamento de minha consciência? Não seria algo da ordem desses excessos que nos atingem, que nos fazem balançar ou perder o chão das nossas certezas, o motor do desejo, que constitui e reconstitui a subjetividade singular? Excesso que põe o desejo em movimento para abrigá-lo, sem, contudo, o assimilar. É sobre a noção de desejo como movimento do eu em direção ao inapreensível que pretendemos pensar o desejo de aprender.

O desejo, que nasce para abrigar e se ligar com o que no eu o excede, é diferente da necessidade. Na necessidade o eu se depara com uma falta e, como atividade, sai em busca do objeto a suprir essa falta e que, portanto, o satisfaz. Ora, o que está em jogo no pensamento de Lévinas (1980, p. 21, grifo do autor) é a noção de outro que, por não se constituir como objeto de consumo ou de satisfação do desejo, é referido como outro metafisicamente desejado, que

não é "outro" como o pão que como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo, como, por vezes, eu para mim próprio, este "eu", esse "outro". Dessas realidades, posso "alimentar-me" e, em grande medida, satisfazer-me, como se elas simplesmente me tivessem faltado. Por isso mesmo, a sua alteridade incorpora-se na minha identidade de pensante ou de possuidor. O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro.

O desejo que aspira por outrem, ao absolutamente outro é, em Lévinas, incompatível com a fruição. Tal desejo é perturbação da consciência intencional, que se põe a pensar mais do que pode, naquele momento, pensar:

É isto o Desejo: queimar de um fogo diverso que o da necessidade que a saturação apaga, pensar além daquilo que se pensa. Por causa deste excesso inassimilável, por causa deste além, chamamos a relação que une o Eu (Moi) a Outro de idéia do Infinito. A idéia do Infinito é Desejo. Ela consiste, paradoxalmente, em pensar mais do que aquilo que é pensado e conservá-lo, assim, em seu "desmesuramento" em relação ao pensamento; entrar em relação com o inapreensível, mas garantindo-lhe seu estatuto de inapreensível [...]. A maravilha do infinito no finito de um pensamento é um desconcerto da intencionalidade [...] (LÉVINAS, 1993, p. 53-54).

O desejo de aprender, pensado do ângulo da ética de Lévinas, implica tornar-se diferente do que se é, movimento distinto do desejo de compreender que visa à absorção da alteridade às representações do eu. Ao desejo de compreender poderíamos associar o desejo psicológico que visa à incorporação da alteridade na identidade do eu, de modo que o outro, objeto de incorporação, de introjeção ou de identificação, é dissolvido no mesmo. Poderíamos pensar que o desejo de compreender pressupõe uma visada intencional da consciência em direção a um objeto para integrá-lo às representações do eu. Entretanto, no desejo de aprender temos um movimento inverso, em que o eu sai de si em direção ao inapreensível, ou, como diz Lévinas (1993, p. 49), em direção a uma enrascada, sem que o eu isso possa antecipar.

No Desejo, o Eu (Moi) põe-se em movimento para o Outro, de maneira a comprometer a soberana identificação do Eu (Moi) consigo mesmo [...]. O movimento para o Outro, em vez de me completar ou contentar, implica-me numa conjuntura que, por um lado, não me concernia e deveria deixar-me indiferente: como é que me fui meter nesta enrascada? De onde me vem este choque quando passo indiferente sob o olhar do Outro? A relação com o Outro me questiona, esvazia-me de mim mesmo e não cessa de esvaziar-me, descobrindo-me possibilidades sempre novas (LÉVINAS, 1993, p. 49).

O choque que atinge o eu, o choque que me atinge, indica a passividade do eu que advém como resposta. Fui atingido. Não há aqui intencionalidade, sequer intencionalidade inconsciente como propõe a psicanálise, com sua noção de pulsão, que ainda é atividade (FREUD, 1974[1915], p. 142). O movimento para o outro é efeito de um choque, de um chamado a que o eu se obriga a dar uma resposta, mesmo que essa se dê ao modo de uma pergunta: de onde me vem...? E assim começa-se a pensar "provavelmente, por traumatismos ou tateamentos, aos quais não sabemos nem mesmo dar uma forma verbal" (LÉVINAS, 2007, p. 11). Pensar é ligar-se ao excesso de significação que atinge a consciência, a desconcerta e a questiona. A primazia da atividade da consciência é posta em xeque, visto que "o questionamento não significa uma tomada de consciência deste questionamento. O 'absolutamente outro' não se reflete na consciência. Resiste-lhe a tal ponto que mesmo sua resistência não se converte em conteúdo de consciência" (LÉVINAS, 1993, p. 52). Trata-se, segundo Lévinas (1993, p. 52), do "questionamento da consciência e não de uma consciência do questionamento".

Uma consciência do questionamento já é uma absorção, uma compreensão do ser que, ao ser absorvido, perde sua característica de alteridade. O questionamento da consciência é o próprio desconcerto da intenção do eu, que é malograda por aquilo a que ela visa. A possibilidade de transformação do eu está na relação ética em que, no acolhimento do outro em sua diferença radical, se exprime o questionamento de si-mesmo. Acolhimento, portanto, não quer dizer compreensão ou inclusão em uma representação prévia do eu. Ao deixar-se atingir pelo excesso de sentido que irradia da alteridade do outro, o eu revolve a si-mesmo e assim é posto a pensar. O movimento para o outro não é um desejo de saber ou de possuir. É desejo de outro. E desejo de outro é desejo de se pôr em relação com outrem que questiona a consciência que o eu tem de si mesmo e de suas certezas. A (re)constituição subjetiva é este movimento em que "o questionamento de si é precisamente o acolhimento do absolutamente outro" (LÉVINAS, 1993, p. 53).

Mas, o que nos diz Lévinas acerca deste "absolutamente outro", fulcro de toda relação ética? O absolutamente outro, cujo traço é o rosto, não pode ser fenomenalizado, não se apreende pelo pensamento representacional. O pensamento representacional é produção do eu que, na tradição cartesiana, possui a ideia criada pelo trabalho da própria mente o qual, no processo do conhecimento, absorve o outro segundo os significados produzidos pelas ideias do eu. Poderíamos dizer que aquilo que represento do outro é o que no outro se apresenta para mim. Assim, pergunta-se Lévinas (1980, p. 26), "como é que o Mesmo, produzindo-se como egoísmo, pode entrar em relação com um Outro sem desde logo o privar de sua alteridade?" A relação com um outro é metafísica, na qual o outro não se dá como presença a uma representação: "a relação metafísica não pode ser uma representação propriamente dita, porque o Outro se dissolveria no Mesmo" (LÉVINAS, 1980, p. 26).

Em sala de aula, o encontro com o outro é experiência cotidiana. Entretanto, quais modos de relação do eu com o outro podemos experimentar? O outro com quem nos relacionamos não poderia ser visado como uma projeção de nossos ideais que, por essa via, é assimilado ao eu? Como nos ensina a psicanálise, as ligações que uma pessoa estabelece com outra podem ser do tipo narcisista, em que se ama o que se é, ou o que se foi, ou o que se gostaria de ser, ou alguém que alguma vez foi parte de si (FREUD, 1974[1914], p. 107). Ora, a dimensão metafísica do outro é o que Lévinas chama de rosto que, embora esteja o mais próximo possível do eu,"sobre ele não posso poder [...] [porque] ele não está inteiramente em meu lugar" (LÉVINAS, 1980, p. 26).

O modo como o outro se apresenta, ultrapassando a ideia do outro em mim, diz Lévinas (1980, p. 37-38) é o rosto que se exprime, mas não se configura:

Esta maneira não consiste em figurar como tema sob o meu olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades que formam uma imagem. O rosto de Outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa, destrói e ultrapassa a ideia à minha medida e à medida do seu ideatum – a ideia adequada. Não se manifesta por essas qualidades. Exprime-se.

O rosto é muito mais do que a figura que se deixaria capturar sensorialmente para a construção de uma representação ou conhecimento. O rosto é demanda excessiva, é apelo que me torna incapaz de a ele me manter indiferente. Ao rosto respondo, de modo que "essa relação por cima das coisas doravante possivelmente comuns, isto é, susceptíveis de serem ditas – é a relação com o discurso" (LÉVINAS, 1980, p. 37). É o discurso que garante e mantém a relação com a alteridade em sua radicalidade. Posto que a linguagem é abertura de sentidos, fonte inesgotável de significação, ela sustenta uma relação que resiste à totalização. Como a palavra consiste em explicar-se sobre a palavra, o discurso é ensinamento que não tem fim.

Uma relação rosto a rosto – o discurso – é uma relação de ensino, cujo liame é a linguagem. O outro que se exprime sempre traz mais do que o pensamento do eu sobre ele poderia conceber. Segundo Lévinas (1980, p. 38):

Abordar Outrem no discurso é acolher a sua expressão onde ele ultrapassa em cada instante a ideia que dele tiraria um pensamento. É, pois, receber de Outrem para além da capacidade do Eu; o que significa exatamente: ter a ideia do infinito. Mas isso significa também ser ensinado. A relação com Outrem ou o Discurso é uma relação não alérgica, uma relação ética, mas o discurso acolhido é um ensinamento.

O mestre que ensina recebe do outro que se expressa o ensinamento, ensinamento que é a significação que do outro irradia e está além da capacidade do eu. Trata-se de ação transitiva, oferta e acolhimento daquele que, sem abdicar de dar, se acha na situação de – e Lévinas sublinha esta palavra – receber.

2. O CARÁTER DOCENTE DE TODA PALAVRA E O DUPLO MOVIMENTO DA OFERTA E DO ACOLHIMENTO

É no campo das perguntas e das respostas que se dá a tematização do mundo, com a qual se produz o sentido. O sentido não se manifesta no para quê, não se manifesta no horizonte da finalidade, nos fins a que se dirige o discurso.

O sentido ou a significação do mundo se faz na linguagem, que liga o um ao outro e ao mesmo tempo os mantém em suas diferenças irredutíveis a uma totalização. A irredutibilidade se deve ao "inesgotável acréscimo de atenção que a palavra, sempre docente, me presta" (LÉVINAS, 1980, p. 83). Sobre a palavra, escreve Lévinas, é "sempre, de facto, uma retomada do que foi simples sinal lançado por ela, promessa sempre renovada de esclarecer o que foi obscuro na palavra" (LÉVINAS, 1980, p. 83). O caráter docente da palavra está, portanto, na sua exigência de esclarecimento sem fim: "a palavra consiste em explicar-se sobre a palavra, em ser ensinamento" (LÉVINAS, 1980, p. 84). Ninguém tem poder sobre as palavras, ninguém detém a última palavra sobre seu significado, do mesmo modo que as palavras não significam o que quer que se queira que signifiquem. A linguagem é bem comum compartilhado e "sua essência é a relação com Outrem". É essa relação com outrem que "comanda o discurso interior" (LÉVINAS, 1980, p. 185).

No ato de falar, o eu oferece seu mundo a um outro e nessa doação coloca o que pensa na perspectiva de outrem. É nesse sentido que, pelo discurso, o eu sai de si. Na situação ética, a interação entre professor e aluno ocorre no trânsito da fala, no falar de um ao outro. A interação é ética porque a palavra circula e nem um nem outro retêm o seu poder. Falar a outrem é convocar o eu à palavra. Mas, se falo a outrem é porque outrem já se fez presente. Portanto, outrem me convoca a falar a palavra que parte de mim. Ao sair de mim, sobre ela já não tenho mais poder. Com a ajuda de Fabri (2007), tentemos nos acercar do duplo movimento no qual o eu e o outro são lançados pela linguagem ou palavra docente.

De um lado, sou eu que posso oferecer o mundo a alguém. No ensinar estão implicadas a doação e a partilha. No ensinar, na publicação de um texto ou na produção de obras culturais, o eu pode fazer do que é seu um objeto partilhado. O eu, autor da obra, do ensino, oferece seu mundo a outrem. A saída do egoísmo, da fruição de si, o desprendimento do eu se expressam quando se dá adeus à obra. Doravante, o outro é o mestre que dá início a um processo sem começo temporal. Ao oferecer meu mundo a alguém, já não tenho mais sobre ele a posse, o domínio e o controle. Outrem dá uma orientação àquilo que ofereço e nesse sentido retira meu mundo de mim. Porque o eu oferece aquilo de que desfruta e que está na sua posse, surge a comunidade da linguagem e dos bens culturais. Em contrapartida, outrem é aquele que questiona minha boa consciência. A alteridade daquele a quem dirijo meu ensinamento põe em xeque minhas intenções, como, por exemplo, a pretensão de clareza e precisão na exposição de uma matéria. Outrem, que dá uma orientação àquilo que ofereço, desordena a ordem proposta pelo eu. Ao ouvir meu ensinamento, outrem pode dizer o que não posso extrair de mim mesmo e questiona assim minha consciência. O questionamento da consciência, este algo que vem do exterior e traz mais do que o eu contém, é precisamente o acolhimento do eu ao ensinamento de outrem.

Ensinamento, portanto, não é conteúdo transmitido a uma consciência, tampouco conteúdo despertado em uma consciência. Ensinamento é desconcerto da boa consciência, é princípio de orientação ou sentido que põe o eu em relação com a exterioridade. O mundo como tema não é posse nem de um, nem de outro. É exterioridade do sentido.

A obra (LÉVINAS, 1993, p. 44, grifo do autor), que podemos tomar por analogia com o ensinamento,

pensada radicalmente é um movimento do Mesmo que vai em direção ao Outro e que jamais retorna ao Mesmo. A obra pensada até o fim, exige uma generosidade radical do movimento que, do Mesmo, vai na direção do Outro. Exige, por conseguinte, uma ingratidão do Outro [...]. A Obra é, pois, uma relação com o Outro, o qual é atingido sem se mostrar tocado [...]. Enquanto orientação absoluta em direção ao Outro – enquanto sentido – a obra só é possível como paciência, a qual, levada ao extremo, significa, para o agente: renunciar a ser o contemporâneo do resultado, agir sem entrar na Terra Prometida.

O pensamento da obra ressoa a noção de irreversibilidade implicada na relação, que é linguagem, do Mesmo ao Outro. Na ética de Lévinas, que pensa o radicalmente outro, embora haja trânsito de um ao outro, não há reciprocidade na relação. O envio, que é a obra, implica a ingratidão de outrem ou a irreversibilidade do sentido, precisamente porque aquilo que de mim parte e ao outro chega, atingindo-o, não retorna a mim. Esperar a gratidão seria aguardar o retorno do movimento à sua origem, ao Mesmo (LÉVINAS, 1993, p. 45) e o sentido perderia sua orientação absoluta. Na reciprocidade, o movimento do sentido não seria possível em direção da exterioridade. Vemos, portanto, que na relação ética não há simetria entre os interlocutores no discurso. No ensinar, à doação/generosidade do Mesmo corresponde a ingratidão/não reconhecimento do Outro. No ser-ensinado, ao acolhimento do Mesmo, à sua (re)constituição subjetiva corresponde o choque/excesso de sentido proveniente de Outrem. À essa assimetria ou não reciprocidade da relação ética corresponde a abnegação, a renúncia aos próprios interesses ou sacrifícios em benefício de outrem, em benefício de um tempo sem mim: "renunciar a ser o contemporâneo do triunfo de sua obra é entrever esse triunfo num tempo sem mim (Moi), é visar este mundo sem mim (Moi), é visar um tempo para além do horizonte do meu tempo: escatologia sem esperança para si ou libertação em relação ao meu tempo" (LÉVINAS, 1993, p. 45).

3. DOMINAR A MATÉRIA EQUIVALE A APRENDER?

Feita a apresentação de recortes do pensamento de Lévinas, quais implicações éticas pode ter a valorização do conhecimento em sala de aula?

Lévinas tece considerações sobre a relação que o eu mantém com o mundo no conhecimento. É uma relação, diz ele, com o que se pode igualar e englobar, é uma relação com aquilo cuja alteridade é suspensa. O conhecimento é sempre uma adequação entre o pensamento e aquilo que se pensa, portanto, no conhecimento, mesmo dos astros, do que está mais distante, a consciência pensante, o eu, permanece no elemento do mesmo. Lévinas (2007, p. 46) afirma que

o conhecimento sempre foi interpretado como uma assimilação. Mesmo as descobertas mais surpreendentes acabam por ser absolvidas [sic], compreendidas, com o que há de "prender" no "compreender". O conhecimento mais audacioso e distante, não nos põe em comunhão com o verdadeiramente outro; não substitui a socialidade; é ainda e sempre uma solidão.

O conhecimento não substitui o desejo de outrem, que é orientação ao infinito. Infinito em que se dá a experiência da razão na linguagem. Se, como aponta Lévinas (2007), o conhecimento supõe uma adequação entre sujeito e objeto, então é sempre possível uma totalização, um não precisar mais pensar sobre o assunto e... ponto final! Ora, se a experiência da razão é orientação ao infinito pela linguagem, então o ato de pensar é esforço sempre renovado de descrever aquilo que atinge o sujeito, mas não se dá na medida de suas capacidades cognitivas.

Tais observações nos levam a considerar que, para a atividade da aprendizagem se sustentar, é preciso um desejo de aprender. Desejo de aprender ressoa desejo de outro. Outro que, conservadas suas qualidades traumatizantes em seu excesso de significação, portanto, inadequado às capacidades cognitivas do sujeito cognoscente, alimenta de mais fome o desejo. Em contrapartida, do ponto de vista psicológico, é preciso admitir que se o outro não estiver na medida do sujeito, ele nenhum efeito produzirá em termos de subjetivação, processo este que depende também da incorporação, da identificação e da introjeção do objeto, enfim, de sua assimilação. Contudo, conforme pontua Figueiredo (2002) se esse acesso dissesse respeito a toda a dimensão do objeto, ele não seria conhecido, seria reconhecido, identificado ao já sabido e a aprendizagem cessaria. Portanto, uma saída ética para o ensinar/aprender pode ser encontrada ao se admitir que o objeto do conhecimento apresenta múltiplas dimensões. Citemos duas: o objeto deve estar na medida das capacidades do sujeito para que este possa identificá-lo e reconhecê-lo, todavia ele deve trazer mais do que o sujeito pode conter a fim de poder seguir desejando em direção daquilo que o excede. É preciso admitir, portanto, que na experiência do ensinar e do aprender, o traumático e o desestruturante são condições indispensáveis para as transformações do eu e que fazem parte, no sentido mais rigoroso do termo, do ato de aprender. Indesejados mas necessários como fonte de questões, o traumático e o desestruturante revolvem o eu, põem-no a pensar.

As doutrinas pedagógicas, em busca de ordem, controle e previsibilidade do desenvolvimento cognitivo e emocional do educando, materializam-se em projetos pedagógicos cujo foco de interesse é a dimensão egóica, cognitiva, da existência humana.

Blum (2007) argumenta sobre a insuficiência dessa dimensão nos processos de aprendizagem e indica o modo como a atividade do inconsciente está relacionada com a produção de novos sentidos a partir de significados consagrados. No plano afetivo, descartar o inconsciente significa recusar a própria alteridade para conservar a ilusão de autodomínio e controle sobre si. No plano cognitivo, os objetos, concebidos como previsíveis e administráveis, são silenciados em seus aspectos desconcertantes e, paradoxalmente, deixam de se apresentar como propulsores do conhecimento.

Na base da administração e do planejamento do conhecimento está o entendimento de que o desconhecido pode e deve ser apropriado pela redução ao conhecido e, por isso, conhecer é assimilar a matéria. A matéria assimilada, por conseguinte, deixa de existir como alteridade, perdendo dessa feita sua dimensão de exterioridade que resiste e que colocaria o desejo do sujeito em movimento. Se não é permitido ao objeto dar-se como excedente em sentido, se seus elementos estranhos, heterogêneos e inassimiláveis são recalcados, então recalcada está aquela qualidade do objeto que dispara o desejo de aprender do sujeito.

Os ideais muito comuns em nosso cotidiano escolar de "dominar a matéria" estariam a contrapelo da ética da alteridade irredutível. "Dominar a matéria" ressoa a voz da razão científica e instrumental que, da perspectiva lévinasiana, coloca de antemão alunos e professores perante uma condição de fracasso do ensino e de enfraquecimento do desejo de aprender. A matéria reduzida a um fim, à posse para o sujeito, é conhecimento para-si. "O 'para-si' satisfeito fecha-se sobre si" (LÉVINAS, 1980, p. 84).

O planejamento e o cálculo do "a ser ensinado" e do "a ser aprendido" são formas de administrar o conhecimento à custa da exclusão do excedente que seguramente retorna e é percebido na forma de desordem a ser combatida. Do ponto de vista ético, a vontade de domínio seria a precondição da violência gerada pela aversão ao estranho inassimilável.

De onde viria essa aversão ao estranho inassimilável? Não seria ela alimentada por nossa concepção de aprendizagem como assimilação de conhecimentos? No caso de um ensinamento, como isto que é não-eu, que é não-saber pode ser tolerado e respeitado se estamos habituados à ideia de aprendizagem somente como incorporação da matéria, portanto, à ideia de assimilação do (hoje) desconhecido ao (amanhã) conhecido? O não-saber é vivido como ignorância do eu (ó vergonha!) a ser superada. De redução em redução do desconhecido ao conhecido, o aprendiz se fecha para o contato com aquilo que não é passível de ser conhecido. O problema é que esse fechamento representa um corte na relação com a alteridade do mundo habitado que não se apresenta na medida do eu. O fechamento para aquilo que excede o eu é também enfraquecimento da disposição para aprender. Tal enfraquecimento é concomitante a posturas de indiferença perante o ensino que, fenomenologicamente, podemos descrever como apatia ou desmotivação de alunos e professores em sala de aula. Ou de eliminação daquilo que resiste à indiferença e insiste como presença alteritária, como é o caso da postura aversiva de uns em relação aos outros: professores desmoralizados pelos alunos, alunos classificados ou rotulados pelo professor. Não é raro observarmos algum alívio do professor no momento em que ele enquadra o aluno em categorias – moral, cognitiva ou comportamental: bom/mau; inteligente/limitado; disciplinado/indisciplinado – que fazem parte de suas representações do senso comum, ou o identifica com categorias psicopatológicas, criadas pela competência especializada e disponíveis no mercado da psicologia e da psiquiatria. É como se, por essa via, fosse possível neutralizar aqueles elementos excedentes que extrapolam os limites do como deve ser. A consciência do como deve ser não é questionada, não é contestada pela diferença, ao contrário, a consciência é uma consciência que reflete sobre a diferença para produzir categorias identificatórias e com aparência de totalmente abrangentes.

O inassimilável é difícil de ser sustentado, porque abala a pretendida segurança narcisista do sujeito que ainda se crê senhor de si e dos objetos a sua volta, sejam eles do conhecimento ou de suas relações. Esse é o momento em que, como nos ensina a psicanálise, fortes defesas contra o traumático podem ser acionadas com a formação de uma identidade enrijecida, intolerante e alérgica ao que resiste. Na outra ponta das defesas contra o traumático estariam as subjetividades miméticas, vorazes consumidoras das panaceias da moda e sempre prontas para embarcar na canoa das promessas de felicidade.

Posto que a constituição da subjetividade nunca se acaba, na sala de aula – palco dos enredos montados por seus protagonistas a partir de suas histórias, seus desejos, suas veleidades, seus medos – as subjetividades se densificam, ganham espessura. Ou não! Educados para dominar a matéria e disciplinar os alunos, os professores descobrem-se em meio a ambiguidades, dúvidas, desordens e incertezas. A circulação da palavra, que introduz um sempre mais além, também pode ser vivida como ameaça a uma pretendida estabilidade calcada sobre um imaginário de harmonia e de ordem preestabelecidas. Esses são momentos críticos em que as experiências de desconcerto, fracasso e frustração em sala de aula solicitam justamente o que a escuta psicanalítica pode oferecer: a criação de rotas de pensamento para emoções e afetos que, deixados a si mesmos, intoxicam a atividade docente. Há uma boa dose de decepção e de raiva com a perda dos objetos que se supunha sob o domínio do sujeito da vontade racional. É preciso dispor de alguma envergadura para suportar e transformar em sentido a dor e a decepção provocadas por aquilo que escapa ao domínio e que por isso retira do eu racional sua pretensão de soberania.

Lévinas nos ensina que não é a resistência do outro que me faz violência, mas o desafio ético de meu poder de poder. A violência não estaria na resistência do eu que não suporta a ideia de abdicar de sua posse do saber e de seu poder de poder?

NOTA

Recebido em: 10 de março de 2011

Aceito em: 15 de maio de 2013

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  • 1
    Lévinas (1980, p. 31) nos lembra que as filosofias que dão precedência ao eu sobre o outro remontam a uma história anterior ao surgimento da filosofia de Descartes: "o primado do Mesmo foi a lição de Sócrates: nada receber de Outrem a não ser o que já está em mim, como se, desde toda a eternidade, eu já possuísse o que me vem de fora".
  • Endereço para correspondência:

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    78043-375 - Cuiabá, MT – Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014

    Histórico

    • Aceito
      15 Maio 2013
    • Recebido
      10 Mar 2011
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