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Ficção televisiva interativa e o V-Effekt de Brecht

Interactive television fiction and Brecht’s V-Effekt

Resumo

Neste artigo procuramos desenhar um paralelo entre a ficção televisiva interativa e o V-Effekt, ou efeito de distanciamento, proposto pelo dramaturgo Bertolt Brecht. Trazemos como corpus de pesquisa dois episódios interativos de duas ficções televisivas de tempos e geografias distantes: o episódio Meu pai da série televisiva Você decide (Globo, 1997) e, principalmente, o episódio Bandersnatch da série on-demand Black Mirror (Netflix, 2018). Nosso objetivo é fazer uma análise preliminar da competência da tecnologia para gerar o efeito de distanciamento quando aliada à ficção televisiva.

Palavras-chave
ficção televisiva interativa; V-Effekt; Brecht; Black Mirror; inteligência artificial

Abstract

Interactive television fiction and Brecht’s V-Effekt - This paper aims to draw a parallel between interactive television fiction and V-Effect, also known as the distancing effect, proposed by playwright Bertolt Brecht. The corpus of the research consists in two interactive episodes from two fiction shows from profoundly different times and geographies: the “Meu Pai” episode from television series “Você Decide” (Globo, 1997) and, mainly, the “Bandersnatch” episode from on-demand series “Black Mirror” (Netflix, 2018). Our goal is to do a preliminary analysis of the technological competence in generating the distancing effect when allied to television fiction.

Keywords
interactive television fiction; V-Effekt; Brecht; Black Mirror; artificial intelligence

Interatividade e distanciamento

Compartilhamos um espírito do tempo recém-chegado. Tentamos compreendê-lo por meio dos modelos e metodologias disponíveis, mas as transformações da comunicação, em escala global, alteraram e seguem alterando políticas, culturas inteiras, individualidades, hábitos e atitudes. A Pangeia rodeada pela Pantalassa se refragmenta e se reorganiza continuamente em novos continentes teóricos (LOPES, 2018LOPES, M. I. V. A teoria barberiana da comunicação. MATRIZes, v. 12, n. 1, 2018.) inaugurando espaços de pesquisa mutáveis, ainda sem margens definidas — se é que voltarão algum dia a tê-las. Como cartografar e pensar nosso lugar de enunciação (MARTÍN-BARBERO, 2004______. Ofício de cartógrafo. São Paulo: Edições Loyola, 2004.; 2006MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Comunicação, Cultura e Hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006.) se atualmente sua lógica desliza e se mescla em uma fusão quase completa entre o real e o virtual? Encontramos nos mapas das mediações de Martín-Barbero algumas pistas para que possamos transitar por tais terrenos ainda não desbravados. A cartografia, pertencente aos estudos pós-estruturalistas, tem sido utilizada no campo da comunicação apenas recentemente. Mais do que metodologia, método ou procedimento, é encarada como uma perspectiva metodológica (ROSÁRIO; COCA, 2018ROSÁRIO, N. M.; COCA, A. P. A cartografia como um mapa movente para a pesquisa em comunicação. Comunicação & Inovação, v. 19, n. 41, 2018.) que parte de processos e articulações que surgem e são arquitetadas em todas as etapas da pesquisa, no sentido de construir um mapa ainda não acabado do objeto, segundo uma espécie de filtro do próprio pesquisador. Este é o ponto de partida, ou melhor, o alicerce epistemológico do estudo que ora apresentamos.

Nesse mundo desconhecido e propício a cartografias experimentais, em nossas pesquisas sobre ficção seriada intrigou-nos sobremaneira o lançamento da Netflix nos últimos dias do ano de 2018: Black Mirror: Bandersnatch. Uma obra (Um game? Um episódio da série antológica Black Mirror? Um telefilme interativo? Um filme?) que na imprensa especializada brasileira gerou afirmações como: “capaz de diluir a fronteira entre o longa-metragem e o game1 1 É filme ou jogo? Com ‘Black Mirror: Bandersnatch’, Netflix inaugura produto interativo. Estado de Minas. 31/12/2018. Disponível em: <https://www.uai.com.br/app/noticia/series-e-tv/2018/12/31/noticias-series-e-tv,239468/com-black-mirror-bandersnatch-netflix-inaugura-produto-interativo.shtml>. Acesso em: Dez. 2018. ; “engenhoso e sofisticado produto midiático, que oferece uma história intrigante o suficiente para fazer o público querer explorar todas as narrativas possíveis, como em um divertido jogo”2 2 ‘Bandersnatch’: filme interativo de ‘Black Mirror’ é engenhoso e divertido. Meire Kusumoto. Veja. 28/12/2018. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/entretenimento/bandersnatch-filme-interativo-de-black-mirror-e-engenhoso-e-divertido/>. Acesso em: Dez. 2018. ; e “se Bandersnatch é uma experiência de TV inédita, é justamente por ser mais ativa do que a que estamos acostumados [...]. Estaríamos assistindo a um game, jogando um filme ou as duas coisas ao mesmo tempo?3 3 Admirável Mundo Pop: Bandersnatch pode ser a aposta da Netflix para o futuro do entretenimento — ou algo parecido. Pablo Miyazawa. Adorocinema. 30/12/2018. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-145511/>. Acesso em: Dez.2018. .

Em outra época, compartilhando o Zeitgeist de então, Bertolt Brecht (1898-1956) inaugurava novos olhares: “o mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido como um mundo suscetível de modificação” (BRECHT, 1998BRECHT, B. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978., p. 21). Para Brecht, o espectador não deveria ser “hipnotizado” pelo personagem e conduzido pelo drama até o processo de catarse, pois isso o tornaria demasiado passivo diante de determinadas questões sociais. Este dramaturgo e teórico indica distinções entre o que nomeia de “forma dramática ou tradicional” e “forma épica” de teatro, sendo, grosso modo, a primeira mais ligada à emoção e a segunda à razão, à crítica. Propõe, então, o V-Effekt, o efeito de distanciamento ou estranhamento (do alemão Verfremdungseffekt), técnica que consiste em provocar questionamentos e visão crítica no espectador a partir do texto, da narrativa, e/ou do próprio trabalho de interpretação dos atores em cena. Esses efeitos de distanciamento despertariam uma atitude consciente e analítica no público ao interromper uma ação dramática intensa:

No conhecido esquema em que Brecht opõe as características do teatro tradicional às do teatro épico, destaca que aquele procede agindo, envolvendo o público numa ação cênica, gastando sua atividade e impondo-lhe emoções, ao passo que este procede narrando, transformando o público em observador, despertando a sua atividade, impondo-lhe decisões; em vez da vivência e identificação de um público colocado dentro da ação, temos o raciocínio de um público colocado em face da ação e cujas emoções são estimuladas a se tornarem atos de conhecimento

(ROSENFELD, 2012ROSENFELD, A. Brecht e o teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 2012., p. 82).

Em lugar da identificação, surgiria, então, o questionamento, e, assim, o espectador passaria a ter a oportunidade de examinar sua razão e capacidade crítica mais profunda a respeito de uma eventual aprovação ou reprovação a determinado comportamento da personagem. Trazemos as palavras de Brecht, pois, mesmo cronologicamente distantes, permitem que lancemos indagações e nos aproximemos de pontos realmente impactantes para nossa cultura. Ele dizia, por exemplo, que a ópera (e também o teatro)4 4 Ver: notas sobre a grandeza e decadência da cidade de Mahagonny (BRECHT, 1978). era tida como uma “iguaria” a ser apreciada, degustada, uma obra de arte a ser analisada “à luz de sua adequação à engrenagem”. Engrenagem esta que é boa para a sociedade existente e que aceita apenas o que a conserva e a mantém. Mesmo entendendo que a ópera, então, havia se transformado em mercadoria, não deixara de ser arte, instrumento de prazer. Alinhamo-nos com esse pensamento — e com o de Benjamin ao tratar da arte e sua reprodutibilidade técnica — em nossos estudos de ficção televisiva, pois a consideramos (a arte), muitas vezes, passível de tal classificação (instrumento de prazer). Pois bem, quando Brecht fala de inovações na ópera, estabelece que além — muito além — desse caráter de iguaria, de abordar determinados temas numa atitude de fruição, de viver e suscitar uma vivência do tema, a ópera, assim como o teatro, abre uma importante oportunidade de discussão sobre o conteúdo, pois aquele caráter de iguaria, de apenas gozar uma vivência, obnubilava do espectador a possibilidade de sintonizar com o tema e buscar soluções para a sociedade. A arte seria, portanto, além de instrumento de prazer, uma catalizadora de discussões significativas para a sociedade.

Algumas décadas depois, assistimos e interagimos com a certeira possibilidade de a tecnologia atual ser capaz de gerar e aplicar o efeito de distanciamento (V-Effekt), conforme discutiremos adiante. Porém, temos mais admirado a técnica do que nos detido nos questionamentos éticos e humanos colocados em pauta pela ficção televisiva da contemporaneidade. Esta é a disposição que trazemos para este trabalho.

Uma antiga experiência brasileira: Você decide (Globo, 1992-2000)

Quando pensamos em ficção televisiva interativa no Brasil, o Você decide da Globo foi a primeira e esteve no ar por oito anos, de 1992 a 20005 5 No site Memória Globo há um especial sobre o programa, com 18 episódios completos, com os finais escolhidos pelo público. Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/mostras/voce-decide-25-anos/voce-decide-25-anos/voce-decide-25-anos-o-programa.htm>. Acesso em: Jan. 2019. . Foram 323 episódios semanais, exibidos após a novela das oito. Em termos de interatividade, nos primeiros anos do formato, um apresentador em estúdio6 6 Foram apresentadores do Você decide os atores Antonio Fagundes, Walmor Chagas, Tony Ramos, Lima Duarte, Raul Cortez, Carolina Ferraz, Luciano Szafir e Cissa Guimarães e os jornalistas Renata Ceribelli e Celso Freitas (MEMÓRIA GLOBO, s/d). , ao vivo, abria e fechava cada bloco do episódio. Nesses momentos, eram destacados os números de telefone referentes às ligações que o espectador deveria fazer para votar nos finais possíveis para a história que estava sendo contada. Placares computavam os votos em tempo real e as ligações eram gratuitas. Já em um segundo momento, o Você decide passou a oferecer três opções de desenlace para o espectador escolher. As histórias, diferentes a cada semana, retratavam “um dilema ético e moral, como incesto, aborto, eutanásia, corrupção, relações familiares, assédio sexual, machismo, traição, justiça e sexo na adolescência” (MEMÓRIA GLOBO, s/d). O programa foi exportado para Portugal, Estados Unidos, Espanha, Suécia, Itália e outros, tanto a íntegra da versão brasileira, quanto apenas seu formato.

Para o presente artigo, por seleção aleatória, assistimos on-line ao episódio Meu pai, exibido em 10/04/1997, ano em que a atração abriu a possibilidade de o público escolher um entre três finais da história. O argumento do episódio é de Altenir Silva, com roteiro de Angela Chaves, direção de Mário Márcio Bandarra; o programa integrava o núcleo Herval Rossano. Diz o apresentador, o ator Tony Ramos: “Daqui a pouco você vai poder interferir no destino dos personagens, telefonando para a gente e dando o seu voto” (MEMÓRIA GLOBO, s/d).

Na trama, Murilo (Ângelo Paes Leme) não sabe quem é seu pai, pois sua mãe nunca revelou. Quando ela morre, seu avô, José (Castro Gonzaga), se dispõe a ajudá-lo, oferecendo os nomes dos três hóspedes que estavam em sua pousada quando a filha engravidou. Ela já havia mencionado a circunstância e época aproximada daquele romance passageiro. Murilo, então, procura encontrá-los, conhecê-los e propor-lhes a realização de exames de paternidade. O público deveria escolher qual dos três personagens era o seu pai.

Fig. 1
Print da tela do cômputo final de votos do episódio Meu pai, de Você decide.

Resumidamente, o episódio Meu pai, possui cinco blocos de dramaturgia, com a presença do apresentador em estúdio, antes e depois de cada intervalo comercial, instando o espectador a votar e anunciando os números de telefone correspondentes a cada opção. Quanto à narrativa, o primeiro bloco traz um flashback com narração em off, mostrando que Amanda fez sexo com um hóspede da pousada de seu pai, cuja identidade nunca revelou, e de quem engravidou. A seguir, já no presente, seu filho Murilo revela ao avô que deseja saber quem é seu pai e o avô revela que tem os registros dos hóspedes. Murilo resolve procurá-los e visita a fazenda do primeiro, o consultório do segundo e o circo onde trabalha o terceiro. O segundo bloco aprofunda a apresentação dos personagens e mostra Murilo visitando os três novamente. Porém, ao voltar para casa, encontra o avô desfalecido. No terceiro bloco o médico pede que Murilo deixe de viajar e cuide de seu avô. Este sugere que ele convide os três para se hospedarem na pousada. No quarto bloco vemos como cada um recebe a notícia de que pode ser o pai de Murilo. Por último, o quinto bloco traz o apresentador ao vivo dizendo para a câmera: “vamos ver o final que você decidiu”.

Em termos de mecânica de roteiro, foram criados, desenvolvidos, gravados e editados três roteiros diferentes para este quinto bloco, sendo exibido apenas o mais votado pelos telespectadores. Note-se que, apesar da menor duração do último bloco, o esforço de trabalho da produção deve ter representado aproximadamente o dobro de tempo e de recursos de qualquer um dos blocos anteriores.

Se considerarmos o Você decide segundo uma perspectiva computacional, de programação de jogos, observamos que é oferecida apenas uma estrutura de decisão básica para o jogador-espectador sendo que, mesmo assim, esse ponto de decisão possibilita “flexibilizar a visão do telespectador do programa exibido” (TAVARES et al., 2007TAVARES, T. A.; SANTOS, C. A.S.; ASSIS, T. R.; PINHO, C. B.; CARVALHO, G. M.; COSTA, C. S. A TV digital interativa como ferramenta de apoio à educação infantil. Revista Brasileira de Informática na Educação. v. 15, n. 2 - Maio a Agosto de 2007., p. 41). As opções de escolha do espectador, as estruturas de decisão (Fig. 2), ou seja, os números de telefone ligados aos nomes dos personagens Manoel, Robson ou Afonso, permitiriam que o telespectador escolhesse qual desses três era o verdadeiro pai de Murilo.

Fig. 2
Três opções do Episódio Meu pai – Fluxograma da interatividade.

A totalização de votos, apresentada no fim do programa foi de 160.377 votos computados por telefone, sendo 67.244 para o personagem Afonso (Kito Junkeira), portanto, o final exibido. O conteúdo mais votado foi ao ar para toda a audiência da Globo na TV aberta porque, na ocasião, havia apenas essa possibilidade de assistência coletiva.

Episódio interativo “Bandersnatch” da série “Black Mirror”, da Netflix

Consideramos Bandersnatch como formato televisivo, ou seja, como um episódio interativo da série televisiva7 7 Utilizamos as expressões série televisiva e ficção televisiva e, assim, “estamos nos referindo a telenovelas, séries, minisséries, webséries e outros formatos semelhantes, realizados em vídeo. De acordo com Brandão et al (2012), por vídeo compreendemos a ‘sincronização de imagens e sons eletrônicos, sejam eles analógicos ou digitais e se entendermos imagem eletrônica como aquela constituída por unidades elementares discretas (linhas e pontos) que se sucedem em alta velocidade na tela’ (2012, 71). Ou telas, pois o que atualmente nomeamos de televisiva pode ser acessado por meio de outros aparelhos e outros devices. Historicamente a ficção televisiva é aquela que tem sua origem televisiva, da cultura da televisão, de maneira de produzir televisual, seja qual for o device em que é transmitida e consumida. Enfim, é aquela realizada em formato de vídeo sendo que o vídeo tem a interessante propriedade de unir as práticas artísticas às comunicacionais. Porém, essa nova ficção televisiva não está mais presente apenas na televisão. Então, nesse caso, não seria adequado deixar de nomeá-la de televisiva? Qual seria o nome novo? Independentemente da resposta, e levando em conta as observações acima, optamos por utilizar o termo ficção televisiva” (LEMOS, 2017). antológica8 8 A série antológica apresenta temática comum e episódios independentes entre si, com personagens e cenários diferentes de um episódio para outro. britânica Black Mirror. Apesar de estarmos em área de fronteira, tratando de um produto híbrido, avaliamos que, se acessado em tela pequena, com os recursos interativos e personalizados que a plataforma oferece, estamos diante, sim, de uma fronteira entre a ficção televisiva e o game. O fato de estar incluído no universo da série Black Mirror endereça a obra ainda mais diretamente aos estudos da ficção televisiva. Em tempos de hibridizações tão significativas, cumpre a nós, pesquisadores, determinarmos com clareza o espaço simbólico de nossos objetos e campos de estudo (BOURDIEU, 1986BOURDIEU, P. The forms of capital. In: Richardson, J. (Ed.) Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. New York: Greenwood, 1986.). A série Black Mirror apresenta, portanto, o episódio Bandersnatch como primeira experiência interativa para adultos, na Netflix. Anteriormente foram lançados produtos para crianças como: Gato de botas: preso num conto épico e Minecraft: story mode.

Neste longo episódio interativo da série criada por Charlie Brooker, o espectador-jogador define alguns dos caminhos que o protagonista deve tomar e, dependendo dessa escolha, a narrativa transcorre em uma ou outra direção que, por sua vez, também se bifurca. Bandersnatch foi roteirizado pelo próprio criador da série e dirigido por David Slade.

É uma narrativa de terror psicológico que se passa no ano de 1984 quando o jovem programador Stefan (Fionn Whitehead) apresenta seu trabalho a uma empresa desenvolvedora de jogos (Tuckersoft). Ele está trabalhando no processo de criação de um jogo de videogame chamado Bandersnatch, baseado em um livro interativo homônimo9 9 Os livros interativos, ou gamebooks (CYOA – Choose your own adventure books), surgidos ainda na década de 1930 nos EUA, permitem ao leitor seguir diferentes trilhas e o remete para uma ou outra página, dependendo de suas escolhas em momentos de decisão. , cujo autor perdeu a sanidade mental após finalizá-lo. O livro pertenceu a sua mãe, morta quando Stefan tinha apenas cinco anos. E sabemos que tanto o autor do livro original, quanto o personagem central da obra estão perdendo aos poucos a noção do que é real e do que é virtual.

Para a escritura do roteiro, a Netflix investiu em um algoritmo próprio, a ferramenta Branch Manager, capaz de auxiliar no desenvolvimento de narrativas ramificadas e que permite criar narrativas complexas com possibilidade de conduzir o espectador de volta à linha principal, se suas escolhas se desviarem do objetivo e, ainda, voltar e refazer escolhas, “algo que o próprio roteiro incorporou na história de forma natural, fazendo com que Stefan em alguns momentos perceba que pode voltar e fazer de forma diferente algo que já havia feito”10 10 Netflix Takes Interactive Storytelling to the Next Level With ‘Black Mirror: Bandersnatch’. Janko Roettgers, Variety. 28/12/2018. Disponível em: https://variety.com/2018/digital/news/netflix-black-mirror-bandersnatch-interactive-1203096171/. Acesso em Dez/2018. . Essa ferramenta materializa o conceito de aprendizado de máquina da ciência da computação no que se refere às formas de ensinar computadores a analisar e classificar padrões de dados para fazer previsões. Temos, portanto, a construção de roteiro com auxílio de IA, inteligência artificial (AI, em inglês). Quanto à possibilidade de interatividade daí decorrente, a produtora-executiva de Black Mirror, Annabel Jones, diz que não se buscou apenas um truque vazio, e sim “apresentar opções que fizessem sentido para a personagem [...] um jovem experimentando muitas verdades diferentes, ou sem certeza do que era a verdade”11 11 Idem. . Em Bandersnatch, cada escolha do espectador leva a um roteiro diferente e isso lhe permite assistir ao episódio várias vezes, sendo que a cada vez a história é outra, segundo as decisões que toma. A diretora de inovação da Netflix, Carla Engelbrecht, afirma que “há muito mais que se pode fazer além de televisão linear” e, para o vice-presidente de produto da empresa, Todd Yellin, Black Mirror foi escolhida como ideal para um primeiro teste 12 12 Netflix planeja novas histórias interativas após Black Mirror: Bandersnatch. Laysa Zanetti. Adorocinema. 28/12/2018. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-145493/>. Acesso em Dez. 2018. , talvez por ser considerada como narrativa distópica13 13 Segundo o historiador e crítico Jacoby (2007, p. 31), a distopia seria a antítese da utopia ou, ainda, uma espécie de utopia negativa. .

Bandersnatch é, portanto, uma narrativa interativa que se abre em estrutura de árvore de decisão14 14 “Uma árvore de decisão é um mapa dos possíveis resultados de uma série de escolhas relacionadas [...] geralmente começa com um único nó, que se divide em possíveis resultados. Cada um desses resultados leva a nós adicionais, que se ramificam em outras possibilidades. Assim, cria-se uma forma de árvore”. Ver: Lucidchart. Disponível em: <https://www.lucidchart.com/pages/pt/o-que-e-arvore-de-decisao>. Acesso em Jun. 2019. e, assim, permite a predição de diferentes linhas narrativas da história. A própria internet se encarrega de colocar a narrativa em seu devido espaço não linear, conforme podemos observar adiante (Fig. 3 e 4) em fluxogramas da interatividade de Bandersnatch criados e compartilhados por usuários.

Figs. 3 e 4
Árvores de decisão do episódio Bandersnatch – Fluxogramas da interatividade (compartilhadas por usuários do Reddit). Fontes: Reddit, via users alpine15 15 The Reddit detectives are hard at work decoding Black Mirror: Bandersnatch. Tasha Robinson. The Verge. 28/12/2018. Disponível em: <https://www.theverge.com/2018/12/28/18159516/black-mirror-bandersnatch-interactive-choice-maps-endings-easter-eggs-netflix-charlie-brooker>. Acesso em: Jan. 2019. e jadeeeeeeeeeeeeeee/16 16 Bandersnatch_Map_IGN_2.jpg 4,000×3,556 pixels update version. Reddit. Disponível em: <https://www.reddit.com/user/jadeeeeeeeeeeeeeee/>. Acesso em: Jan. 2019. .

Esses fluxogramas, concebidos e realizados por usuários-espectadores-jogadores, certamente replicam, e/ou refratam, o desenvolvimento das narrativas ramificadas daquele algoritmo criador inicialmente mencionado:

a indução de árvores de decisão é um dos métodos de aprendizado mais utilizados na prática. E um método rápido para aprendizado de conceitos, simples de implementar, permite transformar seus resultados em forma de regras interpretáveis, pode tratar exemplos com ruído e é uma tecnologia madura utilizada em vários produtos comerciais

(MONARD; BARANAUSKAS, 2003MONARD, M. C.; BARANAUSKAS, J. A. Indução de regras e árvores de decisão. In: Rezende, S. O. Sistemas Inteligentes. São Paulo: Editora Manole Ltda, 2003., p. 117).

Ainda que não atinja per se o conceito de rizoma proposto por Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Introdução: rizoma. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Editora 34, 1995., e mesmo que tal conceito não tenha sido concebido como método, vemos no CGU17 17 CGU – Conteúdo Gerado pelo Usuário. a apropriação pela audiência dos princípios de conexão, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura a-significante e cartografia como se fosse uma lente para compreender a ficção televisiva.

Antes do início do episódio Bandersnatch, há um breve tutorial sobre a interface de interatividade e um pequeno treino, ou exercício, para que o espectador compreenda sua mecânica. As opções ficam disponíveis por 10 segundos. Vale notar que, na diegese, o jogo que está sendo criado por Stefan oferece os mesmos 10 segundos de tempo de espera por uma resposta.

Durante o episódio todo, o espectador-jogador faz suas escolhas e tem uma experiência de fruição individual, de relação direta com a obra. São, portanto, múltiplas as possibilidades de histórias, dependendo das escolhas feitas a cada bifurcação do caminho. E muitos os finais oferecidos, sempre dentro do clima e do espírito da série Black Mirror.

Ocasionalmente, enquanto assiste ao episódio Bandersnatch, portanto, o espectador-jogador deve selecionar uma de duas opções. Neste sentido, houve outro desafio tecnológico para que não houvesse lentidão nem paradas antes ou depois de uma escolha. Usualmente, o serviço da Netflix pré- armazena o conteúdo em cache para proporcionar uma experiência de streaming suave, mesmo quando a conexão do espectador é — ou está — lenta. Mas, para Bandersnatch, o aplicativo deve pré-armazenar duas possibilidades de caminho — impossível para versões mais antigas18 18 Ibidem. . Por essa razão, nem todo aparelho conectado é compatível, apenas aqueles com versão mais recente do aplicativo. Daí, os aparelhos incompatíveis com o conteúdo interativo têm acesso apenas a uma versão linear do episódio19 19 Como ver conteúdo interativo na Netflix (Black Mirror: Bandersnatch). Melissa Cruz Cossetti. Technoblog. 28/12/2018. Disponível em: <https://tecnoblog.net/273104/como-ver-conteudo-interativo-na-netflix-black-mirror-bandersnatch/>. Acesso em Dez. 2018. .

Cartografia preliminar

Seguindo a ideia de cartografar nosso objeto, e partindo do primeiro mapa das mediações proposto por Martín-Barbero (2002)______. Ofício de cartógrafo. São Paulo: Edições Loyola, 2004., identificamos claramente novas tecnicidades em termos de mediações comunicativas da cultura, enfrentando caminhos com saberes e práticas pouco conhecidos e ainda a desbravar; assim, os mapas do autor conduzem a reflexões sobre ritualidades e sociabilidades inéditas.

As escolhas narrativas do espectador-jogador (Fig. 5) são o grande atrativo do episódio Bandersnatch e, segundo Ladeira, no que se refere ao audiovisual pela internet, “a Netflix tem se mostrado de central importância” (2018, p. 2). Aqui as interfaces possíveis são: a tela touch (do tablet ou do celular), o controle remoto (da TV), os cliques de mouse (no computador), o trackpad (do notebook), e o joystick vibratório (do Xbox ou PlayStation).

Fig. 5
Cena com opções de escolha para o espectador de Bandersnatch.

É relevante observar a percepção de Ladeira (2018)LADEIRA, J. M. Imagens Mecânicas: Netflix e os algoritmos de Recomendações. Anais. XXVII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, 05 a 08 de junho de 2018. sobre as infinitas opções de escolha entre filmes, séries, novelas, oferecidas pela interface do acervo da Netflix em contraposição às duas simples opções de Bandersnatch. Estamos, por conseguinte, diante de dois panoramas: (1) a escolha entre itens do acervo pelo sistema de recomendação que depende de inteligência artificial, os algoritmos, e (2) a escolha entre sugestões referentes à diegese pela ferramenta narrativa Branch Manager, outros algoritmos. São dois tipos de interface, aparentemente contrapostas, porém com o mesmo objetivo intrínseco, ou seja, levar a audiência a uma escolha determinada: o primeiro tipo conduz o espectador a escolher uma obra sugerida pelo algoritmo e o segundo tipo leva o espectador a escolher um caminho narrativo dentro da obra, oferecido pela ferramenta Branch Manager, uma espécie de algoritmo roteirista ou algoritmo narrativo.

Os recursos de gamificação evidenciam atividades, produtos e caminhos inspirados em videogames e têm como objetivos engajar, comprometer e recompensar, ou seja, tratam do “uso de elementos de design de jogos em contextos não relacionados a jogos” (DETERDING et al., 2011DETERDING, S; DIXON, D; KHALED, R; NACKE, L. From game design elements to gamefulness: defining “gamification”. ACM Other conferences, Sept/2011.). Ao tratar da relevância dos games na contemporaneidade, Santaella (2013)SANTAELLA, L. Comunicação ubíqua: Repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013. afirma que, enquanto produto cultural, eles podem ser analisados como mídia, manifestação de arte, nova forma de aprendizagem, ícone da cultura pop e linguagem, sendo que possuem, inclusive, uma cultura, a cultura gamer. Bandersnatch está localizado na fronteira, ou melhor, em uma área de misturas e hibridizações em que o game se mescla com a ficção televisiva. Os games são híbridos por natureza, incorporam-se aos mais diferentes campos da cultura e, portanto, a ideia de gamificação, de que tudo pode se transformar em jogo, indica que “o espírito e a lógica dos games estão penetrando capilarmente em quase todas as atividades e setores da vida humana” (SANTAELLA, 2013SANTAELLA, L. Comunicação ubíqua: Repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013., p. 226).

Além disso, podemos constatar que Bandersnatch é, também, uma espécie de exercício lúdico dos produtores, equipe de desenvolvedores e autores da série Black Mirror. Parece que, com esta obra, enfrentaram empiricamente a temática narrativa de todas as temporadas anteriores, e a colocaram em ação no mundo real. Assim, este episódio-game reflete as “emergências e iminências tecnológicas que envolvem a robótica evolucionária e a IA” (SANTAELLA; GABRIEL, 2019SANTAELLA, L.; GABRIEL, M. Por que Black Mirror dá muito o que pensar? Rev. Diálogo Educacional, Curitiba, v. 19, n. 62, jul./set. 2019., p. 945) e revela ao espectador-jogador o lugar que a IA ocupa — e pode ocupar — em sua vida presente no mundo. Desta forma, no exercício de assistir-jogar presenciamos o atual estado da arte da IA aplicada à ficção televisiva. Sendo que o nível que define o momento presente, segundo especialistas é a ANI,

inteligência artificial estreita (narrow), apta a perfomar tarefas isoladas como jogar xadrez, fazer previsões e sugestões. No estado da arte atual, este é o nível de IA atingido pela humanidade por enquanto, mesmo quando envolve machine learning (aprendizagem de máquina) e deep learning (aprendizagem profunda)

(2019, p. 945).

Alcançar satisfatoriamente novos — ou diversos e distintos — níveis da narrativa é o principal desafio de Bandersnatch. Para isso, a obra começa aplicando o tutorial mencionado acima já em sua tela inicial, em uma espécie de exercício de prontidão para preparar o espectador para os momentos que virão. As escolhas iniciais são triviais, e vão ficando mais intrincadas ética e moralmente com o decorrer da narrativa.

As recompensas de jogo também são adequadas segundo as preferências da audiência. O espectador que tem pressa, pouca paciência ou interesse, consegue terminar rapidamente, bastando, para isso, não fazer escolhas. Neste caso, o próprio jogo-série escolherá e organizará a experiência em um padrão de 90 minutos. Bandersnatch também mistura

os níveis das árvores de decisão (dicotômicas) de maneira que a narrativa não siga uma linearidade simples e o nível de profundidade da história seja variável em função do caminho escolhido. Não se trata simplesmente de um Você decide, onde uma escolha elimina todas as demais possibilidades; em Bandersnatch elas podem ser recuperadas ou trazidas sob um novo contexto20 20 As escolhas de Bandersnatch e a ilusão do livre-arbítrio. Rodrigues, J. Updateordie. Disponível em: <https://www.updateordie.com/2019/01/08/as-escolhas-de-bandersnatch-e-a-ilusao-do-livre-arbitrio/>. Acesso em Jan. 2019. .

Um exemplo dessa recuperação de escolhas está em uma cena na qual se vê um comercial de cereal na TV. A marca do cereal se altera conforme escolha anterior do espectador-jogador. Também ligado a IA, esse registro vem de uma tecnologia de “rastreamento de estado” desenvolvida pela Netflix que gerou comentários como “Isso é muito Black Mirror21 21 “Isso é muito Black Mirror” é um meme que surge acompanhado de uma imagem da série, de um vídeo ou GIF que causem estranhamento. Também foi utilizado para fazer piadas ou ironizar algumas situações. Refere-se a uma experiência tecnológica com cada vez menos limites, algo abordado na série. nas redes sociais.

Algumas cenas que aparentam ser iguais quando transitamos por narrativas diferentes, a um olhar mais atento apresentam ligeiras mudanças nos diálogos e detalhes de ambientação. A audiência-jogadora que quiser experimentar assistir a todas as cenas disponíveis vai despender inúmeras horas nessa tarefa, seguindo por determinados caminhos, desistindo e voltando e, também, recomeçando:

Assim como em um bom videogame, a persistência de ver e rever Bandersnatch compensa, porque cada desdobramento pode ser drasticamente diferente do outro, como se fossem partes de vários filmes distintos. Há possibilidades com conclusões mais cruas e violentas, outras mais dramáticas e sombrias. Há também um desfecho mais “definitivo”, que chega a abusar da metalinguagem e da autorreferência22 22 Admirável Mundo Pop: Bandersnatch pode ser a aposta da Netflix para o futuro do entretenimento — ou algo parecido. Pablo Miyazawa. Adorocinema. 30/12/2018. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-145511/>. Acesso em Dez. 2018. .

Bandersnatch tem cinco finais principais, diretamente ligados às tomadas de decisão feitas no percurso da obra, com variantes; além de oferecer possibilidades da audiência-jogadora experimentar caminhos não conhecidos anteriormente. Ao todo, há mais de cinco horas de conteúdo, entre as escolhas que podem ser feitas.

V-Effekt e livre arbítrio

O V-Effekt é uma tentativa de resgate da função social da obra de arte, pois para Brecht, o chamado efeito de distanciamento não é um ato estético, mas, sim, político. No episódio de Você decide que acompanhamos para este trabalho, percebemos que em termos da narrativa e da escolha pelo público, não parece haver julgamento de valor, pois esse episódio especificamente não trazia claramente questões éticas ou morais importantes. Por que um daqueles personagens seria mais votado do que outro? Podemos inferir que o médico foi o vencedor por uma questão de importância social da profissão ou mesmo por certo romantismo relacionado ao gosto pela música compartilhado entre pai e filho. A pergunta que fica é a seguinte: se as emoções foram estimuladas a se tornarem atos de conhecimento, a que se referia Rosenfeld (2012)ROSENFELD, A. Brecht e o teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 2012. ao pensar no distanciamento brechtiano, ou se exercitou-se, nesse episódio, apenas uma possibilidade de valoração quantitativa relacionada ao volume de telefonemas segundo preferências ou simpatias do público, ou seja, sem discussões mais aprofundadas? Inclinamo-nos para essa última possibilidade.

Já no caso de Bandersnatch, o descolamento do envolvimento emocional da audiência com a ficcionalidade e a solicitação de uma decisão racional causa impacto, obriga a uma decisão e evolui gradualmente de questões triviais a outras mais intensas e — até — desconcertantes. Assim, quanto ao V-Effekt, questionamos: essa decisão passa por uma análise crítica? Se isso ocorre, a atitude de identificação poderia dar lugar a uma atitude crítica relativa à nossa contemporaneidade e escolhas?

Os movimentos de escolha do espectador-jogador de Bandersnatch possibilitam alcançar diferentes níveis da narrativa e são o contrário do que seria uma assistência tradicional. Temos aqui uma narrativa que faz propostas e a postura do espectador deve se alterar: ele precisará agir segundo direções apontadas que podem ser, e são nesse caso específico, difíceis, curiosas, eticamente questionáveis. Isso coloca em movimento questões pessoais e afetivas que a ficção, em geral, apresenta com certa isenção — a de ser iguaria a ser desfrutada. Desta maneira, é importante notar que o afastamento da narrativa para pensar em atitudes a serem tomadas, ofereceria o V-Effekt — ainda que tecnológico — ou seja, o deslocamento do espectador da emoção da personagem, uma desnaturalização da cena, que irá colocá-lo em relação direta com suas proprias emoções e afetividades: “o teatro épico (ou dialético) brechtiano insta o espectador a estar ali como indivíduo consciente e crítico e a se envolver intelectualmente com o debate e com a trama, em vez de emocionalmente” (ALVES, 2017ALVES, M. C. Brecht menos conhecido chega ao Brasil. Ciência e Cultura. Vol.69, nº.4. São Paulo: Oct./Dec. 2017.).

De acordo com o dramaturgo e professor Sérgio de Carvalho, o método do distanciamento procura fazer “que a obra gere contradições sobre as imagens de mundo que ela mostra e sobre o lugar dela mesma como obra de arte” (apud ALVES, 2017ALVES, M. C. Brecht menos conhecido chega ao Brasil. Ciência e Cultura. Vol.69, nº.4. São Paulo: Oct./Dec. 2017.). O teatro épico não é apenas formal, ele busca despertar no espectador um olhar crítico que possibilite um real afastamento dos pensamentos dominantes e hegemônicos para observá-los e, assim, questionar a cultura em que está imerso. A ficção Bandersnatch, como obra dramática, também levanta a possibilidade de refletir sua relação com a sociedade em que vivemos. Refletir de forma dialética então, grosso modo, seria possível ao assistir-jogar Bandersnatch em que opções como “matar o pai” ou “ir embora” surgem e, mesmo que selecionemos “ir embora” a obra discorda e diz que escolhemos o caminho errado e devemos voltar propositalmente até o ponto onde a escolha se deu, para refazê-la — e, assim, interagir com outras possibilidades narrativas. Nesse sentido, tal busca nos leva a questões bastante desagradáveis (Fig. 6).

Fig. 6
Cena com opções de escolha para o espectador de Bandersnatch.

Para além de matar o pai, Bandersnatch presenteia a audiência com um momento excepcionalmente marcante em que é necessário levar Stefan a esquartejar o pai. Ocorre que nem para o próprio personagem essa questão é digerível e, ao saber de nossa escolha, ele brevemente quebra a quarta parede, olha para a câmera, e questiona:

- Really? 23 23 O termo pode ser traduzido como “Sério?”, ou “Realmente?”, ou, ainda, “Tem certeza disso?”.

É impactante.

E podemos contemplar a reverberação do abalo que decisões desta espécie causaram nas manifestações da audiência jogadora nas redes sociais (Fig. 7, 8 e 9).

Fig. 7 e 8
Algumas reações a “Bandersnatch”.
Fig. 9
Algumas reações a “Bandersnatch”.

Apontamentos finais

Considerando o avanço tecnológico no intervalo temporal de mais de 20 anos entre as duas obras observadas neste trabalho, a possibilidade de uma intervenção da audiência na narrativa ficcional está presente em ambas. Em Você decide a intervenção é coletiva, da audiência inteira, que é contabilizada e, assim, conduz ao desfecho da história que está sendo contada. Além da mecânica apresentada, condizente com a tecnologia daquele momento, também podemos depreender certa ativação do efeito de distanciamento — V-Effekt — analisado neste trabalho, ou seja, o espectador interrompe sua fruição da obra, faz um questionamento pessoal, realiza uma escolha, e telefona para o número que indica sua opção. Já em Bandersnatch a intervenção na narrativa é individual, realizada pelo espectador-jogador diretamente na interface que está sendo utilizada, também condizente com a tecnologia atual, e que o conduz por alterações em todo o desenrolar — e mesmo pelo sentido/significado/mensagem — da história que está sendo contada-jogada. Neste caso, a complexidade da mecânica se reflete plenamente na narrativa e, aparentemente, gera maior ativação do efeito de distanciamento, pois requisita do espectador-jogador muito mais paradas para avaliar e escolher caminhos.

Para finalizar, vale dizer que, em Bandersnatch, (1) o personagem Stefan acha que está sendo controlado e que (2) nós, como espectadores-jogadores, também temos certa ilusão de controle. Mas essa aparência de que estamos dando as cartas em determinados momentos não permite ir além dos roteiros traçados pelos criadores da obra (e por suas ferramentas parceiras tecnológicas). O produtor Russell McLean diz que “É ‘Black Mirror’ que está tomando as decisões por você”24 24 Netflix Takes Interactive Storytelling to the Next Level With ‘Black Mirror: Bandersnatch’. Janko Roettgers. Variety. 28/12/2018. Disponível em: <https://variety.com/2018/digital/news/netflix-black-mirror-bandersnatch-interactive-1203096171/>. Acesso em: Dez. 2018. . (Em tempos de algoritmos poderosos, há ainda teorias que preconizam que, de acordo com as escolhas da audiência, a Netflix criaria produções específicas que atendessem às preferências de determinado público. Ou seja, nesse caso, não seria uma obra de ficção e sim um experimento para extrair dados de usuários25 25 Todo lo que tu televisor sabe de ti. Tom C Avendaño. El Pais. Madrid 18/02/2019. Disponível em: <https://elpais.com/cultura/2019/02/16/television/1550354885_284484.html>. Acesso em: Fev. 2019. ).

Ainda vale mencionar que, segundo BornheimBORNHEIM, G. A. Brecht: A Estética do Teatro. Rio de Janeiro, Graal: 1992., na teoria de Brecht, o efeito de distanciamento é um dos elementos fundamentais e pode ser ativado principalmente pelo ator, mas também por meio do público, dos elementos cênicos, da música e do diretor (1992, p. 247-248). Trazemos para a discussão a possibilidade de ativação do V-Effekt por meio da tecnologia atualmente disponível. Para Santaella e Gabriel:

Um dos grandes méritos da série é justamente tentar explorar os impactos não antecipados, ou seja, o outro lado, carente de luz, das tecnologias emergentes. Isso é particularmente importante, porque tendemos a enxergar inicialmente apenas os efeitos previstos de cada tecnologia, negligenciando a reflexão sobre seus possíveis efeitos colaterais (2019, p. 933).

Entre esses efeitos colaterais da tecnologia temos a praticabilidade da aplicação do V-Effekt. E temos em mente que, para que o V-Effekt ocorra, é fundamental que o espectador esteja distanciado e que tenha uma postura ativa, consciente da realidade em que vive. Mesmo que em nosso mundo estejamos imersos e bastante distraídos em uma realidade muito “Black Mirror”.

  • 1
    É filme ou jogo? Com ‘Black Mirror: Bandersnatch’, Netflix inaugura produto interativo. Estado de Minas. 31/12/2018. Disponível em: <https://www.uai.com.br/app/noticia/series-e-tv/2018/12/31/noticias-series-e-tv,239468/com-black-mirror-bandersnatch-netflix-inaugura-produto-interativo.shtml>. Acesso em: Dez. 2018.
  • 2
    Bandersnatch’: filme interativo de ‘Black Mirror’ é engenhoso e divertido. Meire Kusumoto. Veja. 28/12/2018. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/entretenimento/bandersnatch-filme-interativo-de-black-mirror-e-engenhoso-e-divertido/>. Acesso em: Dez. 2018.
  • 3
    Admirável Mundo Pop: Bandersnatch pode ser a aposta da Netflix para o futuro do entretenimento — ou algo parecido. Pablo Miyazawa. Adorocinema. 30/12/2018. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-145511/>. Acesso em: Dez.2018.
  • 4
    Ver: notas sobre a grandeza e decadência da cidade de Mahagonny (BRECHT, 1978BRECHT, B. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.).
  • 5
    No site Memória Globo há um especial sobre o programa, com 18 episódios completos, com os finais escolhidos pelo público. Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/mostras/voce-decide-25-anos/voce-decide-25-anos/voce-decide-25-anos-o-programa.htm>. Acesso em: Jan. 2019.
  • 6
    Foram apresentadores do Você decide os atores Antonio Fagundes, Walmor Chagas, Tony Ramos, Lima Duarte, Raul Cortez, Carolina Ferraz, Luciano Szafir e Cissa Guimarães e os jornalistas Renata Ceribelli e Celso Freitas (MEMÓRIA GLOBO, s/d).
  • 7
    Utilizamos as expressões série televisiva e ficção televisiva e, assim, “estamos nos referindo a telenovelas, séries, minisséries, webséries e outros formatos semelhantes, realizados em vídeo. De acordo com Brandão et al (2012)BRANDÃO, C.; COUTINHO, I.; FIGUEIRA LEAL, P. R. (Orgs). Televisão, cinema e mídias digitais. Florianópolis: Editora Insular, 2012., por vídeo compreendemos a ‘sincronização de imagens e sons eletrônicos, sejam eles analógicos ou digitais e se entendermos imagem eletrônica como aquela constituída por unidades elementares discretas (linhas e pontos) que se sucedem em alta velocidade na tela’ (2012, 71). Ou telas, pois o que atualmente nomeamos de televisiva pode ser acessado por meio de outros aparelhos e outros devices. Historicamente a ficção televisiva é aquela que tem sua origem televisiva, da cultura da televisão, de maneira de produzir televisual, seja qual for o device em que é transmitida e consumida. Enfim, é aquela realizada em formato de vídeo sendo que o vídeo tem a interessante propriedade de unir as práticas artísticas às comunicacionais. Porém, essa nova ficção televisiva não está mais presente apenas na televisão. Então, nesse caso, não seria adequado deixar de nomeá-la de televisiva? Qual seria o nome novo? Independentemente da resposta, e levando em conta as observações acima, optamos por utilizar o termo ficção televisiva” (LEMOS, 2017LEMOS, L. M. P. O autor-roteirista e a ficção televisiva brasileira na era transmídia. 2017. Tese (Doutorado em Teoria e Pesquisa em Comunicação) – ECA/USP, São Paulo, 2017.).
  • 8
    A série antológica apresenta temática comum e episódios independentes entre si, com personagens e cenários diferentes de um episódio para outro.
  • 9
    Os livros interativos, ou gamebooks (CYOA – Choose your own adventure books), surgidos ainda na década de 1930 nos EUA, permitem ao leitor seguir diferentes trilhas e o remete para uma ou outra página, dependendo de suas escolhas em momentos de decisão.
  • 10
    Netflix Takes Interactive Storytelling to the Next Level With ‘Black Mirror: Bandersnatch’. Janko Roettgers, Variety. 28/12/2018. Disponível em: https://variety.com/2018/digital/news/netflix-black-mirror-bandersnatch-interactive-1203096171/. Acesso em Dez/2018.
  • 11
    Idem.
  • 12
    Netflix planeja novas histórias interativas após Black Mirror: Bandersnatch. Laysa Zanetti. Adorocinema. 28/12/2018. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-145493/>. Acesso em Dez. 2018.
  • 13
    Segundo o historiador e crítico Jacoby (2007, p. 31)JACOBY, R. Imagem Imperfeita: Pensamento Utópico para uma Época Antiutópica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., a distopia seria a antítese da utopia ou, ainda, uma espécie de utopia negativa.
  • 14
    “Uma árvore de decisão é um mapa dos possíveis resultados de uma série de escolhas relacionadas [...] geralmente começa com um único nó, que se divide em possíveis resultados. Cada um desses resultados leva a nós adicionais, que se ramificam em outras possibilidades. Assim, cria-se uma forma de árvore”. Ver: Lucidchart. Disponível em: <https://www.lucidchart.com/pages/pt/o-que-e-arvore-de-decisao>. Acesso em Jun. 2019.
  • 15
    The Reddit detectives are hard at work decoding Black Mirror: Bandersnatch. Tasha Robinson. The Verge. 28/12/2018. Disponível em: <https://www.theverge.com/2018/12/28/18159516/black-mirror-bandersnatch-interactive-choice-maps-endings-easter-eggs-netflix-charlie-brooker>. Acesso em: Jan. 2019.
  • 16
    Bandersnatch_Map_IGN_2.jpg 4,000×3,556 pixels update version. Reddit. Disponível em: <https://www.reddit.com/user/jadeeeeeeeeeeeeeee/>. Acesso em: Jan. 2019.
  • 17
    CGU – Conteúdo Gerado pelo Usuário.
  • 18
    Ibidem.
  • 19
    Como ver conteúdo interativo na Netflix (Black Mirror: Bandersnatch). Melissa Cruz Cossetti. Technoblog. 28/12/2018. Disponível em: <https://tecnoblog.net/273104/como-ver-conteudo-interativo-na-netflix-black-mirror-bandersnatch/>. Acesso em Dez. 2018.
  • 20
    As escolhas de Bandersnatch e a ilusão do livre-arbítrio. Rodrigues, J. Updateordie. Disponível em: <https://www.updateordie.com/2019/01/08/as-escolhas-de-bandersnatch-e-a-ilusao-do-livre-arbitrio/>. Acesso em Jan. 2019.
  • 21
    “Isso é muito Black Mirror” é um meme que surge acompanhado de uma imagem da série, de um vídeo ou GIF que causem estranhamento. Também foi utilizado para fazer piadas ou ironizar algumas situações. Refere-se a uma experiência tecnológica com cada vez menos limites, algo abordado na série.
  • 22
    Admirável Mundo Pop: Bandersnatch pode ser a aposta da Netflix para o futuro do entretenimento — ou algo parecido. Pablo Miyazawa. Adorocinema. 30/12/2018. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-145511/>. Acesso em Dez. 2018.
  • 23
    O termo pode ser traduzido como “Sério?”, ou “Realmente?”, ou, ainda, “Tem certeza disso?”.
  • 24
    Netflix Takes Interactive Storytelling to the Next Level With ‘Black Mirror: Bandersnatch’. Janko Roettgers. Variety. 28/12/2018. Disponível em: <https://variety.com/2018/digital/news/netflix-black-mirror-bandersnatch-interactive-1203096171/>. Acesso em: Dez. 2018.
  • 25
    Todo lo que tu televisor sabe de ti. Tom C Avendaño. El Pais. Madrid 18/02/2019. Disponível em: <https://elpais.com/cultura/2019/02/16/television/1550354885_284484.html>. Acesso em: Fev. 2019.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2020
  • Aceito
    01 Jun 2020
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