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Implicações territoriais entre as diferentes categorias de unidades de conservação da natureza no Brasil e as concepções político-pedagógicas da educação ambiental

Resumo

As unidades de conservação da natureza (UC) são territórios instituídos pelo Estado brasileiro. Envolvem relações de poder relativas ao controle dos recursos naturais. A educação ambiental (EA) é posta como uma estratégia de interlocução com os agentes envolvidos na territorialização das UC. Na perspectiva de um campo social, a EA apresenta três macrotendências político-pedagógicas: crítica, conservacionista e pragmática. Foram investigadas 254 UC federais, com o objetivo de verificar como os modelos de regulação dos territórios de UC constituem as territorialidades da EA. Constatou-se que, apesar de haver uma diretriz institucional única, as UC do grupo de proteção integral se inclinam à concepção político-pedagógica conservacionista, ao passo que as UC do grupo de uso sustentável tendem à concepção político-pedagógica crítica. Isso significa que diferentes formas de territorialização das UC são propensas a determinadas concepções político-pedagógicas de EA, independentemente da diretriz institucional.

Palavras-chave:
Educação ambiental; Macrotendência político-pedagógica; Unidades de conservação da natureza; Territorialidades

Abstract

The Nature Conservation Units (UC) are territories established by the Brazilian State. They involve power relations related to the control of natural resources. The environmental education (EE) is placed as a strategic dialogue with the agents involved with the CU territorialization. The EE, from the perspective of a social field, presents three macro-trends of political-pedagogical conceptions: the critical one, the conservationist one and the pragmatic one. An amount of 254 federal UC were investigated through online questionnaires, aiming at articulating the patterns of regulation of UC territories with the territorialities of EE practices. It was verified that despite the existence of an unique institutional guideline, the UC related to the Integral Protection Group presented an inclination towards the critical conservationist political-pedagogical conception, whereas the UC of the Sustainable Use tended towards the critical political-pedagogical conception. This means that different forms of UC territorialization tend to certain political-pedagogical conception of EE, regardless the institutional guidelines.

Keywords:
Environmental education; Political-pedagogical macro-trends; Nature conservation units; Territorialities

Résumé

Les unités de conservation de la nature (UC) sont des territoires créés par l’État brésilien pour protéger les ressources naturelles et promouvoir le développement socio-environnemental. Ils impliquent les relations de pouvoir liés au contrôle des ressources naturelles. L’education environnementale (EE) est présentée comme une stratégie d’interlocution avec les agents impliqués dans la territorialisation de l’UC. L’EE, du point de vue d’un champ social, présente trois macro-tendances de conceptions politico-pédagogiques: critique, conservationniste et pragmatique. Ont été examinés 254 UC fédérales visant à articuler les modèles de réglementation des territoires des UC avec les territorialités des pratiques d’EE. On a vérifié que malgré l’existence d’une unique directive institutionelle, l’UC du groupe Protection Intégrale (PI) présentaient une tendance vers la conception politico-pédagogique de la conservation, alors que les UC du groupe Utilisation durable (UD) tendaient vers la conception politico-pédagogique critique. Cela signifie que différentes formes de territorialisation sont soumises à certaines conceptions politico-pédagogiques de l’EE, au détriment de la ligne directrice institutionnelle.

Mots-clés:
Education environnementale; Macro-tendances politico-pédagogiques; Unités de conservation de la nature; Territorialités

Introdução

O objetivo deste artigo é discutir como os modelos de regulação dos territórios das unidades de conservação da natureza (UC) sob a gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) são articulados com a territorialidade das práticas de educação ambiental (EA). São analisadas informações de 254 UC federais, relacionando os grupos e categorias de UC com as perspectivas político-pedagógicas do campo da EA brasileira referidas nos textos de Layrargues e Lima (2014LAYRARGUES, P. P; LIMA, G. F. C. As macrotendências político-pedagógicas da educação ambiental brasileira. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. XVII, n. 1, p. 23-40, jan./mar. 2014. Retrieved from: https://www.scielo.br/j/asoc/a/8FP6nynhjdZ4hYdqVFdYRtx/?format=pdf⟨=pt.
https://www.scielo.br/j/asoc/a/8FP6nynhj...
) e ICMBio (2016ICMBIO. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Educação ambiental em unidades de conservação: ações voltadas para comunidades escolares no contexto da gestão pública da biodiversidade. Brasília: MMA , 2016. Retrieved from: https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/comunicacao/publicacoes/publicacoes-diversas/DCOM_ICMBio_educacao_ambiental_em_unidades_de_conservacao.pdf.
https://www.icmbio.gov.br/portal/images/...
).

As UC são territórios instituídos pelo Estado brasileiro por meio de políticas públicas e visam proteger os recursos naturais e promover o desenvolvimento socioambiental. São territorializadas mediante práticas institucionais e compõem um campo social (Bourdieu, 1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989., 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Trad. Denice Bárbara Catani. São Paulo: Ed. Unesp, 2004.) que compreende um espaço de relações sociais e definição de regras relativas à sociedade civil e a outros campos ou subcampos em diversas escalas.

Neste artigo, consideram-se a natureza e o meio ambiente um campo teórico e conceitual próprio, mais amplo e complexo. Mas optou-se pelo recorte e pela concepção materialista da expressão recursos naturais, ou seja, tomou-se o recurso natural como o grande mobilizador das políticas ambientais num Estado capitalista de classes, compreendendo o meio físico e biológico.

Isso requer compreender as relações sociais instituídas na destinação, no acesso e no uso dos recursos naturais, sendo o Estado o grande mediador dessa relação. Propõe-se, no âmbito das territorialidades das UC federais, que a EA assuma uma estratégica interlocução nos processos assimétricos e desiguais de apropriações dos recursos naturais. O ICMBio concebe a EA como um instrumento de gestão das UC federais. Com referencial teórico-metodológico e lócus institucional próprios, a EA se materializa em projetos, programas e planos específicos. Estes são elaborados e desenvolvidos em diferentes momentos em cada UC, dependendo de demanda, necessidade, recursos financeiros e humanos e estágio de implementação, entre outros fatores.

Todavia, na prática, percebem-se diferentes formas de regulação por parte do Estado para esses territórios, por meio de diferentes grupos e categorias de manejo de UC, refletindo de modo geral, ao menos no que tange à norma, uma maior ou menor restrição de uso dos recursos naturais, presença ou não de populações humanas, entre outros aspectos legais. Já quanto à EA, constata-se que não é unívoca, pois, quando se a analisa na perspectiva de campo, observam-se suas diferenças e suas diferentes vinculações político-pedagógicas.

Territórios de conservação dos recursos naturais

De acordo com Souza (2000SOUZA, M. J. L. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (Org.). Geografia: conceitos e temas. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 77-116.) e Haesbaert (2004HAESBAERT, R. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Porto Alegre, set. 2004. Retrieved from: http://www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf.
http://www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf...
), o território corresponde à projeção espacial do poder, expressando desde a dominação política e o controle social até a apropriação simbólica do espaço. Para Raffestin (1993RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. Trad. Maria Cecília França. São Paulo: Ática, 1993., p. 143-144), o espaço é anterior ao território:

[...] território se forma a partir do espaço, é resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. É um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder.

Analisando a questão agrária,3 1 Compreende-se que a questão agrária tem pontos análogos aos conflitos ambientais analisados na ótica de Acselrad (2004). Fernandes (2005FERNANDES, B. M. Movimentos socioterritoriais e movimentos socioespaciais: contribuição teórica para uma leitura geográfica dos movimentos sociais. Nera. Presidente Prudente, v. 8, n. 6, p. 14-34, jan./jun. 2005. Retrieved from: http://www2.fct.unesp.br/nera/revistas/06/Fernandes.pdf.
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, p. 27, grifo do original), destaca:

O território é o espaço apropriado por uma determinada relação social que o produz e o mantém a partir de uma forma de poder. [...] é, ao mesmo tempo, uma convenção e uma confrontação. Exatamente porque o território possui limites, possui fronteiras, é um espaço de conflitualidades. Os territórios são formados no espaço geográfico a partir de diferentes relações sociais. O território é uma fração do espaço geográfico e ou de outros espaços materiais ou imateriais. Entretanto, é importante lembrar que o território é um espaço geográfico, assim como a região e o lugar, e possui as qualidades composicionais e completivas dos espaços. A partir desse princípio, é essencial enfatizar que o território imaterial é também um espaço político, abstrato. Sua configuração como território refere-se às dimensões de poder e controle social que lhes são inerentes. Desde essa compreensão, o território mesmo sendo uma fração do espaço também é multidimensional. Essas qualidades dos espaços evidenciam nas partes as mesmas características da totalidade.

Em consonância com os autores citados até aqui (Raffestin, 1993RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. Trad. Maria Cecília França. São Paulo: Ática, 1993.; Souza, 2000SOUZA, M. J. L. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (Org.). Geografia: conceitos e temas. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 77-116.; Haesbaert, 2004HAESBAERT, R. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Porto Alegre, set. 2004. Retrieved from: http://www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf.
http://www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf...
; Fernandes, 2005FERNANDES, B. M. Movimentos socioterritoriais e movimentos socioespaciais: contribuição teórica para uma leitura geográfica dos movimentos sociais. Nera. Presidente Prudente, v. 8, n. 6, p. 14-34, jan./jun. 2005. Retrieved from: http://www2.fct.unesp.br/nera/revistas/06/Fernandes.pdf.
http://www2.fct.unesp.br/nera/revistas/0...
) e com Santos (1999SANTOS, M. O dinheiro e o território. GEOgraphia, v. 1, n.1, p. 7-13, 1999. ), a perspectiva conceitual adotada nas análises dos dados contempla as dimensões materiais e imateriais do território, já que se define o mesmo, tanto como o lugar da residência, das trocas materiais, como do espiritual, do pertencimento e do exercício da vida.

Há uma dimensão que vai além da delimitação politicamente estabelecida pelo Estado para uma UC, pois se esta é definida politicamente, em sua origem, já extrapola a dimensão material. É importante compreender que o território onde uma UC está inserida não se restringe à dimensão física ou às relações sociais, já que o território é “ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar ‘funções’ quanto para produzir ‘significados’” (Haesbaert, 2004HAESBAERT, R. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Porto Alegre, set. 2004. Retrieved from: http://www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf.
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, p. 3).

Assim, análises de UC, quando restritas aos seus limites físicos, somente em sua dimensão material e concreta, apresentam falhas e limitações. O mesmo acontece quando são restritas a elementos físicos, biológicos e normativos, o que acaba encobrindo a realidade concreta que as constitui e pode omitir que as UC são invenções humanas para dar conta de problemas e necessidades humanas - significados e funcionalidades. Exemplo comum é o caso de populações tradicionais cujas residências ficaram “fora” dos limites da UC no ato de sua criação, mas que exercem tradicionalmente suas territorialidades, seja de extrativismo ou de cunho espiritual/imaterial, “dentro” dos limites instituídos pelo poder público para formar o território da UC, apresentando, assim, implicações funcionais e simbólicas.

No ordenamento estatal do território, as áreas naturais protegidas foram organizadas por meio da Lei n. 9.985/2000, que regulamentou o artigo 225 da Constituição Federal e instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc) (Brasil, 2000BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e dá outras providências. Brasília: MMA, 2000. Retrieved from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). O processo de construção do Snuc foi “permeado por polêmicas e impasses oriundos da diversidade de formas de proteger e conservar a natureza percebidas pelos diferentes grupos envolvidos com a temática” (Talbot, 2016TALBOT, V. Termos de compromisso: histórico e perspectivas como estratégia para a gestão de conflitos em unidades de conservação federais. Dissertação (Mestrado Profissional em Biodiversidade em Unidades de Conservação) - Escola Nacional de Botânica Tropical, Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: https://jbrj.academia.edu/VirginiaTalbot.
https://jbrj.academia.edu/VirginiaTalbot...
, p. 38). O debate entre preservacionistas, conservacionistas, socioambientalistas e ruralistas na construção de um sistema nacional para as áreas protegidas centrava-se principalmente em questões envolvendo populações tradicionais, sobre a participação social nesse processo e a desapropriação de áreas (Peccattiello, 2011PECCATTIELLO, A. F. O. Políticas públicas ambientais no Brasil: da administração dos recursos naturais (1930) à criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (2000). Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 24, p. 71-82, jul./dez. 2011. Retrieved from: https://revistas.ufpr.br/made/article/view/21542 .
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).

Como resultado dessas disputas, o texto publicado pela Lei do Snuc instituiu dois grandes grupos de UC: o de proteção integral (PI) e o de uso sustentável (US). Segundo o item VI do art. 2º, a PI visa a “manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais”, sendo que o Uso Indireto foi definido no item IX como “aquele que não envolve consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais” (Brasil, 2000BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e dá outras providências. Brasília: MMA, 2000. Retrieved from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
).

De acordo com o item XI do mesmo artigo, ficou determinado que o US é a “exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável”. E, no item X, o uso direto é “aquele que envolve coleta e uso, comercial ou não, dos recursos naturais” (Brasil, 2000BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e dá outras providências. Brasília: MMA, 2000. Retrieved from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm.
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). Os dois grupos compreendem 12 categorias de UC, que se distinguem de acordo com seus objetivos e refletem o tipo de manejo da área que, genericamente, pode ser entendido como maior ou menor restrição ao acesso e ao uso dos recursos naturais, desapropriação ou não de propriedades privadas inseridas na área, presença ou não de populações humanas, entre outros aspectos definidos do art. 9º ao 21º dessa lei.

Peccattiello (2011PECCATTIELLO, A. F. O. Políticas públicas ambientais no Brasil: da administração dos recursos naturais (1930) à criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (2000). Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 24, p. 71-82, jul./dez. 2011. Retrieved from: https://revistas.ufpr.br/made/article/view/21542 .
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, p. 79) chama de “percepção da sociedade em relação à natureza” as disputas ocorridas na formulação do Snuc e considera que:

A divisão pelo SNUC das UCs em dois grandes grupos - as de Proteção Integral e as de Uso Sustentável - acaba por englobar ambas as percepções da sociedade em relação à natureza, privilegiando tanto a intocabilidade dos recursos renováveis como a concepção de inclusão social na gestão das áreas protegidas. Além disso, esta Lei reflete um avanço na política ambiental brasileira, ao passo que veio fortalecer a perspectiva de uso sustentável dos recursos naturais, das medidas compensatórias e de uma descentralização mais controlada da política ambiental no Brasil.

Segundo a Lei do Snuc, as UC são espaços territoriais, compreendendo seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídas pelo poder público, com objetivos de conservação, tendo limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção (Brasil, 2000BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e dá outras providências. Brasília: MMA, 2000. Retrieved from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Com esse sistema instituído, dentro de uma política pública incrementalista, tendo como base uma das maiores biodiversidades do planeta, o Brasil assume protagonismo no cenário mundial, ao menos no que tange aos números, quantidade e extensão de áreas naturais protegidas por meio de UC. Em 2017, o país contabilizava 324 UC federais (9% do território nacional) com aproximadamente 79 milhões de hectares, sem computar as RPPN,4 2 As reservas particulares do patrimônio natural (RPPN) são UC e compõem o Snuc, mas são de iniciativa e gestão de proprietários privados, e não é esse o objeto de estudo na pesquisa que originou o presente artigo. Na Tabela 1, apresentam-se o número e a área de UC federais distribuídas nas categorias de manejo instituídas no Snuc.

Tabela 1-
Número e áreas de UC federais, exceto RPPN, distribuídas por categoria

Nesse contexto, verifica-se que o Brasil adotou como principal estratégia de conservação de seus recursos naturais a criação, implementação e gestão de UC, exercendo múltiplas territorialidades para alcançar tal finalidade. Sack (2011SACK, R. D. O significado de territorialidade. In: DIAS, L. C.; FERRARI, M. (Org.). Territorialidades humanas e Redes Sociais. Florianópolis: Insular, 2011. p. 63-89.) entende que a territorialidade compreende uma expressão geográfica primária relacionada com poder social nas relações históricas. Assim, diferentes concepções de UC, instituídas pela norma por meio de grupos e categorias de manejo, visam representar diferentes práticas territoriais de conservação da natureza, expressando diferentes territorialidades, entre elas, o planejamento e execução de ações de EA como estratégia de interlocução com os agentes envolvidos na destinação, no acesso e no uso dos recursos naturais.

A investigação do(s) modelo(s) de EA proposto(s) pelo Estado e as práticas de EA nas UC resulta em saber se tais aspectos:

[...] aproxima[m] os problemas sociais dos ambientais ou os distancia, explicitando-se ou omitindo-se as recíprocas influências da exploração econômica e da concentração de renda, com a injustiça social, a degradação ambiental e o valor e sentido dado à natureza (Loureiro; Layrargues, 2000LOUREIRO, C. F. B; LAYRARGUES, P. P. Educação ambiental nos anos noventa: mudou, mas nem tanto. Políticas Ambientais, v. 9, n. 25, p. 6-7, 2000. , p. 16-17).

Concepções político-pedagógicas das ações de educação ambiental

Com autorização e apoio do ICMBio (SISBio n. 55.905-1/2016), foram pedidas informações a todas as UC federais à época da coleta de dados da pesquisa, 324 UC no ano de 2017. Usou-se como instrumento de coleta um questionário on-line contendo 26 questões, predominantemente objetivas. Obtiveram-se questionários respondidos de 254 UC, ou 78% do total (Figura 1).

Figura 1 -
Localização das UC participantes identificadas por categoria

Para compreender as territorialidades da EA nas UC federais, buscou-se captar as características das UC que entendiam ser mais representativas de suas ações. Optou-se por classificá-las analiticamente relacionando-as às macrotendências político-pedagógicas da EA brasileira: conservacionista, pragmática e crítica (Layrargues; Lima, 2014LAYRARGUES, P. P; LIMA, G. F. C. As macrotendências político-pedagógicas da educação ambiental brasileira. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. XVII, n. 1, p. 23-40, jan./mar. 2014. Retrieved from: https://www.scielo.br/j/asoc/a/8FP6nynhjdZ4hYdqVFdYRtx/?format=pdf⟨=pt.
https://www.scielo.br/j/asoc/a/8FP6nynhj...
), as quais se distinguem e apresentam características específicas de práticas e concepções na relação de apropriação dos recursos naturais. Para tanto, tomaram-se como referência as características reconhecidas e publicadas pela instituição gestora das UC. Sobre as diversas correntes da EA, o ICMBio (2016ICMBIO. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Educação ambiental em unidades de conservação: ações voltadas para comunidades escolares no contexto da gestão pública da biodiversidade. Brasília: MMA , 2016. Retrieved from: https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/comunicacao/publicacoes/publicacoes-diversas/DCOM_ICMBio_educacao_ambiental_em_unidades_de_conservacao.pdf.
https://www.icmbio.gov.br/portal/images/...
, p. 25) define: “Para facilitar seu entendimento apresentamos uma tabela que busca diferenciar três grupos que abarcam as principais linhas de educação ambiental hoje no Brasil” (Quadro 1).

Quadro 1 -
Características das macrotendências da EA

Com base nessa referência institucional, elaborou-se uma das questão do questionário (Quadro 2), embaralhando as características e omitindo essa reconhecida vinculação das características com as macrotendências, de modo a não influenciar ou induzir o respondente a determinada corrente ou macrotendência político-pedagógica da EA. Foram selecionadas 15 características das ações de EA, sendo cinco ligadas à corrente conservacionista, cinco à pragmática e cinco à corrente crítica, apresentadas aos respondentes de forma intercalada.

Quadro 2
Questão sobre as características das ações de EA

Constatou-se na análise geral, de todas as UC respondentes, independente de grupos e categorias de manejo, que apesar de pequenas diferenças percentuais, não há uma macrotendência político-pedagógica dominante, ocupando uma posição hegemônica neste campo. As três macrotendências político-pedagógicas da EA brasileira, selecionadas como categorias de análise para compreender as ações de EA desenvolvidas pelas UC federias, ocupam posições simultâneas entorno de 1/3 das respostas a essa questão.

Após o tratamento e a sistematização inicial das respostas, observou-se que a questão teve respostas de 205 UC. Com as respostas distribuídas pelas concepções político-pedagógicas da EA brasileira, obteve-se o Gráfico 1.

Gráfico 1 -
Percentual de respostas das UC referentes às características das ações de EA ligadas às macrotendências político-pedagógicas

As características da concepção político-pedagógica conservacionista da EA foram marcadas 273 vezes. Essas marcações referem-se ao que as UC respondentes entendem que mais representa suas ações, sendo que 156 UC marcaram essas alternativas. As características da concepção político-pedagógica pragmática da EA foram marcadas 255 vezes, manifestando o que as UC respondentes entendem ser mais representativo de suas ações de EA, sendo que 159 UC assinalaram alternativas ligadas à EA pragmática. Quanto às características da concepção político-pedagógica crítica da EA, foram marcadas 230 vezes, manifestando as características que as UC respondentes entendem como mais representativas de suas ações, sendo que 109 UC responderam características da EA crítica.

A partir dessa aproximação geral, o passo seguinte foi realizar o primeiro detalhamento, verificando as ocorrências das macrotendências político-pedagógicas por grupos de manejo de UC de proteção integral (PI) e uso sustentável (US). Dessa separação, resultaram os Gráficos 2 e 3.

Gráfico 2 -
Macrotendências político-pedagógicas da EA presentes no grupo de PI

Gráfico 3 -
Macrotendências político-pedagógicas da EA presentes no grupo de US

Constatada essa primeira diferença entre os grupos, ampliou-se o detalhamento para as diferentes categorias que os compõem. Essa etapa esclareceu se o padrão geral se mantinha ou se as diferentes categorias de manejo de UC apresentavam diferentes práticas de EA representadas por diferentes macrotendências político-pedagógicas. Para tanto, optou-se por representar esses dados no gráfico de radar, que permite ver a relação mensurada entre as correntes de EA presente nas diferentes categorias de UC.

Conforme o Gráfico 2, o grupo de PI apresentou um maior percentual da macrotendência político-pedagógica conservacionista (42,4%), seguida da pragmática (34,6%) e, por último, da concepção crítica (23,0%). Nos gráficos de radar apresentados no Gráfico 4, vê-se como se distribuem as macrotendências no interior do grupo pelas categorias analisadas: Esec, Rebio, Parna e Revis.

Gráfico 4 -
Orientação das macrotendências político-pedagógicas da EA nas categorias de UC do grupo de PI

Conforme o Gráfico 3, no grupo de US, a concepção da EA crítica obteve o maior percentual (36,8%), seguida pela concepção pragmática (32,8%) e, por último, a conservacionista (30,3%). O Gráfico 5 mostra como as macrotendências estão distribuídas no interior do grupo de US pelas categorias analisadas: área de proteção ambiental (APA), área de relevante interesse ecológico (Arie), floresta nacional (Flona), reserva extrativista (Resex) e uma reserva de desenvolvimento sustentável (RDS).

Gráfico 5 -
Orientação das macrotendências político-pedagógicas da EA nas categorias de UC do grupo de US

Observa-se que a inclinação da macrotendência conservacionista no grupo de PI foi alavancada principalmente pelas categorias Esec e Rebio, as duas mais restritivas do Snuc. A categoria Parna apresentou leve destaque para a corrente conservacionista, embora as 3 correntes registraram em torno dos 30%. Revis, apesar de sua norma prever terras de posse e domínio privados, foi a categoria que mais se distanciou da corrente crítica, dando destaque para a corrente pragmática.

No grupo de US, o destaque para a macrotendência crítica deu-se nas Resex e RDS. Esta posição mostra-se coerente, pois estas duas categorias apresentam normas similares e são instituídas visando preservar os modos de vida tradicionais, com o uso sustentável dos recursos. A categoria Arie exibiu um distanciamento da corrente crítica e um destaque para a corrente conservacionista. As APA demonstraram um leve distanciamento da corrente crítica e percentuais superiores e próximos entre a corrente conservacionista e pragmática. As Flona indicaram uma distribuição próxima entre as três correntes, com suave distanciamento da corrente conservacionista.

As macrotendências político-pedagógicas das EA percebidas como posições dentro de um campo social (Bourdieu, 1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989., 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Trad. Denice Bárbara Catani. São Paulo: Ed. Unesp, 2004.) de disputa pela hegemonia na legitimação ou deslegitimação das diferentes formas de narração da realidade apresentam analogias e relações com o campo dos conflitos ambientais. Segundo Henri Acselrad (2004ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Heinrich Böll, 2004. p. 9-20., p. 16), os conflitos ambientais podem ser entendidos como:

Aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis - transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos - decorrentes do exercício das práticas de outros grupos.

Acselrad (2004ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Heinrich Böll, 2004. p. 9-20.) afirma que a noção de conflito ambiental é uma construção social e, nessa qualidade, pode ter diferentes concepções e representações da realidade. O autor apresenta três abordagens dessas concepções: a evolucionista, a economicista e uma terceira via chamada de alternativa.

Com características análogas à macrotendência político-pedagógica conservacionista da EA, Acselrad (2004ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Heinrich Böll, 2004. p. 9-20.) apresenta a abordagem evolucionista do conflito ambiental. Esta diz respeito às formas adaptativas do homem como espécie animal. Nesse caso, haveria oposição entre as diferentes formas de adaptação dos agentes ao mundo natural. Todavia, como a concepção político-pedagógica conservacionista da EA, essa abordagem apresenta limitações ao dissociar o natural do social.

A abordagem economicista dos conflitos ambientais, apresentada por Acselrad (2004ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Heinrich Böll, 2004. p. 9-20.), relaciona-se à dificuldade de os agentes geradores de impactos externos assumirem suas respectivas responsabilidades, como também à dificuldade de definir a propriedade de determinados recursos naturais, gerando conflitos pelo acesso e pelo uso dos recursos. Nessa perspectiva, os conflitos estariam associados à margem da ação do mercado, vinculados a recursos sem preço e dificuldades de apropriação privada. Essa abordagem pode ser relacionada à macrotendência político-pedagógica da EA pragmática, pois estaria voltada às adaptações face a imperfeições do sistema produtivo.

Como abordagem alternativa às concepções evolucionista e economicista, os conflitos ambientais podem ser entendidos quando relacionados a diferentes interesses e estratégias de apropriação da base material de recursos naturais. Nessa perspectiva, reconhece-se a incapacidade de se resolverem tais questões dentro da lógica unitária de mercado ou estritamente por meio da norma. Assim, abre-se espaço para que racionalidades não hegemônicas possam operar em dimensões culturais relacionadas a modos de vida de povos e populações tradicionais (Acselrad, 2004ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Heinrich Böll, 2004. p. 9-20.). “Aqui, vemos como os conflitos ambientais podem ser entendidos como expressão de tensões no processo de reprodução dos modelos de desenvolvimento” (Acselrad, 2004ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Heinrich Böll, 2004. p. 9-20., p. 11). Com essas características, relaciona-se a abordagem alternativa dos conflitos ambientais com a concepção político-pedagógica crítica da EA.

Portanto, a forma como os conflitos ambientais são percebidos pela sociedade no interior de um modelo de desenvolvimento historicamente construído também pode se refletir na forma como as ações de EA são pensadas e executadas pelo poder público, por suas instituições e por seus agentes. Nesse contexto, se determinado conflito ambiental espacializado em território onde foi instituído um elemento de grande potencial territorializador - UC, e não é percebido como fruto da desigual apropriação dos recursos materiais e da distribuição dos poderes para decisões sobre os mesmos, é improvável que ações de EA com concepção político-pedagógica crítica faça parte das territorialidades dessa UC.

Ao investigar a ocorrência de conflitos ambientais e sua abordagem por meio das ações de EA nas UC participantes da pesquisa, observou-se que, das 254 UC participantes, 233 (91,7%) se manifestaram da seguinte forma: 57,8% informaram que os conflitos socioambientais presentes em seu território são abordados nas ações de EA, 12,9% que não são abordados nas ações de EA e 29,3% que tal não se aplica à UC. Esta última situação pode ser interpretada de duas formas: a UC não apresenta conflitos socioambientais (menos provável) ou a UC não desenvolve ações de EA (mais provável).

Quanto ao tipo de abordagem, foram apresentados seis opções para as UC caracterizarem suas práticas, obtendo-se o seguinte resultado (Tabela 2):

Tabela 2 -
Forma como os conflitos ambientais são abordados nas ações de EA - número de vezes que o tipo de abordagem aparece nas respostas

Nessa questão, percebe-se uma fragilidade na dimensão teórico-metodológica da ação de EA, visto que a partir das respostas constatou-se que a opção “beneficiados e prejudicados com o conflito” assume a penúltima posição entre as abordagens disponibilizadas para resposta, à frente apenas da abordagem “Somente informações da existência do conflito, sem abordar as alternativas anteriores”. A forma e o conteúdo da abordagem de um conflito ambiental nas ações de EA podem revelar a intenção da ação educativa, a qual muitas vezes não está clara ou explícita, embora presente e posicionada no campo social.

Partindo das premissas de que a educação não é neutra e de que a própria pretensão de neutralidade implica a conservação do que está posto, investigou-se também a intenção da ação educativa promovida pelas UC. Para essa questão, obteve-se o seguinte resultado: 49,8% das UC analisadas (105) responderam que a principal intencionalidade da ação educativa é “Promover o desenvolvimento de uma consciência ecológica, detentora de conhecimentos dos processos ecológicos e, a partir desta, atuar para a preservação e conservação dos recursos naturais”. Já 36,5% (77) informaram que a principal intenção é “Promover o desenvolvimento de uma consciência política e participativa e, a partir destas, atuar nos processos decisórios da destinação e uso dos recursos naturais” e 13,7% (29) escolheram “Nenhuma das alternativas anteriores”.

Nessa questão, foram disponibilizadas aos agentes participantes da pesquisa duas opções distintas de respostas, além da opção de recusar ambas. A primeira, obtendo maior destaque, enfatiza o aspecto do conhecimento e da ecologia e está relacionada à macrotendência político-pedagógica conservacionista da EA. A segunda opção tem como ponto central o aspecto político e participativo e apresentou uma preferência secundária. O caráter político e participativo na ação educativa está diretamente relacionado à macrotendência político-pedagógica crítica da EA.

Apesar de a diretriz institucional do ICMBio ser dirigida a uma concepção de EA crítica, percebe-se que, na prática, segundo as UC analisadas, a intenção tende para a concepção conservacionista, pioneira e tradicional do campo ambiental. Expressa também um enraizamento e uma adesão ao enfoque do conhecimento ecológico em detrimento da atuação no campo social e político, onde são estabelecidas as relações com os recursos naturais e seus processos ecológicos.

Verificadas as diferentes facetas das características das ações de EA nas UC federais quanto à inclinação político-pedagógica, mesmo considerando que é um modo de generalização e reconhecendo seus riscos e limitações, foi possível estabelecer uma leitura fora de segmentações estritas, a partir do território e das territorialidades, e evidenciaram-se a multiplicidade e a pluralidade de formas.

Considerações finais

Constatou-se uma pluralidade de concepções político-pedagógicas mediante a caracterização das ações pelas UC. Evidências da intensa participação das concepções político-pedagógicas conservacionista e pragmática indicam a não linearidade ou exclusividade de determinada corrente, como preconiza a orientação institucional.

A EA crítica é a concepção político-pedagógica adotada institucionalmente para orientar as ações educativas em geral, ou seja, para todos os grupos e categorias de UC. Todavia, considerando que se trata de um campo social, esta investigação revelou implicações diferentes entre os diferentes grupos e as diferentes categorias de UC que compõem o Snuc. Analisando o sistema federal como um todo, não se percebe a predominância significativa de alguma corrente específica, mas, quando se muda a escala e parte para a separação em grupos ou nas categorias que compõem os grupos, as diferenças começam a ser visíveis.

Nas UC de PI, em geral mais restritivas quanto ao uso e à ocupação humana do território, suas territorialidades tendem a se alinhar à macrotendência político-pedagógica conservacionista da EA, privilegiando o conhecimento ecológico como territorialidade. No outro polo, as UC do grupo de US, onde em geral se preveem o uso direto dos recursos naturais e a ocupação humana, mostram certo alinhamento à macrotendência político-pedagógica crítica.

Infere-se, portanto, que as UC são classificadas com base na norma em grupos e categorias de manejo e orientadas a diferentes práticas territoriais. Tanto a formulação quanto a execução da norma - por exemplo, qual a área geográfica de interesse e qual a categoria de UC mais adequada - se dão no interior de um campo de relações sociais envolvendo diferentes interesses, disputas e conflitos simbólicos ou materiais.

Essas relações são instituídas mediante a necessidade de decidir a destinação, o acesso e o uso dos recursos naturais no país. Nesse movimento constante e contraditório, o Estado assume o papel de mediador das disputas, sendo requisitado e utilizado para operar os interesses da elite dominante, mas também do povo em geral, inclusive de populações em situação de vulnerabilidade. Entretanto, esse papel conciliador nem sempre é possível. As políticas públicas, por sua vez, expressam a forma de o Estado territorializar determinados espaços, mesmo que seja dicotomizando-os. Como interlocutoras do Estado na execução das políticas públicas, situam-se as instituições.

Nesse sentido, o ICMBio como instituição pública responsável por gerir o sistema federal de UC estrutura-se por meio de diversos processos de gestão. Suas práticas encontram-se disseminadas por todo o país em centenas de UC.

Nesse panorama, a EA é entendida como uma das práticas de conservação da natureza na constituição territorial das UC. No entanto, essa prática se distingue das demais por sua especificidade educativa e, sendo assim, apresenta potencialidades de atuação para conservar a realidade posta ou transformá-la. A partir de 2018, a estruturação dessas ações passou a ter a orientação institucional da Instrução Normativa ICMBio n. 19, de 10 de dezembro de 2018, para elaboração e implementação de projetos político-pedagógicos mediados pela educação ambiental (PPPEA) (ICMBio, 2018ICMBIO. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Instrução Normativa n. 19 de 10 dezembro de 2018. DOU, ed. 239, seção 1, p. 96. Brasília, DF, 13 dez. 2018. Retrieved from: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/54975600/do1-2018-12-13-instrucao-normativa-n-19-de-10-de-dezembro-de-2018-54975257.
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). A investigação sistemática e crítica das ações de EA nas UC federais pode indicar os caminhos que vêm sendo trilhados para a conservação da natureza no Brasil.

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    » https://jbrj.academia.edu/VirginiaTalbot
  • 1
    Compreende-se que a questão agrária tem pontos análogos aos conflitos ambientais analisados na ótica de Acselrad (2004ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Heinrich Böll, 2004. p. 9-20.).
  • 2
    As reservas particulares do patrimônio natural (RPPN) são UC e compõem o Snuc, mas são de iniciativa e gestão de proprietários privados, e não é esse o objeto de estudo na pesquisa que originou o presente artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2020
  • Aceito
    21 Out 2021
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