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O renminbi digital como atributo de uma nova formação socioespacial: soberania monetária e tecnologia a serviço da Nova Economia do Projetamento

The digital renminbi as an attribute of a new socio-spatial formation: monetary sovereignty and technology at the service of the New Projectment Economy

El renminbi digital como atributo de una nueva formación socioespacial: soberanía monetaria y tecnología al servicio de la Nueva Economía del Proyectamiento

Resumo

Talvez nenhuma unidade de análise seja tenha tantas novas possibilidades de pesquisa quanto o processo de desenvolvimento da República Popular da China. Essa assertiva justifica-se pelo imenso impacto e pelo citado processo de desenvolvimento verificado em seu território ao longo dos últimos 40 anos. Assim, percebendo a China como uma fronteira científica a ser mais bem enfrentada pela Geografia, o objetivo deste artigo é observar o papel da chamada moeda digital chinesa, o e-renminbi, como instrumento de intervenção direta do Estado no território. Amplas possibilidades de uso da soberania monetária e da tecnologia a serviço do que se tem convencionado chamar de Nova Economia do Projetamento têm sido abertas com o surgimento dessa moeda digital.

Palavras-chave:
Renminbi digital; Nova Economia do Projetamento; China; Soberania monetária; Tecnologia

Abstract

Perhaps no unit of analysis is as bearer of new research possibilities as the development process of the People’s Republic of China. This assertion is justified by the immense impact, by the aforementioned development process, in its territory verified over the last 40 years. The objective of this paper, therefore, perceiving China as a scientific frontier to be better faced by Geography, is to observe the role of the so-called Chinese digital currency, the e-reinminbi as an instrument of direct State intervention in the territory. Wide possibilities of using monetary sovereignty and technology at the service of what has been called the New Projectment Economy have been opened up with the emergence of this digital currency.

Keywords:
Digital renminbi; New Projectment Economy; China; Monetary sovereignty; Technology

Resumen

Quizás en la unidad de análisis sea portadora de nuevas posibilidades de investigación como el proceso de desarrollo de la República Popular China. Esta afirmación se justifica por el inmenso impacto, por el proceso de desarrollo antes mencionado, en su territorio verificado durante los últimos 40 años. El objetivo de este artículo, por tanto, al percibir a China como una frontera científica a ser mejor afrontada por la Geografía, es observar el papel de la denominada moneda digital china, el e-renminbi como instrumento de intervención directa del Estado en el territorio. Con el surgimiento de esta moneda digital se abren amplias posibilidades de utilizar la soberanía monetaria y la tecnología al servicio de lo que se ha denominado la Nueva Economía del Proyectamiento.

Palabras clave:
Renminbi digital; Economía del Nuevo Diseño; China; Soberanía monetaria; Tecnología

Introdução

Existem unidades de análise que encerram grandes possibilidades de abordagem interdisciplinar, um privilégio - diga-se de passagem - da Geografia. Nesse sentido, nenhuma unidade de análise é tão particular quanto a chinesa, o estudo de seu processo de desenvolvimento e seus impactos no território. Vejamos, as altas taxas de crescimento econômico aferidas pela China nos últimos 40 anos estão produzindo uma imensa transformação em seu território. A dinâmica territorial do processo de desenvolvimento chinês deve ser percebida no processo histórico que se inicia com a formação das primeiras quatro Zonas Econômicas Especiais (ZEE) em 1980, passando pelo Programa de Desenvolvimento do Grande Oeste (1999) e mesmo pela construção de 40.000 km de trens de alta velocidade em apenas 20 anos.

A Geografia não deve deixar de ser parte fundamental interessada nessa dinâmica. A nosso ver, dada a complexidade de sua formação socioespacial, fazem-se necessárias abordagens corroborando conceitos e categorias capazes de tratar a Geografia e a Economia Política como uma ciência única, de totalidade (“múltiplas determinações que formam o concreto”). Assim, percebendo a China como uma fronteira científica a ser mais bem enfrentada pela Geografia, o objetivo deste artigo é observar o papel da chamada moeda digital chinesa, o renminbi digital (e-RMB), como instrumento de intervenção direta do Estado no território. Amplas possibilidades de uso da soberania monetária e da tecnologia a serviço do que se tem convencionado chamar de Nova Economia do Projetamento têm sido abertas com o surgimento dessa moeda digital.

O presente artigo está dividido, além desta introdução, em três seções. Há algumas considerações de caráter teórico na primeira parte do texto, seguem-se apontamentos teóricos sobre a Nova Economia do Projetamento e depois discorremos sobre as origens, as propriedades e os objetivos do renminbi digital. Nas conclusões, argumentamos sobre as novas possibilidades abertas à agenda de pesquisa da Nova Economia do Projetamento e do renminbi digital.

Apontamentos teóricos e conceituais fundamentais

Dada a natureza deste artigo e da pesquisa que ele expressa, fazem-se necessários alguns apontamentos de caráter teórico e conceituais que julgamos fundamentais. Inclusive para situar nossa agenda de pesquisa numa perspectiva que vai muito além deste artigo e desta ou daquela área específica de conhecimento.

Este artigo pode ser situado no campo da Geografia Humana e Econômica. Mais especificamente, na área da Geografia Financeira. Nesse sentido, entendemos que:

[...] propor a existência de uma Geografia Financeira como sendo a especialidade da Geografia Econômica que se dedica ao estudo da relação finanças-espaço geográfico. Essa relação se manifesta ao considerarmos que a presença ou a escassez das finanças possuem efeitos que alteram as características do espaço, ou seja, as finanças podem se materializar nesse espaço1 1 Existem trabalhos de grande profundidade em matéria de Geografia Financeira produzidos por geógrafos brasileiros, destacando-se Corrêa (1989), Dias (1992) e Contel (2011, 2016). (Prada; Costa; Videira, 2019PRADA, J. S.; COSTA, P. A.; VIDEIRA, S. L. Em defesa de uma geografia financeira. Geosul, Florianópolis, v. 34, n. 72, p. 486-513, 2019. doi: https://doi.org/10.5007/1982-5153.2019v34n72p486.
https://doi.org/10.5007/1982-5153.2019v3...
, p. 489).

Ao imaginar que o que se convencionou chamar de soberania monetária2 2 Soberania monetária é a condição exercida pela autoridade que, por seus meios legais e coercitivos, exerce o poder supremo nas questões monetárias de determinado espaço. Essencialmente, isso inclui prerrogativas como instituir seu dinheiro, impor seu uso a seus governados, criá-lo e distribui-lo livre de constrangimentos internos ou externos. A esse respeito, vale observar que, neste artigo, não nos atemos às visões ditas “funcionalistas” da moeda, que a concebem e definem a partir das funções que, segundo se crê, ela desempenha: unidade de conta, meio de troca e reserva de valor. Grosso modo, isso vale tanto para perspectivas ditas “ortodoxas”, como as da Economia Política Clássica e as que dela derivaram, que veem sua origem na produção e na troca de mercadorias e tomam sua função de meio de troca como primordial, quanto para visões “heterodoxas” como as de John Maynard Keynes e Hyman Minsky, que reconhecem suas origens institucionais e atribuem primazia à função de unidade de conta (Ingham, 2004). Em primeiro lugar, propomos aqui uma distinção arbitrária entre moeda, o objeto usualmente empregado como meio de troca nas relações sociais, e dinheiro, a instituição política representada naquelas relações pela moeda. A “essência” monetária está no dinheiro, instituição criada (tendo sua contrapartida na tributação), garantida e imposta por autoridades a seus governados desde suas origens, na alta Antiguidade, mesopotâmica até nossos dias. A invenção do dinheiro antecedeu em milênios a cunhagem das primeiras moedas e, em rigor, o dinheiro não requer nenhuma representação material para ser empregado nas relações sociais (Wray et al., 2004). Assim, reafirmamos que o dinheiro é objeto de natureza política, por sinal, o mais cobiçado da história da humanidade (Ferreira Filho, 2015). Sua criação está estreitamente relacionada à soberania política, entendida como o fundamento principal do exercício do poder, o “poder e autoridade de julgar ou de comandar” (Bodin, 2011, p. 197). A soberania é condição ou atributo daquilo que é considerado acima de todas as coisas nos limites de um território, que existe em posição de supremacia em determinado espaço. Ser soberano implica dispensar a lei, cujo significado é “o comando daquele que detém a soberania” (Bodin, 2011, p. 206). A lei “toma o seu vigor daquele que tem o poder de comandar a todos” (Bodin, 2011, p. 300), vigendo e comandando na exata medida de seu poder. Desse modo, consideramos que a instituição do dinheiro, prerrogativa essencial da soberania política (Bodin, 2011, p. 319; Del Mar, 2012), é um produto da lei, dependente da “virtude” e da força coercitiva da autoridade que o proclama e impõe. E, sendo a lei uma norma soberana que impõe comandos, o dinheiro representa os comandos do soberano, enquanto os objetos que representam o dinheiro (em geral, as moedas) também se fazem representantes e portadores desses comandos nas relações sociais. Dito de outra forma, o dinheiro é uma instituição jurídico-política proclamada, imposta e garantida pela atividade legislativa dos poderes soberanos, fundamentada em última instância no seu controle sobre os instrumentos de coerção, representada socialmente por objetos portadores e representativos de seus comandos executivos. O dinheiro de um soberano representa seus comandos e, portanto, comanda, ordena as relações sociais no território subordinado a seus poderes (Kosinski, 2020, p. 132). Analogamente, serve também como um instrumento de comando e intervenção das autoridades no próprio território. é base fundamental para explicar as profundas transformações ocorridas no território chinês, por exemplo, com a implantação de 40.000 km de trens de alta velocidade nos últimos 20 anos (China Statistical Yearbook, 2019CHINA STATISTICAL YEARBOOK. [S.l.]: China Statistics Press, 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.stats.gov.cn/english/Statisticaldata/AnnualData/ . Acesso em 10 jan. 2021.
http://www.stats.gov.cn/english/Statisti...
), poderemos concluir que a China é um objeto de análise fundamental para a Geografia Financeira. São inescapáveis tanto o objeto quanto a área de estudos proposta. Como campo de fronteira das ciências sociais modernas, a China é tema obrigatório na Geografia.

Mas a grande questão é mais de fundo e envolve a busca de um arsenal conceitual novo para compreender uma realidade em movimento. O conceito se manifesta no movimento real e o desenvolvimento econômico e as transformações territoriais pelas quais a China tem passado levam à proscrição, por ser condicionadas historicamente, das famosas “teorias do desenvolvimento”. O momento é de buscar visões totalizantes diante de uma grande novidade e da história ocorrendo diante de nós. Este artigo, “ponta de um iceberg” de uma pesquisa de maior fôlego, se resguarda - teórica e conceitualmente - nos clássicos do materialismo histórico e em uma de suas contribuições mais importantes ao seu desenvolvimento nos últimos 40 anos. Referimo-nos principalmente ao conceito de formação socioespacial, desenvolvido por Milton Santos (1997SANTOS, M. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e como método. Boletim Paulista de Geografia, n. 54, p. 81-99, 1977.).

A razão disso é que, dado o desenvolvimento recente chinês, as formas históricas de produção propriedade e de planejamento econômico e territorial que se desenvolvem no país desde 1978, concluímos que a China deve ser tratada como a primeira experiência de uma nova classe de formações socioespaciais, que nomeamos de “socialismo de mercado”. O recurso a esse conceito nos permite uma visão de totalidade e unidade na diversidade que escapam a áreas de conhecimento que tratam isoladamente de fenômenos complexos ou marcados pela convivência, em um mesmo território, de diferentes modos de produção de épocas históricas diferentes, em ampla unidade de contrários. O conceito de formação socioespacial é a maior contribuição de um cientista brasileiro ao desenvolvimento do materialismo histórico, colocando-o na fronteira entre as ciências humanas e sociais. É esse conceito que pode ser o ponto de encontro entre a Geografia, a Economia Política e outras ciências correlatas.

Nesse pano de fundo teórico e conceitual é que situamos a Nova Economia do Projetamento como o elemento mais avançado do modo de produção dominante (socialismo) à formação socioespacial chinesa. É parte do processo histórico e espacial inaugurado com as reformas rurais de 1978. A soberania monetária é um desenvolvimento, um atributo histórico - causa e consequência - da evolução contínua da referida formação socioespacial.

Apontamentos sobre a Nova Economia do Projetamento

A agenda de pesquisa da chamada Nova Economia do Projetamento vem sendo desenvolvida em sucessivos trabalhos publicados nos últimos anos (por exemplo, Jabbour; Dantas, 2018JABBOUR, E. M. K.; DANTAS, A. T. Na China emerge uma nova formação econômico-social. Princípios, São Paulo, v. 1, p. 33-50, 2018.; Jabbour; Paula, 2018JABBOUR, E. M. K.; DANTAS, A. T. Na China emerge uma nova formação econômico-social. Princípios, São Paulo, v. 1, p. 33-50, 2018.; Jabbour, 2020JABBOUR, E. M. K.; DANTAS, A. T.; ESPÍNDOLA, C. J.; VELLOZO, J. C. A (nova) economia do projetamento: o conceito e suas determinações na China de hoje. Geosul, Florianópolis: UFSC, v. 35, n. 77, p. 17-48, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p17.
https://doi.org/https://doi.org/10.5007/...
; Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K. China socialismo e desenvolvimento: sete décadas depois. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2020.). Mais recentemente, no artigo “A (nova) economia do projetamento: o conceito e suas novas determinações na China de hoje” (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K. China socialismo e desenvolvimento: sete décadas depois. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2020.), houve novos avanços em sua elaboração, assim como na apresentação de dados e “elementos de validação teórica” que corroboram a hipótese central de se tratar do “estágio superior alcançado pelo ‘socialismo de mercado’” que vem sendo praticado na China nas últimas quatro décadas (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 21).

Aqui, vamos resumir os principais achados desse trabalho ao mínimo necessário para embasar a discussão proposta.

Rigorosamente, o conceito da Nova Economia do Projetamento se inspira no anterior, de Economia do Projetamento, desenvolvido por Ignácio Rangel ainda na década de 1950 em trabalhos como Desenvolvimento e projeto e elementos da economia do projetamento. Sucintamente, aquela consiste na “possibilidade de uma economia superar a produção de valores (de troca e de uso) regulada pelo mercado por outra, onde a utilidade, precedida pela produção, racional e consciente, em massa de valores de uso, passa a ser a reguladora do sistema” (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 30). Para alcançar esse estágio, o projetamento, entendido como “instrumento de um Estado guiado pela ciência em todos os seus matizes” (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; DANTAS, A. T.; ESPÍNDOLA, C. J.; VELLOZO, J. C. A (nova) economia do projetamento: o conceito e suas determinações na China de hoje. Geosul, Florianópolis: UFSC, v. 35, n. 77, p. 17-48, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p17.
https://doi.org/https://doi.org/10.5007/...
, p. 28), requer a aplicação deliberada, pelo projetista - o “técnico do desenvolvimento” -, da razão em dois sentidos estratégicos: a eliminação do desemprego, que Rangel considera “inerente” ao capitalismo, e o avanço tecnológico, necessário para impulsionar a acumulação capitalista e alcançar o desenvolvimento.

Dessa forma:

A “Economia do Projetamento” [...] seria algo próximo de um modo de produção caracterizado - no fundamental - pela racionalização máxima do processo de produção cujo “projeto” serviria como um ente mediador entre a sociedade e o planejamento central. Essa relação entre plano e sociedade se daria pela utilização da razão tanto à criação de valores de uso/utilidade ao bem comum quanto à superação do desemprego enquanto circunstância. O primeiro ponto (criação de valores de uso/utilidade) é um processo histórico que envolve a criação de um poderoso setor produtivo capaz de gerar excedente a ser voltado à construção do setor improdutivo da economia. O segundo ponto, mais conjuntural, porém envolve questões de ordem política mais complexas, encerra-se na superação do desemprego enquanto circunstância (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 36, grifos do original).

Na visão dos autores, a especificidade da Nova Economia do Projetamento é que a China é a sociedade contemporânea em que o conceito originário apresentado por Rangel vem tomando forma e sendo efetivamente concretizado. Assim, é preciso que ele seja reconsiderado à luz das particularidades do atual momento histórico e das características distintamente chinesas que lhe vêm sendo impressas.

Essencialmente, a Nova Economia do Projetamento se apoia na prática da “socialização do investimento” pela qual, orientado por objetivos de construção de bens públicos e não de acumulação privada, o Estado chinês se habilita a exercer plenamente o comando qualitativo e quantitativo do desenvolvimento nacional. Para isso, ele reserva para si a função de controlar os “meios estratégicos de produção e financiamento” por meio dos 97 grandes conglomerados empresariais que comanda, operando em todos os principais ramos produtivos e indústrias e em torno dos quais se desenvolvem as atividades privadas; e seu comando absoluto sobre as finanças nacionais, pelo controle dos principais bancos, principalmente os de desenvolvimento. Com isso, dispõe de meios monetários para comandar, praticamente sem restrições, a planificação e a realização dos investimentos no território sob sua jurisdição. Dessa forma, a ação governamental opera o Princípio da Demanda Efetiva num “patamar mais elevado”, tornando-se capaz de “planificar a destruição criativa” (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 32) e superando a “incerteza keynesiana” inerente ao funcionamento do capitalismo. Assim:

[...] o sentido do projetamento pode se sentir no aumento da produtividade do trabalho em relação direta com a elevação do consumo via ganhos salariais combinando diminuição e possibilidade de superação da incerteza keynesiana e a planificação da destruição criativa - via geração de empregos vis a vis com o aumento da produtividade (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 32).

Com efeito, os resultados dessas políticas nas últimas décadas vêm sendo absolutamente notáveis. Entre eles, podemos arrolar: crescimento contínuo e acelerado do produto nacional, da ordem de 9,5% anuais desde 1978; da renda per capita, que subiu de US$ 250 em 1980 para US$ 9.040 em 2014; do comércio exterior, que saiu de US$ 20 bilhões em 1978 para mais de US$ 4 trilhões em 2014; das reservas cambiais, que subiram de US$ 1,6 bilhão para UR$ 3,84 trilhões no mesmo período; da taxa de investimentos, em média superior a 45% do PIB desde 2003; das exportações de capitais, que subiram de US$ 800 milhões em 1990 para US$ 140 bilhões em 2014, enquanto os investimentos estrangeiros no país passaram de US$ 1,4 para US$ 119,6 bilhões (Jabbour, 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 107-108/175). Além disso, a criação de uma média anual de 13 milhões de empregos, ao mesmo tempo em que o país vem alcançando avanços tecnológicos notáveis nas mais diversas áreas, reduzindo seu deficit tecnológico em relação aos países mais avançados, principalmente os EUA; uma transformação planificada e de enorme escala nas estruturas produtiva e urbana, na qual centenas de milhões de chineses se deslocaram do campo para as cidades e de atividades produtivas de menor qualificação e valor agregado para outras superiores; e a saída de 800 milhões de chineses da pobreza (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; DANTAS, A. T.; ESPÍNDOLA, C. J.; VELLOZO, J. C. A (nova) economia do projetamento: o conceito e suas determinações na China de hoje. Geosul, Florianópolis: UFSC, v. 35, n. 77, p. 17-48, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p17.
https://doi.org/https://doi.org/10.5007/...
, p. 32-36).

Não caberia esmiuçar aqui todos os aspectos de tema tão amplo e complexo. Não obstante, destacamos que é essencial para a concretização da Nova Economia do Projetamento e todas as suas realizações a soberania monetária de que desfruta o Estado chinês:

[...] o que é comumente chamado de soberania monetária passa a ser uma interface empírica que dá suporte ao conceito historicamente construído de “Economia do Projetamento” [...] ao lado da possibilidade da superação da incerteza keynesiana, da planificação da destruição criativa e do pacto tácito de adesão [...]. Definitivamente, o uso funcional ou “projetado” da soberania monetária é um pré-requisito ao processo consciente/racional de desenvolvimento (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 36-37, grifos do original).

Com efeito, essa soberania tem dois pilares fundamentais. O primeiro é uma conta de capitais rigorosamente controlada pelas autoridades, usando principalmente proibições e controles quantitativos, que de maneira geral visam: (1) canalizar a poupança externa para a utilização desejada, (2) manter a política monetária independente da influência do ambiente internacional, (3) evitar que empresas e instituições financeiras nacionais assumam riscos externos excessivos, (4) manter o equilíbrio da balança de pagamentos e a estabilidade da taxa de câmbio nos níveis desejados, em geral fortemente desvalorizada em termos reais e (5) isolar o país dos efeitos das crises financeiras internacionais (Jabbour, 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 178-179). O segundo é a manutenção das maiores reservas cambiais do mundo, quase US$ 4 trilhões, constituídas a partir dos grandes saldos positivos em transações correntes obtidos ininterruptamente pelo país desde 1994 (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 39).

Procedendo dessa forma, o Estado chinês constituiu um sistema monetário autônomo e não subordinado ao exterior, isto é, não subordinado ao sistema monetário e financeiro internacional referenciado no dólar e subordinado aos EUA (Ferreira Filho, 2015FERREIRA FILHO, V. D. Economia, obstáculo epistemológico: estudo das raízes políticas e religiosas do imaginário liberal. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2015.). Com ele, vem obtendo êxito em insular o território monetário do país e regula rigorosamente suas relações com o exterior, protegendo-se de influências desestabilizadoras das finanças desreguladas hegemônicas no capitalismo ocidental e também de eventuais tentativas de interferência das autoridades estadunidenses em seu processo de desenvolvimento e expansão do poder nacional. Assim, o Estado chinês desfruta de plena liberdade monetária para agir como bem entende: no interior do país, financiando com todos os meios a sua disposição a mobilização dos fatores de produção disponíveis, em suma, comandando sem restrições o processo de desenvolvimento dos fatores produtivos; e no exterior, financiando seus investimentos, estruturando suas redes de abastecimento e projetando sua influência. Ou seja, age como verdadeiro soberano, comandando as relações sociais no interior do território subordinado a seus poderes e arbitrando as relações do país com o mundo.

Com efeito, essa soberania monetária permitiu ao governo chinês realizar, nas últimas décadas, diversos “pacotes de investimentos lançados ciclicamente” consistindo em grandes projetos de construção de infraestruturas, obras e bens públicos orçados em centenas de bilhões de iuanes, além de investimentos maciços em desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, destacam-se, por exemplo, o pacote fiscal de US$ 586 bilhões, lançado em 2009 para conter os efeitos da crise financeira do capitalismo internacional iniciada no ano anterior, e o plano de investir US$ 1,4 trilhão em infraestruturas em diversas partes do planeta como parte do projeto Um Cinturão, Uma Rota (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 38), orientado para construir uma nova divisão internacional do trabalho centrada no abastecimento da China (Li, X., 2019LI, X. (Ed.). Mapping China’s one belt one road initiative. London: Palgrave Macmillan, 2019.). Por outro lado, o crédito a empresas públicas e privadas, também rigorosamente comandado pelo Estado principalmente a partir dos “quatro grandes” bancos estatais - Industrial e Commercial Bank of China, Bank of China, China Construction Bank e Agricultural Bank of China - e de uma miríade de bancos de desenvolvimento regionais e até municipais, vem sendo sistematicamente ampliado, alcançando em 2019 a marca notável de 164% do PIB chinês (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 40).

Além disso, essa soberania também permitiu às autoridades do país operar sistematicamente, por razões diversas, com deficits públicos crescentes e ininterruptos desde 1986. Assim:

Programas de desonerações tributárias maciças, anúncios de pacotes de investimentos em trens de alta velocidade e de busca da fronteira tecnológica nos mais diversos setores têm sido uma constante, principalmente nos últimos cinco anos e, de forma mais aguda, desde o início da guerra comercial e tecnológica por parte dos EUA, exigindo maior esforço fiscal diante das necessidades em torno da aceleração da busca do país por mais autonomia tecnológica em relação aos EUA (Jabbour et al., p. 39).

Tudo isso, em rigor, significa um “exercício consciente da soberania monetária para fins estratégicos”. Por essas razões, reiteram os autores, “definitivamente a soberania monetária é parte do cabedal categorial que sustenta a ‘Nova Economia do Projetamento’ como conceito” (Jabbour et al., p. 40).

Nesse sentido, o que propomos é ver o renminbi digital como uma notória novidade, uma forma digital de representação e uso da moeda nacional chinesa que, tudo indica, demarcará uma notável atualização tecnológica do sistema financeiro do país. Que tipo de impacto pode ter esse instrumento na soberania monetária chinesa e, consequentemente, na articulação e na execução da Nova Economia do Projetamento? Que formas de articulação o renminbi digital poderá ter no interior dessa nova formação socioespacial em desenvolvimento na China? Para avançar na elucidação dessas perguntas, fazemos um apanhado do que sabemos até aqui sobre esse instrumento.

Sobre as origens, propriedades e objetivos do renminbi digital

No aspecto tecnológico, as origens do renminbi digital retroagem ao bitcoin. Lançado em janeiro de 2009, ele foi concebido tendo por base ideais “libertários” para ser moeda privada, descentralizada, não institucional, transfronteiriça, politicamente “neutra” e de utilidade universal. Para seus entusiastas, seria um instrumento pioneiro de liberdade e empoderamento individual frente às instituições estabelecidas, destinado a servir como pedra fundamental de um “livre mercado” de escala global, à margem dos arbítrios governamentais (Popper, 2015POPPER, N. Digital gold: the untold story of bitcoin. London: Penguin, 2015.; Vigna; Casey, 2016VIGNA, P.; CASEY, M. J. Cryptocurrency: the future of money? London: Vintage, 2016.; Antonopoulos, 2016ANTONOPOULOS, A. M. The internet of money. [S.l.]: Merkle Bloom, 2016. v. 1., 2017ANTONOPOULOS, A. M. The internet of money. [S.l.]: Merkle Bloom, 2017. v. 2.; Eha, 2017EHA, B. P. How money got free: bitcoin and the fight for the future of finance. London: Oneworld, 2017.).

Em rigor, a grande maioria dessas reivindicações não resiste a uma análise dos fatos.3 3 Para uma análise detalhada a respeito, ver Kosinski (2020). Aqui, atemo-nos apenas ao fato capital de que o bitcoin não é dinheiro, pois não reúne propriedades essenciais para isso, como a de representar comandos governamentais. O mesmo vale para outras milhares de “criptomoedas” privadas e descentralizadas que, sob sua inspiração original, já foram criadas. Consideramos, então, que são apenas sistemas de pagamento - modalidade na qual o bitcoin já foi oficialmente reconhecido, em 2017, pelo governo japonês -, mecanismos de transferência de direitos expressos nas moedas governamentais, como o dólar, às quais acabaram subordinados (Kosinski, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
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).

Apesar disso, de fato, essas criptomoedas se mostraram bastante efetivas para transferir montantes monetários, principalmente entre países. Por seu intermédio, qualquer indivíduo com acesso à internet em qualquer lugar do mundo é capaz de realizar operações financeiras livres - pelo menos a princípio - dos controles governamentais. Assim, trata-se de instrumentos de fácil utilização para enviar dinheiro para o exterior ou recebê-los de lá e converter uma moeda governamental em outra, ignorando impostos e restrições das autoridades. Operam também à margem dos mecanismos financeiros “regulares”, contornando regulações e trocas de informações entre autoridades nacionais e instituições internacionais, como o sistema Swift4 4 O Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (Swift) é uma empresa que fornece um sistema de mensagens interbancárias e conecta mais de 11 mil instituições financeiras em mais de 200 países. Movimentando mais de US$ 6 trilhões por dia, seu sistema registra informações como montante, país de origem e de destino, datas, bancos e clientes envolvidos nas transações, sendo o principal núcleo para operações bancárias no sistema financeiro internacional. Embora sediado na Bélgica e subordinado à jurisdição da União Europeia, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, o Swift foi coagido a adotar as regulações ostensivas de vigilância financeira criadas pelo Departamento do Tesouro e pelo Congresso dos EUA, no contexto de sua “guerra ao terror”, tornando-se instrumento de aplicação das sanções financeiras estadunidenses contra organizações e países por eles considerados inimigos (Torres Filho, 2019). (Kosinski, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
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).

Em função dessas capacidades “furtivas”, o bitcoin foi rapidamente adotado por milhões de usuários em todo o mundo, a princípio principalmente como meio para a realização de transações consideradas ilegais pelos governos, como a aquisição de substâncias e artigos proibidos. Por isso, rapidamente tornou-se alvo da atenção das autoridades nos EUA, que passaram a vê-lo como instrumento conveniente para financiar o tráfico de entorpecentes e o terrorismo, para lavagem de dinheiro e para violar as leis financeiras federais (Popper, 2015POPPER, N. Digital gold: the untold story of bitcoin. London: Penguin, 2015.). Pelas mesmas razões, autoridades de países como Venezuela, Irã e Coreia do Norte viram nele e nas demais criptomoedas instrumentos com os quais poderiam contornar as sanções financeiras que lhes eram impostas pelos EUA e seus aliados, possibilitando obter, ainda que em montantes modestos, divisas externas escassas (Kosinski, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
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).

Por outro lado, o Banco da Inglaterra - o banco central do Reino Unido, pioneiro nos estudos sobre o bitcoin - viu na disseminação de seu uso uma possível ameaça à estabilidade financeira de seu país. Mas cedo compreendeu que, adaptadas a seu controle político e servindo de suporte ao funcionamento da moeda governamental, as tecnologias que lhe servem de base ofereciam possibilidades de aumentar seus poderes de monitoramento e comando das relações financeiras no território nacional, reduzir “custos de transação”, promover reduções na taxa de juros e aumentos nos investimentos e no produto. Assim, em 2015, levantou a possibilidade de criar o que chamou de Central Bank Digital Currency (CBDC): uma libra esterlina digital, centralizada e operada pelo banco central (em vez de descentralizado) e capaz de sustentar taxas de juros e transmitir para o público as suas políticas monetárias. Em seguida, realizou um estudo econométrico no qual concluiu que a introdução de uma CBDC nos EUA produziria reduções consideráveis nos “custos de transação” e nas taxas de juros e expansão do crédito, do consumo, dos investimentos e do produto nacional5 5 Apesar do pioneirismo nos estudos sobre as CBDC, até meados de 2021, alegando incertezas de ordem técnica e regulatória, o Banco da Inglaterra ainda não havia apresentado planos concretos de lançamento da libra esterlina digital, limitando-se a somar seus esforços de investigação aos de outros bancos centrais como o Sistema da Reserva Federal, dos EUA, o Banco do Canadá, o Banco Central Europeu e o Banco do Japão (BIS, 2020). (Kosinski, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
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).

No caso da China, o bitcoin se popularizou rapidamente como objeto de especulação financeira, adquirido na expectativa de sua valorização em iuanes e como meio de contornar as restrições impostas pelas autoridades aos residentes no país para manipular moedas estrangeiras, como o limite anual de US$ 50 mil per capita em compras e remessas ao exterior (Vigna; Casey, 2016VIGNA, P.; CASEY, M. J. Cryptocurrency: the future of money? London: Vintage, 2016., p. 195-196). Em rigor, esse fato constituiu potencial “vazamento” no insulamento monetário do país, uma vez que representou volumes crescentes de iuanes transacionados à margem do controle das autoridades, enfraquecendo seu rigoroso controle de capitais. Foram perigosos precedentes que as autoridades chinesas, absolutamente ciosas de sua soberania monetária - pilar básico do seu projeto nacional de desenvolvimento (Medeiros, 1999MEDEIROS, C. A. China: entre os Séculos XX e XXI. In: FIORI, J. L. (Org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 379-411.; Cohen, 2015COHEN, B. Currency power: understanding monetary rivalry. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2015. ) - decidiram não tolerar.

Assim, as criptomoedas foram encaradas pelas autoridades como um sério desafio à “segurança financeira” do país, condição considerada “estratégica” para a consecução dos seus objetivos de desenvolvimento e poder nacional. Preliminarmente, ela se refere à capacidade da China de “garantir o suprimento de capitais necessários para resolver as dificuldades de larga escala do [seu] desenvolvimento” (Zheng, 2018ZHENG, B. Economic globalization and China’s future. Beijing: Foreign Languages , 2018., p. 17, tradução livre). Isso inclui, entre outras prerrogativas: (1) garantir a liberdade monetária para levar adiante sua “socialização dos investimentos” no plano interno, (2) dispor das divisas necessárias para obter no exterior todos os recursos energéticos, alimentares e matérias-primas necessários para atender às enormes “necessidades materiais e culturais” do país, (3) manter a capacidade de “conduzir as revoluções” nas novas tecnologias (como as da informação), considerando que “esse não é meramente um problema econômico; é parte da segurança […] nacional” (Zheng, 2018ZHENG, B. Economic globalization and China’s future. Beijing: Foreign Languages , 2018., p. 16), (4) construir um sistema de defesa nacional “forte”, capaz de “proteger os interesses estratégicos” num momento em que a “competição internacional está se intensificando” (Zheng, 2018ZHENG, B. Economic globalization and China’s future. Beijing: Foreign Languages , 2018., p. 22-24) e (5) fazer tudo isso e muito mais sem depender dos movimentos do capital estrangeiro, isto é, preservando sua plena autonomia monetária.

Em rigor, essa concepção de segurança financeira e seus objetivos estão em linha com o que o presidente Xi Jinping declarou num discurso de julho de 2017XI, J. The governance of China. Beijing: Foreign Languages , 2017. v. 2. sobre a importância de subordinar as finanças ao comando e aos objetivos estratégicos do Estado chinês:

As finanças são uma competitividade central de uma nação. A segurança financeira é um componente importante da segurança nacional, e o sistema financeiro é a base para o desenvolvimento econômico e social. A liderança do Partido Comunista sobre as finanças tem que ser fortalecida. Seguindo as linhas gerais de fazer progressos constantes e a lei de desenvolvimento financeiro, devemos [...] servir à economia real, prevenindo e controlando riscos financeiros e levando adiante reformas financeiras. Devemos inovar e melhorar o controle financeiro, o sistema empresarial moderno para negócios financeiros e o mercado financeiro, construir uma estrutura de supervisão financeira moderna, continuar a transformar o modelo de crescimento das finanças, fortalecer o estado de direito no setor financeiro, garantir a segurança financeira do Estado e facilitar o desenvolvimento sólido, circular e saudável da economia e das finanças (Xi, 2017XI, J. The governance of China. Beijing: Foreign Languages , 2017. v. 2., p. 304, tradução nossa).

Por essas razões, cedo as autoridades chinesas passaram a censurar o uso das criptomoedas no país, obtendo resultados questionáveis. A partir de 2016, porém, declararam publicamente o seu intuito de “assumir a liderança” na inovação tecnológica proporcionada por elas. Na ocasião, o então vice-governador do Banco Popular da China, ou The People’s Bank of China (PBC), o banco central, Fan Yifei, declarou que isso era necessário principalmente para “manter a estabilidade financeira, encorajar a inovação e supervisionar adequadamente a emissão e circulação dessas novas moedas [...] [e] estabelecer estruturas institucionais sensatas e controles macroprudenciais”. Além disso, afirmou que as moedas digitais têm grande potencial para “reduzir custos, aumentar eficiência e possibilitar ampla gama de novas aplicações” (Kosinski; Ferreira Filho, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
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, p. 574).

Em seguida, o banco central passou a cogitar a instituição de um “renminbi digital”, com Fan declarando que uma moeda digital emitida por ele “poderia ajudar a resolver muitos desses problemas”, pois seria “garantida pelo crédito estatal”, compatibilizando aplicações “com maior alcance, conveniência e segurança” (Kosinski; Ferreira Filho, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v3...
, p. 574). Assim, ela deveria ser orientada pelos seguintes princípios: conveniência, privacidade e segurança para os usuários; manutenção da ordem social e repressão de atividades consideradas ilegais, como a lavagem de dinheiro e o financiamento de atividades terroristas; operacionalização e transmissão eficiente das políticas monetárias; e manutenção plena da soberania monetária, sendo uma moeda digital de curso legal, emissão, circulação, transação e conversibilidade controladas pelo banco central e seguindo os mesmos princípios administrativos da moeda tradicional (PBC, 2016PBC. THE PEOPLE’S BANK OF CHINA. Transcript of Governor Zhou Xiaochuan’s Exclusive Interview with Caixin Weekly. [S.l.], Feb. 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.pbc.gov.cn/english/130721/3017134/index.html . Acesso em: 8 fev. 2018.
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).

Para desenvolvê-la, PBC criou em 2017 um órgão chamado Digital Currency Research Institute, contratando especialistas chineses em técnicas de encriptação, blockchain e big data. Em outubro do mesmo ano, o diretor desse instituto, Yao Qian, afirmou que o banco central concebia a CBDC como “forma de estabilizar a moeda fiduciária doméstica [e] proteger melhor a condição financeira do país”. Em novembro, num fórum realizado em Beijing, citou como seus objetivos gerais “ajudar a reduzir custos de transação, estender serviços financeiros às áreas rurais e aumentar a eficiência das políticas monetárias”. Ao mesmo tempo, declarou que “o desenvolvimento da economia digital precisa mais do que nunca da moeda eletrônica emitida pelo banco central”, uma vez que esta seria um objeto “mais fácil de rastrear” após a emissão, permitindo à instituição “monitorar a sua velocidade e paradeiros [...] e melhorar as suas políticas monetárias” (Kosinski; Ferreira Filho, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
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, p. 575).

Dessa forma, na visão de Yao, a moeda digital representava a:

[…] “joia da coroa” das novas tecnologias financeiras, com amplas implicações no futuro do sistema financeiro mundial, acrescentando o Big Data e a inteligência artificial como técnicas de aperfeiçoamento da análise de riscos sistêmicos e fortalecimento da intervenção regulatória pelos governos (Kosinski; Ferreira Filho, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v3...
, p. 575).

No ano seguinte, numa conferência de tecnologias da informação realizada na sede das Nações Unidas em 2018, Yao revelou algumas características da CBDC que vinha sendo desenvolvida, embora sem especificar maiores detalhes técnicos por se tratar de questão cara à segurança nacional. Segundo ele, os objetivos gerais da CDBC eram obter: (1) maior estabilidade no valor da moeda chinesa, baseada no crédito estatal, (2) maior segurança de dados financeiros, (3) regulação mais forte, (4) pagamentos mais flexíveis e (5) aplicação “mais inteligente” da moeda. Tudo isso visava prestar serviços melhores ao público, dispor de medidas “mais efetivas” de controle financeiro e lançar as bases da tecnologia das moedas digitais governamentais, empregando criptografia e algoritmos. Assim, a CBDC visava combinar as propriedades institucionais do dinheiro em espécie com as vantagens tecnológicas do meio eletrônico, resultando numa “moeda inteligente” (Yao, 2018YAO, Q. Technical aspects of CBDC in a two-tiered system. Beijing: Institute of Digital Money/PBC, 2018., p. 4-5).

Quanto ao arranjo institucional, Yao afirmou tratar-se de um sistema em duas camadas. No topo estaria o banco central, que emite e controla centralizadamente a moeda digital; abaixo dele, os bancos comerciais, que fazem a “ponte” entre a moeda digital e os usuários finais. Logo, esses bancos não seriam excluídos; a moeda digital não visaria substituir ou eliminar o sistema financeiro atual, mas complementá-lo, incentivando a participação do setor privado, distribuindo adequadamente os riscos operacionais e acelerando a inovação. No novo sistema, caberia ao banco central: emitir a CBDC; registrar seus usuários corporativos; garantir a segurança sistêmica e gerenciar os riscos sistêmicos; conectar as partes; verificar as cadeias de posse e registrar as transferências; coletar, analisar e auditar os dados; gerenciar e prover liquidez; atuar em casos de “emergência”. Já aos bancos comerciais: obter a CBDC junto ao banco central; prover e gerenciar depósitos, sistemas de pagamento e carteiras digitais aos usuários finais; registrar e identificar esses usuários; operar as suas transações; gerenciar seus riscos, zelar pela segurança sistêmica e analisar seus dados (Yao, 2018YAO, Q. Technical aspects of CBDC in a two-tiered system. Beijing: Institute of Digital Money/PBC, 2018., p. 8/10).

Portanto, a CBDC objetivaria juntar as características básicas da moeda fiduciária, como garantias governamentais e direitos, à atualização tecnológica das moedas digitais. A inovação ficaria por conta das tecnologias empregadas, preservando a institucionalidade do sistema tradicional. Assim, seria uma plataforma sob firme controle das autoridades, mas mais moderna e flexível que o sistema tradicional, programável, capaz de atender a diferentes demandas de pagamentos e operações. Se basearia ainda no que Yao (2018YAO, Q. Technical aspects of CBDC in a two-tiered system. Beijing: Institute of Digital Money/PBC, 2018., p. 19) chamou de “anonimato controlado”: a busca de um “equilíbrio” entre “privacidade” e “utilidade”, entre a segurança dos dados dos usuários finais e a utilidade do instrumento, sem comprometer ou aumentar muito os custos de operação e aplicação para as instituições financeiras.

Nesse sentido, Yao destacou os objetivos do Banco Central de garantir a segurança das informações dos usuários e supervisionar as instituições financeiras para usar essas informações eficazmente. A CBDC não poderia ser nem “totalmente anônima”, nem “invasiva”; teria que permitir o rastreamento de evasão de impostos, lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo e de atividades proibidas pelas autoridades; ao mesmo tempo, deveria proteger a privacidade das informações pessoais, necessária para torná-la aceita pelo público. Em resumo, teria que assegurar ao banco central acesso a todas as informações, enquanto os usuários acessariam apenas as referentes a si mesmos e suas operações (Yao, 2018YAO, Q. Technical aspects of CBDC in a two-tiered system. Beijing: Institute of Digital Money/PBC, 2018., p. 19-21).

Finalmente, Yao destacou que o desenvolvimento da CBDC pressuporia a mobilização de recursos de instituições comerciais, a cooperação do setor privado e a competição empresarial sob controle e orientação do Estado (Yao, 2018YAO, Q. Technical aspects of CBDC in a two-tiered system. Beijing: Institute of Digital Money/PBC, 2018., p. 27). E concluiu elencando quatro áreas estratégicas, que considera de “significância crítica”, para a China buscar o catch up com as potências líderes: a robótica, a inteligência artificial, big data e as moedas digitais governamentais (Yao, 2018YAO, Q. Technical aspects of CBDC in a two-tiered system. Beijing: Institute of Digital Money/PBC, 2018., p. 34).

Como produto dessa iniciativa, o PBC anunciou em abril de 2020 o lançamento do renminbi digital (e-RMB)6 6 Ocasionalmente chamado de yuan digital ou e-CNY. para um período de testes em metrópoles como Shenzhen, Suzhou, Chengdu e no distrito de Xiong’an, próximo a Beijing. Em rigor, trata-se de uma CBDC de “uso geral” que substitui plenamente a moeda oficial, representando-a digitalmente com paridade 1=1 e plena conversibilidade interna, a ser usada em todos os pagamentos cotidianos, de taxas e impostos. Ao lançá-lo, o banco reafirmou o que havia declarado anteriormente, pretendendo “otimizar e melhorar” o seu funcionamento com o objetivo de, futuramente, generalizar o seu uso e deter a capacidade de monitorar em tempo real os fluxos monetários, incrementando significativamente o seu poder de supervisionar e manipular as condições financeiras do país. Em suma, trata-se de uma moeda digital sob comando governamental, subordinada a seus objetivos de política monetária, fiscal e de desenvolvimento, com ampla vigilância das transações privadas, enfim, claras providências de controle social (Kosinski; Ferreira Filho, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
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, 2020).

Todavia, desta feita, os objetivos declarados para a sua instituição não foram meramente domésticos. Segundo a mídia estatal China Daily, com o e-RMB, as autoridades chinesas também objetivam criar um sistema internacional de pagamentos alternativo ao Swift, dominado pelo dólar e pela influência política dos EUA. Com isso, pretendem que, futuramente, ele funcione como uma alternativa funcional ao sistema de compensações em dólares, atenuando o impacto de quaisquer sanções ou ameaças de exclusão que possam ser impostas pelos EUA a outros países ou a empresas de quaisquer origens. Além de reduzir o risco de interferências estrangeiras nos seus negócios e interesses, o e-RMB também deverá facilitar o acesso de estrangeiros à moeda chinesa, promovendo a sua integração nas operações cambiais internacionais. Assim, permitirá a coexistência de dois sistemas internacionais de pagamentos, um sob a égide do dólar e outro sob a moeda digital chinesa, que poderão operar cooperativamente ou, em caso de conflito, sobre bases mutuamente exclusivas (Guppy, 2020GUPPY, D. The future of China’s economic engagement. China Daily, 24 abr. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.chinadaily.com.cn/a/202004/24/WS5ea28240a310a8b2411516bf.html . Acesso em: 3 maio 2020.
https://www.chinadaily.com.cn/a/202004/2...
).

Dessa forma, evidencia-se que o e-RMB não atende apenas ao interesse do governo chinês em estabelecer seu domínio sobre as tecnologias que servem de base ao bitcoin e às criptomoedas, asseverando seu emprego em favor da vigilância sobre a ordem social, o controle monetário governamental e a segurança financeira do país (Kosinski, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v3...
). Em rigor, a moeda digital também responde aos anseios das autoridades chinesas de “escapar da hegemonia do dólar e projetar a sua influência monetária para o exterior, no limite, até mesmo questionando a supremacia dos Estados Unidos na atual ordem monetária internacional” (Kosinski; Ferreira Filho, 2020KOSINSKI, D. S.; FERREIRA FILHO, V. D. Do bitcoin ao “renmimbi digital”: soberania monetária, segurança financeira e a possível ordem financeira centrada na China. Geosul, Florianópolis: UFSC , v. 35, n. 77, p. 553-580, 2020. doi: https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n77p553.
https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v3...
, p. 577), erguendo uma nova ordem alternativa centrada na China e comandada por ela.

Considerações finais: uma nova agenda de pesquisa da Nova Economia do Projetamento e do renminbi digital

Partindo do arcabouço conceitual da Nova Economia do Projetamento e diante do acima exposto, consideramos ter reunido evidências suficientes para lançar algumas hipóteses a serem verificadas na medida em que o renminbi digital entre em pleno funcionamento - o que ainda não tem data para acontecer (PBC, 2021PBC. THE PEOPLE’S BANK OF CHINA. Progress of Research & Development of E-CNY in China. Working Group on E-CNY Research and Development of the People’s Bank of China, July 2021. Disponível em Disponível em http://www.pbc.gov.cn/en/3688110/3688172/4157443/4293696/2021071614584691871.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) - e torne-se uma realidade. Rigorosamente, trata-se de linhas ou orientações numa nova agenda de pesquisas que pode ser subdividida em dois âmbitos, um “doméstico” e outro “externo”, embora estreitamente articulados e indissociáveis.

A se concretizarem as expectativas no âmbito doméstico, o renminbi digital permitirá um aumento inédito da eficiência da administração monetária da China. A disponibilidade de enorme volume de dados em tempo real permitirá monitoramento superior das condições financeiras do país, acelerando a tomada de decisões e a execução de políticas governamentais. Possibilitará, por exemplo, uma “calibragem fina” das taxas de juros e sua transmissão quase imediata para o sistema financeiro. Poderá também racionalizar ao máximo o financiamento de obras públicas e investimentos e o fornecimento de crédito estatal, facultando políticas específicas de incentivo ao consumo e a investimentos que as autoridades desejem estimular.

Isso significa que, tal como postulado pela Nova Economia do Projetamento, o renminbi digital permitirá uma operação governamental sob o Princípio da Demanda Efetiva num patamar de discricionariedade e racionalidade ainda mais elevado que o atual. Consequentemente, o “exercício consciente da soberania monetária para fins estratégicos” (Jabbour et al., 2020JABBOUR, E. M. K.; PAULA, L. F. Socialization of investment and institutional changes in China: a heterodox approach. Forum for Social Economics, v. 50, n. 3, p. 1-14, 2020. doi: https://doi.org/10.1080/07360932.2020.1747517.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
, p. 39) deve ser levado às últimas consequências pela adoção e adaptação das mais sofisticadas tecnologias de pagamento digital, monitoramento e coordenação dos agregados monetários.

Além disso, o renminbi digital deverá abrir às empresas chinesas, públicas e privadas, novos campos de investimentos a partir da combinação das quatro tecnologias consideradas de “significação crítica”: robótica, inteligência artificial, big data e moeda digital. Trata-se de um potencial hoje desconhecido de desenvolvimento de novos produtos, serviços e utilidades e de automatização de processos, habilitando a China a se posicionar na vanguarda de indústrias e setores produtivos já existentes ou na criação de novos, capazes de gerar rendas excepcionais para o país. Assim, articulado com outras tecnologias emergentes como a “internet das coisas” e as redes de comunicação 5G e 6G, ou com outras aparentemente em vias de desenvolvimento como a computação quântica, o e-RMB poderá servir como impulso poderoso à expansão da renda nacional, e quiçá sejam desenvolvidas novas aplicações militares para essas tecnologias, também do poder nacional chinês.

No plano das relações internacionais, o renminbi digital deverá permitir às autoridades chinesas maior discricionariedade nas suas ações, por exemplo, empregando-o como meio para conduzir seu comércio exterior, fazer empréstimos e investimentos no exterior e mesmo facilitando o acesso de estrangeiros a sua moeda, estimulando sua internacionalização. Com ele, tudo indica, os chineses poderão estender seu domínio sobre as redes de abastecimento de bens e matérias-primas necessários a seu desenvolvimento e estabilidade, reduzindo sua exposição ao dólar e às ações dos EUA. Além disso, o Estado chinês poderá dispor de um instrumento na vanguarda tecnológica para sair de uma postura meramente “defensiva” nas relações monetárias e financeiras internacionais, de proteção diante do mundo exterior, para uma atitude mais expansionista, de constituição de um sistema financeiro internacional sinocêntrico e de projeção cada vez maior de sua influência monetária.

Além disso, a liderança nas tecnologias das Central Bank Digital Currencies deverá colocar a China na vanguarda dos futuros sistemas financeiros, permitindo ao país exportar suas tecnologias e estabelecer os primeiros padrões internacionais. Com isso, o país poderá assegurar o objetivo de liderança global numa tecnologia-chave do século XXI. Portanto, o renminbi digital deverá permitir às autoridades chinesas maior racionalização na condução das relações financeiras da China com o exterior, mas também projetar e ampliar sua influência global.

Por essas razões, consideramos haver já claros indícios de que o renminbi digital tem enorme potencial para constituir um instrumento pioneiro, na vanguarda tecnológica, que propulsionará a Nova Economia do Projetamento, possibilitando uma racionalização ainda maior no exercício de sua soberania monetária. Ele concilia, ao mesmo tempo, os objetivos de colocação do país na liderança tecnológica, de apuração dos controles sociais, de melhoria dos controles macroeconômicos, de eficiência de suas políticas, de proteção e reforço da segurança nacional e de projeção da influência chinesa para o exterior. Com ele, os chineses parecem visar, acima de tudo, sua autonomia, apurar sua soberania monetária para dentro e para fora de seu território em seus objetivos de desenvolvimento, modernização e catch up com as grandes potências e de confronto ao cerco geopolítico dos EUA.

Num passo além, podemos até considerar que o renminbi digital é a própria “quintessência” da Nova Economia do Projetamento, combinando os objetivos de modernização e construção da infraestrutura produtiva nacional com o reforço do princípio institucional fundamental da soberania monetária, viabilizando maior racionalização no alcance do pleno emprego e do avanço tecnológico que conduzirá o país ao desenvolvimento. Tudo indica que ele tornará os meios de comando monetários do governo chinês, que concretizam a Nova Economia do Projetamento, ainda mais efetivos e eficientes, servindo como um poderoso instrumento de articulação dessa nova formação socioespacial atualmente em desenvolvimento na China.

Feitas essas considerações, o caráter de absoluta novidade do tema recomenda que tenhamos cautela e que evitemos antecipações. Apenas os fatos futuros esclarecerão se as conjecturas que aqui traçamos se concretizarão. Em todo caso, acreditamos termos estabelecido neste artigo os fundamentos de ampla e prolífica agenda de pesquisas acerca deste fenômeno emergente, com potenciais repercussões de grande interesse para campos distintos do conhecimento como a Geografia, a Economia Política, a Ciência Política e as Relações Internacionais.

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  • 1
    Existem trabalhos de grande profundidade em matéria de Geografia Financeira produzidos por geógrafos brasileiros, destacando-se Corrêa (1989CORRÊA, R. L. Concentração bancária e os centros de gestão do território. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 51, n. 2, p. 17-32, 1989. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1989_v51_n2.pdf . Acesso em: 8 fev. 2018.
    https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
    ), Dias (1992DIAS, L. C. O sistema financeiro: aceleração dos ritmos econômicos e integração territorial. Anuário do Instituto de Geociências/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 15, p. 43-53, 1992. doi: https://doi.org/10.11137/1992_0_43-53.
    https://doi.org/https://doi.org/10.11137...
    ) e Contel (2011CONTEL, F. B. Território e finanças: técnicas, normas e topologias bancárias no Brasil. São Paulo: Annablume, 2011., 2016CONTEL, F. B. As finanças e o espaço geográfico: contribuições centrais da geografia francesa e da geografia brasileira. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 61, n.1, p. 59-78, 2016. doi: https://doi.org/10.21579/issn.2526-0375_2016_n1_art_3.
    https://doi.org/https://doi.org/10.21579...
    ).
  • 2
    Soberania monetária é a condição exercida pela autoridade que, por seus meios legais e coercitivos, exerce o poder supremo nas questões monetárias de determinado espaço. Essencialmente, isso inclui prerrogativas como instituir seu dinheiro, impor seu uso a seus governados, criá-lo e distribui-lo livre de constrangimentos internos ou externos. A esse respeito, vale observar que, neste artigo, não nos atemos às visões ditas “funcionalistas” da moeda, que a concebem e definem a partir das funções que, segundo se crê, ela desempenha: unidade de conta, meio de troca e reserva de valor. Grosso modo, isso vale tanto para perspectivas ditas “ortodoxas”, como as da Economia Política Clássica e as que dela derivaram, que veem sua origem na produção e na troca de mercadorias e tomam sua função de meio de troca como primordial, quanto para visões “heterodoxas” como as de John Maynard Keynes e Hyman Minsky, que reconhecem suas origens institucionais e atribuem primazia à função de unidade de conta (Ingham, 2004INGHAM, G. The nature of money. Cambridge, UK: Polity, 2004. ). Em primeiro lugar, propomos aqui uma distinção arbitrária entre moeda, o objeto usualmente empregado como meio de troca nas relações sociais, e dinheiro, a instituição política representada naquelas relações pela moeda. A “essência” monetária está no dinheiro, instituição criada (tendo sua contrapartida na tributação), garantida e imposta por autoridades a seus governados desde suas origens, na alta Antiguidade, mesopotâmica até nossos dias. A invenção do dinheiro antecedeu em milênios a cunhagem das primeiras moedas e, em rigor, o dinheiro não requer nenhuma representação material para ser empregado nas relações sociais (Wray et al., 2004WRAY, L. R. (Ed.). Credit and state theories of money: the contributions of A. Mitchell Innes. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2004.). Assim, reafirmamos que o dinheiro é objeto de natureza política, por sinal, o mais cobiçado da história da humanidade (Ferreira Filho, 2015FERREIRA FILHO, V. D. Economia, obstáculo epistemológico: estudo das raízes políticas e religiosas do imaginário liberal. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2015.). Sua criação está estreitamente relacionada à soberania política, entendida como o fundamento principal do exercício do poder, o “poder e autoridade de julgar ou de comandar” (Bodin, 2011BODIN, J. Os seis livros da república. São Paulo: Ícone, 2011. v. 1., p. 197). A soberania é condição ou atributo daquilo que é considerado acima de todas as coisas nos limites de um território, que existe em posição de supremacia em determinado espaço. Ser soberano implica dispensar a lei, cujo significado é “o comando daquele que detém a soberania” (Bodin, 2011BODIN, J. Os seis livros da república. São Paulo: Ícone, 2011. v. 1., p. 206). A lei “toma o seu vigor daquele que tem o poder de comandar a todos” (Bodin, 2011BODIN, J. Os seis livros da república. São Paulo: Ícone, 2011. v. 1., p. 300), vigendo e comandando na exata medida de seu poder. Desse modo, consideramos que a instituição do dinheiro, prerrogativa essencial da soberania política (Bodin, 2011BODIN, J. Os seis livros da república. São Paulo: Ícone, 2011. v. 1., p. 319; Del Mar, 2012DEL MAR, A. The science of money. London: Effingham Wilson, 2012.), é um produto da lei, dependente da “virtude” e da força coercitiva da autoridade que o proclama e impõe. E, sendo a lei uma norma soberana que impõe comandos, o dinheiro representa os comandos do soberano, enquanto os objetos que representam o dinheiro (em geral, as moedas) também se fazem representantes e portadores desses comandos nas relações sociais. Dito de outra forma, o dinheiro é uma instituição jurídico-política proclamada, imposta e garantida pela atividade legislativa dos poderes soberanos, fundamentada em última instância no seu controle sobre os instrumentos de coerção, representada socialmente por objetos portadores e representativos de seus comandos executivos. O dinheiro de um soberano representa seus comandos e, portanto, comanda, ordena as relações sociais no território subordinado a seus poderes (Kosinski, 2020KOSINSKI, D. S. Bitcoin e criptomoedas: a utopia da neutralidade e a realidade política do dinheiro. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2020., p. 132). Analogamente, serve também como um instrumento de comando e intervenção das autoridades no próprio território.
  • 3
    Para uma análise detalhada a respeito, ver Kosinski (2020KOSINSKI, D. S. Bitcoin e criptomoedas: a utopia da neutralidade e a realidade política do dinheiro. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2020.).
  • 4
    O Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (Swift) é uma empresa que fornece um sistema de mensagens interbancárias e conecta mais de 11 mil instituições financeiras em mais de 200 países. Movimentando mais de US$ 6 trilhões por dia, seu sistema registra informações como montante, país de origem e de destino, datas, bancos e clientes envolvidos nas transações, sendo o principal núcleo para operações bancárias no sistema financeiro internacional. Embora sediado na Bélgica e subordinado à jurisdição da União Europeia, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, o Swift foi coagido a adotar as regulações ostensivas de vigilância financeira criadas pelo Departamento do Tesouro e pelo Congresso dos EUA, no contexto de sua “guerra ao terror”, tornando-se instrumento de aplicação das sanções financeiras estadunidenses contra organizações e países por eles considerados inimigos (Torres Filho, 2019TORRES FILHO, E. T. A bomba dólar: paz, moeda e coerção. Texto para Discussão 026. Rio de Janeiro: Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/TDS/2019/TD_IE_026_2019_TORRES%20FILHO.pdf . Acesso em: 8 fev. 2018.
    https://www.ie.ufrj.br/images/IE/TDS/201...
    ).
  • 5
    Apesar do pioneirismo nos estudos sobre as CBDC, até meados de 2021, alegando incertezas de ordem técnica e regulatória, o Banco da Inglaterra ainda não havia apresentado planos concretos de lançamento da libra esterlina digital, limitando-se a somar seus esforços de investigação aos de outros bancos centrais como o Sistema da Reserva Federal, dos EUA, o Banco do Canadá, o Banco Central Europeu e o Banco do Japão (BIS, 2020BIS. BANK FOR INTERNATIONAL SETTLEMENTS. Central bank digital currencies: foundational principles and core features. Report no 1. [S.l.], 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.bis.org/publ/othp33.pdf . Acesso em: 10 fev. 2022.
    https://www.bis.org/publ/othp33.pdf...
    ).
  • 6
    Ocasionalmente chamado de yuan digital ou e-CNY.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2021
  • Aceito
    03 Fev 2022
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