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O patrimônio cultural e o protagonismo indígena na Constituinte de 1987/88. Entrevista com Ailton Krenak

Cultural heritage and indigenous protagonism in the Brazilian Constituent of 1987/88. Interview with Ailton Krenak

Ailton Krenak é um homem que enxerga além de seu tempo. Nos anos de 1987 e 1988 teve importante participação nos debates constituintes, representando, de forma incisiva e evidente, a causa indígena. Representou a União das Nações Indígenas, participou de assembleias e plenárias, como, por exemplo, as da Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Em defesa das causas indígenas (como seu patrimônio cultural), pintou seu rosto de jenipapo, num gesto rin’tá, armado de luto e de guerra, ao discordar das modificações feitas nas reivindicações apresentadas nas subcomissões e comissões que antecederam a Comissão de Sistematização. Nesta entrevista, realizada em 15 de abril de 2013,1 1 A entrevista foi realizada com apoio da Capes, fruto da minha pesquisa de doutorado. foram mantidas as transcrições do momento que antecedeu a entrevista, para uma melhor contextualização da conversa. A informalidade e a fluidez do diálogo foram mantidas nesta transcrição.

Entrevista

Ailton Krenak: [Participei] como membro de um segmento da nossa sociedade que estava demandando ao Congresso questões de direitos que ainda não estavam definidos. E demandando como parte da sociedade mobilizada em torno desses novos direitos; para a gente aquilo [patrimônio cultural] eram novos direitos de certa maneira, mas eram novos direitos que tinham implicação direta com a fruição da nossa cultura, das nossas práticas, coisas ligadas com a saúde, com a educação, com a memória, com o próprio acervo material da cultura.

Yussef Salomão Campos: As demandas são mais amplas. Dentro dessas demandas está o patrimônio cultural. Quando falamos em reivindicação sobre a memória indígena, de certa forma a gente discute o patrimônio cultural. E o senhor, a participação do senhor não só na Subcomissão de Cultura, mas também na Subcomissão dos Negros e Indígenas, encabeçada pela deputada Benedita da Silva.

Ailton Krenak: É a Benedita. Muito ativa, a Benedita foi uma liderança importante pra caramba nesse processo.

Yussef Salomão Campos: Senhor Ailton, o senhor pode repetir o que o senhor disse sobre o Octávio Elísio, de ser ele “parabólica das reivindicações”.

Ailton Krenak: Então, na Constituinte em 1987, 88, o Octávio Elísio tinha um mandato na Constituinte e teve uma presença muito criativa e para demanda dos povos indígenas, por exemplo, ele teve um compromisso, assim, pessoal, de estar apoiando as nossas posições nas comissões e na votação depois na plenária e ele percebia como um, a presença dele ali refletia a atitude de uma cidadania, um tipo de cidadania que não é muito comum, que as pessoas não têm. Não é muito comum você encontrar homens com essa visão tão plural assim. Eu usei a ideia assim, tão parabólica, porque ele conseguia atinar com todos os vínculos que podiam estar relacionados com aquelas demandas que a gente levava para a Constituição de 88. Na verdade, a gente estava inaugurando novos direitos e o Octávio ele refletiu as posições dele na Constituinte; uma atitude que era assim, que aquela plataforma dos direitos, os direitos fundamentais dos seres humanos, que eles precisavam estar de alguma maneira refletidos na nossa Constituinte, como uma carta assim que acolhesse as visões mais inovadoras do convívio de uma sociedade plural, com as diferenças de origem, com uma percepção muito… O Octávio tem uma percepção muito tranquila de que o povo brasileiro é uma formação, é uma nação o tempo inteiro se atualizando, a despeito de ter na sua origem, digamos assim, histórica, mais antiga, os índios e os negros e depois os portugueses, e depois os italianos. Nós somos, na verdade, uma imensa máquina, como dizia o Darcy Ribeiro, uma máquina de atualização, com gente chegando de vários lugares do mundo. E o século XVIII, XIX, século XX, o tanto de gente que veio para aqui e as visões que esses povos todos trouxeram para esse concerto que é o Brasil, que é o povo brasileiro, é uma coisa muito plural.

Aí é, o Octávio, foi bom a gente começar a conversa mencionado o Octávio e a Benedita, porque a Benedita da Silva, a nossa colega lá na Constituinte também, a Benedita tinha uma vanguarda dos direitos humanos; estavam na bandeira da Benedita. Eu não tinha uma compreensão tão ampla do processo que a gente estava vivendo naquela época. Dez anos depois, 20 anos depois, eu fui descobrir passos que nós demos ali no debate da Constituinte que foram importantes e continuam sendo importantes nas políticas públicas do nosso país, na implementação de novos direitos, e, no caso do patrimônio, patrimônio cultural ou patrimônio material e imaterial, essas conquistas, digamos, dos últimos 50 anos que a sociedade brasileira vem consolidando, elas representam para os povos indígenas hoje uma conquista tão relevante quanto a de ter garantido o direito de expressar-se na sua própria língua, que são povos com língua materna ainda, tem uma… mais de uma centena de comunidades que ainda falam suas línguas de origem, e até a Constituinte de 88, por exemplo, era vedado o direito dessas pessoas fazerem um documento, um registro, inclusive um registro civil. Eu sou de uma geração de pessoas que quando nasceram não podiam botar o nome dos pais na língua materna, não podiam botar o nome que os pais escolhiam para os filhos, os filhos eram nomeados pelo cartório e com o nome considerado brasileiro, que geralmente era um nome português e, melhor do que tem acontecido nos últimos dez anos que o nome das crianças viraram tudo Michael, Michael Jackson, essas coisas assim.

Mas os índios tinham um impedimento de transmitir sua herança cultural, que tem um significado em cada cultura, em diferentes culturas pode ter diferentes significados o nome da pessoa, o prenome, no caso dos povos indígenas essa herança que é transmitida com o nome, ela tem um condão de fazer que essa criança que recebe esse nome, essa nominação, se vincule também a outros ritos futuros de identidade, de construção de identidade e é muito trágico que durante tanto tempo, talvez dois séculos, do século XVIII até o final do século XX, pelo menos, muitos desses povos tenham sido impedidos de fazer essa transmissão no âmbito doméstico; dentro de casa os pais podiam eventualmente chamar os filhos pelo nome, mas fora de casa os filhos tinham que ser chamados pelo nome estrangeiro, uma alcunha, um nome que alguém aplicou no cartório. E no caso dos índios ainda tinha mais uma complicação a isso, porque os índios eram tutelados, tinha esse controle estreito sobre a rotina das famílias. Então, quando as crianças nasciam quem fazia a primeira anotação, o primeiro registro do nascimento da criança, era um funcionário do governo, um agente federal e esse funcionário do governo geralmente era um cara que tinha preconceito com a cultura indígena, então ele botava o nome dele nas crianças indígenas, ele botava o nome do pai dele, do avô dele, do tio dele, ele botava o nome de quem ele achava simpático, de um político, de algum personagem ilustre para ele. Ele pegava o nome e botava no indiozinho que tivesse nascendo. Então, é muito louco porque você vai encontrar índios com o nome de Bartolomeu, Thiago, Demóstenes, Diogo, qualquer um desses nomes, em espanhol ou português ou grego, mas você não vai encontrar os menininhos com os nomes que têm significado, mais do que significado, que têm sentido pra eles na sua cultura.

E isso é imaterial, a gente está falando de um aspecto imaterial da cultura, mas tem os aspectos ligados diretamente ao cotidiano e até à sobrevivência das pessoas que é a expressão, digamos, estética. A coisa de você fazer um… construir objetos, confeccionar artefatos e tudo, essa produção que os vários povos indígenas sempre tiveram e que muitos perderam a técnica e até perderam o conhecimento sobre a confecção de alguns desses artefatos, eles também foram muito desvalorizados, eles foram muito descaracterizados por falta de instrumentos que possibilitassem a defesa dessas comunidades, a defesa desse patrimônio pelos índios, pelos portadores desse conhecimento. Então, alguns artefatos que eram construídos num processo, digamos, compartilhado, criativo, no meio das comunidades, a exemplo das máscaras, rituais, e tem um episódio relacionado com essas coisas das máscaras, rituais, por exemplo, que os padres chegaram no Alto Rio Negro, os salesianos. Eles chegaram no Rio Negro e, ali pela década de 30, 40, chegaram numa comunidade que ainda tinha muita vinculação com sua memória, digamos, assim, ancestral e ainda produziam muitos objetos simbólicos, muitos objetos da cultura. E eles viram uma máscara que o pajé usava e eles identificaram essa máscara como a caricatura do demônio ou qualquer coisa parecida. Os padres queimaram a casa das máscaras, queimaram os objetos rituais, estigmatizaram os artistas que faziam esses objetos como se fossem feiticeiros ou, sei lá, carpinteiros do capeta ou alguma coisa assim, e jogaram uma pecha tão negativa sob esses artefatos e esses artesãos que os caras não tiveram coragem de ensinar os filhos deles a reproduzir esses objetos, porque eles pensavam, se eu ensinar meu filho, meu neto, meu sobrinho fazer uma máscara desta, ele vai carregar com ele depois a maldição que eu fiquei marcado com essa maldição.

Então, hoje nós temos alguns instrumentos ou avanço. O que eu acho que a Constituinte de 88 nos possibilitou aquele amplo espaço de debate, discussão, foi de a gente capturar alguns cristais, alguns diamantes que a gente tinha, carregava nos nossos bolsos, mas a gente não tinha ideia do valor deles e da potência deles.2 2 Sobre os debates e discussões dos direitos indígenas, bem como a própria presença indígena na Constituinte de 1988, ver também Santilli (1993) e Santos (1989). Eu acho que na Constituinte a gente conseguiu perceber a potência que esses direitos que nós carregávamos traziam em si mesmos, e como que eles podiam projetar para além da nossa geração, para as gerações futuras, novos espaços de atuação, de conhecimento, de saber mesmo. Então, eu acho que a nossa participação na Constituinte de 88 ela foi muito rica e reflexiva porque a gente estava ao mesmo tempo descobrindo novos direitos, projetando para o futuro esses novos direitos e inventando, na verdade, inventando novas dimensões de mundo, inventando novos lugares de vivência de exercício da cultura, da subjetividade. Eu acho que a percepção que a grandeza, a amplidão que a cultura ganha quando os indivíduos conseguem atinar com a imaterialidade da cultura, com os aspectos imateriais da cultura, ela transcende, o indivíduo transcende, o sujeito deixa de ser um animal doméstico e passa a ser um ser mais capaz de interagir no mundo, não no mundo no sentido restrito da sua cultura própria, mas interagir com as outras culturas, se comunicar e de transformar as realidades, as múltiplas realidades. É como se o indivíduo ganhasse uns óculos que permitissem a ele enxergar múltiplas realidades e tirar ele desse chão plano, onde nós somos o tempo inteiro pregados, colados, pela dura realidade, a assumir uma realidade monolítica, a assumir uma realidade estruturada, entendeu? E esses óculos permitem as pessoas perceberem as múltiplas realidades e como que essas realidades são, o tempo inteiro, mutantes, como que elas mudam e como que o ser humano pode ser, é, digamos, beneficiar essa mobilidade e isso atualiza o ser humano, atualiza as mentalidades. E é muito louco, porque a gente consegue atinar com esses mundos todos, com essas realidades plurais, com essa mobilidade toda que nós podemos experimentar, a gente sabe que o mundo convive, que nós convivemos, sociedades ainda tão arcaicas no planeta, e arcaicas no sentido positivo e arcaicas também no sentido mais, digamos, prejudicial para os humanos, porque tem alguns, tem alguns lances de memória, tem alguns lances das visões e das realidades que são compartilhadas no mundo hoje que elas carregam o que tem de pior do ser humano, a coisa mais autoritária, o elogio do indivíduo, de um egoísmo assim exacerbado, de uma coisa é… da coisa do ser humano mesmo, que é para lembrar que nós somos isso também. Se o ser humano consegue ser universal e vasto e plural, ele consegue ser também mais pesado do que uma lápide, uma placa de pedra pregada no chão que não se move.

E a minha experiência da Constituinte para mim foi assim, ao mesmo tempo em que eu interagia, criando faíscas de contato com outras realidades, eu enriquecia a mim mesmo como ser humano, como pessoa, para fruir melhor a vida, sacar a vida duma maneira mais cheia de possibilidades.

Yussef Salomão Campos: O artigo 216 da Constituição foi promulgado com o seguinte texto: “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial”, e é a primeira vez que surge no ordenamento jurídico o imaterial; a partir da “identidade, da memória e da ação dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira”. E fala dos modos de expressão, do fazer, os saberes, além dos edifícios, da parte material. De que maneira o senhor viu o reflexo das reivindicações que o senhor personificou na Constituinte, quando se falou da defesa da memória e da identidade dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira?

Ailton Krenak: Eu acho fantástico, em algum momento, a mente, o pensamento brasileiro dos nossos contemporâneos terem elaborado uma coisa tão sofisticada quanto esse artigo, entendeu, porque lei, norma jurídica, é uma coisa dura, norma jurídica não é poesia. É muito difícil você ver poesia em norma jurídica. Agora, como que você consegue avançar num pensamento que vai ter sentido político, que vai ter sentido jurídico-político, e que tem sentido também para um outro cara ler e entender o que você está falando. E eu acho que já é uma demonstração de inteligência assim, muito fina, os brasileiros terem conseguido no final do século XX ter construído esse instrumento assim. Que pode ser percebido… Se você traduz isso para o inglês, para o japonês, para qualquer outra língua e isso é o maior barato, porque você está botando esse vórtice assim de energias e de ideias em contato com outras culturas, contaminando outras visões e outras culturas com essa pluralidade assim, de sentidos, que o saber humano, que o conhecimento humano, que a potência humana tem. Eu acho que quando nós conseguimos botar essa expressão no estamento jurídico do Brasil, as coisas das leis do Brasil, e nós conseguimos que alguém entenda isso, que um gestor entenda isso, que um ministro entenda isso, que um burocrata entenda isso, que um aplicador da lei entenda isso, ora, quando você consegue fazer uma coisa que é percebida pelos outros, ser reconhecida pelos outros com esse sentido tão criativo, você, de verdade, move a pedra, você faz a novidade. Então, eu sinto que na prática a vida das pessoas, de famílias, de dezenas de famílias, de centenas de famílias, de comunidades inteiras, ganhou mais luz, ganhou um raio de sol, ganhou um sentido na vida das pessoas. Eu mencionei aquela coisa das máscaras, que foram excomungadas pelos padres, eu mencionei a coisa dos índios que não podiam botar o nome nos filhos, eu mencionei algumas outras, digamos, práticas que eram consideradas, que foram banidas ou que eram consideradas interditadas por qualquer outra visão e que passaram a ser protegidas por esse princípio novo. E elas não só passaram a ser protegidas, como elas passaram a ser estimuladas, elas são estimuladas, se apoia a difusão dessas novas práticas, e é garantido o direito de inovação. Hoje qualquer uma comunidade nossa pode publicar, escrever no seu próprio idioma, não precisa obrigatoriamente ser em português, tem o direito de botar o nome nos filhos, o exercício óbvio de nomear seus filhos, de transmitir sua língua, transmitir valores transcendentes da sua visão do mundo, da sua espiritualidade.

Yussef Salomão Campos: Por exemplo, foi a partir dessa norma, senhor Ailton, que a arte kusiwa, dos índios Wajãpi, se torna uma identidade nacional, um Patrimônio Cultural Brasileiro. Eu queria que o senhor falasse da diferença que o senhor me falou anteriormente, de que antes de se tornar patrimônio essas expressões são recursos.

Ailton Krenak: São recursos. Então, o que é interessante é que mesmo a gente vivendo o exercício da pintura corporal, dos ritos, da construção desses objetos todos e sentindo como que esses recursos são suporte para nossa vida, para nossa existência, seja para nossa existência física, protegendo, um abrigo, a nossa casa, os objetos, as ferramentas e os artefatos que a gente usa para preparar o alimento, para preparar os remédios, para construir a ponte entre a prática cotidiana e os rituais. Todos esses artefatos, esses objetos eles são recursos do cotidiano, eles são recursos tão essenciais quanto uma ponte para atravessar um rio, um pinguela para atravessar um rio, entendeu, ou um fogo para você cozinhar, são recursos. Esses recursos, eles estão presentes na vida de todo mundo, eles estão presentes na vida, inclusive, das comunidades mais isoladas e aparentemente desprovidas de qualquer visão crítica sobre a realidade delas mesmas, inocentes sobre esses recursos, mas esses recursos estão ali, eles são inerentes, eles fazem parte da vida das pessoas.

O que eu achei muito interessante no processo que me envolveu na Constituinte é que eu tinha isso muito mais como recursos, entendeu, do que como direito. Antes disso aparecer para mim como um acervo, um patrimônio, ele aparecia como um recurso e eu nem tinha pensado criticamente nessa coisa, na diferença que pode haver entre um acervo e um recurso. Agora, pensando criticamente eu imagino que a diferença entre o acervo e o recurso é que o recurso é aquilo que você frui na vida, é como você mudar de paisagem e experimentar a brisa, o vento, o cheiro, o bem-estar de estar num lugar saudável e descobrir que o outro lugar que você estava era poluído, era sujo, entendeu, e não era saudável. Depois que você está experimentando esses… quando você está experimentando esse bem-estar, você na verdade, você está fruindo um recurso, ele não é um acervo que você tem disponível, você não tem consciência desse acervo, você não sabe que do outro lado da montanha você pode respirar ar puro, você está do lado de cá da montanha, se você atravessar a montanha do lado de lá da montanha você vai respirar ar puro, vai beber água limpa, você vai experimentar, vai fruir um recurso. É diferente da ideia de você ter um acervo. A ideia de você ter um acervo, você está aqui, desse lado da montanha, mas sabe que do outro lado da montanha você tem disponível um conjunto de bens, de coisas que você pode acessar.

Da Constituinte de 88 para cá, eu estou fazendo essa metáfora, da Constituinte de 88 para cá, nós passamos a difundir a ideia de que existe um acervo, ele está do lado de lá da montanha, também e esse acervo, ele inclui os bens tangíveis, aquilo que você toca, que você percebe, que você consegue demonstrar, e os intangíveis que é aquilo que os Wajãpi, por exemplo, em algum momento, no final da década de 90, começaram a se tocar que eles tinham expressões da sua cultura, da sua cultura material e imaterial, e que a fronteira entre esses objetos da cultura, esses recursos da cultura, que eram, ao mesmo tempo, artefatos do seu cotidiano, mas eles eram também suporte de visões e de conhecimentos deles que tinham, que são intangíveis. Eles quiseram juntar esses aspectos tangíveis e intangíveis do seu patrimônio, digamos assim, do seu acervo cultural e registrar ele, obter um registro que inovou no caso dos povos indígenas a criação desse novo instrumento. Os Wajãpi fizeram e outras comunidades indígenas decidiram também fazer inventários culturais e trazer para esses inventários coisas que só eles mesmos valorizam, só eles mesmos consideram transcendentes na sua visão do mundo. Eles não sabem, eles ficariam aleijados se eles tivessem que viver o resto da vida deles sem aqueles bens. E os índios estão fazendo isso e os negros também. Tem muitas outras comunidades hoje buscando usar esse instrumento, eu acho que inclusive os pomeranos, aqueles açorianos que vieram lá para o sul do Brasil, pessoal que vive em comunidades próximas do mar. Como é que chama, são os pescadores. Esses pescadores e comunidades ribeirinhas que têm vínculos muito fortes com a memória, e visões e aspectos intangíveis desses sítios, desses lugares onde eles vivem, eles querem reivindicar o direito de continuar vivendo nesses territórios e de experimentar a sua cultura como um direito inalienável, como um direito que ele não abre mão dele, e que nem o Estado nem o mercado têm o direito, têm o poder, de decidir sobre isso. Ao contrário, o Estado e o mercado, que é essa entidade supra, supranatural, que está cada vez mais se materializando, entrando na vida de todo mundo, nem o mercado e nem o Estado, essas duas entidades não têm mais o poder exclusivo de decidir sobre a fruição desses direitos, de viver no lugar, entendeu.

Então, assim. O negócio é o seguinte: se tiver um coletivo que decidiu que vai viver numa determinada orla, numa praia, entendeu, ou num vulcão, ou na beira de um furacão, se eles decidiram reivindicar o direito de viver ali, existe hoje resguardo pra esse direito. Isso é que é bacana, isso que é importante. É o ser humano poder estar protegido, o ser humano recorrer, os humanos recorrerem a meios que permitam a eles o seu exercício livre da cultura, e que talvez seja o contato mesmo com a espiritualidade, a coisa da alma, a coisa dos seres humanos não serem só portadores de necessidades materiais, mas serem reconhecidamente seres criativos, criadores e portadores de dons transcendentes.

Yussef Salomão Campos: A Constituinte, senhor Ailton, foi marcada por conflitos, conflitos de ideias, conflitos econômicos. O senhor, quando leva a bandeira da reivindicação da preservação da memória indígena, da cultura indígena, da identidade indígena, e vê isso refletido no artigo 216, conforme o senhor já disse, e aí o senhor, num certo momento, em uma manifestação de indignação pelo que está sendo feito num certo momento na Constituinte pinta o rosto de jenipapo. Que conflito marca isso na memória do senhor? Esse momento marca o não atendimento de que série de reivindicações?

Ailton Krenak: Na verdade, aquele momento ali que eu, na Constituinte, que eu pude me manifestar, expressando assim um coletivo, expressando a posição ou a visão de um coletivo sobre o momento histórico que a gente estava vivendo, a minha decisão de pintar o rosto de jenipapo, pintar a cara de jenipapo, é que o jenipapo, a despeito de ele ser uma coisa da cultura dos índios, que é pintar o rosto de preto, ele tem um certo sentido universal também que é do luto. Ao pintar aquela tinta preta no meu rosto eu estava rompendo com o diálogo ali, naquele espaço da Constituinte e declarando ao mesmo tempo um luto, uma indignação com a atitude canalha que os caras da direita, os racistas todos que estavam no Congresso expressavam contra os direitos humanos. Mas, eu também estava declarando uma guerra para eles, e gritando para eles: vocês são todos uns filhos da puta, e eu não tenho medo de vocês, morte, morte. Eu estava dando um grito de guerra e esse momento de ruptura com o diálogo, ele foi para mim uma experiência radical como ser humano também, porque ele me deu, ele abriu para mim a possibilidade de romper com o passado, romper com as coisas atrasadas no sentido de você ficar bloqueando os processos que são naturais, entendeu. Eu tinha entendido que naquele momento a gente tinha que botar pra quebrar mesmo, se a gente tivesse que brigar, os caras ficavam fazendo aquele jogo da direita, um jogo canalha da direita, assim, de cercear os nossos direitos, mas… cinicamente. Aquela coisa do Parlamento, o Parlamento, o Parlamento… e teve um momento que eu percebi que o Parlamento era o lugar da conversa, era o lugar da palavra, o “parlamento”, o próprio nome do lugar já definia isso. E a despeito daquele lugar ser o Parlamento eu tinha dez minutos pra dizer tudo o que o povo indígena e outras minorias tinham para dizer num Congresso de 400 e tantos parlamentares que nenhum deles estava a fim de me ouvir. Então, eu falei: pô, isso aqui é um engodo, entendeu.

Yussef Salomão Campos: Em que momento foi isso, o senhor lembra? Foi no início da Constituinte ou foi já no final?

Ailton Krenak: Foi no final, foi na votação do texto da Constituinte. A gente já tinha passado pelas comissões todas, já tinha experimentado a pilhagem dos caras da direita contra a gente, [eles] já tinham tentado quebrar a gente ao longo de um ano e meio no Congresso.

Yussef Salomão Campos: E essas pilhagens, que o senhor diz, [essa canalha], isso refletiu…

Ailton Krenak: Era pilhagem mesmo, porque a gente acabava de votar um texto numa comissão, fechava a sala, no outro dia você ia trabalhar com o texto, o texto estava adulterado, tinha espionagem, tinha sequestro, roubo, tinha todo tipo de coisa na Constituinte.

Yussef Salomão Campos: Isso de alguma forma também estava dentro do patrimônio cultural ou da cultura indígena, da memória indígena? O senhor sentiu esse boicote também?

Ailton Krenak: Senti. Não tem dúvida. Afetou, afetava a percepção de todo mundo do que estava sendo proposto ali. E o que foi muito louco é o seguinte: tinha na época um ajuntamento de partidos de direita que eles se chamavam “Centrão”, e esse Centrão que… É, eles diziam Centrão, os paulistas chamavam de Centrão já com essa conotação mesmo, de direita. Os caras eram da direita. Era assim, a Ku-Klux-Klan. E os caras queriam, achavam que o Brasil era um país de gente branca, de gente rica, que todo mundo escovava o dente, entendeu, que todo mundo sabia votar para presidente, quando na verdade a gente estava num país com um racha imenso, a ponto de a gente ir assim para uma guerra civil, o país estava todo arregaçado e os paulistas com aquela hipocrisia. E alguns outros mineiros e nordestinos sem vergonha também junto com eles. E gente como o Octávio Elísio, que eu mencionei no começo, era uma excelência quando você tinha um camarada com a visão dele. Daqui de Minas eu acho que a gente teve uns dois ou três constituintes que foram vultos, assim, no Congresso de 88. De São Paulo teve alguns camaradas interessantes. No Rio Grande do Sul também teve. Esse Maurício Fruet, ele foi um cara na Constituinte que teve posição muito boa, aquele cara que tá dirigindo a Itaipu agora, um grandão, Gustavo… não me lembro o sobrenome dele. Tinha, vamos imaginar aí que você tinha uns 30, 40 cidadãos brasileiros na Constituinte de 400 e tantos caras que tinham uma visão plural da realidade do nosso país. Os outros eram reacionários mesmo, eles estavam lá pra ganhar rádio, TV, entendeu, pra ganhar consórcio, pra trambicar. Eles estavam mais interessados em fazer as leis, aquelas leis… aquelas coisas que estão na Constituinte que é da ordem econômica, entendeu!

Yussef Salomão Campos: Então, o senhor acha que, por exemplo, o senhor elogiou o texto do artigo 216; o senhor acha que ele seria uma exceção a essa adulteração toda, dos textos, que o senhor disse que um dia na subcomissão o senhor discutiu um texto e no dia seguinte era outro. O senhor acha que ali seria uma exceção até, de repente, pela presença do Octávio Elísio na subcomissão?

Ailton Krenak: Olha, eu acho que tem outros… nós conseguimos que outros textos também, dos direitos do patrimônio cultural, dos direitos, digamos, fundamentais das minorias, nós conseguimos que eles fossem aprovados do jeito que eles entraram. Na base de muita luta. Eles foram aprovados do jeito que eles entraram. A gente brigava por eles assim como uma bandeira mesmo, fincada numa colina, entendeu? A gente não deixava os caras descaracterizarem as propostas que estavam levadas para as discussões nas comissões e votada lá na plenária. Uma vírgula, um cedilha, era motivo de cacetes, assim, que parava o Congresso uma semana, não era brincadeira não, a bronca era séria. E como tinha muita pluralidade nas comissões, você tinha desde personalidades, no caso da saúde, por exemplo, você tinha personalidades como Sérgio Arouca, que é uma sumidade, um sanitarista com uma visão ampla da história da saúde no Brasil e da política da saúde no Brasil. Então, quando você ia discutir saúde você tinha um cara daquele dando luz. Quando você ia discutir educação, você tinha, sabe, você tinha os melhores pensadores desses temas no Brasil ali, junto com você. De repente numa comissão você tinha a Marilena Chauí dando palpite, falando…

Yussef Salomão Campos: Florestan Fernandes.

Ailton Krenak: Você tinha, é, Florestan Fernandes, você tinha figuras assim, entendeu, que são faróis…

Yussef Salomão Campos: Contribuíram…

Ailton Krenak: Nossa!, não tem dúvida. Porque são essas visões, são essas visões, como chama…

Yussef Salomão Campos: Acadêmicas, técnicas, plurais?

Ailton Krenak: Não, não, não é acadêmica e técnica, não. São essas visões de vanguarda, futuristas, que fizeram com que a gente conseguisse pensar leis para o futuro e não para o presente, entendeu. [Porque] se você pensar um conjunto de normas para o presente, o futuro tá ferrado. É o que acontece com o meio ambiente. O meio ambiente, nós ainda estamos viciados a pensar o meio ambiente como presente e o meio ambiente não pode ser pensado como presente, ele tem que ser pensado como futuro, e um futuro distante. É por isso que os nossos rios viram esgoto. Porque quando você pensa o meio ambiente presente você joga merda no rio, joga o sofá velho no rio, a geladeira velha no rio, todo mundo faz isso. Você chega em qualquer cidade os rios são esgotos, porque os caras não pensaram no futuro. Se tivessem pensado no futuro, eles iam saber: no século XXI a água vai ser um item…

Yussef Salomão Campos: Raro.

Ailton Krenak: Raro, e no século XXII, quem sabe, ele seja restrito ao uso de uma elite, o resto vai beber esgoto mesmo.

Yussef Salomão Campos: Senhor Ailton, o senhor participou da décima sexta reunião da Subcomissão de Educação e Cultura e Esportes, dia 29 de abril de 87. Dessa subcomissão especificamente destaco que o senhor afirmou sobre a necessidade de uma política para a identidade indígena, porque até então a questão da identidade indígena estava à margem da política, e afirmou ainda que a cultura é dinâmica, mutável e não pode aceitar imposições. Não seria esse artigo 216 uma imposição, ou pelo contrário, seria um reconhecimento da identidade assim como o senhor disse que deveria ser feito?

Ailton Krenak: Na verdade, o que eu estava clamando, eu estava clamando no sentido de que nós precisávamos ter alguma coisa, nós precisávamos ter no que nos agarrar quando aspectos da nossa cultura e da nossa identidade estivessem sendo ameaçados e eu acredito que na Constituinte o que nós estávamos fazendo era criando esses instrumentos, pelo menos a minha percepção desse artigo é que ele inaugura um marco, digamos assim, seria um marco jurídico. Ele inaugura um marco a partir do qual todo mundo em torno dele pode refletir se essa identidade está sendo ofendida ou não, entendeu? Porque antes acontecia, era que se você fizesse qualquer um ato de agressão, ou de desrespeito a aspectos dessa identidade e se alguém quisesse reclamar essa ofensa, ele não tinha nem a quem reclamar. Não tinha como reclamar, porque não tinha proteção. Eu acho que nós começamos a construir instrumentos que nossos filhos e os nossos netos vão saber utilizar melhor do que nós, assim como o cara da Microsoft inventou o computador de mesa e depois veio o tablet, o iPad, o iPod e os nossos filhos e os nossos netos têm que ligar eles para a gente, pelo menos no meu caso que estou fazendo 60 anos agora, mas os seus netos vão acionar coisas que você nem imagina, apoiados em dispositivos que você, que a sua geração, que a geração do seu pai, que a minha geração, pensaram. Pelo menos pensaram, projetaram. E eu tenho a satisfação muito grande de ter ajudado a construir alguns desses dispositivos que vão permitir a nossos filhos, netos, viver num mundo, digamos, mais plural. Eu nem sei se ele vai ser melhor do que esse que nós vivemos hoje. Mas ele vai ser mais plural, vai ter mais janelas de fuga, mais rotas de fuga. Porque o que os seres humanos precisam é de rotas de fuga.

Yussef Salomão Campos: O senhor fala inclusive, nesse mesmo depoimento, da necessidade de se reconhecer a tradição oral indígena, diz ainda…

Ailton Krenak: Sim. A oralidade. Reconhecer a oralidade como um recurso.

Yussef Salomão Campos: E isso entra como um patrimônio imaterial. E, abrindo aspas para o senhor mesmo, o senhor diz o seguinte: “Se a cultura brasileira for capaz de expressar a riqueza, a pluralidade, a diversidade que existe hoje, se for capaz de contemplar isto, poderemos ser uma nação de muito pensamento bom, de onde uma produção de conhecimento muito rico poderá vir a colaborar no conjunto da humanidade, para nos colocarmos pessoas plenas” (Brasil, 1987BRASIL. Câmara dos Deputados. Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. 16ª reunião. Diário da Assembléia Nacional Constituinte, Brasília, supl. 96, p. 297-326, jul. 1987. Disponível em: <Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte/comissoes-e-subcomissoes/comissao8/16.pdf >. Acesso em: 25 mar. 2017.
http://www2.camara.leg.br/atividade-legi...
, p. 303-304). E aí o senhor é aplaudido pelos presentes. Isso traduz um pouco a nossa conversa, essa frase do senhor, correto?

Ailton Krenak: É, e principalmente traduz aquele momento que a gente estava vivendo, porque eu sou um cara que a minha experiência, eu sou produto da tradição, eu sou produto da oralidade. Eu sou uma cria da oralidade. Tudo o que eu consigo capturar, assim, da essência de estar vivo, de experimentar as coisas, eu traduzo isso nas minhas elaborações, tipo essa fala aí. E é uma fala que não é planejada, isso é uma fala totalmente espontânea, parece que é uma coisa que caracteriza a tradição oral é falar do repente, é aquela coisa que sai do espírito, é uma conjunção assim de espírito e mente e arte da fala, uma coisa da cultura tão difícil de se capturar e talvez o último grande acervo de riqueza que nós ainda temos por reconhecer e por apreciar no mundo hoje, não só pensando no nosso continente, no Brasil, na América do Sul, mas pensando no mundo, ele esteja exatamente escondido nas franjas das tradições que ainda não escrevem, que ainda não têm outros relatos a não ser a oralidade, entendeu? Que tá na Ásia, na África, que tá naquelas quebradas assim, no Polo Norte, entendeu?, lá onde os esquimós andam, lá onde aqueles nômades do deserto, como é que chama, do Magreb, não é isso? Aquela coisa que tem ali depois do Marrocos. Eu fui lá na Tunísia participar do Fórum Social Mundial na Tunísia esse ano. Eu tinha parado de ir em Fórum Social, porque eu achei que os Fóruns Sociais estavam virando uma espécie, assim, de festa rave. Os caras iam pra lá pra curtir. Não estavam vendo ninguém que ia lá para pensar, para refletir, para fazer uma fricção de ideias, assim. Então, eu fui nesse da Tunísia, participei de um painel lá que falava de medicina tradicional. E encontrei um indígena de lá dos Estados Unidos, um cara interessante também, do povo sioux, é, sioux navajo, sioux com navajo. E um cara interessante, falando umas coisas interessantes também, tocando em questões que eu acho que são contemporâneas, que eu acho que vai ter importância, assim como teve importância a gente discutir na Constituinte, ele estava lá na África falando para os árabes e para os africanos para eles se ligarem, prestarem atenção nessa coisa da Nestlé, da Monsanto, dessas multinacionais que estão controlando os alimentos, controlando as plantas, controlando os recursos biológicos que estão no fluxo entre as pessoas, o consumo, entendeu. Então, a papinha do neném, aquela papinha inocente da Nestlé, tem uma sacanagem lá dentro, é o grão que você compra, as coisas que você come, tem uma manipulação nisso aí. As grandes corporações estão controlando isso, estão arrumando sonda para invadir a nossa, digamos, a nossa vida, a nossa intimidade, de invadir a nossa vida mesmo, no sentido mais íntimo. Então, daqui a pouco as nossas mulheres estão todas transgênicas por aí, os nossos filhos estão transgênicos por aí, porque essas corporações não têm nenhuma ética, elas não têm moral nenhuma. Aliás, assim como o capital não tem pátria, as corporações elas radicalizam isso. Elas não têm pátria e não têm caráter nenhum.

Yussef Salomão Campos: O senhor fala ainda, nessa mesma reunião da importância, da interação da experiência de cultura, e o senhor usa um termo, “catequese cultural”, que não era com o sentido de catequese religioso, mas a ideia de catequese cultural. O senhor pode falar um pouquinho sobre isso?

Ailton Krenak: [Você] tem uma nota do que era? Porque é muito tempo…

Yussef Salomão Campos: O senhor falando da identidade, da pluralidade, da diversidade. O senhor diz o seguinte: diferente dessa noção de catequese religiosa, que é imposição, a cultura é diferente, há uma troca. É uma catequese cultural recíproca. A cultura diferente da [minha], se apropria de algumas identidades culturais e eu me aproprio de outras. Era uma ideia um pouco em relação a isso.

Ailton Krenak: Interessante eu ter usado “catequese”, porque nessa época, especialmente, eu estava tão radical, eu estava com uma postura tão radical, eu tinha uma atitude crítica e radical com relação a tudo que, como a palavra é carregada de sentido, que tivesse relação com o que foi feito aqui na América pelos jesuítas, pelos missionários, entendeu, e eu, principalmente nessa época, catequese era uma ferramenta típica dos jesuítas, foi a arma que os jesuítas usaram para, com eficácia, entrar na América, assim, arregaçando. E o que será que eu queria dizer com essa coisa? Talvez o que eu tivesse buscando uma expressão para substituir essa, talvez o que eu estivesse dizendo é que a gente precisava fazer uma transformação, transformação onde as diversas e plurais expressões da cultura se comunicassem, que elas pudessem se comunicar, que elas pudessem interagir e não se sobrepor. Porque a catequese é uma sobreposição de visões. Uma visão dominando, contendo a outra.

Yussef Salomão Campos: Quanto à cultura e à memória indígena, e à identidade indígena, o senhor acha que algo ficou de fora da Constituinte, ou o resultado das reivindicações na Constituinte e o texto final ficou alguma coisa de fora?

Ailton Krenak: Então, eu fico admirado com a elaboração que a gente conseguiu fazer àquela época e como que a gente conseguiu traduzir isso numa síntese tão complexa, entendeu, que qualquer um cara que ler esse artigo, mesmo que ele seja contra esses princípios, ele vai entender o que está sendo proposto e isso, para mim, foi uma construção inteligente pra caramba, excelente, não ficou nada de fora. Eu acho que daqui a 50 anos, daqui a 100 anos, quem analisar essa construção, se for acrescentar alguma coisa, vai acrescentar alguma coisa no território das novas descobertas e não das antigas, entendeu?

Yussef Salomão Campos: E há algo que o senhor queira complementar nesta nossa conversa?

Ailton Krenak: Não. Eu acho que a nossa conversa só podia reter mais, digamos, espaço e ser mais extensa se a gente tivesse num contexto mais favorável a este papo nosso, do que aqui neste lugar barulhento, que a gente é distraída o tempo inteiro por algum acontecimento externo. Mas esse assunto é um assunto que eu revisitei ele nesta entrevista com você. Te agradeço a oportunidade e espero que quando você tiver com seu trabalho mais avançado, elaborado, que eu possa ter acesso a essas notas que você buscou da Constituinte, porque nem eu mesmo tenho acesso a essas notas. Eu acho elas boas pra caramba, porque elas me confrontam com coisas que eu tive que focar mesmo, assim, com força, há 30 anos, cara, não é? Pensar forte, há 30 anos. E quem sabe eu me animo, apesar de ainda ter muita dificuldade para transitar da oralidade para escrita, eu prefiro ainda falar, mas quem sabe alguma dessas ideias, eu ainda tenha vontade de [dissertar], entendeu, curtir um pouco mais as visões que essas ideias altamente concentradas me deram àquela época. Obrigado.

Referências

  • 1
    A entrevista foi realizada com apoio da Capes, fruto da minha pesquisa de doutorado.
  • 2
    Sobre os debates e discussões dos direitos indígenas, bem como a própria presença indígena na Constituinte de 1988, ver também Santilli (1993)SANTILLI, J. (Coord.). Os direitos indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Núcleo de Direitos Indígenas: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. e Santos (1989)SANTOS, S. C. Os povos indígenas e a Constituinte. Florianópolis: Editora da UFSC: Movimento, 1989..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2017
  • Aceito
    14 Mar 2018
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