Resumo
A expressão “sertão carioca” associada à ruralidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro vem consolidando-se como representação do avesso da cidade, às vezes como marca de resistência, mas também como o nome proposto pelo Estado para a gestão ambiental. Frente à expansão urbana, “sertão carioca” aparece como seu oposto simbólico e como uma possibilidade de preservação ambiental para purificar os excessos das perturbações urbanísticas. A partir do “olhar de Estado” exploro as contradições de uma agenda ambiental que se pensa na margem da cultura e se pauta por uma compreensão incompleta de experiências sociais que são simultaneamente urbanas e rurais. Reflito sobre os imaginários que carregam intervenções de cunho ambiental e agroflorestal, onde formas de imaginar a paisagem carregam por sua vez representações dos moradores que a habitam e para os quais se direcionam ações. Sob a sombra do adensamento urbano a equação população tradicional-unidades de conservação adquire nuances produtoras de novas subjetividades, para as quais as políticas de preservação ambiental estão desatentas.
Palavras-chave:
sertão carioca; meio ambiente; quilombo; cidade
Abstract
The expression “sertão carioca” associated with the rurality of the West Zone of Rio de Janeiro has been consolidating itself as a representation of the opposite of the city, sometimes as a mark of resistance, but also as the name proposed by the State for environmental management. In the face of urban expansion, “sertão carioca” appears as its symbolic opposite and as a possibility of environmental preservation where the excesses of urban disturbances can be purified. From sertão carioca “seen by the State” I explore the contradictions of an environmental agenda that thinks about the margin of culture and that is guided by an incomplete understanding of social experiences that are simultaneously urban and rural. I also reflect on the imaginaries that carry interventions of an environmental and agroforestry nature, where ways of imagining the landscape carry representations of the type of residents who inhabit it and towards whom actions are directed. Under the shadow of urban densification, the equation traditional population-conservation units acquires nuances that produce new subjectivities, for which environmental preservation policies are inattentive.
Keywords:
sertão carioca; environment; quilombo; city
Introdução
A paisagem que se insinua a partir da expressão “sertão carioca” que transitou do âmbito do imaginário de uma ruralidade carioca fincada na Zona Oeste para uma categoria institucionalizada de proteção ambiental é o recorte proposto nesta análise. A partir de duas áreas ambientalmente importantes para a cidade como são o Maciço da Pedra Branca protegido pelo Parque Estadual da Pedra Branca e os brejos na área da baixada, me aproximo das tentativas de preservação do meio ambiente a partir de ações de Estado, seja pela demarcação da Área de Preservação Ambiental (APA) Sertão Carioca e o Refúgio de Vida Silvestre (ReVis) dos Campos de Sernambetiba por parte da Prefeitura do Rio de Janeiro, como pelo estabelecimento do “Projeto Sertão Carioca: Conectando Cidade e Floresta” financiado pela Petrobras, sendo algumas das suas ações dirigidas para agricultores quilombolas no Parque Estadual da Pedra Branca.
Áreas ambientalmente protegidas na Zona Oeste do Rio de Janeiro (Instituto Brasileiro de Administração Municipal, 2023INSTITUTO BRASILEIRO DE ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. Assessoria técnica na análise do PLC 44/2021: revisão do Plano Diretor: sistematização de debates e propostas: Câmara Municipal do Rio de Janeiro: Relatório de Atividades 4 (setembro/outubro 2022). Diário Oficial Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano 46, n. 107, supl. 3, p. 87-177, 12 jun. 2023. Disponível em: Disponível em: https://dcmdigital.camara.rj.gov.br/web/viewer.html?file=../storage/files/2023/6/202306124652ecd2.pdf . Acesso em: 6 jul. 2023.
https://dcmdigital.camara.rj.gov.br/web/... , p. 167).
Ambas as situações partem de um “olhar de Estado” (Scott, 1999SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1999.) para apresentar ações em prol da preservação do meio ambiente no contexto urbano. Em ambos os casos, as ações se guiam pelo desenho de uma polaridade entre cidade e floresta para a qual se busca uma conexão, no caso da Petrobras, ou por uma conciliação entre a preservação da natureza e a construção civil, no caso da demarcação de uma APA com a qual a prefeitura se propõe proteger as áreas conhecidas como brejos.
Uma parte dos dados aqui apresentados foram coletados durante meu trabalho como coordenadora do componente de cartografia social do “Projeto Sertão Carioca: Conectando Cidade e Floresta” entre 2020 e 2022, que tinha como propósito o mapeamento participativo das áreas quilombolas do Maciço da Pedra Branca; a cartografia era uma das atividades dentro de um leque de ações dirigido para a população quilombola agricultora. Porém, meu envolvimento na área é muito anterior a essa intervenção e alguns dados apresentados estão por fora da experiência cartográfica comunitária.
Não é meu propósito fazer uma análise do projeto como um todo, nem explorar a atuação de projetos com financiamento de grandes empresas. O que me proponho é refletir sobre como as ações do projeto em questão estiveram vinculadas a um modo de imaginar a paisagem a qual está vinculada um tipo de morador, que seria o alvo das ações. Por morador refiro-me àquele que se autorreconhece como quilombola e que tem uma relação com o território mediante práticas tradicionais e agrícolas. Tal presunção, porém, não é mais que a simplificação das complexidades sociais que definem o Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB) e seu entorno.
É preciso destacar que nem todos os residentes do PEPB são quilombolas. Há no interior do parque moradores abastados e de classe média que não se identificam como quilombolas. Por outro lado, nem todos os quilombolas são agricultores, uma boa parte deles estão inseridos em dinâmicas citadinas e modos de vida urbanos e por tal não se enquadram plenamente na categoria de agricultor rural, e nem todos os agricultores se identificam como quilombolas. Em outras palavras há uma série de processualidades inerentes à diversidade do urbano e suas manifestações socioespaciais que são obscurecidas pela dicotomia rural versus urbano. Lefebvre (1969)LEFEBVRE, H. De lo rural a lo urbano. Barcelona: Ediciones Península, 1969. sugere pensar o rural e o urbano como processos relacionais que se interpenetram, encontrando-se articulados, e que no caso abordado são mediados pelas figuras de conservação ambiental. Contudo, a urbanização a que me refiro aqui está mais próxima da análise de Mike Davis (2006)DAVIS, M. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006. que do próprio Lefebvre. Para Davis a explicação da urbanização intensiva tem sua gênese na consolidação das drásticas alterações à estrutura produtiva fundiária, causando o deslocamento e gerando desempregados para os núcleos urbanos, que configuram bolsões pauperizados. O autor constata que as mais altas taxas de urbanização são observadas nos países pobres, que eram, ou ainda são, predominantemente rurais.
Reduzir e simplificar para que seja possível intervir é uma das principais prerrogativas de Scott (1999)SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1999. ao analisar as relações oriundas da ação do Estado, que, para incidir sobre a complexidade do mundo social e natural, reorganiza a realidade a partir de abstrações que permitem a gestão e o controle de pessoas e espaços. Dita simplificação implica a exclusão daquilo que é heterodoxo ou não se encaixa facilmente nas predefinições. Em outro sentido, o reconhecimento estatal indica o que é real e o que não é, pelo fato de ser ou não cognoscível pelo crivo de inteligibilidade em que opera o Estado. Assim é como, no caso da demarcação da APA Sertão Carioca, o brejo, uma paisagem “desconhecida”, desprezível e praticamente um empecilho para o avanço dos interesses imobiliários, começou a “existir” oficialmente para ser protegido.
Como o Estado gradualmente conseguiu lidar com seus súditos e seu ambiente? De repente, processos tão dispares como a criação de sobrenomes permanentes, a padronização de pesos e medidas, o estabelecimento de levantamentos cadastrais e cadastros populacionais, a invenção da propriedade plena, a padronização da linguagem e do discurso jurídico, o desenho das cidades e a organização do transporte pareciam compreensíveis como tentativas de legibilidade e simplificação. (Scott, 1999SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1999., p. 1, tradução minha).
A análise proposta aqui segue a linha de Kay Milton (1997)MILTON, K. Ecologies: anthropology, culture and the environment. International Social Science Journal, Oxford, v. 154, n. 4, p. 477-495, 1997., para quem o papel da antropologia no entendimento do discurso ambiental está na aproximação de questões conceituais e retóricas, levantando perguntas espinhosas sobre quem são beneficiários, quem toma decisões e por quê. A problemas e soluções, a antropologia nos demanda aplicar a “dúvida sistemática” (Morgan, 1991 apudMilton, 1997MILTON, K. Ecologies: anthropology, culture and the environment. International Social Science Journal, Oxford, v. 154, n. 4, p. 477-495, 1997.), destacando a abrupta justaposição da retórica oficial com a vida cotidiana. Para nos aproximar dessa compreensão é preciso fugir das ecologias purificadas e dos essencialismos culturais e levar a sério as possibilidades de engajamento e existência em mundos heterogêneos, híbridos, não puros e plurais num momento atual marcado por ruínas, perturbações e fragmentos. Confrontar a crise ambiental também implica superar o “modelo genealógico” vinculado à ideia de herança e origem (Ingold; Kurttila, 2000INGOLD, T.; KURTTILA, T. Perceving the enviroment in Finnish Lapland. Body & Society, London, v. 6, n. 3-4, p. 183-196, 2000.) para nos centrar nas práticas e indagar no que há além do “nativo ecológico” (Ulloa, 2004ULLOA, A. La construcción del nativo ecológico. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia: Colciencias, 2004.) definido por critérios como viver em comunidade e ter uma relação próxima e harmônica com seu entorno, especialmente em contextos nos que há sobreposição entre unidades de conservação (UCs) de proteção integral e territórios tradicionalmente ocupados.
Entre burros e um trator
No dia do seu aniversário de 62 anos de idade, o agricultor Plínio Santos,1 1 Os nomes foram alterados a pedido de alguns entrevistados. do Quilombo Cafundá-Astrogilda, recebeu as chaves de um trator, parte da dotação oferecida por um projeto de agroecologia levado a cabo pela AS-PTA, ONG atuante na região. Tratava-se de um presente que após anos materializava a promessa de melhorar o sofrido escoamento de banana, um dos principais produtos agrícolas do Maciço da Pedra Branca, feito tradicionalmente no lombo dos burros ajeitados com cangalhas de cipó. Aquele dia foi uma verdadeira festa, mas, passado um tempo, o veículo motorizado começou a mostrar-se um autêntico “presente de grego”. Os sendeiros do Cafundá não estavam desenhados para um trator articulado com uma caçamba, grande demais para os caminhos, estreitos e íngremes que passam pelas vertentes declivosas e encostas com grande número de matacões. Não é fácil chegar às espalhadas roças plantadas entre a floresta e o matagal que caracterizam a prática agroflorestal no interior do PEPB.
O trator articulado exige pelo menos duas pessoas, a que conduz e a que auxilia nos acessos difíceis onde um condutor sozinho não conseguiria ir, pois a caçamba se desequilibra, correndo o risco de jogar para fora toda a colheita devido à declividade dos morros e à condição precária dos caminhos. Isso se traduz em duas opções para o agricultor, ou bem paga uma diária para um ajudante ou então se articula com outros vizinhos agricultores que deveriam pactuar ir no mesmo dia para o mesmo lado, sendo que as lavouras de cada um estão dispersas em diferentes locais dentro do maciço e se encontram em diferentes estágios de produção. A dificuldade surgida expôs que os velhos desafios do escoamento da produção agrícola não eram apenas uma questão técnica. Por outro lado, à diferença do burro, que, como cuidados, exige o plantio de gramíneas como pastagens ou capineiras para lhe prover forragem e uma troca de ferraduras a cada seis meses, o trator precisa de combustível e aditamentos bem mais custosos, comparados com aquilo que a produção de banana deixa como lucro. Para usar o trator, o agricultor deve arcar com a diária de um trabalhador esporádico, além do combustível para o seu funcionamento. Isso sem contar o frete desde o maciço até as feiras da cidade. Em outras palavras, o investimento para pôr em funcionamento o trator requer uma série de articulações socioeconômicas que não compensam os ganhos na venda.
Alisando o burro, velho companheiro do caminho, Plínio reconheceu que o encantamento com o trator passou rápido e que ele não tinha serventia para o tipo de agricultura que ele pratica nos altos, baixos e encostas do Maciço da Pedra Branca. Para “puxar a banana” nesses terrenos embrenhados e nas encostas florestadas do maciço, o burro seguia sendo essa espécie companheira (Haraway, 2016HARAWAY, D. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.), barata e melhor adaptada para um tipo de atividade praticada de forma individual. Não à toa o burro tem sido o ícone visual mais explorado do Maciço da Pedra Branca, retratado desde Magalhães Corrêa (2017)MAGALHÃES CORRÊA, A. O sertão carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional: Contra Capa, 2017. em O sertão carioca, de 1936, até as imagéticas mais contemporâneas (Rodríguez Cáceres, 2019aRODRÍGUEZ CÁCERES, L. S. Desbravando o sertão carioca: etnografia da reinvenção de uma paisagem. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019a.).
Não se quer aqui obviar de que se trata de uma relação interespécie assimétrica, mediada por afetos, companheirismo e contradições, nem de defender ou romantizar como força de trabalho um arcaísmo como o uso do burro, frente a um artefato mais moderno como o trator. Expor os acertos sociais e as redes sociotécnicas que requerem o escoamento da banana é um ponto de partida para compreender mudanças na paisagem e nas configurações de trabalho, bens e serviços. Mais além do burro, uma espécie introduzida, desafiada como força de trabalho e transporte por um substituto mecanizado numa parte da cadeia produtiva ou por uma mudança no significado simbólico a ela associado, o que está em jogo é uma reconfiguração socioespacial para a qual os projetos de intervenção ambiental não têm estado atentos.
Seguindo o argumento de Plínio, eu inquiri: “Então o trator não está sendo usado?” Ele respondeu que o uso encontrado por alguns dos moradores do Cafundá foi o de transportar materiais de construção vendidos nas lojas dos arredores de Vargem Grande. Com o trator os moradores puderam dar continuidade a uma demanda represada de construção, reformas e ampliação das casas e pequenos bares com materiais mais modernos e que até então nenhuma loja de construção se comprometia a entregar dentro do maciço. Frente à casa de Plínio, a antiga casa de estuque do seu irmão tinha sido derrubada para dar lugar à casa de tijolo com janelas em vidro e esquadria de alumínio. Plínio lamentou: “Vamos virar comunidade!” Elza, sua esposa, retrucou: “Para, Plínio! Casinhas de pau a pique são bonitas nas fotos, mas todo mundo merece um banheiro com azulejos, ué!” Esse diálogo me lembrou uma antiga anotação no meu diário de campo sobre as construções de “material” feitas pelos habitantes do PEPB.
Muito mais que uma preocupação estética ou de conforto, levantar uma casa de material também significa construir um patrimônio familiar duradouro. Deixar uma pegada material significa deixar um precedente para as gerações futuras que mais adiante poderão falar com propriedade sobre o chão que pisam - Isto é meu, meu pai que construiu! As casas de pau a pique “ecologicamente corretas” e romantizadas pelo imaginário urbano não deixam de ser um resquício de um tempo no qual aos escravizados nada lhes era garantido, nem o teto que os protegia. Ao cair suas casas, nada como uma propriedade poderia ser reivindicado ou alegado. Nas caminhadas desta semana pelo caminho do Cabungui vi as ruínas de casas que o tempo se incumbiu de desmanchar. Cada chuva desmoronou um pedaço e o vento completou a tarefa de converter novamente em chão a parede de barro feita com a terra que um dia já foi chão e que rapidamente foi coberto por ervas, flores e mato. Só o olho dos antigos é capaz de decifrar na paisagem alicerces e outras materialidades mais resistentes. Onde só há mato hoje, a memória nativa reconstrói antigas moradias e roças. Muitos dos herdeiros dos antigos que pensaram em voltar nos lugares onde seus ancestrais teriam levantado casas se depararam com que o mato e a floresta tomaram conta. Construir nesses locais aparece para os administradores do Parque Estadual da Pedra Branca um começar do “zero”, e pode ser visto como “invasão”, como o atestam os inúmeros conflitos. (Diário de campo, 2014).
Voltemos ao trator que, em vez de escoar a produção agrícola, estava colocando para dentro do PEPB materiais como tijolos de concreto, cimento, pisos de baldosa, esquadrias de alumínio, vidros para janelas, portas plásticas sanfonadas entre outros materiais, também usados para a melhoria e ampliação de caminhos. O trator estaria mais agindo como motor de uma transformação da paisagem por uma via próxima da urbanização represada num contexto de luta pela moradia e de claro adensamento dos núcleos que compõem o quilombo do que redimindo uma prática agroecológica em declínio. Mais que denunciar os típicos desajustes dos projetos desenvolvimentistas e de cunho ambiental, a anedota sobre o trator é trazida aqui para pensar a partir dela as transformações em curso na paisagem do Maciço da Pedra Branca e seus habitantes, discutindo a fronteira entre o rural e o urbano. Não pretendo fazer aqui uma análise do “Projeto Sertão Carioca: Conectando Cidade e Floresta”, mas chamar atenção para algumas das suas práticas e procedimentos com o intuito de analisar como elas carregam uma forma de imaginar a paisagem que por sua vez contém uma representação dos moradores que a habitam e para os quais se direcionam ações e atividades.
Ao examinar o projeto de agroecologia que tem como alvo agricultores dos quilombos da Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma das primeiras coisas que sobressai é o binômio rural-urbano que aparece no título como uma oposição que coloca as pessoas que vivem em cada uma dessas margens imaginariamente desconectadas, o que não condiz com a dinâmica dessa área que, intermediada por fluxos e padrões híbridos de uso da terra, enuncia uma paisagem em transição (Davis, 2006DAVIS, M. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.). Os deslocamentos, moradias e práticas das pessoas colocam em xeque a reificação de categorias como populações tradicionais e identidade étnica e mostram como ainda persiste um engessamento das mesmas, embutido nas expectativas do dever ser quilombola, agricultor e habitante da área do PEPB.
Um projeto de agroecologia
O Projeto Sertão Carioca, daqui em diante, se propõe a dar suporte técnico para vários pequenos agricultores da área metropolitana do Rio de Janeiro e atende com um extenso leque de atividades três comunidades remanescentes de quilombos na Zona Oeste do Rio de Janeiro: a Associação Cultural Quilombo do Camorim, no bairro de Camorim, e, dentro do PEPB, os quilombos Dona Bilina, na vertente de Campo Grande, e Cafundá-Astrogilda, no lado de Vargem Grande. As três comunidades receberam reconhecimento por parte da Fundação Cultural Palmares, mas nenhuma delas teve terras demarcadas. As análises aqui apresentadas referem-se ao Quilombo Cafundá-Astrogilda.
A pauta que guia o projeto é a construção de territórios agroecológicos pensados como lugares de expressão das culturas e criatividades populares das comunidades locais e seus conhecimentos tradicionais. Como ONG preocupada com a agricultura familiar, o objetivo procurado é a articulação de pequenos agricultores agroflorestais com uma cidade que valorize suas áreas agrícolas para o enfrentamento dos grandes desafios da sustentabilidade agrícola pelas famílias agricultoras. A aposta é a criação de redes que constituam espaços de aprendizado coletivo, que proporcionem ações articuladas de organizações e movimentos entre as famílias agricultoras e quilombolas e as redes de agroecologia. Ao tentar propiciar uma conexão entre os conhecimentos tradicionais das comunidades e os resultados científicos obtidos através de atividades como análise e aptidão do solo e qualidade da água, o projeto se propõe a avançar numa perspectiva de produção agroflorestal. O trabalho é apoiado mediante dotações como ferramentas agrícolas, insumos, adubos orgânicos, telas de proteção para hortas, sistemas de irrigação e combate a problemas fitossanitários nas lavouras. Para tal foi criada uma intensa agenda de apoios técnicos, oficinas de capacitação, mapeamento dos territórios e resgate de saberes tradicionais, entre outras muitas atividades que aconteceram simultaneamente num lapso de dois anos e que terminaram por atrapalhar a própria participação comunitária.
O grande marco do projeto é a preservação ambiental numa paisagem florestal que tem uma longa história de intervenções e de diferentes ciclos agrícolas e extrativistas que transformaram drasticamente esse segmento da Mata Atlântica; dos engenhos coloniais da cana-de-açúcar ao café e à laranja, passando pela fabricação de carvão feita pelos escravizados alforriados. O sistema agrícola tradicional posterior se organizou em torno da produção e comercialização da banana e do caqui no meio de outros alimentos e hortaliças orientados tanto ao mercado como ao autoconsumo. As áreas florestadas atravessadas pelos caminhos, roças e animais de carga têm hoje como principal ameaça o avanço da urbanização.
O Projeto Sertão Carioca é produto de um edital do Programa Petrobras Socioambiental para o qual a AS-PTA se candidatou, sendo eleito em 2018. O início do projeto se viu cercado pelas incertezas do momento político, marcado pela eleição de Jair Bolsonaro como presidente e sua agenda de desmonte das políticas de Estado voltadas à proteção ambiental e aos direitos socioambientais de povos e comunidades tradicionais, reiterada tanto nas suas declarações públicas de campanha como nas suas comprovadas ações e omissões durante seu mandato.
Contrário às expectativas do projeto não se concretizar por causa do momento político, em janeiro de 2019 a AS-PTA recebeu da Petrobras sinais de avanço das negociações, e em agosto desse mesmo ano a petroleira designou uma gestora de projetos para acompanhar o processo de contratação, o que implicou um conjunto de ajustes no projeto de modo a adequá-lo às novas orientações do governo. As alterações mais importantes foram: a) inclusão de atendimento ao público da primeira infância (0 a 6 anos de idade); b) um pedido explícito da redução da dimensão “cultural” do projeto em troca de maior ênfase à dimensão “ambiental”; e c) a eliminação da palavra “quilombo” no título do projeto, que passou de projeto “Sertão Carioca: Conectando Quilombo, Cidade e Floresta” para “Projeto Sertão Carioca: Conectando Cidade e Floresta”. Especulo que essa exigência tenha sido resultado da reiterada postura racista e antiquilombola do governo Bolsonaro.
Reduzir a dimensão cultural do projeto para ter uma maior incidência na questão ambiental teve como consequência não apenas um olhar incompleto sobre o ambiente, mas uma total falta de atenção às transformações dos sujeitos portadores de cultura, não mais totalmente imersos no mundo rural. No gesto de excluir a palavra “quilombo” do título inicial do projeto, o Estado tentou impor para a ONG uma agenda ambiental por fora da cultura, baseada na persistência de uma dicotomia cultura-natureza que compreende esta última livre de processos sociais e de entender a sociedade separada dos processos ecológicos nas mais diversas escalas. À revelia, a AS-PTA optou por manter seus compromissos com as comunidades, dirigindo sua atuação para os agricultores.
O “sertão carioca”, do rural ao ambiental
“Sertão carioca” foi a denominação atribuída à antiga zona rural da cidade do Rio de Janeiro por Armando Magalhães Corrêa, autor do livro homônimo publicado em 1936 e reeditado pela Biblioteca Nacional com a editora Contra Capa em 2017. O livro de Corrêa é um registro histórico do campesinato e das práticas agrícolas levadas a cabo na Zona Oeste do Rio de Janeiro, como o cultivo da banana, a produção de carvão e a pesca, entre outras atividades ligadas ao extrativismo ou dependentes dos recursos naturais da região.
Mapa do “sertão carioca”. Gravura a bico de pena feita por Magalhães Corrêa (2017MAGALHÃES CORRÊA, A. O sertão carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional: Contra Capa, 2017., p. 52).
Em outro lugar foi analisado a forma com nas crônicas de Magalhães Corrêa a baixada de Jacarepaguá e as elevações do Maciço da Pedra Branca são detalhadas como lugar mítico, preservado em seu passado e, como tal, mais próximo de um estado natural ou original, como consequência do seu “isolamento” e distância da Zona Sul e Centro da cidade do Rio de Janeiro. Por sua vez, a preservação do passado histórico estaria vinculada à preservação de uma natureza original, indicando uma relação entre o homem sertanejo e o mundo natural que Magalhães Corrêa coloca como mais harmônica e em risco de perda (Rodríguez Cáceres, 2019aRODRÍGUEZ CÁCERES, L. S. Desbravando o sertão carioca: etnografia da reinvenção de uma paisagem. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019a.). O sertão seria um paraíso perdido no processo civilizatório, ameaçado de extraviar sua aura com o avanço do progresso. Nos anos recentes a noção de “sertão carioca” ganhou força de expressão e seu uso atual evoca, além do conteúdo do livro, um tipo de verdade que carrega consigo imagens da sociedade, do passado e da natureza que remetem tanto às origens como às formas de conjurar a modernidade.
Não é o caso de retomar aqui as formas como essa figura tem sido consolidada. Uma análise mais apurada sobre o conteúdo do livro, suas interpretações e apropriações locais foi explorada em Desbravando o sertão carioca: etnografia da reinvenção de uma paisagem (Rodríguez Cáceres, 2019aRODRÍGUEZ CÁCERES, L. S. Desbravando o sertão carioca: etnografia da reinvenção de uma paisagem. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019a.), onde se expõe como a noção vem sendo revisitada e costurada por um pensamento simbólico que reúne dimensões cosmológicas, mágico-religiosas, sociais e morais. Como categoria, o “sertão carioca” reúne heranças culturais, religiosidade, saberes culinários, legítimas apreensões com o meio ambiente e resistências sociais. Portanto, ao recorrerem ao uso da expressão, os moradores do bairro de Vargem Grande e do próprio PEPB estão evocando valores e crenças e expressando preocupações e tentativas de resolução de seus dilemas e conflitos diante da expansão urbana em um plano simbólico.
A expressão “sertão carioca” usada hoje em dia vincula-se tanto a uma temporalidade como a uma espacialidade, descreve um passado e também age como instrumento nos processos de identificação social, contribuindo por sua vez na definição dos contornos de um recorte espacial que evoca uma ruralidade em contração e que tende a coincidir com a área do PEPB (Rodríguez Cáceres, 2019aRODRÍGUEZ CÁCERES, L. S. Desbravando o sertão carioca: etnografia da reinvenção de uma paisagem. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019a.). Com relação à natureza a expressão também diz respeito a uma exuberância sob constante ameaça, enunciando um tempo que não volta mais. Sem chegar a ser uma representação dominante ou de amplo pertencimento, “sertão carioca” recorre uma certa geografia imaginária que, na atualidade, se reproduz como uma construção imagético-discursiva e como um contradiscurso que enfrenta a urbe crescente que ameaça devorar memórias, naturezas e paisagens.
Como toponímia, o “sertão carioca” elenca um repertório de imagens e constituiu-se em relevante marca cultural, tornando-se um poderoso elemento identitário que articula linguagem, política territorial e identidade e coloca em evidência processos que entremeiam os impactos das dinâmicas urbanas nos antigos espaços rurais. Porém, a expressão não conforma uma definição necessariamente unitária, razão pela qual argumento que não existe um único “sertão carioca”, senão diversas variantes do mesmo, que, tal e qual um mito, se propagam (Lévi-Strauss, 1989LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus, 1989.). O tamanho da sua ambiguidade se expressa quando para alguns o “sertão carioca” nomeia um conjunto de experiências contra-hegemônicas, enquanto, como veremos a continuação, a categoria tem terminado por conter um “olhar de Estado” (Scott, 1999SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1999.) que procura legibilidade numa ruralidade em extinção, cada vez menos exercitada e colocada em xeque pelos próprios atores estatais como as autoridades ambientais, as políticas urbanas do município e o mercado imobiliário.
A batalha entre o brejo e o desejo da construção
“Sertão Carioca” é também o nome da nova Área de Proteção Ambiental na Zona Oeste, assim batizada a partir de outubro de 2021 pelo Decreto nº 49.695/2021 (Rio de Janeiro, 2021RIO DE JANEIRO (Município). Decreto Rio nº 49695 de 27 de outubro de 2021. Cria a Área de Proteção Ambiental do Sertão Carioca. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano 35, n. 161, p. 4-5, 28 out. 2021.), com o objetivo de controlar a supressão indevida da vegetação e o crescimento urbano desenfreado ocorrido nos últimos anos, que tem tido como consequências enchentes recorrentes. O crescimento desordenado nessa parte da cidade gerou uma grande impermeabilização do solo, que ficou com baixa capacidade de absorver as chuvas.
Entre seus objetivos, a APA procura proteger o que ainda resta de áreas úmidas abrigando espécies de fauna e flora, algumas delas ameaçadas de extinção, garantir a manutenção do lençol freático. A APA chega após as longuíssimas e campais discussões do Plano de Estruturação Urbana (PEU) das Vargens que foi aprovado em 2009 contendo generosas concessões às construtoras e com permissão de obras de grande porte, como edifícios e condomínios. Dito modelo urbanista propunha massivos usos urbanos em zonas alagáveis daquela larga planície na baixada formada no entorno dos Canais de Sernambetiba, Portelo e do Cortado, e incentivava a ocupação nos limites do PEPB. O PEU desconsiderou os efeitos ambientais da especulação imobiliária e a urbanização acelerada na paisagem, projetando na cidade o padrão sociopolítico do Estado capitalista neoliberal, cuja matriz meramente econômica lhe dá origem e abrigo legal.
O ano de 2013 foi marcado por dois episódios de alagamentos na região das Vargens e Guaratiba, que afetaram o Museu do Pontal e o Campus Fidei, que se fez famoso por ser o local previsto para a realização da missa campal do Papa Francisco, que sofreu com enchentes após um drástico desmatamento. A partir desses desastres socioambientais a prefeitura extinguiu temporariamente os efeitos da Lei Complementar nº 104/2009 com a instituição de duas Áreas de Especial Interesse Ambiental (AEIA), mediante o Decreto Municipal nº 37.958/2013 (Rio de Janeiro, 2013RIO DE JANEIRO (Município). Decreto nº 37958 de 4 de novembro de 2013. Cria a Área de Especial Interesse Ambiental dos bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim e parte dos bairros do Recreio dos Bandeirantes, Barra da Tijuca e Jacarepaguá, nas XVI e XXIV Regiões Administrativas. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano 27, n. 160, p. 3, 5 nov. 2013.), excluindo a área do Parque Olímpico. A prefeitura suspendeu todas as autorizações de novos empreendimentos por 180 dias; a vigência das AEIA foi renovada sucessivamente por quase cinco anos (Fico, 2020FICO, B. V. Lutas sociais e o papel das Unidades de Conservação. A resistência popular em Vargens de Sernambetiba. Periferias, Rio de Janeiro, n. 5, 2020. Disponível em: Disponível em: https://revistaperiferias.org/materia/lutas-sociais-e-o-papel-das-unidades-de-conservacao/ . Acesso em: 3 mar. 2022.
https://revistaperiferias.org/materia/lu...
).
É preciso registrar que a região das Vargens é a última fronteira dos grandes capitais ligados à especulação imobiliária na Baixada de Jacarepaguá. Nunca é demais lembrar que é no coração da Barra da Tijuca onde está o ponto de partida das ações estatais que conduzem o processo de ocupação rumo ao oeste em meados dos anos 1970. No plano projetado pelo urbanista Lucio Costa em 1969 para a ocupação da Barra e de Jacarepaguá estão estabelecidas as primeiras vias que conectam a cidade moderna a um território com feições predominantemente rurais (Costa, 2010COSTA, L. Plano Piloto para a urbanização da baixada compreendida entre Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá. Arquitextos, [s. l.], ano 10, 116.00, jan. 2010. Disponível em: Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.116/3375 . Acesso em: 3 maio 2022.
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; Paterman, 2020PATERMAN, R. Entre abismos coletivos e paraísos particulares: a paisagem na imaginação da Barra da Tijuca. Dilemas, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 95-117, jan./abr. 2020.).
Mais recentemente algumas obras rodoviárias tornaram-se um marco para a expansão urbana, tal como a ampliação do principal eixo viário - a Avenida das Américas; a abertura do túnel da Grota Funda e a duplicação da principal via de acesso, que é a Estrada dos Bandeirantes. Ditas empreitadas constituíram-se num atrativo para a especulação imobiliária; a construção de shopping centers e condomínios de apartamentos predominam entre os lançamentos imobiliários que deram nova cara à região. Porém, trata-se de um avanço urbano que chega sem melhorias para a população local, seja no asfalto ou no interior do maciço que continua sobrevivendo com carência no abastecimento de água, energia elétrica de baixa intensidade, transporte coletivo caótico ou ausente e a inexistência do saneamento básico nas ruas que alagam após as chuvas.
Atender demandas sociais já fazia parte do Plano Diretor de 2011 (Rio de Janeiro, 2011RIO DE JANEIRO (Município). Plano diretor de desenvolvimento urbano sustentável do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro, 2011.), que entre outras coisas previa um planejamento de habitação destinado à população de baixa renda. Porém, em troca de aplicar o plano, as administrações municipais deram carta branca ao mercado imobiliário. Seguindo políticas econômicas descompromissadas com o equilíbrio ecossistêmico, a Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) cedeu às pressões para permitir parâmetros mais favoráveis à construção de casas e apartamentos nessas áreas mesmo conhecendo os riscos de alagamento e uma real incapacidade de saneamento, aprofundando a crise sanitária. Vale a pena aqui lembrar que, em 2018, o então prefeito da cidade, Marcelo Crivella, aprovou o Decreto nº 44.966/2018 (Rio de Janeiro, 2018aRIO DE JANEIRO (Município). Decreto Rio nº 44966 de 27 de agosto de 2018. Altera a redação do parágrafo único do art. 2º do Decreto Rio nº 42.660, de 13 de dezembro de 2016, que cria a Área de Especial Interesse Ambiental dos bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim e parte dos bairros do Recreio dos Bandeirantes, Barra da Tijuca e Jacarepaguá, nas XVI e XXIV Regiões Administrativas com base no disposto pela Lei Complementar nº 111, de 1º de fevereiro de 2011, que instituiu o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro, para excepcionalizar da vedação nele contida os empreendimentos residenciais de interesse social vinculados ao Programa Minha Casa Minha Vida - PMCMV, e da outras providências. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano 32, n. 111, p. 3, 28 ago. 2018a.), para permitir a construção de conjuntos habitacionais do programa Minha Casa Minha Vida numa grande área alagadiça dessa região. Todo um exemplo sobre a interpenetração entre Estado e o mundo da “livre empresa” em nome do crescimento econômico. Resulta impossível se desconhecer o papel que Estado tem tido na mercadorização da moradia e da terra urbana (Davis, 2006DAVIS, M. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.; Stengers, 2015STENGERS, I. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015.).
Com a criação da AEIA, a urbanização desacelerou o ritmo pelos decretos sucessivos, mas as barreiras ao licenciamento de construção duraram até 2019, quando o ex-prefeito Marcelo Crivella voltou a conceder licenças na Zona Oeste nas margens da Estrada dos Bandeirantes e adjacências. A prefeitura permitiu a construção de vários prédios de até nove andares, em áreas ambientalmente frágeis e alagadiças sem infraestrutura urbana como esquemas de drenagem, o que fazem delas totalmente inadequadas ao processo de ocupação em larga escala (Name; Montezuma; Gomes, 2011NAME, L.; MONTEZUMA, R. de C. M.; GOMES, E. S. Legislação urbanística e produção de riscos: o caso do Peu das Vargens. Territorium, Coimbra, n. 18, p. 201-218, 2011.).
Com a nova APA, os tijolos podem voltar a ser cimentados oficialmente, mas agora supostamente de forma contida, já que os parâmetros se limitam a prédios pequenos, em terrenos extensos, mantendo ocupação urbana de baixa densidade; isso quando centenas de licenciamentos de grandes condomínios já estão em pleno vapor. Enquanto para muitos é clara a batalha entre a preservação e a construção, a proposta da prefeitura tenta encenar uma conciliação que permite a exploração econômica, respeitando critérios ambientais, de acordo com as palavras do subgerente de Monitoramento da Biodiversidade do município, Brasiliano Vito Fico (2020)FICO, B. V. Lutas sociais e o papel das Unidades de Conservação. A resistência popular em Vargens de Sernambetiba. Periferias, Rio de Janeiro, n. 5, 2020. Disponível em: Disponível em: https://revistaperiferias.org/materia/lutas-sociais-e-o-papel-das-unidades-de-conservacao/ . Acesso em: 3 mar. 2022.
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. Para possibilitar a harmonização entre mercado e preservação, a prefeitura sugere usos vinculados ao turismo, como a construção de ecoresorts, mirantes elevados e espaços de contemplação dentro dos brejos.
De acordo com a Prefeitura do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 2021RIO DE JANEIRO (Município). Decreto Rio nº 49695 de 27 de outubro de 2021. Cria a Área de Proteção Ambiental do Sertão Carioca. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano 35, n. 161, p. 4-5, 28 out. 2021.), a APA do Sertão Carioca seria um passo para a ordenação territorial na Zona Oeste, englobando a parte mais urbanizada de Vargem Grande, Vargem Pequena, Recreio e Camorim, conferindo parâmetros de proteção para uma área de turfa e solos hidromórficos, na sua denominação técnica. A APA também seria a zona de amortecimento do ReVis dos Campos de Sernambetiba, uma unidade de conservação e proteção integral da natureza que abrange a baixada das Vargens entre o sopé do PEPB e as margens da Lagoa de Jacarepaguá, incluindo o Morro Portelo e as áreas acima das cotas 25 do Morro do Bruno e da Pedra do Calembá (Rio de Janeiro, 2018bRIO DE JANEIRO (Município). Subsecretaria de Meio Ambiente. Proposição de criação de unidades de conservação nas Vargens dos Campos de Sernambetiba: relatório final. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro, 2018b.). As duas novas unidades de conservação estariam localizadas nos bairros de Vargem Pequena e Vargem Grande, limitadas pelo PEPB e o Recreio dos Bandeirantes, incluindo trechos próximos aos do brejo da área a leste da Avenida Salvador Allende. Com cerca de dez hectares, o ReVis está cercado pelo complexo lagunar, sendo a maior área úmida remanescente da Baixada de Jacarepaguá, com mangues, florestas e restingas, abrigando espécies de fauna e flora ameaçadas de extinção.
Segundo estudo da Subsecretaria de Meio Ambiente do município (Rio de Janeiro, 2018bRIO DE JANEIRO (Município). Subsecretaria de Meio Ambiente. Proposição de criação de unidades de conservação nas Vargens dos Campos de Sernambetiba: relatório final. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro, 2018b.), a criação dessas UCs urge, pois as atividades humanas no território teriam contribuído com a redução dos brejos em mais de 500 hectares entre os anos de 2010 e 2016. Essa redução não é novidade, Montezuma e Oliveira (2010)MONTEZUMA, R.; OLIVEIRA, R. Os ecossistemas da Baixada de Jacarepaguá e o PEU das Vargens (1). Arquitextos, [s. l.], ano 10, 116.03, jan. 2010. Disponível em: Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.116/3385 . Acesso em: 3 mar. 2022.
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descreveram que em 1999 existiam 4.859 hectares de brejo em todo o município do Rio de Janeiro. Destes, 50% encontravam-se na área objeto do PEU que para essa época já tinha perdido 563 hectares. Essa redução demonstra que a expansão urbana tem se direcionado especificamente para os domínios dos brejos. As unidades de conservação tentariam driblar essa condição urbana e garantir as conexões aquíferas entre o Maciço da Pedra Branca e a Lagoa de Jacarepaguá mediante os canais do Portelo, o Cortado e Sernambetiba, mais conhecido como o canal do Rio Morto. Porém, de acordo com Sarah Rubia, vice-presidente da Associação de Moradores de Vargem Grande, o ReVis é bem menor do que o proposto originalmente pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Clima (SMAC), que inicialmente englobava 1.035 hectares. Os 557 hectares que terminaram por compor o ReVis deixam de fora áreas vulneráveis à expansão imobiliária, como o lado da Avenida das Américas junto à Estrada do Rio Morto.
O ReVis é uma tentativa da preservação das funções ecológicas do brejo em fragmentos florestais, atuando contra a impermeabilidade do solo ao estar diretamente relacionada ao sistema de rios, lagoas e áreas alagáveis. Seu papel é regular a condição hidrológica e ajudar no controle dos excedentes de água próprios da área. Por outro lado, o brejo é o espaço das Tabebuia cassinoides, plantas conhecidas como caixeta ou pau-de-tamanco. É o habitat de aves migratórias que ali encontram fonte de alimento durante os invernos rigorosos do hemisfério norte, e abrigo da família Rivulidae, mais conhecida como peixe das nuvens, e ameaçada de extinção.
Os peixes das nuvens vivem em brejos e pântanos temporais ou anuais que ficam cheios nas chuvas e secos na outra parte do ano, e se destacam pela sua estratégia reprodutiva: no final da estação chuvosa eles depositam seus ovos no substrato, o brejo seco mata os peixes, mas os ovos enterrados ficam preservados e se desenvolvem na próxima estação das chuvas, quando os brejos enchem novamente (Egler; Nielsen; Gusmão, 2019EGLER, C.; NIELSEN, F.; GUSMÃO, P. A expansão urbana do Rio de Janeiro e o peixe das nuvens. Rio de Janeiro: Andreas Jakobsson Estúdio Editorial, 2019.), daí que passem desapercebidos durante as secas. A principal ameaça para os peixes das nuvens é a perda dos seus hábitats. Trata-se também de uns “ilustres desconhecidos” como me falaram alguns quilombolas e moradores do entorno do ReVis que acusaram nunca ter escutado falar dessa espécie nem da APA, nem muito menos do ReVis, o que revela a pouca socialização e participação da população local sobre estas novas áreas de preservação propostas pela prefeitura. O diálogo entre a população local e o poder público é inexistente.
Não tem havido por parte da prefeitura nenhum esforço para facilitar o entendimento local de questões excessivamente técnicas. O desconhecimento do propósito da APA é tal que há entre os moradores o temor de que esse venha a ser um ordenamento territorial com poder para remover os assentamentos do lado do canal de Sernambetiba. Ainda estão vivas na região as memórias das consequências que teve para os moradores do Maciço da Pedra Branca a criação do PEPB em 1974, sua fundação expulsou agricultores e restringiu práticas produtivas. As memórias das remoções da Vila Autódromo no marco das Olimpíadas de 2016 também estão vivas. Apesar de que, para muitos urbanistas, a demarcação da APA e do ReVis seria um avanço em termos ambientais, não há no Decreto nº 49.695/2021 (Rio de Janeiro, 2021RIO DE JANEIRO (Município). Decreto Rio nº 49695 de 27 de outubro de 2021. Cria a Área de Proteção Ambiental do Sertão Carioca. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano 35, n. 161, p. 4-5, 28 out. 2021.) uma única menção sobre os habitantes dessas áreas. Faltam pesquisas sobre as populações residentes e sua relação com o brejo. A APA do “sertão carioca” proposta pela prefeitura pode significar um freio às construções civis em áreas ambientalmente frágeis, mas peca ao não incluir as pessoas que já habitam nos espaços dos brejos. Nós deparamos aqui com mais uma iniciativa de preservação ambiental que exclui as pessoas.
O brejo é uma área de águas rasas, mas, com o regime de chuvas, em anos muito chuvosos pode ter até 60 centímetros de profundidade (Montezuma; Oliveira, 2010MONTEZUMA, R.; OLIVEIRA, R. Os ecossistemas da Baixada de Jacarepaguá e o PEU das Vargens (1). Arquitextos, [s. l.], ano 10, 116.03, jan. 2010. Disponível em: Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.116/3385 . Acesso em: 3 mar. 2022.
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). A vegetação típica de brejo são matas ripárias2
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Os ecossistemas de matas ripárias são ambientes florestais próximos a corpos d’água, abrangendo as matas ciliares e as matas de galeria.
bem adaptadas à água, que crescem em tufos, e, nas proximidades, aparecem frequentemente arbustos na forma de moitas. O brejo pode ser encontrado próximo a corpos de água e receber as águas fluviais nos períodos de cheia. Na perspectiva local, um lugar abrejado significa que tem bastante água. O brejo é uma paisagem intermitente que muda, e sob uma visão eurocêntrica da paisagem foi enquadrado como uma área insalubre e por vezes enquadrado dentro de noções de repulsa sendo sucessivamente maltratado com drenagens de esgotos e aterramentos. Hoje os remanescentes de brejo são uma paisagem poluída e altamente perturbada onde é praticado tudo aquilo que é proibido em um ReVis, como despejo de lixo e águas residuais de esgotamento domiciliar e comercial, pavimentação e compactação do solo; descarte de brasas e materiais incandescentes, caça, captura, perseguição e pesca de animais nativos, desmatamento ou remoção de espécies de vegetais nativas, entre outras atividades.
Similar à categoria de “mato” que, sendo despreciado, deveria ser removido (Paterman, 2020PATERMAN, R. Entre abismos coletivos e paraísos particulares: a paisagem na imaginação da Barra da Tijuca. Dilemas, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 95-117, jan./abr. 2020.), o brejo fugiu das lógicas estéticas do paisagismo e também escapou das racionalizações gerenciáveis, mensuráveis e compatíveis com o planejamento urbano. O tardio reconhecimento por parte da SMAC sobre importância ambiental do brejo talvez seja o reconhecimento do não controle de uma área sujeita a alagamentos periódicos e com solos moles que desafiam a construção e implicam enormes investimentos para a instalação de dispendiosas infraestruturas de drenagem e aterramentos para evitar desabamentos. Contudo, isso não foi suficiente para fugir da própria especulação imobiliária.
O apelo de hoje à nomenclatura “sertão carioca” tenta maquiar uma urbanização menos depredadora e mais amistosa com o carácter ambiental e cultural da região. Nesse gesto o Estado segue o ensaiado molde do desenvolvimento sustentável (Zhouri; Laschefski; Pereira, 2005ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K.; PEREIRA, D. B. Introdução: desenvolvimento, sustentabilidade e conflitos socioambientais. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K.; PEREIRA, D. B. (org.). A insustentável leveza da política ambiental: desenvolvimento e conflitos socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 11-27.), que não é mais que a concessão do mercado imobiliário à racionalidade ambiental. Como já abordado, o aparente consenso entre as agendas ambiental e imobiliária é uma formula fundamental à ordenação narrativa da Barra e da Zona Oeste (Paterman, 2020PATERMAN, R. Entre abismos coletivos e paraísos particulares: a paisagem na imaginação da Barra da Tijuca. Dilemas, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 95-117, jan./abr. 2020.).
A adesão por parte da prefeitura à categoria de “sertão carioca” como recorte espacial de interesse ambiental que pode ser protegido tenta remediar os efeitos de um crescimento espontâneo e dirigido pelo capital. Contudo, sem uma proposta de soluções eficientes para a moradia popular e sem rever os licenciamentos à construção formal que permitiu que edificações à beira de rios e canais, as unidades de conservação recentemente criadas podem se tornar sem efeito. Dito cenário é a mais pura expressão da batalha entre o brejo e a urbanização; no contexto do gradativo processo de desregulação ambiental que rege o Brasil (Bronz; Zhouri; Castro, 2020BRONZ, D.; ZHOURI, A. L.; CASTRO, E. Apresentação: passando a boiada: violação de direitos, desregulação e desmanche ambiental no Brasil. Antropolítica: revista contemporânea de antropologia, [s. l.], n. 49, p. 8-41, 2020.), não é difícil decifrar quem vai ganhar.
Um pé no mato e outro no asfalto
Mais que uma categoria ecológica propriamente dita, “sertão carioca” enuncia um tipo de relação entre os habitantes e o espaço, evocando um modo de vida rural. Porém, o crescimento da malha urbana e o desmatamento das encostas imprimiram modificações no arranjo dos elementos que definiram aquelas paisagens, fazendo com que hoje o “sertão” tanto na baixada como no maciço se encontre em franco encolhimento. A região das Vargens já ocupou um lugar de abastecimento da cidade com uma produção de alimentos bem destacável, envolvendo estratégias de segurança alimentar e nutricional e sociabilidade, e cumprindo um papel nos ecossistemas urbanos. Porém a agricultura como atividade humana estreitamente vinculada a esse recorte espacial vem perdendo espaço desde a década de 1950, como apontado pelo historiador Leonardo Santos (2013)SANTOS, L. Do Sertão Carioca ao centro metropolitano: as disputas por terra na zona oeste do Rio de Janeiro (1940-2010). Mneme: revista de humanidades, [s. l.], v. 14, n. 33, p. 36-72, 2013. e por Santos e Ribeiro (2007)SANTOS, L.; RIBEIRO, J. O que querer vender quer dizer: urbanização e conflitos de terra através dos classificados imobiliários do Sertão Carioca (1927-1964). Revista IDeAS, [s. l.], v. 1, n. 1, p. 78-94, jul./dez. 2007..
Uma das causas do abandono da atividade agrícola radicou na falta de políticas públicas ao uso urbano do solo. Como apontado por Davis (2006)DAVIS, M. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006., a urbanização em países da América Latina está desvinculada radicalmente da industrialização, e ocorre em razão de políticas de desregulamentação agrícola. No caso abordado, é fato que para os agricultores se tornou insustentável manter um sitio cujos gastos não compensam o preço de venda dos seus produtos. Porém a estocada final para a agricultura foi dada com o polêmico Plano Diretor de 2011, que definiu que o município do Rio de Janeiro é integralmente urbano, não possuindo mais uma área rural. Ele foi eficaz para preparar o caminho: as normas das áreas agrícolas e de ocupação residencial restrita que sobraram puderam ser modificadas, promovendo a expansão do território. Esse plano diretor gerou drásticas alterações à estrutura produtiva fundiária. Obrigados a pagar IPTU urbano e não rural, os proprietários de antigos sítios terminaram vendendo-os para as construtoras. Ainda que esse item possa vir a ser revisado no novo plano diretor, será difícil reverter o caráter mercadológico do anterior.
Durante os últimos anos tornou-se constante a aquisição de sítios, antigas chácaras e casarões por parte de empresas construtoras aproveitando as decisões das administrações municipais sobre o zoneamento urbano. Se bem a saída inicial dos agricultores do maciço se deveu a uma política ambiental, não se pode desconsiderar que na crescente urbanização as políticas neoliberais também impulsionaram o êxodo da mão de obra rural excedente para favelas. Os agricultores pobres sempre serão os mais vulneráveis a qualquer choque exógeno, impulsionando a superurbanização precária (Davis, 2006DAVIS, M. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.).
Frente a esse encolhimento, a agricultura que pode ser praticada viria acontecer dentro do PEPB. Justo é reafirmar aqui que a agricultura remanescente foi desenvolvida sob condições de tremenda adversidade, tanto técnica como comercialmente, sem nenhum tipo de apoio ou política pública. Com a implantação do parque em 1974 as atividades agrícolas tornaram-se praticamente um ato de resistência. Afinal, a unidade de conservação não permite na sua concepção a permanência de moradores, percebidos como “degradadores” da natureza.
A territorialidade das famílias agricultoras foi afetada e, como consequência, a agricultura foi banida, desqualificada e perseguida em nome da preservação ambiental. Baptista, Formoso e Silva (2020BAPTISTA, S. R.; FORMOSO, C. O.; SILVA, I. Sertão carioca: a construção social de um território agroecológico. In: OLIVEIRA, R.; FERNANDEZ, A. (org.). Paisagens do sertão carioca: floresta e cidade. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2020. p. 119-144., p. 129) refletem que ao ser estabelecido o limite do PEPB a partir da “cota 100”, a cota também se tornou uma divisão mítica que não só separava a cidade do parque, como também colocava acima dos 100 metros uma ideia de “conservação integral”, e abaixo dos 100 metros uma “permissividade absoluta”. A divisão é mítica, pois ao tempo que uma parte da população de origem rural foi expulsa para a área urbana com a fundação do parque (Fernandez, 2009FERNANDEZ, A. Do Sertão Carioca ao Parque Estadual da Pedra Branca: a construção social de uma unidade de conservação à luz das políticas ambientais fluminenses e da evolução urbana do Rio de Janeiro. 2009. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.), segmentos urbanos acabaram comprando dentro do parque (Rodríguez Cáceres, 2019bRODRÍGUEZ CÁCERES, L. S. Pelos caminhos do Cafundá: paisagem e memória de um quilombo carioca. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019b.).
Ao ser uma floresta urbana, o PEPB não tem como escapar das complexidades sociais que se expressam em várias ininteligibilidades na visão do Estado (Scott, 1999SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1999.), e que tiveram seu impacto na organização espacial do Quilombo Cafundá-Astrogilda, que vem se adensando e expandindo. Com o crescimento das famílias os espaços para o plantio se reduziram, pois muitas privilegiam a construção de novas casas para residir. Por outro lado, o acesso às terras dos agricultores não é sempre por herança ancestral. É o caso de Plínio Santos, cujas roças estão em terras que ele mesmo comprou no passado quando essas transações eram legais. Assim, algumas das suas roças estão distantes do núcleo onde reside e daquelas que herdou.
Em outro sentido, a complexidade social do quilombo se expressa em situações como a dos descendentes de Alcir Pereira, que, sendo agricultores “das antigas”, não se autoidentificam como quilombolas. Numa conversa com Francisco, filho de Alcir, ele relatou que não entendia bem de que se tratava a questão quilombola e por isso não se sentia chamado a participar de reuniões e encontros, para os quais não tinha tempo. É importante trazer aqui que um dos motores da autoidentificação e organização quilombola em Cafundá-Astrogilda foi o de enfrentar a possível expulsão por parte do PEPB (Rodríguez Cáceres, 2019bRODRÍGUEZ CÁCERES, L. S. Pelos caminhos do Cafundá: paisagem e memória de um quilombo carioca. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019b.). Francisco manifestou ter a certeza de que jamais seria expulso, pois possui documentos de compra da terra, e não acha necessário fazer parte do coletivo. Dessa forma, nem todos os que moram no parque são agricultores, nem todos os agricultores se sentem quilombolas, e nem todos os agricultores têm terra.
A criação do PEPB contribuiu para asfixiar as práticas agrícolas que já passavam por importantes restrições e relegou as famílias moradoras do maciço a uma condição de incerteza jurídica quanto à legitimidade das suas propriedades e à permanência nas mesmas. Nos relatos dos habitantes, o parque é sempre mencionado como um impedimento para o desenvolvimento das atividades agrícolas, uma vocação pouco conhecida na atualidade pelos habitantes do Rio de Janeiro. Para Fernandez, Oliveira e Dias (2020FERNANDEZ, A.; OLIVEIRA, R.; DIAS, M. C. Plantas exóticas, populações nativas: humanos e não humanos na paisagem de uma floresta do Rio de Janeiro. In: OLIVEIRA, R.; FERNANDEZ, A. (org.). Paisagens do sertão carioca: floresta e cidade. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2020. p. 255-277., p. 256), há três razões pelas quais a cidade tem ignorado o aporte agrícola do maciço:
A primeira é o fato de que a criação do Parque e as restrições da legislação ambiental à ocupação humana e ao manejo estimularam o abandono de muitos cultivos. Aqueles que permaneceram, passaram a coexistir com as florestas. O segundo fato deve-se à diminuição da atividade agrícola no maciço, causada pelas transformações nas relações de produção de mercado e que alteraram a paisagem e a importância desta agricultura para o abastecimento da cidade. Consolidando este processo, a alteração do zoneamento da cidade e o fim das áreas rurais no município contribuíram para a valorização do solo urbano e para a crescente ocupação urbana e, consequentemente, para a invisibilização da agricultura. Por fim, a terceira razão, é de natureza simbólica. No imaginário social, os parques são santuários da vida silvestre, espaços livres da permanência e do uso direto dos homens. As florestas “intocadas” correspondem à principal representação imagética vinculada aos parques. Essa representação dominante antecede e orienta a apreensão e interpretação da paisagem do Maciço da Pedra Branca, fornecendo uma moldura para a compreensão da realidade.
Com o declínio da agricultura, uma parte desses despossuídos e ex-trabalhadores agrícolas passaram a ocupar as faixas marginais, bem como as encostas e as planícies alagadiças. Como refletiu Lefebvre (1969)LEFEBVRE, H. De lo rural a lo urbano. Barcelona: Ediciones Península, 1969., as favelas também podem ser lidas como mediadoras entre o campo e a cidade. Apenas na região das Vargens e Camorim há mais de 40 pequenas ocupações informais. Ao lado dessa forma de ocupação precária estão as formas de urbanização predatórias impulsadas pelo capital.
Se no passado a “ameaça” ao PEPB era a agricultura, hoje em dia o risco para o parque é a pressão urbana que avança através dos mais variados mecanismos sobre os limites do mesmo, seja mediante a permissividade a loteamentos informais e formais, a omissão do Estado de uma política habitacional popular, e o recente impulso urbanizador dado pelas milícias e que tem começado a se fazer presente em Vargem Grande, dentro do território do PEPB e o quilombo.
O declínio da agricultura também significa que mesmo para os que ainda a exercem é impossível se sustentar apenas com os fazeres da roça, sua produção e comercialização em feiras. A agricultura hoje em dia é uma renda complementar, nenhuma família subsiste mais apenas dela. Dentro do parque, os moradores e descendentes desses agricultores que dão forma às representações do “sertão carioca” vivem nessa paisagem, mas não inteiramente nela. Enquanto algumas mulheres tornaram-se donas de restaurantes, bares e pensões, aproveitando o circuito turístico que tomou conta do maciço (Rodríguez Cáceres, 2016RODRÍGUEZ CÁCERES, L. S. Do caminho à trilha. As perspectivas do lazer e do habitar na Transcarioca. Interseções: revista de estudos interdisciplinares, [s. l.], v. 18, n. 1, p. 64-96, 2016.), os netos desses antigos agricultores estudam e trabalham na cidade, almejam inclusão social, estabilidade laboral, empregos com horários fixos e ganhos mais certos dos que a agricultura pode oferecer. Querem moradias dignas tanto fora do PEPB como dentro dele. Podemos afirmar que se trata de uma população “não legível”, nos termos de Scott (1999)SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1999., nem inteiramente rural, nem totalmente urbana, mas híbrida, como o demostram os seguintes relatos das minhas notas de campo.
Hoje conheci Dalva, uma das moradoras do núcleo Dinda-Laura onde realizamos a segunda oficina de cartografia participativa no quilombo. Aproveito para conversar com ela, após tantos anos visitando as Vargens lhe digo que não a tinha visto. Ela então me conta que praticamente só está em casa aos domingos e feriados. Tem 50 anos e faz 25 que ela trabalha de segunda-feira a sábado como empregada doméstica no bairro Cesar Maia. Ela tem pouco tempo para atender as ofertas de oficinas e cursos que o Projeto Sertão Carioca lhe oferece, mas aceita ir no seu único dia de descanso na jornada de mapeamento territorial, aproveita a empreitada para consertar e desentupir o cano conectado à nascente que lhe provê de água, pois durante a semana não lhe resta tempo para cuidar da casa. Ao começarmos a caminhada na floresta Dalva pede licença para Oxóssi para que nos proteja na jornada de marcação dos pontos com o GPS. Mostrou-me os bananais que eram do pai, a produção atual é para consumo interno, mas fica pouco tempo para roçar. Também estiveram presentes seus irmãos Marly e Abel. Marly é formada em pedagogia e faz dez anos que trabalha como babá no Recreio. Já Abel é jardineiro numa das mansões dentro do PEPB. Os seus filhos estudam em faculdades privadas no Rio de Janeiro. Numa conversa coletiva sobre o processo de mapeamento, me explicam que uma das razões pelas quais o núcleo familiar está mobilizado com a cartografia participativa é proteger o território. Em 2021 o território do núcleo familiar sofreu uma tentativa de invasão por parte dos empreendedores urbanos das milícias que tentaram começar um processo de loteamento. A comunidade se mobilizou e impediu. (Diário de campo, 2022).
Dessa jornada de campo, importa ressaltar quilombolas que vivem dentro dos limites do PEPB, e que trabalhando fora não dependem totalmente da agricultura para subsistir. Com estreitos vínculos ancestrais ao território, também são trabalhadores urbanos que nem sempre têm tempo para se engajar em atividades dirigidas para agricultores. Enfrentam lutas diante da falta de infraestrutura que garanta serviços básicos e têm se mobilizado para frear a pressão das milícias para lotear e urbanizar áreas do parque. Essa vida na fronteira entre floresta e cidade me lembrou de outro núcleo familiar que vive, digamos assim, dividido, como é o da família de Plínio Santos, agricultor e comerciante da própria produção na feira do bairro da Zona Oeste:
Plínio, que sempre foi muito ativo, não tem participado das atividades do projeto. Perguntei-lhe pelo motivo da sua ausência e foi sumário, “a agricultura desapareceu, só restamos Francisco, Jorge, Cacau e eu; a juventude nada da roça quer saber”. O agricultor me lembrou que nenhum dos seu filhos trabalha com agricultura. Erli é jardineiro e garçom, Vítor bem que tentou plantar mas achou melhor ser “atravessador”, como se chama aos comerciantes do CADEG, na feira do Cesar Maia aos sábados e o restante da semana trabalha como porteiro e Renato motorista de um caminhão de água. Um problema ocular tem impedido Plínio de comercializar sua própria produção ultimamente, os ingressos da família passaram a depender das vendas de comidas e bebidas que sua mulher Elza prepara para os turistas, caminhantes, motoqueiros e cavaleiros que visitam trilhas e poços de água do parque. Finais de semana os visitantes se multiplicam e Elza já pensa em ampliar o restaurante destinando um espaço para os cavalos dos cavaleiros de fim de semana. (Diário de campo, 2022).
O caso da família de Plínio também nos remete à dimensão que o turismo tem tomado dentro do parque, como já exposto, e ao papel que as mulheres vêm ocupando no comando de restaurantes que se tornaram verdadeiros points de Vargem Grande, atraindo turistas e clientes que procuram desde as autênticas comidas da roça e doces que recriam receitas tradicionais até gastronomias mais sofisticadas e drinks.
As mulheres e seus empreendimentos são também responsáveis pela oferta de emprego nos finais de semana à juventude que estuda durante a semana. É o caso de Francisca, do núcleo de Juarez, estudante de enfermagem. Graças ao trabalho que ela desempenha de sexta-feira a domingo num bar, Francisca consegue pagar sua faculdade. Para ela que divide seu tempo entre os estudos na Barra e o trabalho no bar também resta pouco tempo para participar das oficinas do Projeto Sertão Carioca. Outros restaurantes comandados por mulheres são o Cantinho do Sossego, da Tati Mesquita, e o Cantinho da Serra, de Ercilia, esposa de Mauro Pereira de Andrade, do núcleo de Astrogilda, que abandonou de vez a agricultura ao não conseguir equacionar os ganhos entre vendas e pagos de fretes.
Esses entrelaçamentos entre o urbano e a floresta revelam a ficção das fronteiras na paisagem do parque, porque afinal ela também é feita por pessoas que não moram nela: visitantes, turistas, agricultores e moradores das comunidades do entorno. Ao revisar minhas notas de campo me reencontro com a situação da família de Jorge Cardia, um dos agricultores mais conhecidos de Vargem Grande, cujas práticas de subsistência da sua família também se caracterizam por essa costura na fronteira entre o parque e a cidade.
Hoje fizemos o percurso para mapear as terras de Jorge na virada do Rio da Prata, os 14 quilômetros percorridos nos deram tempo de conversar sobre as terras da sua mãe e as que pode comprar. Falamos da morte do seu irmão Ubiratã. O outro irmão de Jorge é Ubirajara. Os três têm roças dentro do parque, mas enquanto Jorge mora dentro do PEPB, seus irmãos fizeram suas casas na comunidade da Fundação, perto do ninho do Urubu, fora da área do parque. Faz anos eles desceram para as áreas mais baixas do Maciço quando casaram e tiveram filhos para poder construir suas casas e ficarem mais perto de transporte, estrutura escolar, serviços de saúde e acesso a serviços básicos que faltavam dentro da área do parque. Jorge enfatizou “aqui todo mundo tem um pé no mato e outro no asfalto”. Ele é o único que na atualidade se dedica de tempo completo à agricultura, mas no passado ele já trabalhou como pedreiro e jardineiro na cidade. Ubirajara ainda tem algumas roças de banana e nos domingos as comercializa na feira junto a outros produtos agrícolas que compra no CADEG. Ubiratã trabalhou como pedreiro e tinha algumas roças. Quando adoeceu parou de cuidar da roça; morreu ano passado e seu filho Marcos vendeu as terras, argumentando que não tinha interesse na vida de agricultor. Jorge tentou segurar, mas ele estava decidido. Afinal Marcos não queria ser agricultor e trabalha com seu filho Maicon como pedreiro. (Diário de campo, 2022).
Nessas notas reaparecem duas situações para destacar, de um lado, a terra com valor de troca, inserida no mercado; e de outro lado, a separação entre domicílios e unidades de produção. Uma boa parte das roças e plantações de banana que ainda subsistem dentro do PEPB são mantidas por pessoas que moram nas favelas das proximidades e não apenas pelos que residem dentro da área do parque. Como já dito, as roças são hoje um complemento aos trabalhos urbanos dos moradores, absorvidos em trabalhos informais e precarizados ou em serviços como construção, vigilância, jardinagem, eletricidade, comércio e transporte.
Esses dados são importantes para refletir como a cota 100 também se tornou um limite para dividir moradores da região. Enquanto os nossos olhares e atenções se debruçam sobre as comunidades quilombolas dentro do PEPB, comunidades faveladas, muitas vezes emparentadas com as que moram dentro dos limites do parque, são sumariamente ignoradas pela academia, os projetos de intervenção ambiental como no que atuei e as próprias políticas públicas. Afinal, imagens de favela, trabalhadores urbanos e estudantes universitários não cabem dentro das representações oficiais do “sertão carioca”.
Quem está fora do PEPB acaba não participando das ações dirigidas aos residentes dentro do parque. Por outro lado, aqui vale enfatizar que as atividades de preservação ambiental são direcionadas aos quilombolas e nunca aos moradores abastados dentro da UC nem fora dela. Esse tipo de medida não deixa de ser uma projeção do papel adjudicado às comunidades tradicionais como guardiãs da natureza, enquanto se exime de responsabilidades e fiscalizações as outras camadas sociais que usufruem dos recursos do PEPB sem cuidado ou orientações técnicas. Um exemplo são os pontos de captação de água, desvios e represamento de rios para o abastecimento dos condomínios privados em Vargem Grande.
Reflexões finais
Ao abordar o “sertão carioca” como categoria de gestão ambiental, ressaltei seu caráter abstrato e ideal, e por isso incompatível com a realidade, tendo como consequência a construção de processos de aceitação e incorporação que não reconhecem os limites estabelecidos por essa categoria e a diversidade de modos de habitá-la. O seu acionamento remete a um repertório de imagens associadas à vida rural, fincada em raízes direcionadas a noções como originário, natural e mítico, quando não como um espaço tradicional, ancestral e intocado, que se eleva contra a voracidade da expansão urbana. Contudo, essa expansão é constitutiva da representação tanto do ambiental como dos imaginários sobre a ruralidade. Como levantado por Milton (1997)MILTON, K. Ecologies: anthropology, culture and the environment. International Social Science Journal, Oxford, v. 154, n. 4, p. 477-495, 1997., a retórica na questão ambiental não é menor, e nesse quesito o “sertão carioca” não faz sentido a não ser diante da perda das experiências sensíveis ligadas ao mundo rural e às ideias de natureza no meio da expansão da mancha urbana.
As situações observadas em campo apontam para um desvanecimento da agricultura como prática econômica central, enquanto o turismo e a gastronomia emergem como segmentos promissores, onde a elaboração de uma memória sobre o “sertão carioca” se volta para a divulgação de uma identidade que se reconstrói no presente. Não se trata de negar aqui as práticas agrícolas ainda desempenhadas por alguns dos residentes do Maciço da Pedra Branca e que bravamente desafiaram enormes obstáculos; mas é preciso reconhecer, além dos desejos de resistências purificadas, que esses agricultores são cada vez mais uma minoria, e que, para a maioria, composta por mulheres e jovens, o mundo agrícola não é uma opção possível, nem talvez mesmo um desejo.
Quero relembrar aqui que uma das exigências da Petrobras para financiar o Projeto Sertão Carioca foi reduzir a dimensão cultural e incrementar a incidência na questão ambiental. A fórmula mais ambiente e menos cultura não só produziu um olhar incompleto sobre o ambiente, mas ofuscou transformações dos sujeitos portadores de cultura, não totalmente imersos no mundo rural ou dependentes da floresta. A categoria de agricultor resulta alheia para uma parcela da população local e coloca em xeque o princípio de inteligibilidade com o qual projetos de Estado leem os residentes do maciço e arredores que, longe de serem somente agricultores, têm um pé no mato e outro no asfalto.
Assim, um projeto dirigido para agricultores e quilombolas que desconsidera as mudanças e subjetividades dos residentes não pode esperar grandes participações. Ao explicitar ditas transformações não afirmo que os moradores perderam os estreitos vínculos com o território, mas ressalto que eles se transformaram ao incluir dentro das práticas experiências e dinâmicas do mundo urbano. Enquanto o olhar do Estado (Scott, 1999SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1999.) se sustenta em critérios redutores, organizadores, e, obviamente, racionalizadores do permissível, corre-se o risco da aplicação de programas e políticas que simplificam e padronizam formas sociais bem mais complexas e híbridas, que excluem aquilo que é heterodoxo e, portanto, estranho às predefinições pelo simples fato de ser ou não cognoscível pelo crivo da inteligibilidade (Scott, 1999SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1999.).
O caso exposto nos convida a estarmos atentos ao quanto as políticas dirigidas para as populações quilombolas podem estar atadas a interpretações restritivas sobre as populações tradicionais (Barretto Filho, 2006BARRETO FILHO, H. Populações tradicionais: Introdução crítica da ecologia política de uma noção. In: ADAMS, C.; MURRIETA, R.; NEVES, W. (org.). Sociedades caboclas amazônicas: modernidade e invisibilidades. São Paulo: Annablume, 2006. p. 109-144.). O entendimento de quilombo como alteridade radical, mediante uma definição de um grupo homogêneo e uniforme, por fora da lógica do mercado e mais perto da natureza termina operando categorias de exclusão. Daí que seja urgente abandonar purismos ecológicos e culturais para resgatar a diversidade de ser quilombola, uma categoria que pode ser “ocupada” das mais variadas formas (Carneiro da Cunha; Almeida, 2001CARNEIRO DA CUNHA, M.; ALMEIDA, M. Populações tradicionais e conservação ambiental. In: CAPOBIANCO, J. P. (coord.). Biodiversidade na Amazônia brasileira. São Paulo: Estação Liberdade: Instituto Socioambiental, 2001. p. 184-193.). Fugir do estereótipo ruralizante implica compreender que dispositivos jurídicos não dão conta da riqueza de experiências compartilhadas dos grupos sociais para preencher categorias, que, sendo o resultado de importantes lutas sociais, não definem critérios objetivos (de origem, tempo e tipo de ocupação) para a conquista de direitos territoriais.
Para que os ovos dos peixes das nuvens possam eclodir na próxima temporada de chuva, programas e projetos ambientais precisam levar a sério a complexidade social urbana e o espaço dinâmico das relações entre meio ambiente e cidade marcado pela proliferação de padrões híbridos de uso da terra que justapõem o urbano e o rural, tecendo uma paisagem em transição. Isso implica resgatar o valor da fronteira, do espaço indefinido, da encruzilhada, e considerar as heterogeneidades que surgem do emaranhamento de pessoas moradoras de um parque e suas experiências não totalmente rurais.
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1
Os nomes foram alterados a pedido de alguns entrevistados.
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2
Os ecossistemas de matas ripárias são ambientes florestais próximos a corpos d’água, abrangendo as matas ciliares e as matas de galeria.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Jul 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
-
Recebido
04 Abr 2022 -
Aceito
15 Fev 2023