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Encontro de Saberes: por uma universidade antirracista e pluriepistêmica

Meeting of Knowledges: toward an anti-racist and multi-epistemic university

Resumo

O artigo discute o projeto Encontro de Saberes, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa e iniciado na Universidade de Brasília em 2010, como um movimento de inclusão étnica e racial e de descolonização das bases eurocêntricas dos currículos das nossas universidades. O foco central do Encontro de Saberes é trazer os mestres e mestras dos saberes das comunidades tradicionais (indígenas, afro-brasileiras, quilombolas, entre outras) para que atuem como docentes nas universidades, mesmo quando não possuam escolaridade alguma. Na medida em que os mestres e mestras são também pessoas negras e indígenas, sua presença no lugar de autoridade acadêmica, porém com uma formação intelectual com base em epistemes não eurocêntricas, contribui para o enfrentamento da dupla face do racismo constitutivo das nossas instituições de ensino superior e pesquisa desde sua fundação: o racismo étnico e fenotípico e o racismo epistêmico.

Palavras-chave:
universidades pluriepistêmicas; Encontro de Saberes; antirracismo; notório saber

Abstract

The article discusses the Project Meeting of Knowledges, developed by the Institute of Inclusion in Higher Education and Research and hosted in the University of Brasília since the year 2010. It can be described as a movement of ethnic and racial inclusion and of decolonization of the Eurocentric foundations of the curriculum of our universities. The main focus of the Meeting of Knowledges is to bring masters (male and female) of knowledges of our traditional communities (Indigenous, Afro-Brazilian, Maroons, among others) to act as visiting or temporary lecturers, regardless of the fact that they have no formal schooling. Given the fact that the masters are also Black and Indigenous persons, their presence in the role of academic authority, although formed on the basis of non-Eurocentric epistemic systems, make a substantial contribution to confront the double face of the constitutive racism of our academic institutions: phenotypical and ethnic racism, and epistemic racism.

Keywords:
pluriepistemic universities; Meeting of Knowledges; anti-racism; acknowledged higher knowledge

Ações afirmativas e Encontro de Saberes

Nas últimas décadas, dois movimentos de introdução do tema das relações étnico-raciais e de descolonização das universidades passaram ao centro dos debates acadêmicos no Brasil. Primeiramente, entre os anos 1999 e 2000, as reivindicações acerca das cotas ganharam amplo destaque dos veículos de imprensa nacional e resultaram na lei federal nº 12.711/2012 (Brasil, 2012BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm . Acesso em: 20 maio 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), que instituiu as cotas para estudantes indígenas e negros nas universidades brasileiras.1 1 Ver Carvalho (2006, 2016). Com essa lei e o ingresso dos cotistas, as universidades brasileiras passaram por uma transformação sem precedentes, com a inserção nos cursos de graduação de alunos indígenas e negros que contribuíram para o processo de rompimento de uma lógica segregacionista que acompanha as universidades brasileiras desde a sua fundação.

A reflexão sobre as relações étnico-raciais e sobre o racismo institucional em sua expressão acadêmica gerou a demanda pelas cotas também nos cursos de pós-graduação e na docência. Esse segundo movimento de dispositivos desracializantes questionou o fato de que a criação de cotas para alunos negros e indígenas ignorando os currículos eurocentristas e racistas seria uma espécie de reificação do racismo, ao desconsiderar os saberes desses grupos.

Esses movimentos de desconstrução do racismo são fundamentais tendo em vista que há uma alusão explícita às características de raça no meio universitário. Esse racismo aberto colaborou com a discriminação racial e foi fundamentado pelo meio acadêmico, que rejeitou, em suas proposições universalistas, a racialização como categoria de pensamento do espaço social (Carvalho, 2006CARVALHO, J. J. de. A luta antirracista dos acadêmicos deve começar no ambiente acadêmico. Brasília: Universidade de Brasília, 2006. (Série Antropologia, 394)., p. 7-8). Pode-se afirmar, portanto, que o racismo brasileiro foi caracterizado por um intenso preconceito fenotípico e uma poderosa ideologia de “convivência pacífica entre as raças”, fundamentada pelos conhecimentos acadêmicos e por uma suposta (e de fato até hoje inexistente) “democracia racial”.

As práticas históricas de genocídio, etnocídio, roubos de terras ancestrais, racismo e epistemicídio contra os povos indígenas e negros são reproduzidas pela lógica de um racismo estrutural que é institucionalizado pela formação universitária. Se é na academia que são formados os profissionais que irão ocupar os espaços de poder na sociedade, é fundamental que o ensino universitário possibilite uma formação pluriepistêmica aos jovens brancos e aos cotistas, visto que o racismo enquanto processo histórico e político constrói subjetividades e molda práticas sociais. A luta antirracista dos acadêmicos deve começar no ambiente acadêmico, assim como a luta descolonizadora deve começar na academia colonizada (Carvalho, 2006CARVALHO, J. J. de. A luta antirracista dos acadêmicos deve começar no ambiente acadêmico. Brasília: Universidade de Brasília, 2006. (Série Antropologia, 394)., 2020CARVALHO, J. J. de. Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 79-106.).

A luta antirracista, no contexto acadêmico, corresponde à intervenção em todos os espaços da universidade, não apenas no corpo discente, mas também no corpo docente, nos currículos dos cursos de graduação e de pós-graduação, e na própria constituição da instituição universitária. Argumentamos, desse modo, que o Encontro de Saberes, projeto desenvolvido pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), é uma ação de continuidade à política de cotas étnico-raciais, ao mesmo tempo que de ruptura com relação ao racismo institucional da academia brasileira. Sem o Encontro de Saberes, as universidades continuariam reproduzindo uma desvalorização das epistemologias indígenas e afro-brasileiras, o que pode reafirmar a ideologia racista de superioridade dos conhecimentos ocidentais de cunho eurocêntrico. Esse movimento de inclusão pode ser considerado como “cotas epistêmicas” porque busca romper com a lógica do epistemicídio imposta historicamente às populações negras e na qual a educação exerce um papel fundamental ao legitimar uma visão de conhecimento que inferioriza o negro do ponto de vista intelectual, consolidando a supremacia branca e seu privilégio epistêmico (Carneiro, 2005CARNEIRO, S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.).

Racismo e a luta antirracista

O termo “raça” tem sua origem do latim ratio, que significa “ordem cronológica”, e quando transplantado para a biologia esse sentido permaneceu na ideia de raça como um conjunto de caracteres biológicos e psicológicos que interligam seres em uma mesma linhagem. De um uso inicial ligado ao mundo animal, o termo migrou, a partir do século XVI, para a reflexão sobre o ser humano. A palavra “raça”, em sua origem, significava tanto uma diferenciação das espécies como também das classes sociais ou linhagens/famílias. No século XVIII, esse termo passou a ser utilizado com mais frequência para tratar das diferenças entre seres humanos; para designar certos grupos de pessoas. A evolução gradual do uso e da reflexão sobre o conceito de “raça” se deu a partir de 1750 a 1850, passando a se relacionar com as discussões sobre as diferenças da espécie humana para com os animais e, também, sobre as diferenças entre seres humanos (Mendes, 2012MENDES, M. M. Raça e racismo: controvérsias e ambiguidade. Vivência: revista de antropologia, [s. l.], n. 39, p. 101-123, 2012., p. 102).

Montesquieu (2000MONTESQUIEU, C. S. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 239), em O espírito das leis, de 1748, ao tratar das leis em sua relação com a natureza do clima, elaborou uma correlação entre questões de ordem climática e geográfica e o estado civilizatório das diferentes sociedades. Com isso, definiu pela primeira vez o que viria a ser o determinismo climático, teoria dominante no universo intelectual europeu do século XVIII que possibilitou explicar os “níveis” de civilização a partir de variantes geográficas e climáticas consideradas determinantes. O iluminismo desenvolveu, assim, uma ideologia em torno da noção de raça que serviu de fundamento para os interesses coloniais das nações europeias. Acrescida à teoria do clima, a noção de poligenia colaborou com a ideia de que nem todos os grupos humanos derivaram do mesmo processo de criação (Mendes, 2012MENDES, M. M. Raça e racismo: controvérsias e ambiguidade. Vivência: revista de antropologia, [s. l.], n. 39, p. 101-123, 2012., p. 103).

Outro importante teórico racista que teve grande influência no pensamento social brasileiro foi Arthur de Gobineau. Pouco antes de sua primeira estada diplomática no Brasil, De Gobineau escreveu seu célebre ensaio sobre a desigualdade das raças (De Gobineau, 2022DE GOBINEAU, A. Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Joinville: Editora Clube de Autores, 2022.). Publicada em 1854, a obra busca dar uma resposta alternativa ao que ele chama de “males do organismo social” responsáveis pelos declínios de “grandes civilizações”, que não seriam consequências de maus governos, fanatismos ou irreligião, mas de um problema mais profundo, o da degeneração pela miscigenação racial, resposta essa decorrente de sua crença na desigualdade das raças. Com essa obra, De Gobineau deu origem ao conceito de arianismo, marco do nazismo e de diversas teorias racistas de supremacistas brancos. Apesar de ter um olhar crítico ao Brasil e sua composição étnico-racial, baseada, segundo ele, em raças inferiores, seus escritos tiveram influência importante entre os intelectuais brasileiros.

Mendes resume em três ideias principais a teoria racial construída no século XIX: 1) a de que a espécie humana é divisível em distintas raças; 2) que as capacidades morais e de intelectos variam nas distintas raças existentes; 3) que as aptidões mentais são dadas naturalmente e relacionadas a certos predicados raciais que são marcados nos membros de certa população. Essas teorias tiveram importância na antropologia física do século XIX e XX, calcando raízes no imaginário social até os dias de hoje e popularizando a ideia de raça. Nos anos 1930, dá-se início à crítica biológica à noção de raça com a genética moderna e a comprovação de que as diferenças biológicas entre as raças humanas não são absolutas, nem estabelecem nenhuma hierarquia cognitiva que possa fundamentar qualquer ciência baseada nelas. Após a Segunda Guerra Mundial, o termo “raça” passou também por uma crítica antropológica profunda, e a visão de múltiplas humanidades desenvolvida pelas teorias racialistas foi substituída pela noção filosófica de homem universal. Apesar desse declínio no uso do termo “raça” em seu valor biológico, ele ainda possui um valor social, ao qual se relacionam outras categorias identitárias, permanecendo ainda como “uma ideia organizadora da vida social e política das comunidades humanas” (Mendes, 2012MENDES, M. M. Raça e racismo: controvérsias e ambiguidade. Vivência: revista de antropologia, [s. l.], n. 39, p. 101-123, 2012., p. 105-107).

O conceito de raça deve ser entendido como relacional e histórico, intrinsecamente relacionado à constituição das sociedades contemporâneas (Almeida, 2020ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020., p. 24-25). A ideia de raça é fundamental para lidar com a inerente incoerência entre o ideal universalista da razão ocidental e o processo de expropriação operado pelo colonialismo, que se fundamentou num discurso sobre a inferioridade racial dos povos expropriados (Dussel, 2005DUSSEL, E. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. São Paulo: CLACSO, 2005. p. 25-34.).2 2 “Ainda que toda cultura seja etnocêntrica, o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode pretender identificar-se com a ‘universalidade-mundialidade’. O ‘eurocentrismo’ da Modernidade é exatamente a confusão entre a universalidade abstrata com a mundialidade concreta hegemonizada pela Europa como ‘centro’. O ego cogito moderno foi antecedido em mais de um século pelo ego conquiro (eu conquisto) prático do luso-hispano que impôs sua vontade (a primeira ‘Vontade-de-poder’ moderna) sobre o índio americano” (Dussel, 2005, p. 30).

As ligações entre Estado colonialista e racismo foram abordadas por Ellen Meiksins Wood (2011)WOOD, E. M. Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Tradução: Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2011. e David Theo Goldberg (2002)GOLDBERG, D. T. The racial state. Oxford: Blackwell, 2002.. Para Wood, a história do capitalismo moderno foi possivelmente caracterizada pelos mais virulentos racismos já conhecidos. Esse racismo generalizado contra os negros no Ocidente não se deu apenas devido ao espólio cultural do colonialismo e da escravidão. Essa necessidade foi uma resposta à ideologia da igualdade e da liberdade formais, e sua negação, nos planos jurídico e político, da desigualdade e falta de liberdade da relação econômica capitalista. A pressão contra a diferença extraeconômica gerou a obrigação de justificar a escravidão excluindo da raça humana os escravos, tornando-os pessoas alheias ao universo normal da liberdade e igualdade (Wood, 2011WOOD, E. M. Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Tradução: Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 230-231). Em The racial state, Goldberg (2002)GOLDBERG, D. T. The racial state. Oxford: Blackwell, 2002. chama a atenção para o fato de a história do Estado moderno estar intrinsecamente articulada com as explicações e definições de cunho raciais, embora as teorias do Estado não tenham tratado devidamente dessa questão. Para o autor, a ideia de raça é uma obsessão complementar do surgimento, desenvolvimento e transformações do moderno Estado-nação.

Nota-se, nessa rápida descrição, que o conceito de raça funcionou historicamente sob duplo registro, enquanto categoria biológica e categoria étnico-racial, fundamentando muitos processos discriminatórios. Com a decadência desse racismo biológico, simplista, ocorreu um refinamento conceitual do racismo, que passa a se utilizar de eufemismos para se manifestar, ocorrendo, aí, uma passagem do racismo pretensamente racional, individual, baseado no genótipo ou fenótipo, para o racismo cultural, tornando-se objeto do racismo não “o homem em particular, mas uma certa forma de existir” (Fanon, 2021FANON, F. Por uma revolução africana: textos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 71).

O intelectual negro martinicano Frantz Fanon buscou analisar as consequências do racismo através da cultura, enquanto parte de um conjunto mais amplo de opressão metódica de um povo. A desvalorização dos modos de vida e dos valores culturais, como linguagem, técnica, vestuário, utilizando-se do poder opressor do exotismo como marca simplificadora da cultura do grupo dominado, camuflando técnicas de dominação novas, é característica do projeto racista “assombrado pela consciência pesada” (Fanon, 2021FANON, F. Por uma revolução africana: textos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 75). Os efeitos do racismo nos grupos vitimados são eficientes e duradouros, causando sentimentos de culpabilidade e inferioridade. Numa sociedade racista, o racismo é normalizado como parte integrante da cultura, apesar de possuir especificidades que variam de sociedade para sociedade (Fanon, 2021FANON, F. Por uma revolução africana: textos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 79).

No caso brasileiro, o pensamento social se ocupou com afinco sobre a questão racial desde a formação da república, algo importante para a construção da identidade nacional de um país que foi construído sobre a exploração de quase quatro séculos de escravidão. Abdias do Nascimento (2016)NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016. denunciou a origem estrangeira dessas teorias e da mentalidade colonizada dos pensadores brasileiros em suas ideias, padrões estéticos e atividades científicas, como os conceitos racistas e o ideal ariano. Essas teorias científicas foram o fundamento do racismo que idealizava extirpar os negros e que fundamentou, por exemplo, a política migratória em fins do século XIX e que foi base da política nacional também ao longo do século XX.

A interpretação mais célebre sobre o Brasil que procura eufemizar o racismo brasileiro foi o mito da “democracia racial”, cunhado por Gilberto Freyre, e que concebe as relações étnico-raciais no Brasil como fundadas numa fluidez e positividade que teriam possibilitado a miscigenação e as transferências culturais entre portugueses e negros. Esse mito permanece latente no imaginário nacional, e ainda é tratado por alguns acadêmicos como uma interpretação verossímil do Brasil que, de antemão, interdita qualquer discussão mais profunda sobre a questão racial, ajudando a dar continuidade às várias formas de racismo, violência e exclusão do povo negro, o que confere a essa elucubração teórica um “caráter compulsório e dogmático”, como denuncia Abdias do Nascimento (2016)NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016. em O genocídio do negro brasileiro. Nascimento (2016NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 54-95) argumenta que a elite propagadora do mito da democracia racial tem em suas mãos, desde o começo da história do país, o controle sobre os meios de comunicação e do aparelho educacional, e que ambos servem à formulação de conceitos e valores dessa elite, que são propagados como verdades nacionais que não permitem questionamentos; em suma, uma “estranha ‘democracia racial’ que não permite reinvindicações de direitos pelas vítimas da discriminação”.

Esse importante pensador negro constrói em seu livro uma contundente crítica à ficção ideológica da “democracia racial”, que seria um processo de genocídio, e não de mistura harmoniosa, ou um “amalgamento de raças e culturas”, como quis sustentar Freyre (2015FREYRE, G. Interpretação do Brasil. São Paulo: Global, 2015., p. 127), ao mesmo tempo que afirmava sem nenhum tipo de ressentimento que “os negros estão agora desaparecendo rapidamente do Brasil, fundindo-se com os brancos”. Para Abdias do Nascimento, a democracia racial deve ser considerada a metáfora perfeita do racismo ao estilo brasileiro: um racismo mascarado, porém eficaz institucionalmente. Como podemos ver claramente em Gilberto Freyre, o único privilégio para o negro na “democracia racial” seria o “direito” de se tornar branco (Nascimento, 2016NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 111), como, antes, a única saída teria sido a sua escravização.3 3 Em Casa-grande e senzala, podemos ler a seguinte defesa explícita de Gilberto Freyre (2006, p. 323) à escravidão no Brasil: “Teria sido mesmo ‘um crime escravizar o negro e levá-lo à América?’, pergunta Oliveira Martins. Para alguns publicistas foi erro e enorme. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil […] tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo Europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime escravo.”

Racismo individual, institucional e estrutural

Em Black power, Hamilton e Kwane (1967)HAMILTON, C. V.; KWANE, T. Black power: politics of liberation in America. New York: Random House, 1967. afirmam que o racismo, seja ele explícito ou implícito, pode ser definido em dois tipos, um individual, aberto, exercido por brancos individuais contra negros individuais ou contra coletivos negros, e outro institucional, menos aberto, mais sutil, que não é identificável em termos individuais, mas através das operações de força exercidas sobre a sociedade. Esse racismo pode ser tão ou mais violento e destrutivo para a vida das pessoas submetidas a ele, visto que mantém os negros sujeitos aos abusos jurídicos, à exploração econômica, política e social. O racismo institucional precisa se manter a partir de atitudes ativas e generalizadas, estabelecendo um consenso quanto à posição de superioridade dos brancos frente aos negros, que devem por isso ser subordinados, atitude que se estabelece no nível individual e institucional.

Os negros reconhecem facilmente a estrutura monolítica de poder branco como real e concreta, para a qual as instituições são fundamentais no mantenimento dessa supremacia branca. Por isso, o movimento Black Power buscava redefinir a identidade negra a partir de critérios afirmativos, resgatando a história e cultura negra e lutando por um processo de modernização política que visava questionar valores antigos e instituições calcadas no racismo através de novas formas de estrutura política que atentem para a resolução de conflitos políticos e econômicos, e, por fim, a ampliação política dos negros nos processos de tomada de decisão e nas estruturas de poder.

É possível acrescentar às perspectivas individual e institucional a noção estrutural de racismo:

assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma estrutura social previamente existente […] o racismo que essa instituição venha a expressar é também parte dessa mesma estrutura. As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista. (Almeida, 2020ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020., p. 47).

Como resposta a essas múltiplas formas de racismo (a individual, a institucional e a estrutural), é fundamental que as instituições combatam o racismo através da implementação de práticas antirracistas eficazes, promovendo a igualdade e diversidade em sua composição interna e desenvolvendo publicidades que reflitam essa equidade. Outra ação importante é a de remoção de obstáculos para que pessoas negras assumam posições de prestígio na instituição, mantendo espaços de debate sobre as práticas institucionais.

A discriminação racial - seja ela direta ou indireta - se baseia no poder, sendo uma expressão normal da nossa sociedade - e não um tipo de ação anormal ou comportamento patológico -, manifestando-se tanto no nível individual quanto no das instituições (Hamilton; Kwane, 1967HAMILTON, C. V.; KWANE, T. Black power: politics of liberation in America. New York: Random House, 1967.). A tese do racismo institucional se fundamenta no entendimento de que os conflitos raciais são parte das instituições. A desigualdade racial passa a ser vista não como ação de grupos ou indivíduos isolados, mas como componente das instituições que são dominadas por determinados grupos raciais. Assim, temos na cultura, nos padrões estéticos, espaços de imposição de valores da cultura branca dominante, que se apresenta nessas instâncias de legitimação como padrão civilizatório a guiar toda a sociedade.

Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon fazia a mesma denúncia de Abdias do Nascimento de que o racismo da cultura europeia concedia aos negros apenas um destino possível, o de virar branco, impondo-os um “desvio existencial”, um complexo de inferioridade decorrente do “sepultamento de sua originalidade cultural” (Fanon, 2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020., p. 27-32). O objetivo do autor é o de ajudar os negros a se emanciparem dos complexos criados no ventre da situação colonial e tomarem consciência de outras possibilidades de existência calcadas em suas próprias epistemologias, rompendo com a alienação cultural inventada pela sociedade burguesa ocidental (Fanon, 2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020., p. 236).

A universidade (e o sistema educacional como um todo) constitui-se em poderoso instrumento de controle cultural e social e de reprodução do racismo e do colonialismo, contribuindo para “destruir o negro como pessoa, e como criador e produtor de uma cultura própria” (Nascimento, 2016NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 112). É evidente, portanto, que a ruptura epistêmica buscada através da inserção dos saberes afro-brasileiros nos currículos é pauta histórica do movimento negro. Enquanto ação vinculada à luta antirracista e às leis de cotas e leis nº 10.639/2003 (Brasil, 2003BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2003. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm . Acesso em: 20 maio 2021.
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) e nº 11.645/2008 (Brasil, 2008BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: Presidência da República, 2008. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm . Acesso em: 20 maio 2021.
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), o Encontro de Saberes deve ser entendido como a consolidação dessa perspectiva, propondo uma formação antirracista através da descolonização das universidades. Esse projeto foi implementado em diversas universidades brasileiras, em uma universidade colombiana e uma austríaca, o que estabelece uma ruptura com a história da formação tardia das universidades no Brasil e seu tradicional eurocentrismo.

O Encontro de Saberes

A primeira oferta do Encontro de Saberes ocorreu em 2010 no curso de graduação em antropologia da UnB e contou com mestres e mestras dos saberes tradicionais de todas as regiões do Brasil. Em 2012, o curso foi ofertado para o Doutorado em Estudos culturais na Pontificia Universidad Javeriana, e a partir de 2014 deu-se início à ampliação da oferta da disciplina nas universidades brasileiras, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Estadual do Ceará (UECE), Universidade do Sul da Bahia (UFSB) e Universidade Federal do Cariri (UFCA). Em 2016, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul deu início à oferta da disciplina. Em 2017, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e, em 2019, a Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Com a ampliação do projeto Encontro de Saberes, ocorreu uma expansão dos modos de oferta do curso, mantendo, entretanto, o núcleo central da proposta - a inserção de mestres e mestras na docência no ensino superior e dos saberes tradicionais nos currículos acadêmicos -, em suas quatro dimensões básicas, a da inclusão étnico racial, a dimensão política, a dimensão pedagógica e a dimensão epistêmica (Carvalho, 2020CARVALHO, J. J. de. Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 79-106., p. 93).

A primeira dimensão merece especial atenção, tendo em vista que trata da ruptura da histórica exclusão étnico-racial que marca a constituição e a história das universidades brasileiras, baseada num racismo crônico abordado no artigo intitulado “O confinamento racial do ensino superior brasileiro” (Carvalho, 2006CARVALHO, J. J. de. A luta antirracista dos acadêmicos deve começar no ambiente acadêmico. Brasília: Universidade de Brasília, 2006. (Série Antropologia, 394).). É preciso, nesse sentido, que as universidades alterem o padrão de racismo institucional para os quais elas contribuem desde sua fundação.

A segunda dimensão, a política, está estreitamente ligada à causa antirracista e à luta pelas cotas, e se refere à descolonização das universidades através da alteração no panorama daqueles que detêm o poder nessas instituições: o corpo docente. Ao serem convidados para lecionar nas universidades mestres e mestras dos saberes tradicionais que não possuem diplomas, mas um saber fundamentado em tradições e epistemologias próprias, será necessário à universidade uma reformulação burocrática para receber esses conhecedores. Será preciso também aceitar a relevância de seus saberes para a formulação de novas soluções para justificar e manter a presença desses sábios em posição similar à de um professor substituto ou visitante.

A dimensão pedagógica fundamenta a perspectiva antirracista ao estabelecer mecanismos de interlocuções pluriepistêmicas nas múltiplas áreas do saber. As artes e ofícios passam a ser reintroduzidas nas universidades, propondo diálogos distintos com os campos das ciências ocidentais. Com esse movimento, as epistemologias afro-brasileiras, quilombolas, negras e indígenas passam a se constituir em mananciais de saberes que estabelecem intercâmbios diversos com os saberes acadêmicos, opondo-se, ao mesmo tempo, à quantificação do conhecimento nos moldes da ciência racionalista, bem como aos critérios de cientificidades dominantes.

Os saberes tradicionais não são capturados por uma única área da ciência ocidental, são complexos, transdisciplinares (atravessam os nichos compartimentalizados da instituição acadêmica), multirreferenciais (ligados a fontes diferentes de produção e validação) e multidimensionais (com diversos níveis de realidade, regidos por diferentes lógicas e irredutíveis a um só nível de entendimento). Busca-se, assim, um espaço de diálogos interepistêmicos, mesmo que, em certos casos, esses saberes possam ser intraduzíveis às disciplinas acadêmicas, criando, a partir de uma fundamentação pluriepistêmica, protocolos de interação e diálogo entre representantes de epistemes distintas (Carvalho; Flórez, 2014CARVALHO, J. J. de; FLÓREZ, J. F. Encuentro de Saberes: proyecto para decolonizar el conocimiento universitário eurocêntrico. Nómadas, [s. l.], n. 41, p. 131-147, 2014.).

A dimensão epistêmica busca criar um ambiente propício para o convívio entre saberes de distintas matrizes socioculturais, agenciando a diversidade específica de cada área do conhecimento. Em áreas como a música, por exemplo, é questionável o eurocentrismo de suas matrizes curriculares que excluem as manifestações sonoras indígenas e afro-brasileiras, assim como as artes plásticas deveriam dialogar de modo mais profundo com a arte afro-brasileira, indígena, as artes populares, os artesanatos, etc. A literatura, por sua vez, tem como desafio combinar a oralidade e a escrita, superando a falsa oposição ocidental entre a escrita e a oralidade, e pensando como a “economia escriturística” “capitalista e colonizadora” (De Certeau, 2000DE CERTEAU, M. A economia escriturística. In: DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 221-246., p. 226) é reapropriada pelas epistemologias negras e indígenas e como esses conhecimentos podem contribuir para uma descolonização das universidades e do pensamento acadêmico.

O modelo epistemológico de uma área como a farmácia, que se fundamenta nos elementos químicos enquanto princípios ativos, torna necessária uma postura de abertura para outras terapêuticas de cura, vinculadas aos saberes tradicionais que consideram as plantas como seres vivos sensíveis e em biointeração, trazendo novos sentidos às concepções cientificistas de tratamento e de cura. O mesmo pode ser dito com relação à psicologia, que muito tem a ganhar do ponto de vista epistêmico com o contato com as terapias de cura dessas epistemologias do “cosmos vivo”, que concebem as plantas como terapeutas, ou “terapeutas de uma terapeuta” (Carvalho, 2020CARVALHO, J. J. de. Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 79-106., p. 96-97). Cada um dos mestres e mestras dos saberes tradicionais que ministra aulas no Encontro de Saberes traz múltiplos questionamentos sobre as grades curriculares dos cursos universitários e o paradigma monoepistêmico reinante na academia nos seus moldes ocidentais.

Contracolonização e Encontro de Saberes

O projeto Encontro de Saberes se vincula à luta antirracista e aos movimentos de descolonização contemporâneos, dialogando com as teorias pós-colonial e decolonial. Entretanto, há diferenças que devem ser salientadas. Conforme observado em Carvalho (2020CARVALHO, J. J. de. Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 79-106., p. 86-89), apesar das importantíssimas contribuições, a teoria pós-colonial foi elaborada em língua inglesa e em universidades que ocupam posições de proeminência em países ocidentais, enquanto a chamada teoria decolonial, apesar de propagar uma guinada decolonial centrada numa crítica ao eurocentrismo, não propôs até então nenhuma intervenção concreta de descolonização e desracialização das instituições acadêmicas. Cumpre avançar nesse movimento de desconstrução do racismo acadêmico, através da inclusão epistêmica dos saberes quilombolas, afro-brasileiros e indígenas nas universidades brasileiras.

Uma atitude antirracista necessita de uma tomada de consciência acerca do lugar da academia brasileira em relação às tradições acadêmicas dos países da América Latina e Caribe; acerca, também, de nossa relação com a academia nos países ocidentais e, ainda, com relação às universidades no continente africano, na Ásia, Oriente Médio e demais regiões do mundo, para, por fim, lidar com a indagação fundamental: “O que é a nossa academia em termos dos mais de trezentos povos e nações indígenas do Brasil, das inúmeras tradições afro-brasileiras, das culturas populares, dos quilombolas e dos demais povos tradicionais?” (Carvalho, 2020CARVALHO, J. J. de. Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 79-106., p. 89-90). A questão racial não pode fugir à discussão sobre a racialização da academia brasileira, sua branquitude e eurocentrismo. É preciso que as cotas avancem para a pós-graduação e para a docência, e que o Encontro de Saberes seja implementado em mais universidades e amplie seu diálogo com as diversas áreas do conhecimento, trazendo para a academia a presença dos corpos negros e de seus saberes ancestrais, alterando, assim, a expressão colonizada e racista dessa instituição de saber. Trata-se de um duplo movimento: o de se desvencilhar da obrigatoriedade de se vincular unicamente à matriz europeia de conhecimento acadêmico e, em seguida, o de refundação de nossa academia a partir de uma matriz pluriepistêmica e antirracista (Carvalho, 2020CARVALHO, J. J. de. Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 79-106., p. 90).

Diversos mestres e mestras negros, quilombolas e representantes das religiões de matriz afro-brasileira ministraram aulas nos cursos do Encontro de Saberes ofertados nas universidades vinculadas ao projeto. Na Universidade Federal de Roraima (UFRR), por exemplo, instituição acadêmica localizada no norte no país, numa região amazônica predominantemente indígena, a primeira oferta da disciplina do Encontro de Saberes foi ministrada por mestras e mestres de distintas tradições das religiões de matriz afro-brasileira e um xamã indígena: Mãe Vera de Oxóssi da nação ketu, Mãe Yatylyssa, sacerdotisa da nação mina jeje nagô fôn, Tátà Bòkúlé, mestre iniciado no candomblé nação angola e Mãe Michele de Oxum, da nação cabinda do Rio Grande do Sul, além do xamã Vicente Castro Ye’kwana.4 4 Ver Ponso e Albernaz (2021). Na segunda oferta do curso, em 2020, já em tempos de pandemia da covid-19, o curso teve por formato rodas virtuais de conversas com mestres, acadêmicos indígenas e afrodescendentes, e pesquisadores vinculados à rede Encontro de saberes. A disciplina contou com a participação, dentre outros, de Ibã Huni Kuin, Jaime Diakara Desana, João Paulo Tukano, Viviane Ye’kwana, Célia Xakriabá, Davi Kopenawa Yanomami, Mãe Michele de Oxum, Mestre Cica de Oyó, Yashodan Abya Yala, Tátà Bòkúlé e Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo. Detemo-nos, por uns instantes, nos ensinamentos transmitidos por esse mestre atuante na rede Encontro de Saberes, que ministrou aulas na UnB, UFMG e UFRR, dentre outras universidades brasileiras.

Em seu livro Colonização, quilombos: modos e significados (Santos, 2015SANTOS, A. B. dos. Colonização, quilombos: modos e significados. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa: Universidade de Brasília: Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2015.), Bispo realiza uma interpretação a contrapelo dos temas estudados pelas interpretações clássicas do Brasil, tais como o modelo de colonização católico, a dominação sofrida pelos diversos povos indígenas, a centralidade da escravidão na formação econômica e social do Brasil, a ideologia da mestiçagem, a democracia racial e os modelos de desenvolvimento capitalista (Carvalho, 2015CARVALHO, J. J. de. Apresentação. In: SANTOS, A. B. dos. Colonização, quilombos: modos e significados. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa: Universidade de Brasília: Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2015. p. 9-15.). Essas interpretações elitizadas sobre a formação do Brasil vêm sendo reproduzidas desde os anos 1930 sem grandes alterações, e afirmam, em linhas gerais, que somos um povo especial por saber conviver de forma harmoniosa com nossa diversidade, diferentemente dos países ibero-americanos e dos Estados Unidos. Ao adotar por tema essas mesmas questões, Nego Bispo chega a conclusões transversalmente opostas às da democracia racial, destacando as revoltas, as rebeliões e as lutas antirracistas contra as classes e grupos raciais dominantes deflagradas pelos povos indígenas e negros (chamados, no livro, de afro-pindorâmicos), e trazendo à luz uma outra imagem sobre os contatos étnico-raciais no Brasil através da perspectiva antirracista e contracolonizadora baseada na epistemologia quilombola (Carvalho, 2015CARVALHO, J. J. de. Apresentação. In: SANTOS, A. B. dos. Colonização, quilombos: modos e significados. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa: Universidade de Brasília: Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2015. p. 9-15.).

Para Bispo, os processos de colonização no passado e atualmente operam pela mesma lógica do racismo ambiental que atua nas franjas do racismo cultural que estrutura as relações sociais no Brasil. Ao abordar comparativamente as religiões monoteístas com a cosmovisão dita pagã politeísta (e todas as suas semelhanças com o Estado laico e o sistema judiciário), Bispo opõe o conceito de trabalho como castigo divino ao conceito de biointeração como força vital que integra todos os seres, através da influência mútua entre pessoas e natureza, através das “relações com deusas e deuses materializados em elementos do universo que se concretizam em condições de vida” (Santos, 2015SANTOS, A. B. dos. Colonização, quilombos: modos e significados. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa: Universidade de Brasília: Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2015., p. 41). De acordo com a redatora do posfácio, Maria Sueli Rodrigues de Souza (2015SOUZA, M. S. R. de. Posfácio. In: SANTOS, A. B. dos. Colonização, quilombos: modos e significados. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa: Universidade de Brasília: Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2015. p. 105-118., p. 112-113),

biointeração é a categoria com que Bispo premia as instâncias de elaboração do pensamento na sociedade brasileira que se localizam na academia, mas também no roçado, nos laboratórios, mas também na mata, nas universidades, mas também nas comunidades. Sem conceituar com a abstração, mas aprendendo a materialidade da biointeração, Bispo nos ensina a pensar pela materialidade, pela experiência vivida em substituição às tradicionais categorias analíticas abstratas que funcionam como encaixes para a realidade, produzindo como conhecimento uma espécie de deformação da realidade […] Biointeração […] é transformar o trabalho em vida, arte e poesia. É transformar as divergências em diversidades. É retirar as notas pesadas do castigo do trabalho para fazer fluir, confluir a interação, a biointeração.

Bispo afirma que sua fala visa contracolonizar a colonização imposta pelos eurocristãos, apresentando-nos uma perspectiva contracolonial dos mestres e mestras do Encontro de Saberes que, assim como ele, sugerem uma aliança entre contracolonizadores e descolonizadores: “Nem pós-colonial nem decolonial, trata-se de construir a aliança descolonização-contracolonização” (Carvalho, 2020CARVALHO, J. J. de. Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 79-106., p. 91). Essa aliança deverá ser feita entre os mestres dos conhecimentos tradicionais e os docentes brancos, que, ao se desvencilharem do pacto colonial, rompem com a lógica de segregação e de racismo epistêmico, abrindo as grades curriculares dos cursos de graduação e pós-graduação para a entrada dos saberes não ocidentais dos mestres contracolonizadores. Os sábios passam a ensinar dentro das universidades os seus saberes contracoloniais, com a potencialidade de produzir uma verdadeira refundação das universidades brasileiras.

Todos os mestres vinculados às epistemologias afro-brasileiras que ministram aulas no projeto Encontro de Saberes nas universidades demonstraram a complexidade e multiplicidade dos saberes tradicionais ligados à ancestralidade e ao pensamento negro, praticados nas mais diferentes regiões do país. Essas aulas, bem como a produção oral, visual, escrita desses mestres, podem ser entendidas dentro da perspectiva antirracista e contracolonial, ao possibilitar o ensino de lógicas para além das relações interétnicas ou interculturais, baseadas no que Bispo chama de “confluências cosmológicas” e que foram, para Bispo, desde a colonização, a base para o entendimento entre negros e índios, bem como entre estes e os demais seres do cosmos. Não narrativas ou teorias, mas cosmologias politeístas, afro-indígenas, afrodiaspóricas, afroquilombolas, etc.

É importante notar que as confluências são distintas das coincidências, posto que as coincidências não se explicam e as confluências se esclarecem enquanto encontro de seres, de vidas que se compartilham.5 5 É de se observar as ressonâncias entre a noção de confluência e o conceito junguiano de “sincronicidade” (Jung, 2014). Em seu prefácio a I Ching: o livro das mutações, um clássico da sabedoria oriental (Wilhelm, 2006), Jung (2006, p. 16) observa que “o que chamamos de coincidência parece ser o interesse primordial desta mente peculiar e o que cultuamos como causalidade passa quase desapercebido”, pois “o emaranhado de leis naturais que constitui a realidade empírica é mais significativo para ele que uma explicação causal de fatos”. Algo que, para Bispo, só acontece em cosmologias politeístas, pois a confluência é orgânica e cosmológica, ao passo que a interculturalidade é algo restrito aos humanos. Há uma diferenciação clara, em seu pensamento, entre os povos que fundamentam seu sistema de crenças no monoteísmo, que possuem uma epistemologia monolítica, linear, vertical, e os povos de pensamento politeísta, que possuem um pensamento plural, circular e horizontal (Santos, 2020SANTOS, A. B. dos. Cupim que vai pra festa de tamanduá. Praia Vermelha, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, p. 246-252, 2020. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/praiavermelha/article/view/36041 . Acesso em: 20 maio 2021.
https://revistas.ufrj.br/index.php/praia...
).

Bispo critica a noção abstrata de homem universal, base do humanismo científico que fundamentou a exclusão, a partir da noção de raça, dos povos colonizados. Para ele, confluência não se reduz às noções de interculturalidade e de relações étnico-raciais, mas trata de relações cosmopolíticas mais amplas, pois, como afirmou em sua aula na UFRR, “só as vidas humanas morrem, as outras não. A humanidade é a doença do mundo.” É preciso, pois, resgatar das epistemologias indígenas e negras outra imagem de homem, que nos reconecte com o cosmos vivo, num “humanismo generalizado” (Lévi-Strauss, 2012LÉVI-STRAUSS, C. A antropologia diante dos problemas do mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 33) baseado na profunda noção de que a humanidade não é um atributo exclusivo ao homem, mas compartilhado entre os diversos seres do cosmos, no que Bispo chama de confluências e biointeração.

Notório saber como combate ao racismo epistêmico

O movimento Encontro de Saberes faz surgir no horizonte das ações antirracistas e contracoloniais uma nova pauta de discriminação positiva: a concessão do título universitário de notório saber para os mestres e mestras dos saberes tradicionais.6 6 Para uma argumentação mais detalhada sobre o tema, ver Carvalho (2016, 2021). Nosso modelo de ensino superior se constituiu como uma réplica das universidades europeias, em especial o modelo humboldtiano (de universidade pesquisa) que serviu de base para a criação das instituições acadêmicas no Brasil (Terra, 2019TERRA, R. R. Humboldt e a formação do modelo de universidade e pesquisa alemã. Cadernos de Filosofia Alemã, [s. l.], v. 24, n. 1, p. 133-150, 2019.). Toda a formação do sistema universitário brasileiro se baseou na compatibilização do modelo de ensino nas universidades europeias e norte-americanas sem levar em consideração nenhum tipo de adequação à realidade e aos saberes locais das sociedades indígenas, de matriz afro-brasileira, das culturas populares e tradicionais do país.

Por mais de um século, esse modelo excludente e monoepistêmico de conhecimento se associou às múltiplas formas institucionais de exclusão étnico-raciais e de classe, sem sofrer grandes alterações até o surgimento das políticas de cotas, já no século XXI. O movimento de criação e implementação das cotas étnico-raciais criou uma ruptura no padrão de segregação étnico-racial preponderante nas universidades públicas, pois, pela primeira vez, alunos negros, indígenas e de classes populares passaram a expor o racismo epistêmico das disciplinas acadêmicas baseadas exclusivamente nos saberes europeus e ministradas por professores brancos em sua esmagadora maioria. Com esse quadro de ruptura do racismo acadêmico em seu corpo discente, surgiu uma pressão por mudanças no perfil epistêmico na docência e nos currículos, com a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira e indígena e com a participação de mestres tradicionais em aulas nas licenciaturas interculturais indígenas e licenciaturas acadêmicas regulares. A presença desses mestres no espaço universitário possibilitou aos acadêmicos o aprendizado desses saberes vivos diretamente com os guardiões dessas tradições, contribuindo na desconstrução do imaginário de que os saberes válidos academicamente estão necessariamente capturados pela lógica da palavra escrita.

Em 2005 e 2006, ocorreram dois Seminários de Políticas Públicas para as culturas populares, organizados pelo Ministério da Cultura, ocasião nas quais os mestres e mestras tradicionais demandaram o direito de ministrarem seus conhecimentos nas salas de aula das universidades. Em 2010, como resposta a essa reinvindicação dos mestres, o INCTI formulou com a colaboração do Ministério da Cultura o projeto Encontro de Saberes, que tem por objetivo principal a inclusão de reconhecidos mestres e mestras dos saberes tradicionais como professores em situação similar à de um docente substituto, temporário ou visitante. Esses mestres passaram a ministrar disciplinas regulares em conjunto com professores colaboradores especialistas nas temáticas escolhidas, criando um espaço de diálogo simétrico e de troca de saberes que visa enriquecer a formação dos discentes e, também, dos próprios docentes, que estabelecem agora com esses sábios não uma relação como a das pesquisas clássicas, nas quais eles são informantes que colaboram com a pesquisa do professor branco, mas como verdadeiros detentores e divulgadores de seus saberes. Até então, o projeto Encontro de Saberes já contou com a participação de mais de uma centena de mestres e mestras de diversas áreas dos saberes tradicionais e de todas as regiões do Brasil.

Com o Encontro de Saberes, a questão colocada pelas leis de obrigatoriedade do ensino de história indígena e afro-brasileira é expandida para todas as demais áreas do conhecimento, possibilitando que o mestre intervenha com seus saberes em qualquer curso ou disciplina da grade de formação universitária, estabelecendo diálogos entre essas distintas epistemes, a dos saberes tradicionais e a dos conhecimentos acadêmicos. Com esse movimento de inclusão, surge, necessariamente, a demanda pelos títulos de notório saber para os mestres. As universidades foram concebidas para reproduzir os conhecimentos da ciência ocidental, mas não estão preparadas para receber e transmitir os saberes indígenas e afro-brasileiros. Por isso, é necessária a criação de mecanismos institucionais que possibilitem a inserção dos conhecedores tradicionais, oriundos de culturas assentadas na oralidade, na docência.

Os mestres e mestras são os verdadeiros especialistas dos saberes tradicionais brasileiros indígenas, quilombolas e afro-brasileiros, detendo conhecimentos vastíssimos sobre cosmologias, meio ambiente, tecnologias, curas, culturas populares, artesanato, etc. É necessário, portanto, para avançarmos na descolonização dos saberes acadêmicos, criar mecanismos de inclusão desses mestres e seus saberes nas universidades. O notório saber objetiva cumprir essa lacuna, ao conceder títulos equivalentes ao doutorado a mestres e mestras portadores de saberes cuja longevidade é notória e inequívoca, assentada em uma biografia que evidencia o reconhecimento de seu saber, dentro e fora de sua comunidade. Esses mestres transmitem o que sabem aos seus discípulos, que no futuro serão os mestres em suas comunidades, e atuam na maioria das vezes de forma transdisciplinar, ampliando os saberes que dominam, podendo ser comparados, em nossa terminologia ocidental, aos professores catedráticos ou eméritos.

Mestre é um sábio que domina plenamente sua área de saber e está na posição de transmissor desses conhecimentos nas sociedades às quais pertencem, sendo singulares e insubstituíveis. São anciãos que possuem uma trajetória de vida dedicada aos saberes que ajudam a guardar, transmitir e ampliar. Seus saberes são ensinados presencialmente e através da oralidade, sendo, por isso, fundamental a inserção desses conhecedores na docência acadêmica, para que as universidades também passem a ser um espaço de diálogo, divulgação, salvaguarda e transmissão desses saberes não eurocentrados.

Diferentemente do doutorado honoris causa, que outorga ao recebedor um título equiparável ao de doutor, mas não o permite lecionar na universidade, o título de notório saber concedido aos mestres tradicionais possibilita uma revolução nos critérios e normas estabelecidos para o ingresso na docência de ensino superior, provocando uma ruptura com o racismo epistêmico. Diversas universidades brasileiras estão criando resoluções para a titulação com notório saber aos mestres e mestras, como a UnB, UECE, UFMG, UFJF, UFRGS e UNILAB.

As expressões individual, institucional e ambiental do racismo são problemas estruturais no Brasil, que necessitam ser combatidos em várias frentes. Argumentamos, neste artigo, que o Encontro de Saberes e a titulação de notório saber são iniciativas que visam uma intervenção no racismo epistêmico, pois a maioria dos saberes não ocidentais, não eurocêntricos estão em corpos negros, corpos indígenas, corpos não brancos. A mesma negação do racismo étnico-racial transferiu-se para o racismo epistêmico, para aqueles corpos que detêm o conhecimento que aquele corpo branco, de origem europeia, não detém. O notório saber pode ser considerado uma chancela, uma estratégia antirracista das universidades. A presença dos mestres rompe com o imaginário de que o saber dito superior está sempre encarnado em um corpo branco. A maior parte dos mestres são não brancos, de modo que os alunos, ao terem aula com esses mestres, mudam o imaginário do que é o saber acadêmico. As universidades expõem nas paredes as fotos dos grandes cientistas, humanistas, historiadores, filósofos, físicos, matemáticos, invariavelmente com homens brancos e às vezes algumas poucas mulheres brancas. Os alunos aprendem assim a associar o saber, o ensino superior a um corpo branco (e masculino). O projeto Encontro de Saberes é a primeira ruptura com esse modelo, sendo a titulação de notório saber um mecanismo fundamental para a inclusão étnico-racial na docência.

Os docentes, como os terapeutas, são objetos de transferência7 7 Sobre a dinâmica da transferência na teoria psicanalítica, ver Freud (2010, p. 133). dos estudantes, que veem o professor ocupando o lugar daquele que sabe, diante deles que ainda não sabem, um processo chamado por Lacan (1992LACAN, J. O seminário: livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992., p. 35) de “sujeito suposto saber”. Freud (2014FREUD, S. Obras completas: volume 13: conferências introdutórias à psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 22), em conferência proferida em 1916, época na qual a psicanálise ainda estava se constituindo enquanto área do conhecimento, ao explicar as dificuldades metodológicas vinculadas ao ensino da nova ciência, definiu a análise como um tratamento baseado apenas na troca de palavras, atentando para o seu poder mágico, pois as “palavras evocam afetos e constituem o meio universal de que se valem as pessoas para influenciar umas às outras”. As comunicações de palavras necessárias à análise são fundadas numa ligação emocional entre o paciente e o médico, o que pode ser usado para se pensar o vínculo entre os mestres e mestras dos saberes tradicionais e os alunos de graduação e pós-graduação, que, pela primeira vez, podem criar afetos com as palavras ancestrais que são silenciadas pelo racismo epistêmico praticado nas universidades em seu confinamento racial.

Como bem afirmou o pensador camaronês Achille Mbembe (2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014., p. 10-18), em sua Crítica da razão negra, o pensamento europeu tendeu sempre a conceber a identidade não como copertença, mas tão somente como relação do mesmo ao mesmo, uma relação de espelhamento, de autoficção, autocontemplação e enclausuramento, que fez o negro ser aquele que é visto quando nada se vê, quando nada se quer compreender; o negro como libertador de dinâmicas passionais e irracionais que colocam em xeque a própria ideia de razão ocidental. Cabe às universidades brasileiras o papel de fomentar o debate público sobre as relações raciais e dar viabilidade ao “devir negro do mundo” (Mbembe, 2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.), com a inclusão dos sábios indígenas, negros, quilombolas e das culturas populares na docência, e seus saberes nos currículos de graduação e pós-graduação, contribuindo para a criação de um impostergável ambiente acadêmico antirracista e pluriepistêmico.

Encontro de Saberes e antropologia antirracista

Assim como todas as demais disciplinas constituídas na segunda metade do século XIX (como a arqueologia, a sociologia, a biologia, a linguística, a psicologia), a antropologia também uniu, em uma conjuntura histórico-cultural específica, o racismo científico e o racismo epistêmico. O racismo científico serviu de racionalização política para o colonialismo e o imperialismo dos países centrais europeus que constituíram a antropologia (principalmente Inglaterra e França) sobre os povos não europeus, na sua esmagadora maioria não brancos, isto é, inferiores aos europeus segundo os parâmetros desse racismo, cuja formulação emblemática foi a obra de Arthur de Gobineau (2022)DE GOBINEAU, A. Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Joinville: Editora Clube de Autores, 2022., Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. O destino da antropologia tal como a conhecemos hoje foi selado quando o livro de Anténor Firmin (1885)FIRMIN, A. De l’egalité des races humaines. Paris: Librairie Cotillon, 1885., De l’egalité des races humaines (A igualdade das raças humanas), publicado em 1885 em Paris, foi ferozmente silenciado durante um século, a ponto de que sua tradução para o inglês somente apareceu no ano 2002 (Firmin, 2002FIRMIN, A. The equality of the human races. Urbana: University of Illinois Press, 2002.); e, mais, sua segunda edição em francês saiu apenas em 2016!

Anténor Firmin era um negro haitiano que questionou as bases científicas da Sociedade Francesa de Antropologia, composta, até sua chegada, de antropólogos brancos. A antropologia foi formada, portanto, por uma dupla exclusão: antropólogos brancos estudavam os negros e os indígenas (os não brancos) baseados exclusivamente na episteme eurocêntrica, formando um dualismo cuja origem racista foi naturalizada ao longo do século XX: o sujeito da ciência, um branco, estuda o seu projeto científico, um não branco, sem nenhuma abertura para um diálogo interepistêmico.

O racismo epistêmico teve início quando os primeiros antropólogos ocidentais forcluíram8 8 Forclusão é um dos três mecanismos de negação inconsciente propostos por Sigmund Freud e posteriormente reelaborados por Jacques Lacan no Seminário 3 - As Psicoses (Lacan, 1985). A forclusão opera com um apagamento completo do significante, sem deixar rastro. No caso presente, uma vez afirmada (para si mesma) a suposta superioridade da episteme ocidental em relação a todas as outras, a validação científica dos saberes dos povos tradicionais nem sequer foi pensada como um tema a ser discutido. a possibilidade de que os sábios “nativos”, que em muitos casos eram seus “informantes” principais, fossem capazes de dialogar com eles em igualdade de condições a partir de seus horizontes epistêmicos específicos, sem a necessidade de serem primeiro formados na academia ocidental.

A antropologia brasileira (assim como todas as demais disciplinas) foi instalada com o mesmo duplo mandato: antropólogos brancos estudariam os negros e os indígenas brasileiros lançando mão exclusivamente dos parâmetros epistêmicos eurocêntricos. A colonização epistêmica demandou a exclusão étnica e racial. Se o haitiano negro Anténor Firmin foi silenciado na Europa, também deveria sê-lo no Brasil, mesmo quando sua obra teria tido um sentido muito especial no país, pois ela questionou com toda força o modelo racista de Arthur de Gobineau, o qual viveu no Rio de Janeiro e influenciou o pensamento dos antropólogos do Museu Nacional até quase a metade do século XX. Ou seja, a antropologia brasileira não apenas evitou discutir o racismo na nossa sociedade tudo que pôde, como também evitou enfrentar, com raras exceções, as bases racistas do pensamento de muitos dos nossos antropólogos.

O Encontro de Saberes possui, portanto, uma dimensão contrarracializadora que pode ser considerada como uma parte da descolonização epistêmica da academia. No momento em que os mestres negros e indígenas se apresentam como os legítimos representantes das epistemes não ocidentais (afro-brasileiras e indígenas), colocam um interdito racializado na pretensão universalizante dos acadêmicos brancos, que historicamente carregaram consigo a ilusão de que seriam capazes de estudar, compreender e finalmente representar, no ensino e na pesquisa, os saberes (científicos, humanistas, tecnológicos, etc.) de todas as tradições epistêmicas do mundo.

Unindo a dimensão do racismo fenotípico com a dimensão do racismo epistêmico no projeto colonial eurocêntrico da nossa academia, o Encontro de Saberes traz à tona as duas faces antípodas da racialização no ensino e na pesquisa no Brasil desde as nossas origens como sociedade nacional: a face racista (que excluiu os negros e indígenas de representarem os seus próprios saberes) e a face antirracista, que questionou a pretensão dos acadêmicos brancos ocidentais de prescindirem dos mestres negros e indígenas ao discorrerem e representarem os saberes afro-brasileiros e indígenas.

Referências

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  • 1
    Ver Carvalho (2006CARVALHO, J. J. de. A luta antirracista dos acadêmicos deve começar no ambiente acadêmico. Brasília: Universidade de Brasília, 2006. (Série Antropologia, 394)., 2016CARVALHO, J. J. de. Sobre o notório saber dos mestres tradicionais nas instituições de ensino superior e pesquisa. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa: Universidade de Brasília: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2016. (Cadernos de Inclusão, 8).).
  • 2
    “Ainda que toda cultura seja etnocêntrica, o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode pretender identificar-se com a ‘universalidade-mundialidade’. O ‘eurocentrismo’ da Modernidade é exatamente a confusão entre a universalidade abstrata com a mundialidade concreta hegemonizada pela Europa como ‘centro’. O ego cogito moderno foi antecedido em mais de um século pelo ego conquiro (eu conquisto) prático do luso-hispano que impôs sua vontade (a primeira ‘Vontade-de-poder’ moderna) sobre o índio americano” (Dussel, 2005DUSSEL, E. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. São Paulo: CLACSO, 2005. p. 25-34., p. 30).
  • 3
    Em Casa-grande e senzala, podemos ler a seguinte defesa explícita de Gilberto Freyre (2006FREYRE, G. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006., p. 323) à escravidão no Brasil: “Teria sido mesmo ‘um crime escravizar o negro e levá-lo à América?’, pergunta Oliveira Martins. Para alguns publicistas foi erro e enorme. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil […] tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo Europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime escravo.”
  • 4
    Ver Ponso e Albernaz (2021)PONSO, L.; ALBERNAZ, P. Relatos de experiências sobre o Encontro de Saberes na UFRR e na FURG. Revista Mundaú, [s. l.], v. 2, n. 9, p. 124-143, 2021..
  • 5
    É de se observar as ressonâncias entre a noção de confluência e o conceito junguiano de “sincronicidade” (Jung, 2014JUNG, C. G. Sincronicidade. Petrópolis: Vozes, 2014.). Em seu prefácio a I Ching: o livro das mutações, um clássico da sabedoria oriental (Wilhelm, 2006WILHELM, R. I Ching: o livro das mutações. São Paulo: Pensamento, 2006.), Jung (2006JUNG, C. G. Prefácio. In: WILHELM, R. I Ching: o livro das mutações. São Paulo: Pensamento, 2006., p. 16) observa que “o que chamamos de coincidência parece ser o interesse primordial desta mente peculiar e o que cultuamos como causalidade passa quase desapercebido”, pois “o emaranhado de leis naturais que constitui a realidade empírica é mais significativo para ele que uma explicação causal de fatos”.
  • 6
    Para uma argumentação mais detalhada sobre o tema, ver Carvalho (2016CARVALHO, J. J. de. Sobre o notório saber dos mestres tradicionais nas instituições de ensino superior e pesquisa. Brasília: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa: Universidade de Brasília: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2016. (Cadernos de Inclusão, 8)., 2021CARVALHO, J. J. de. Notório saber para os mestres e mestras dos povos e comunidades tradicionais: uma revolução no mundo acadêmico brasileiro. Revista da UFMG, Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 54-77, jan./abr. 2021.).
  • 7
    Sobre a dinâmica da transferência na teoria psicanalítica, ver Freud (2010FREUD, S. Obras completas: volume 10: observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia, (“O caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 133).
  • 8
    Forclusão é um dos três mecanismos de negação inconsciente propostos por Sigmund Freud e posteriormente reelaborados por Jacques Lacan no Seminário 3 - As Psicoses (Lacan, 1985LACAN, J. O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.). A forclusão opera com um apagamento completo do significante, sem deixar rastro. No caso presente, uma vez afirmada (para si mesma) a suposta superioridade da episteme ocidental em relação a todas as outras, a validação científica dos saberes dos povos tradicionais nem sequer foi pensada como um tema a ser discutido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2021
  • Aceito
    14 Fev 2022
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