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FEIN, Elizabeth; RIOS, Clarice (ed.). Autism in translation: an intercultural conversation on autism spectrum conditions. Cham: Palgrave Macmillan, 2018. (Culture, Mind, and Society). 304 p.

FEIN, Elizabeth; RIOS, Clarice. (ed.). Autism in translation: an intercultural conversation on autism spectrum conditions. Cham: Palgrave Macmillan, 2018. (Culture, Mind, and Society). 304 p.

O livro Autism in translation é resultado de um diálogo entre pesquisadoras e pesquisadores de várias áreas do conhecimento que se encontraram em um evento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2015, para a troca de ideias e experiências sobre (e com) o autismo nos Estados Unidos, no Brasil e na Itália.

Tendo em comum uma postura epistemológica e uma prática de pesquisa que busca a dessencialização e a contextualização social e política do autismo, o livro, além de ter como um dos seus pontos mais relevantes artigos escritos colaborativamente por pesquisadores e pesquisadoras de diferentes países, traz um instigante diálogo entre mães e pais de autistas, pessoas situadas no espectro e fora dele, com formação em antropologia, saúde coletiva, estudos da deficiência, etnomusicologia, linguística, psicologia, psiquiatria e psicanálise.

Como salientam Elizabeth Fein e Clarice Rios na Introdução, uma das qualidades do livro é colocar em diálogo a antropologia psicológica de linha norte-americana com a longa tradição de estudos em saúde coletiva na América do Sul. No entanto, o leitor depara-se com uma multiplicidade muito maior de perspectivas teóricas, epistemológicas e políticas que ampliam e tensionam esse diálogo. Já no título da coletânea, o uso do termo “conditions” ao invés do termo biomédico “disorder”,1 1 O termo médico em português é “transtorno do espectro do autismo”, e em inglês é “autism spectrum disorder”. para categorizar o espectro do autismo, indica um posicionamento de estudiosos e ativistas que, ao mesmo tempo que são sensíveis ao sofrimento e às dificuldades práticas e simbólicas do “viver no espectro”, defendem uma despatologização dessa condição/neurodiversidade. O livro está dividido em três partes, seguidas de uma síntese crítica da discussão em cada uma: I) Histórias políticas do autismo; II) Voz, narrativa e representação; e III) O conceito de autismo.

Após a Introdução, a primeira parte dedica dois textos à análise do autismo a partir de uma retomada histórica do contexto dos movimentos pela reforma psiquiátrica e suas influências nos EUA, Brasil e Itália. No capítulo 2, Rossano Cabral Lima, Clara Feldman, Cassandra Evans e Pamela Block mostram como as tensões no campo do ativismo pelo reconhecimento político e subjetivo das pessoas com autismo tomam forma no contexto do Brasil e dos EUA, países com histórias políticas e econômicas, sistemas e concepções de saúde, e ideais da relação entre o indivíduo e o Estado tão diferentes. Apesar desse primeiro texto também discutir as tensões internas entre os atores que disputam o status ontológico da categoria autismo, principalmente da presença marcante da psicanálise na reforma psiquiátrica brasileira, é no capítulo 3 que esse debate se adensa, agora nas comparações entre Brasil e Itália. Neste artigo, M. Ariel Cascio, Bárbara Costa Andrada e Benilton Bezerra Jr. dedicam-se a traçar um histórico das “matrizes epistêmicas” na área da saúde mental nesses países, mostrando como elas foram fundamentais para que hoje os paradigmas preponderantes na luta por direitos de pessoas com autismo sejam, na Itália, o autismo como “uma maneira de ser” e, no Brasil, como “uma deficiência”. Francisco Ortega, então, apresenta uma reflexão instigante sobre a complexidade das tensões e negociações presentes nestas disputas aparentemente antagônicas em torno da categoria autismo, e instiga o leitor a perguntar-se why not both?. Tal provocação do autor está diretamente ligada à sua reflexão, inspirada pela noção de global assemblages, de Collier e Ong (2005)COLLIER, S.; ONG, A. Global assemblages, anthropological problems. In: COLLIER, S.; ONG, A. (ed.). Global assemblages: technology, politics, and ethics as anthropological problems. Malden: Wiley-Blackwell, 2005. p. 3-21., sobre “como questões e controvérsias globais adquirem forma local” (p. 90, tradução minha) quando na prática da busca por direitos.

A segunda parte do livro é particularmente instigante, no sentido de que traz as narrativas dos próprios interlocutores autistas para reflexão sobre como o autismo se engaja com os sentidos, as linguagens e as formas de cognição. No capítulo 5, identificando-se como um etnomusicologista do autismo, Michael B. Bakan reflete sobre as “inter-relações entre mente, cérebro e cultura”, e pergunta-se sobre as possíveis especificidades dos resultados de estímulos musicais em artistas neurodiversos e neurotípicos, socializados em uma mesma cultura.

No capítulo 6, Elizabeth Fein desloca seu olhar para o ambiente no qual as pessoas convivem, entendendo o autismo como “um modo de engajamento” dos atores com os “sistemas ordenadores” do mundo a sua volta (p. 130-131). A partir da etnografia com três pessoas diagnosticadas com autismo, Fein argumenta que os testes diagnósticos denominados de ADOS partem de uma avaliação da habilidade das pessoas de performarem o que Giddens (1991)GIDDENS, A. Modernity and self-identity: self and society in the late modern age. Cambridge: Polity Press, 1991. chama de “pure relationship” (p. 145). As exigências de um “self puro individual” e de agir dentro de normas sociais precisas, mas demonstrando estar agindo “espontaneamente” e “livres de pressões socioculturais” são, para Fein, “imperativos culturais” incompatíveis com a forma autista de engajamento social, além de serem uma forma arbitrária e descontextualizada de avaliar a condição.

As narrativas em primeira pessoa também se fazem presentes no texto de Jurandir Freire Costa e Roy Richard Grinker. À luz da filosofia da linguagem e da fenomenologia, os autores analisam como pessoas no espectro constroem suas personalidades e vocabulários interpretativos de forma coerente, desconstruindo, por exemplo, as hipóteses psicobiomédicas de “ausência da teoria da mente” e do “déficit de coerência central”. Argumentam que “a cognição não é um processo desincorporado a ser julgado nos termos de um consenso neurotípico” (p. 160, tradução minha), e mostram como os “discursos de autistas são formas de resistência a discursos hegemônicos de autoridade” (p. 171, tradução minha). Essa segunda parte é finalizada com uma reflexão semiótica sensível de Laura Sterponi sobre as palavras, as vozes e os silêncios na forma como autistas engajam-se no mundo através da linguagem (p. 178).

O texto de Clarice Rios (capítulo 9) abre a terceira parte do livro com uma densa descrição etnográfica sobre a construção de expertise e a busca por orientação e acolhimento de mães e pais de autistas de uma associação chamada Círculo da Esperança, no Rio de Janeiro. Ao borrar as fronteiras entre o conhecimento das mães2 2 Utilizei o feminino para marcar a preponderância de mães nestes estudos, mas também há pais entre os interlocutores de Rios. e aquele técnico-científico dos experts, Rios horizontaliza saberes e demonstra que a expertise está relacionada não apenas ao acúmulo de informações adquiridas por essas mães, mas à sua capacidade de transformar sua experiência prática de ser mãe, de uma criança particular, em um contexto sociocultural específico de baixa renda, em conhecimento “explícito”, comunicado.

No capítulo 10, o texto de Enrico Valtellina traz uma crítica filosófica e social às categorias diagnósticas em si, analisando o autismo como uma classificação e um evento, sem deixar de identificar-se com traços da síndrome de Asperger. As disputas de poder nesse campo são retomadas no capítulo 11 em um debate sobre a “economia do autismo”, por Roy Richard Grinker, pai de uma autista famoso pela escrita do livro Unstrange minds, entre outros (Grinker, 2007GRINKER, R. R. Unstrange minds: remapping the world of autism. New York: Basic Books, 2007., 2010GRINKER, R. R. Autismo: um mundo obscuro e conturbado. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010.). O autor lembra que não podemos esquecer o fato de que o autismo é um fenômeno socialmente construído interligado a uma rede de relações econômicas que movimentam um extenso “complexo industrial do autismo” (p. 239, tradução minha). O antropólogo construtivista cultural americano M. Ariel Cascio comenta os textos acima mencionados apresentando uma reflexão sobre a polissemia da categoria autismo a partir de seus diferentes usos epistêmicos e estratégicos, e insere-se no debate trazendo uma análise de como o autismo se tornou uma interessante “lente utilizada pelos pesquisadores para entendem grandes questões”, ao mesmo tempo que pesquisadores usam essas grandes questões para entenderem como o autismo se tornou essa lente tão potente.

A coletânea apresenta ainda dois textos finais: Thomas S. Weisner analisa a polissemia da categoria autismo e aponta as contribuições da antropologia psicológica nessa área de estudos; e Daw Prince-Hughes surpreende o leitor com um texto sensível no qual, ao “brincar” com sua condição de autista na academia, nos remete a uma relativização que “humaniza” os “neurotípicos” do evento que chamou de joinful island of joy. “You are atypical people”, diz ele, referindo-se à pouca afetividade entre “acadêmicos sérios”.

Dentre todas as qualidades já mencionadas sobre essa coletânea, eu destacaria a sua capacidade de fornecer ferramentas para que várias áreas do conhecimento se identifiquem com os debates aqui levantados e percebam que a interdisciplinaridade é possível se houver um respeito de fato pela produção do conhecimento do “outro”. Encontramos aqui as disputas discursivas e epistemológicas entre experts e diferentes campos do conhecimento; etnografias densas e ricas para mergulharmos em situações de estranhamento e pensarmos a complexidade das práticas cotidianas de conviver com e estar no espectro; e o desafio técnico-político de ter que lidar com categorias diagnósticas extremamente flexíveis e polissêmicas na promoção de políticas públicas e direitos de cidadania.

Referências

  • COLLIER, S.; ONG, A. Global assemblages, anthropological problems. In: COLLIER, S.; ONG, A. (ed.). Global assemblages: technology, politics, and ethics as anthropological problems. Malden: Wiley-Blackwell, 2005. p. 3-21.
  • GIDDENS, A. Modernity and self-identity: self and society in the late modern age. Cambridge: Polity Press, 1991.
  • GRINKER, R. R. Unstrange minds: remapping the world of autism. New York: Basic Books, 2007.
  • GRINKER, R. R. Autismo: um mundo obscuro e conturbado. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010.
  • 1
    O termo médico em português é “transtorno do espectro do autismo”, e em inglês é “autism spectrum disorder”.
  • 2
    Utilizei o feminino para marcar a preponderância de mães nestes estudos, mas também há pais entre os interlocutores de Rios.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019
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