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Diarios de la India: experiencia de campo con una hechicera Brasileña

RESENHAS

Daniel Francisco de Bem* * Doutorando em Antropologia Social.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

BRUMANA, Fernando Giobellina. Diarios de la India: experiencia de campo con una hechicera Brasileña. Barcelona: Laertes Ediciones, 2009. 192 p.

Fernando Giobellina Brumana, argentino, é professor de Antropologia Social na Universidad de Cádiz, na Espanha. Há quase 30 anos pesquisa o campo religioso no Brasil, com foco nas religiões populares ou subalternas, assim denominadas pelo autor a partir da terminologia gramsciana. Essas seriam as diversas formas de cultos afro-brasileiros, bem como alguns setores do evangelismo, que não teriam nem seus agentes nem suas entidades reconhecidos pelas religiões centrais ou eruditas. Estas últimas monopolizam a legitimidade dentro do campo religioso no Brasil, enquanto as primeiras se submetem e existem como marginais, sendo pouco ou nada organizadas, com uma grande autonomia entre as comunidades litúrgicas, apresentando ainda uma significativa diversidade em suas práticas, discursos e experiências.1 1 Na introdução de Diarios de la India, Fernando Brumana reconhece a complexidade e dinamismo da vida religiosa americana - tanto em seus objetos de crença quanto nas relações políticas e interinstitucionais - quando comparada com a vida religiosa europeia. Esta seria baseada em um número menor de instituições religiosas historicamente mais estáveis e com papéis públicos mais ou menos apagados, mas sólidos no contexto de cada nação. No entanto, Enzo Pace, sociólogo da religião, professor na Universitá di Padova, adverte para a ilusão de subvalorizar a história e a importância do pluralismo religioso na Europa, agora atualizado e multiplicado pelo aporte das religiões migrantes (conferência no PPGAS/UFRGS, novembro de 2009).

Para além do estudo do campo religioso afro-brasileiro, o ponto de investigação mais recorrente nos trabalhos desse autor tem sido o da história da antropologia francesa, em textos sobre os primórdios do projeto etnográfico francês a partir da missão Dakar-Djibouti (1931-1933), sobre o pensamento de Marcel Mauss, de Roger Bastide e de Michel Leiris.

Possivelmente seja sob influência das reflexões a respeito dos clássicos franceses, com destaque para Leiris, que Brumana investiga os limites do conhecimento etnológico através da experiência de campo. Seu escrito mais recente, Diarios de la India, é a apresentação, rememoração e reflexão sobre o seu début na observação participante e na escrita etnográfica, justamente com o grupo organizado em torno da feiticeira referida no título do livro.

He deseado mostrar un trabajo de campo, el primero [...] que llevaba a cabo, en toda su vertiginosa confusión, en el extrañamiento que hace que el antropólogo, al menos durante un período que nunca es breve, se convierta en 'persona tercera' ya no gramatical, sino de algo abordado por su propio mundo conceptual [...]. Marginal de marginales, ese juego especular al que el investigador se entrega es el resorte mismo donde nace el conocimiento etnológico. (p. 12).

Em novembro de 1981, no bairro de Vila Brasilândia, em São Paulo, Fernando Brumana chega à casa da Índia, participando de seu cotidiano doméstico e da sua vida religiosa, por um ano, até entrar em rota de colisão com a feiticeira e ser expurgado de seus domínios. "Aunque en verdad, más que echarme de manera directa, me puso en una situación insostenible [...], y no tuve el juego de cintura suficiente para superar la situación, o quizás estaba ya muy harto de ella, de la casa y de todo." (p. 149-150). Dois meses depois, em fevereiro de 1983, a Índia morreria, e assim, "su muerte hizo estallar un círculo que sólo existía porque ella era el centro" (p. 44).

A coesão do círculo mencionado por Brumana estava no poder da Índia de convencer os membros de seus dons mágicos, uma vez que, em se tratando de uma religiosa subalterna, essa seria a única fonte de legitimidade a sustentar sua influência. O meio de convencimento eram as histórias e o carisma da Índia, e também sua capacidade de dar solução - ainda que de forma passageira - aos problemas e aflições a ela encaminhados. Brumana não se posiciona sobre a verdade ou mentira dessas soluções e dons, ou melhor, aprecia seu teor de mentira, igualando-o a seu potencial de convencimento, através da criação um discurso autônomo e com verossimilhança. Essas capacidades da Índia, valorizadas e/ou postas à prova nas suas interações com outros agentes religiosos, estavam em declínio e ao seu redor sobrara apenas um pequeno contingente, personagens como Cacá, marido e tamboreiro; Vera, sua protegida e cambona; João Francisco, sobrinho e principal médium; e outros mais que não chegam à soma de quinze participantes.

Sucintamente é esse o conteúdo de Diarios de la India: a história de um agente religioso contada a partir da memória e registros do investigador, escrita na "primera persona [que], hasta por la propia distancia en el tiempo, es en verdad una tercera persona, perdida en un mundo cuyos códigos tardaría aún bastante en descifrar"(p. 11-12). A Índia foi um ator com uma "performance" repleta de elementos de ambiguidade: entre grupo familiar e religioso, entre competência mágica e manipulação da fé alheia, entre o serviço espiritual benevolente e a busca por status e poder. Mesmo assim, estar sob a influência dessa personagem revelou ao cético a beleza da ação religiosa, em sua leitura culturalista, enquanto ordem sobre o caos:

Con su desempeño, con la pluralidad articulada de sus desempeños, la India y sus espíritus, los espíritus y su India, lograban crear un mundo cerrado sobre sí, de una densa realidad y de gran verosimilitud, contrapuesto al mundo circundante. Podría ser ésta una definición de teatro. Pero no era uno convencional. Se trataba de una manera radical de teatro vivido, sin límites temporales ni espaciales, un teatro que todos nosotros terminábamos llevando en nuestro interior. (p. 122).

Os capítulos se organizam da seguinte forma: a) na apresentação o autor contextualiza essa experiência etnográfica dentro de sua trajetória acadêmica e discute a forma da narrativa, "concreta, sensorial" (p. 11), e suas possibilidades como ferramenta epistemológica no entendimento da liminaridade enquanto experiência e fonte da interpretação do antropólogo; b) segue uma introdução na qual o autor teoriza sobre o campo religioso brasileiro, sobre o lugar das religiões subalternas naquele e sobre as características destas, tratando especificamente do candomblé e da umbanda; c) o primeiro capítulo versa sobre como Fernando Brumana conheceu a Índia; d) o segundo capítulo explora a biografia fantástica, misto de realidade e ficção, da protagonista; e) o terceiro capítulo apresenta os personagens, os vivos (os seguidores da Índia), mortos (os espíritos que incorporavam nela) e a estrutura das relações entre eles; e f) o último capítulo descreve as ações ocorridas em cerimônias importantes, realizadas dentro ou fora do terreiro, visitas da Índia ao centro de outra mãe de santo do mesmo bairro, acontecimentos atrelados à briga entre o antropólogo e sua informante e à doença e morte da Índia.

A narrativa engendrada pelo autor varia entre a "visão cênica" - na qual os fatos se desenrolam e temos o testemunho dos acontecimentos pela perspectiva do personagem, dos seus sentimentos e das reflexões resultantes - e uma "visão panorâmica" - em terceira pessoa, pontuada por alguns comentários atuais sobre as ações de então - utilizada para informações de entrevistas ou em pequenos voos teóricos, pincelados aqui e ali, durante o texto, vinculando esse caso particular ao universo cultural ao seu redor. Assim, Diarios de la India mostra-se como um belo fruto da maturidade intelectual de um pesquisador, recontando as descobertas, bloqueios, preconceitos e suas eventuais superações, no seu primeiro encontro com a alteridade cultural através do olhar antropológico.

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    Doutorando em Antropologia Social.
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    Na introdução de
    Diarios de la India, Fernando Brumana reconhece a complexidade e dinamismo da vida religiosa americana - tanto em seus objetos de crença quanto nas relações políticas e interinstitucionais - quando comparada com a vida religiosa europeia. Esta seria baseada em um número menor de instituições religiosas historicamente mais estáveis e com papéis públicos mais ou menos apagados, mas sólidos no contexto de cada nação. No entanto, Enzo Pace, sociólogo da religião, professor na Universitá di Padova, adverte para a ilusão de subvalorizar a história e a importância do pluralismo religioso na Europa, agora atualizado e multiplicado pelo aporte das religiões migrantes (conferência no PPGAS/UFRGS, novembro de 2009).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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