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Pentecostalismo e o sofrimento do (ex-)bandido: testemunhos, mediações, modos de subjetivação e projetos de cidadania nas periferias

Resumos

Este trabalho propõe a análise da experiência de sofrimento do ponto de vista do algoz da violência, tomando como perspectiva privilegiada dessa questão suas imbricações com experiências religiosas, particularmente as pentecostais. Para tal, analiso testemunhos dos chamados "resgatados da morte": grupo de homens com alguma passagem pelo mundo do crime, membros da Assembleia de Deus dos Últimos Dias (Adud), com sede em São João de Meriti, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. A via de redenção oferecida pela Adud a esses sujeitos apresenta-se como uma composição complexa de elementos significativos nesse processo: o acolhimento do sofrimento e da dor do bandido; o perdão de seus pecados; e a reconfiguração de sua subjetividade de fama e poder dentro do evangelho, a partir da figura potente do "resgatado". Essas práticas e representações combinadas, sugiro, dão forma a um dispositivo pentecostal particularmente eficaz para lidar com o sofrimento através do contornamento da vitimização.

crime; pentecostalismo; religião; sofrimento


This paper aims the analysis of the experience of suffering from the viewpoint of the executioner of violence, taking as its privileged perspective how this issue overlaps with religious experiences, particularly Pentecostal. To do this, I suggest the analysis of the testimonies of the so-called "rescued from death": a group of men somehow related in their past with crime experiences, nowadays members of the Assembleia de Deus dos Últimos Dias - Adud, headquartered in São João de Meriti, periphery of Rio de Janeiro. The path to redemption offered by this church to these subjects is presented as a complex composition of significant elements in this process: the acceptance of the suffering and the pain of the bandit; the forgiveness of their sins; and the reconfiguration of their subjectivity - based upon fame and power when related to criminal practices - into a gospel version of it, represented by the potent image of the "rescued". These combined practices and representations, I suggest, form a particularly effective Pentecostal device for dealing with suffering through the circumvention of victimization.

crime; Pentecostalism; religion; suffering


ARTIGOS

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Brasil

RESUMO

Este trabalho propõe a análise da experiência de sofrimento do ponto de vista do algoz da violência, tomando como perspectiva privilegiada dessa questão suas imbricações com experiências religiosas, particularmente as pentecostais. Para tal, analiso testemunhos dos chamados "resgatados da morte": grupo de homens com alguma passagem pelo mundo do crime, membros da Assembleia de Deus dos Últimos Dias (Adud), com sede em São João de Meriti, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. A via de redenção oferecida pela Adud a esses sujeitos apresenta-se como uma composição complexa de elementos significativos nesse processo: o acolhimento do sofrimento e da dor do bandido; o perdão de seus pecados; e a reconfiguração de sua subjetividade de fama e poder dentro do evangelho, a partir da figura potente do "resgatado". Essas práticas e representações combinadas, sugiro, dão forma a um dispositivo pentecostal particularmente eficaz para lidar com o sofrimento através do contornamento da vitimização.

Palavras-chave: crime, pentecostalismo, religião, sofrimento

ABSTRACT

This paper aims the analysis of the experience of suffering from the viewpoint of the executioner of violence, taking as its privileged perspective how this issue overlaps with religious experiences, particularly Pentecostal. To do this, I suggest the analysis of the testimonies of the so-called "rescued from death": a group of men somehow related in their past with crime experiences, nowadays members of the Assembleia de Deus dos Últimos Dias - Adud, headquartered in São João de Meriti, periphery of Rio de Janeiro. The path to redemption offered by this church to these subjects is presented as a complex composition of significant elements in this process: the acceptance of the suffering and the pain of the bandit; the forgiveness of their sins; and the reconfiguration of their subjectivity - based upon fame and power when related to criminal practices - into a gospel version of it, represented by the potent image of the "rescued". These combined practices and representations, I suggest, form a particularly effective Pentecostal device for dealing with suffering through the circumvention of victimization.

Keywords: crime, Pentecostalism, religion, suffering

A questão do crime violento é presença constante no imaginário social fluminense. O estado do Rio de Janeiro é pensando, enquadrado e retratado frequentemente a partir da temática da violência: seja esta produzida pelo narcotráfico ou pela polícia - ambos protagonistas dessa modalidade de violência física cruel que traz às manchetes de jornais e notícias na TV imagens de corpos feridos, cadáveres enfileirados, sangue nas ruas. Hipóteses acerca de uma sociabilidade violenta (tal como discutida por Machado da Silva, 2004) e da operacionalidade de uma metáfora da guerra (Leite, 1997, 2012), frequentemente acionadas para pensar-se acerca da realidade carioca, confirmam nas diretrizes analíticas o quão central para a questão urbana nesse estado o são as temáticas do crime e da violência.

Em segundo plano, sem os holofotes que privilegiam as imagens da morte e da crueldade, aparecem em meio às imagens do sangue escorrido em corpos e ruas a perspectiva daqueles que sofrem com o crime e com a violência.1 1 Pensar a violência a partir da perspectiva do sofrimento tem sido um caminho adotado por diferentes autores que se constituem como referência no campo, como Kleinman, Das e Lock (1997); Das et al. (2000); Biehl (2005); Sarti (2011). A experiência do sofrimento e sua expressão pública é uma presença simbólica e política importante no espaço público no estado Rio de Janeiro. Diferente da violência estampada nas manchetes dos jornais, a voz dos que sofrem com a violência ecoa através de outras formas: em "atos pela paz" (Birman; Leite, 2004), na expressão dos que clamam pelos "desaparecidos" na cidade (Araújo, 2012; Ferreira, 2011) e na revolta de familiares de vítimas da violência policial carioca (Farias, 2007; Vianna; Farias, 2011), para citar alguns exemplos. Enquanto a violência é exibida ostensivamente através de diferentes meios, o sofrimento busca visibilidade a duras penas, confrontando-se continuamente com a invisibilidade produzida pelo silêncio da dor e o silenciamento da injustiça (Farias, no prelo).

As "mães" de vítimas de violência no Rio de Janeiro são certamente responsáveis pelas imagens mais emblemáticas desse sofrimento na cidade.2 2 Cf. Vianna e Farias (2011), Brites e Fonseca (2013). Mães que choram por seus filhos e filhas que morrem cotidianamente no Rio de Janeiro, em suas favelas e periferias. Mães que lutam por justiça, que defendem a moral de seus filhos mortos. Mães de jovens inocentes. Mães, talvez, também de bandidos. E mães de policiais.3 3 Sobre mães de policiais, mortes violentas e práticas espíritas, ver Pereira (2012). Todas mães de pessoas que, nos lembram elas, não deveriam e muito menos mereciam morrer, independentemente de qualquer outro elemento de culpabilização e criminalização presente nesse jogo perverso da violência no estado do Rio.

A maioria dessas mães, e de seus movimentos organizados, embrenham-se na trama da limpeza moral de seus filhos. O próprio esforço em prol dessa limpeza moral dos mortos deixa clara a matemática perversa de um cálculo que tenta fechar objetivamente a conta de quem poderia ou não poderia morrer em cada contexto. Um cálculo que resulta em "matáveis", nos termos de Agambem (2002). E quem cometeu qualquer crime ou ato violento é sempre (mais) matável. Quem pegou em armas, quem foi violento, quem foi algoz, agressor, criminoso: estes merecem morrer.

O esforço pela limpeza moral das vítimas da violência na cidade engendrada por diferentes grupos de luta por justiça, portanto, opera em duas direções igualmente importantes. Por um lado, como mais fortemente discutido, desafia a criminalização generalizada das populações pobres e negras das periferias, evidenciando nesse esforço de defesa o absurdo do pressuposto de culpa que recai sobre os mortos pela polícia. Por outro lado, no entanto, dessa necessidade de "descriminalizar" o morto depreende-se um pressuposto de que, se efetivamente criminoso, sua morte não é digna de justiça. Ao contrário: sua morte é ela mesma um ato de justiça. Tal como apontado por Misse (2010, p. 17) na construção de sua categoria de "sujeição criminal", o "bandido", afirma este autor,

não é qualquer sujeito incriminado, mas um sujeito por assim dizer "especial", aquele cuja morte ou desaparecimento podem ser amplamente desejados. Ele é agente de práticas criminais para as quais são atribuídos os sentimentos morais mais repulsivos, o sujeito ao qual se reserva a reação moral mais forte e, por conseguinte, a punição mais dura: seja o desejo de sua definitiva incapacitação pela morte física, seja o ideal de sua reconversão à moral e à sociedade que o acusa.

Lutar por justiça pela morte de alguém que assumidamente tenha cometido um crime ou qualquer forma de ato violento é uma ideia praticamente inconcebível. Daí a tensa discussão acerca dos direitos humanos,4 4 A questão dos direitos humanos foi discutida e sistematizada pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em dois volumes sobre o tema: Novaes e Kant de Lima (2001) e Kant de Lima (2003). Nenhum dos dois livros aborda a questão das prisões ou da polícia, mas em ambos as tensões em torno da ideia de "direitos humanos universais" é tematizada em sua relação com populações específicas, e tais reflexões podem nos ajudar a pensar as questões aqui propostas. por exemplo, da população carcerária no Brasil, bem como da categoria policial (Muniz, 2006). Nesse sentido, para que uma morte possa ser interpretada pela opinião pública e pela própria Justiça como "injusta" torna-se fundamental a dissociação da vítima da condição de agressor. E, nesses termos, uma modalidade particular de pena de morte se forja no dia a dia da vida urbana fluminense.

A dimensão do religioso é frequentemente acionada na experiência e expressão daqueles que sofrem com a violência na cidade. Os atos pela paz, tal como discutidos por Birman e Leite (2004), são movimentos cívico-religiosos nos quais elementos performáticos e simbólicos das religiões (cristãs, em sua maioria) vêm à cena pública reforçar a legitimidade da dor dos que sofrem e expressar seu desejo por justiça. A expressão do sofrimento no Rio de Janeiro apresenta, muitas vezes, forma e conteúdo religiosos.

Pode-se dizer, em outros termos, que discursos e práticas religiosas constituem-se em ambiências privilegiadas para pensar a díade formada pela relação entre violência e sofrimento. A religião confere assim visibilidade privilegiada ao sofrimento - marca característica da matriz religiosa cristã brasileira - tanto em atos públicos de perfil cívico-religiosos que ocupam as ruas da cidade na luta por justiça, já citados, quanto através de práticas e intervenções propriamente religiosas de "combate" ou "prevenção" à violência.5 5 Essa temática, bem como os autores a ela referidos, serão tratados mais adiante neste artigo.

Este segundo campo de práticas aqui indicado, ou seja, as intervenções religiosas de combate à violência na cidade, reforça um aspecto da experiência do sofrimento que tensiona esse campo de forças já amplamente conflitivo: a visibilidade conferida nesses contextos religiosos ao sofrimento dos algozes. No âmbito dessas práticas expressam-se também - e com particular legitimidade - não apenas aqueles que perderam entes queridos em atos violentos (protagonistas dos "atos pela paz"), mas também aqueles que cometeram atos violentos e que os enunciam, muitas vezes com riquezas de detalhes, para falar de seu arrependimento. Nessa enunciação, algozes demandam também a condição de "sofredores", cujas dores estão relacionadas genericamente às "crueldades da vida" e especificamente às práticas estatais injustas e desiguais; ao abandono familiar; à dependência do álcool e das drogas; à pobreza; ao diabo, sua influência, sua astúcia.

A literatura sobre sofrimento aponta para a configuração de uma cartografia moral capaz de indicar quem pode sofrer, assim como onde e como deve-se viver esse sofrimento. Esse mesmo mapa moral define ainda a quem não cabe a experiência de sofrimento.6 6 Destaco, na análise de Sarti (2011) especificamente voltada para o campo da saúde, uma reflexão importante desta autora sobre a determinação social de certos grupos sociais como passíveis de sofrer atos violentos, e outros, não. Nesse mesmo processo, podemos pensar, certos grupos são reconhecidos como aqueles passíveis de causar atos violentos, e outros, não. Daí a produção conjugada de vítimas e agressores potenciais, sendo aos primeiros reconhecido o direito ao sofrimento e aos segundos, não. Essa cartografia intensamente dinâmica, pretendo enfatizar, é continuamente desafiada e alterada por projetos específicos que intentam reposicionar atores, alterando os regimes morais aos quais estes são submetidos.

O sofrimento conforma-se assim em uma categoria analiticamente interessante à reflexão sobre o agressor, o autor da violência, e sua condição enquanto sujeito moral. Se representado como um criminoso frio e sem arrependimento pelos seus atos, a ele não caberia a categoria "sofrimento" enquanto aquela que desperta compaixão solidária. Sua dor, não acompanhada por seu arrependimento, é entendida como merecida, inclusive as dores a ele imputadas pela ação violenta estatal, seja pela violência policial, ou no sistema prisional. O sofrimento do agressor seria a confirmação, nessa perspectiva, de seu merecido castigo.

Mas, se arrependido, o sofrimento reconhecido configura a passagem do algoz ao mundo dos redimidos. Sua dor é vertida em sofrimento, e devidamente legitimada enquanto via moral privilegiada para sua entrada no mundo da cidadania. A partir desse ponto, todas as suas dores são valorizadas positivamente como tormento de sua via crucis pessoal: as torturas que sofreu, as angústias que sentiu acerca das mortes provocadas, as vezes em que quase morto sobreviveu, suas cicatrizes, seus ferimentos, no corpo e na alma.

Este trabalho propõe a análise das políticas da moral e modos de subjetivação que atravessam a experiência de sofrimento de ex-bandidos, propondo essa discussão a partir de suas imbricações com complexas questões religiosas. Como campo de investigação, analiso os testemunhos dos "resgatados da morte": grupo de homens da Assembleia de Deus dos Últimos Dias (Adud), com sede em São João de Meriti, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, igreja liderada pelo pastor Marcos Pereira. Tendo por foco de suas ações a conversão de indivíduos de algum modo vinculados ao "mundo do crime", a Adud é um espaço simbólico privilegiado para a expressão e acolhimento do sofrimento do algoz da violência em suas mais variadas formas. Seja na condição de ex-bandidos (sem cumprir pena longa no sistema penitenciário) ou ex-presidiários, os relatos e as vivências desses sujeitos enunciados em seus testemunhos7 7 Sobre a categoria "testemunho", afirma Dullo (2011, p. 121): "Palavra que apresenta uma etimologia - traçada por Benveniste (1995, p. 275 ss.) e por Seligmann-Silva (2010) - que reforça a presença do sujeito em um evento ocorrido no passado, sua permanência e sobrevivência a ele. O testemunho cristão é uma forma de apresentação de si que explicita para os demais as transformações ocorridas em sua própria vida a partir de uma manifestação da Graça." conferem visibilidade a uma certa modalidade de dor e sofrimento bastante particular, na qual faz-se impossível a dissociação entre a violência cometida e a violência vivida; o sofrimento causado, e o sofrimento sentido.

Uma análise do sofrimento dos bandidos que leve em consideração as reflexões de Asad (1997) sobre a constituição de crueldades silenciosas e em segredo articuladas às ações do Estado moderno, pode nos possibilitar pensar no sofrimento do agressor a partir de um complicado processo de subjetivação em sua relação com as crueldades do Estado. Asad não pauta em suas reflexões a condição do algoz da violência, mas penso que esse desdobramento pode render importantes reflexões para o tema aqui proposto. Sugiro assim uma discussão acerca das crueldades das práticas estatais quando estas atingem não apenas aqueles considerados "inocentes" perante a Justiça, mas inclusive aqueles por ela condenados e que, mesmo nessa condição, sofrem. Acredito, portanto, que descriminalizar as populações atingidas pela violência do Estado a fim de garantir seu direito ao sofrimento pode ser uma via de legitimar a violência estatal contra a população condenada pela Justiça - seja na condição de população carcerária, de egresso do sistema prisional, ou de toda forma de criminalização produzida pelas práticas e razões do estado. Pensar acerca do que nos dizem de seus sofrimentos também aqueles enquadrados como "criminosos" diante da Justiça pode nos ajudar a aguçar nossa sensibilidade em relação às crueldades das razões do Estado e sua governamentalidade (Foucault, 1979, 2008a, 2008b).

Em seu debate sobre a noção de crueldade que prefigura os direitos humanos, Asad (1997) discute a complicada relação entre a noção de crueldade quando a ênfase recai sobre os atos do Estado moderno, em geral protegidos por uma ideia de violência necessária para o controle de populações não civilizadas. Asad faz assim discussões em torno das ações de tortura promovidas pelo Estado através da polícia, e indica como principal diferença das práticas ditas modernas não a ausência da crueldade por parte do Estado, mas de sua execução em segredo.

Asad (1997, p. 304) aponta para uma hostilidade própria à modernidade em relação à dor, e articula a essa hostilidade a definição de um limiar moderno de dor que não se dê em "excesso", sendo esse limiar do excesso diretamente relacionado a um conceito particular de ser humano: "It is not simply a matter of eliminating particular cruelties, but of imposing an entire modern discourse of 'human being', central to which are its ideas about individualism and detachment from passionate belief."

Negar a dor de um condenado pela Justiça, silenciar seu sofrimento, significa negar-lhe a condição de humano, nos termos apresentados por Asad. Destituir a humanidade daqueles referenciados pelo Estado e suas razões como "criminosos" significa abrir um espectro amplo e perigoso de criminalização e desumanização de todos e qualquer um, bastando para isso atribuir-lhes a condição de "fora da lei".

Longe de propor uma solução simplista e inútil na qual o sofrimento justifica o ato criminoso, pretendo analisar a imbricada trama de violências e sofrimentos que enredam esses "bandidos" a partir da luz que sobre esse fenômeno pode ser lançada quando a dimensão religiosa passa a ser um viés analítico privilegiado. Sugiro pensar-se sobre o sofrimento do algoz da violência e seu reconhecimento - acionados especialmente através dos discursos religiosos envolvidos em suas ações e em seus eventuais arrependimentos - enquanto uma modalidade de mediação central do processo de subjetivação de agressores, capaz de tornar a condição de agressor potencialmente transitória, e não uma condição subjetiva inevitavelmente permanente e imutável.8 8 Misse (2010, p. 21) indica em sua análise que o processo de "sujeição criminal" opera sobre uma condição do sujeito, e não sobre sua ação, forjando a criminalidade como essência, e uma essência irrecuperável: "Também por isso podemos considerar que a sujeição criminal é um processo de criminação de sujeitos, e não de cursos de ação. Trata-se de um sujeito que 'carrega' o crime em sua própria alma; não é alguém que comete crimes, mas que sempre cometerá crimes, um bandido, um sujeito perigoso, um sujeito irrecuperável, alguém que se pode desejar naturalmente que morra, que pode ser morto, que seja matável. No limite da sujeição criminal, o sujeito criminoso é aquele que pode ser morto."

O presente trabalho não pretende valorar o papel da religião na vida dos autores de violência. A ideia de que a religião "pacifica almas" não é, de modo algum, a abordagem aqui proposta. Muito menos o argumento moral de que esta ou aquela instituição é capaz de influir no cenário do crime com mais ou menos eficácia. Nem tampouco denunciar bandidos que supostamente "se escondem atrás da Bíblia", como modo de escaparem da legítima "justiça" que deveria atingi-los mais duramente.9 9 Sobre os múltiplos significados atribuídos às religiões pentecostais no interior das unidades penais e como eles circulam nesse campo, ver Scheliga (2005). Os discursos religiosos de autores de violência acerca de seu sofrimento, seus testemunhos, são aqui tomados como material analítico privilegiado para pensar modos de subjetivação que articulam, em trajetórias particulares, sofrimento, violência e religião, e problematizam ao seu modo políticas bastante estabelecidas do deixar morrer ou do fazer viver (Foucault, 2008a, 2008b) nas cidades brasileiras.

Cidadania como direito ao sofrimento e ao arrependimento: pentecostalismo e violência nas periferias

A relação entre o pentecostalismo e os contextos de violência nas periferias brasileiras é um tema que vem sendo analisado por importantes trabalhos no campo de pesquisas sobre religião e cidade.10 10 Almeida e D'Andrea (2004) discutem o associativismo religioso nas periferias de São Paulo como via de circulação de benefícios materiais e simbólicos, e modos atenuação da condição de "vulnerabilidade" na metrópole paulista. Mafra (2011) analisou a ideia de "cinturão pentecostal" (sugerida por Freston, e discutida por Almeida, 2011) e sua relação com territórios de pobreza e precariedade no Rio de Janeiro. Birman (2012) pauta em sua discussão formas diferentes da relação entre o religioso e o secular no enfrentamento da questão da violência no Rio de Janeiro discutindo, dentre outras temáticas, o projeto de "pacificação" nesse estado. Vital da Cunha (2009) evidenciou em sua pesquisa sobre traficantes evangélicos a presença de uma "gramática pentecostal" no cotidiano do crime em favelas cariocas. Mesquita (2009) discute a relação entre o pentecostalismo e a questão da violência nas periferias de Campos dos Goytacazes (RJ). Tal como sugerido por diversos autores, o pentecostalismo vem desafiando a hegemonia católica, especialmente nos centros urbanos e suas periferias, e isso produz importantes consequências analíticas ao se discutir a questão da violência e do sofrimento nas cidades.

Abrindo o diálogo com alguns dos trabalhos de destaque no campo, sugiro pensarmos nas especificidades de um dispositivo pentecostal para lidar com o sofrimento das populações das periferias urbanas. Esse dispositivo, sugiro, opera como um de seus principais diferenciais, gerando impactos importantes no campo religioso contemporâneo. O trabalho de Mafra (2011), por exemplo, confere especial atenção à experiência de "humilhação" dos pobres em uma metrópole fluminense dividida e de distâncias acentuadas. De acordo com Mafra, a formação de uma comunidade de irmãos é uma solução pentecostal para os conflitos e as desigualdades urbanas. Falar em "humilhação", pode-se dizer, é falar em uma certa modalidade de sofrimento, e o texto de Mafra (2011), sugiro, pode ser lido como uma discussão acerca desses dispositivos pentecostais para lidar com o sofrimento em contextos de pobreza e desigualdade aos quais me refiro.

A Assembleia de Deus dos Últimos Dias,11 11 As investigações desenvolvidas sobre a Assembleia de Deus dos Últimos Dias fizeram parte das atividades do projeto de pesquisa intitulado "Crime e religião: mediadores sociais do processo de pacificação na região metropolitana do Rio de Janeiro", financiado pela Faperj (APQ1), de 2011-2013. campo particular de interesse deste artigo, atua no "resgate" de ex-bandidos da vida do pecado, do crime e da morte, identificando como linguagem privilegiada desse projeto redentor o reconhecimento do sofrimento do bandido. Nesse contexto, "ex-bandidos"12 12 Destaca-se como referência na pesquisa sobre ex-bandidos e pentecostalismo o trabalho de Teixeira (2011). libertam-se dos sofrimentos vividos, mas também dos sofrimentos causados, sem um projeto de apagá-los de sua história de vida, mas sim mantendo-os vivos em seus testemunhos,13 13 Em seu trabalho de 2012, Mariana Cortês pensa a conversão religiosa como uma modalidade de gestão da diferença, dando destaque aos "testemunhos" formulados pelos ex-bandidos (ou "ex-tudo", como destaca Cortês) enquanto versões do sofrimento como "mercadoria simbólica": "A estranheza de suas histórias de vida, ao invés de ser 'resolvida' em um esforço de ordenação e purificação, é constantemente mobilizada nas performances de pregação, que agenciam o passado biográfico, em suas dimensões grotescas, como mercadoria simbólica a ser vendida no mercado religioso em expansão." (Cortês, 2012, p. 20). pois a memória desses sofrimentos é o que aumenta seu poder espiritual. "Onde abundou o pecado, superabunda a graça", afirma repetidamente o pastor. Em trabalho anterior sobre a Adud já nos referíamos ao espaço simbólico concedido nessa igreja para o "sofrimento do bandido" (Birman; Machado, 2012, p. 60). Esse aspecto, tratado de forma mais breve no referido artigo, é o centro da análise que pretendo aqui desenvolver.

O pastor Marcos Pereira, fundador e líder da Adud, iniciou sua carreira pastoral nos anos 1990 no presídio da Ilha Grande (RJ). De lá para cá expandiu sua atuação através da institucionalização de suas atividades. Suas ações nas penitenciárias do Rio de Janeiro ganham destaque no período dos governos de Garotinho (1999-2002) e Rosinha (2003-2007), ambos políticos reconhecidamente evangélicos, quando atuou como mediador em rebeliões de prisioneiros a convite do próprio governo do estado. Desde 2004, no entanto, o pastor Marcos Pereira foi proibido de entrar nos presídios do Rio de Janeiro por suspeita de ligação com o uma facção criminosa carioca.14 14 Em maio de 2013 o pastor Marcos Pereira foi preso, acusado de estupro. Em setembro de 2013, Marcos Pereira foi condenado a 15 anos de prisão. Até o presente momento da elaboração deste artigo, o pastor permanece encarcerado. Sua prisão deu-se em meio a muitas controvérsias envolvendo diferentes atores da cena pública fluminense, e é a culminância de um conjunto de acusações midiatizadas em final de 2012 pelo líder do Grupo Cultural AfroReggae José Júnior, que apontou o pastor Marcos à época como "a maior mente criminosa do Rio de Janeiro". As acusações na mídia contra Marcos Pereira foram de articulação com o crime e lavagem de dinheiro. Júnior acusou ainda o pastor de haver tramado contra sua vida. Até hoje a igreja defende seu líder e clama pela liberdade do pastor. Questiona os depoimentos das mulheres que acusaram Marcos de estupro dizendo que aqueles foram forjados pelos integrantes do AfroReggae. Questionam ainda a suspeita agilidade da Justiça na condenação do pastor. Voltarei a esse tema no final deste artigo.

Figura pública controversa, o pastor Marcos possui uma prática pastoral peculiar. Sua igreja, como outras igrejas pentecostais fluminenses, imbui-se do projeto não apenas metafórico de resgatar bandidos de uma morte espiritual causada pelo pecado, mas opera objetivamente no resgate de homens e mulheres (principalmente homens) ameaçados pelo tráfico, à beira da morte física. O que há de peculiar em suas ações é uma ostensiva produção audiovisual dessas ações de resgate e, através dessas imagens, a difusão de uma forte mensagem da conversão como via de libertação da morte para aqueles que levam uma vida no crime (Birman; Machado, 2012).

O dia a dia da igreja Assembleia de Deus dos Últimos Dias é fortemente informado pela imagem e pelos testemunhos dos "resgatados da morte". Eles são o símbolo do acolhimento que essa igreja oferece a todo tipo de pecador. Lá, dizem seus líderes, "não existe pecadinho e pecadão". Todos são pecadores e merecem perdão, caso se arrependam (Birman; Machado, 2012).

O projeto da Adud se apresenta no Rio de Janeiro, ao lado de outras igrejas pentecostais, com a missão de cuidar daqueles que ninguém quer, e com os quais ninguém se importa: bandidos, "drogados" e detentos. Por sua origem na prisão e sua frente institucional de tratamento ao dependente químico (o Instituto Vida Renovada15 15 O Instituto Vida Renovada é uma organização não governamental vinculada à Adud. Segundo o site da igreja: "Criado em 15 de Julho de 1999, o IVR tem como objetivo promover e acolher egressos do sistema penitenciário, dependentes químicos e pessoas marginalizadas, formulando soluções no desenvolvimento social econômico e cultural dos mesmos." (Assembleia de Deus dos Últimos dias, 2013). Sobre o IVR, sugiro a leitura do trabalho de Janine Silva (2014). ), a Adud reforça junto aos seus membros e em seu discurso político o interesse pela população tratada como escória da sociedade. "Daniel fez a diferença - afirma um pastor do púlpito da Adud, em um dia de homenagens ao pastor Marcos - Daniel fez a diferença porque ao invés de pensar 'é só mais um drogado, deixa morrer', o pastor vê a ovelha sangrando e diz: é minha, e eu luto pelo que é meu. Pode não valer nada para a sociedade, mas para mim, vale."

O discurso e as práticas pentecostais posicionam-se hoje nas periferias brasileiras como um espaço social privilegiado de acolhimento daqueles sujeitos mais fortemente marginalizados na sociedade: os algozes da violência. E a principal modalidade de relação do pentecostalismo com esses sujeitos é a valorização de seu sofrimento. Seus atos criminosos são interpretados não apenas como atos que causam a dor do outro, mas ações que geram sofrimento também em seu autor que, na leitura da batalha espiritual pentecostal (discutida por Mariz, 1999), está nessa luta não como sujeito de suas ações, mas como objeto nas mãos do diabo.

Minha vida é assim, é tão difícil suportar,

Vivo nos becos das favelas portando pistolas e fuzis.

Há quanto tempo que eu não sei o que é dormir.

Escravo da droga tendo que fugir para viver

E que me esconder pra não morrer, minha vida é assim.

Não suporto mais ver minha mãe chorando em desespero,

Aguardando a qualquer momento a notícia que eu morri.

Preenche o vazio que existe no meu coração,

Arrebenta as grades da prisão, me tira daqui.

[...]

Apenas um jovem tendo que suportar tamanho preconceito,

A sociedade diz que já não tem mais jeito pra mim.

Eu não tenho paz, não tenho alegria.

A palavra tristeza resume minha vida

Onde deixei o meu coração.

Minha esperança foi levada pelo vento

E com ela foram juntos os meus sentimentos.

Eu preciso de alguém que me estenda à mão.

Guerreiro do tráfico, pra muitos eu não passo de um viciado,

Sei que roubo, sei que às vezes até durmo armado,

Mas sei que Deus tem outra opção.

O sonho da minha vida é poder um dia construir uma família

E poder andar de cabeça erguida, ser tratado como cidadão.

(Canção intitulada Página em branco, interpretada por Elaine Martins, uma das cantoras de destaque na Adud).

Não é apenas através da voz da vítima que se fazem visíveis as crueldades do Estado em suas margens (Das; Poole, 2004). Também nas narrativas desses homens que assumidamente se envolveram com o crime, as drogas, e foram condenados pela Justiça é possível ouvir sobre os abusos e as práticas do Estado junto às populações criminalizadas. E mais: estes conhecem uma forma dessa crueldade que nenhum "trabalhador de bem" é capaz de relatar.

Os corpos marcados desses ex-bandidos são por si só testemunhos orgânicos de sua quase morte, e de seu resgate16 16 A questão da "ressocialização" e do resgate do bandido para a "cidadania" é apontada por Misse (2010) e amplamente analisada por Teixeira (2014). "por Cristo, pelo pastor e pela igreja": todos estes mediadores indispensáveis da relação desses algozes com a cidadania e a sociedade "de bem". A Assembleia de Deus dos Últimos Dias é uma igreja de cicatrizes. Corpos marcados pela experiência do sofrimento e da quase morte são muito visíveis: dificuldades motoras, cicatrizes, marcas de tiros, todos esses sinais do crime e do pecado, na versão teológica criminalista da Adud, convertem-se em sinais do poder de Deus de mudar a vida daqueles que a ele se entregam.

Em diversas ocasiões esses homens redimidos sobem ao púlpito, convocados pelos líderes da igreja, e testemunham sobre suas histórias de vida: contam sobre sua infância, sua família, o momento em que se "perderam" no crime, as tentações do mundo, o dinheiro, as mulheres, os tiros recebidos, as crueldades cometidas, a fama17 17 "Fame can be understood as a coding of influence - an iconic model that reconstitute immediate influence at the level of a discourse by significant others about it. [...] Acts are thus matrixed in a discourse or code that refers back to them. As iconic and reflexive code, fame is the virtual form of influence". (Munn, 1986, p. 117). e o poder alcançados, as drogas, até por fim chegarem a uma situação crítica, o "fundo do poço", a "quase morte", e serem resgatados pela igreja que os ofereceu acolhida e cuidado.

[...] porque eu roubei um celular, o celular era da mulher aqui da favela, aí os cara me pegaram às cinco horas da tarde, fiquei de oito e meia até meia-noite e meia apanhando na mão dos traficantes. Apanhei de tijolada, me bateram de madeira, abriram minha cabeça, minha testa. Saiu muito sangue. Aí eu pedi para eles pararem, e eles não paravam. Aí falaram "neguinho tu vai morrer", e eu falava "pelo amor de Deus"... Aí a equipe do pastor Marcos foi lá e me resgatou. (Testemunho do DVD Resgatados da morte, da Adud. A fala é acompanhada pelas imagens do rapaz no dia do resgate, exibindo os ferimentos aos quais ele se refere no depoimento: cortes profundos na cabeça e na testa).18 18 DVD disponível na íntegra no YouTube ( https://www.youtube.com/watch?v=JeZ9PhCjx2M&feature=kp).

Além do testemunho individualizado de seus corpos feridos e cicatrizados, e de suas histórias de vida narradas nos cultos e nos vídeos, esses ex-bandidos dão também testemunhos coletivos, em grupo. Em um poderoso jogral falado por mais de 50 homens simultaneamente, conjura-se uma personagem coletiva, performatizada pelo grupo de "resgatados" que enuncia em coro sua gratidão à igreja e ao pastor. Esse testemunho coletivo se realiza frequentemente dentro da igreja, quando todos os "ex" reúnem-se juntos à frente do templo falando palavras de ordem por Cristo, pela igreja, e pelo pastor. Mas esse coletivo dos "resgatados" é também acionado em ocasiões públicas fora da comunidade religiosa. Pude ouvi-los dando brados de vitória no ato de condecoração do pastor da igreja com o título de Benemérito do Estado, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. A potência desse ato é o testemunho de um trabalho que se apresenta não apenas como um projeto que atinge histórias singulares, mas também a história coletiva de um grupo de homens que se liberta do crime através da igreja.

O dispositivo pentecostal para lidar com o sofrimento dos algozes da violência e "convertê-los" em cidadãos opera assim a partir de discursos religiosos e seculares, práticas e experiências privadas e públicas. Na Adud, como em outros contextos em que se realizam práticas pentecostais de "combate ao crime", o sofrimento só torna-se operativo quando publicizado. Daí a centralidade dos testemunhos como forma privilegiada de expressão do sofrimento e mediação entre o subjetivo e o social.

A visibilidade e a invisibilidade do sofrimento do algoz: mídia e mediações no espaço público

O pentecostalismo e suas lideranças apresentam-se como mediadores de um contornamento do sofrimento que se desvia da vitimização, orientando-se para um protagonismo do sujeito marcado pelo sofrimento que faz de sua dor pregressa um elemento potencializador de sua nova condição de sujeito - individual e coletivo.

Mas, para além das performances face a face dos testemunhos dos "resgatados", há ainda a potência de expansão e circulação de suas mensagens que se realiza através dos testemunhos digitais. Vídeos nos quais diferentes elementos de suas histórias podem se mesclar, configurando uma mensagem multimeios de sua trajetória. Nos vídeos, os testemunhos ganham uma dimensão espacial com localizações concretas e territórios específicos: mostra-se o local onde o convertido viveu, sua casa, assim como os lugares em que se perdeu, o ambiente em que foi torturado pelo tráfico, ou as esquinas em que vendia drogas. Esses testemunhos têm ainda personagens variados: a mãe, um irmão, o membro da igreja que o acolheu, o pastor que o recebeu na igreja.

Este local aqui que vocês podem ver, eu fiquei junto com estes porcos amarrado para morrer. Minha cabeça dentro da lavagem de porcos. Participei desta comida onde que os porcos comem, e não tinha autodefesa, porque eu estava amarrado para morrer. Pegaram minha cabeça, e enfiaram dentro da lavagem dos porcos. Aonde que eu fiquei com a minha cabeça praticamente uns cinco minutos naquela comida. Entrava comida dentro do meu nariz, dentro do meu ouvido, e ali verdadeiramente eu sem ar, minha cabeça dentro da lavagem, minha cabeça sangrando e eu perdendo sangue, por causa verdadeiramente eu não tinha a defesa porque o meu corpo estava amarrado, as minhas mãos estavam algemadas, e os traficantes não cansavam de me bater. Ele pegava minha cabeça e enfiava cada vez mais na lavagem dos porcos. (Testemunho do DVD Resgatados da morte, da Adud. As imagens iniciais mostram o momento do resgate do autor do testemunho, exibindo seus ferimentos e seu corpo ensanguentado. Todo o testemunho é filmado em um local com porcos, e tanques com a lavagem servida aos porcos. O autor do testemunho faz sua fala teatralizando os movimentos da tortura vivenciada).

Destaca-se nesses testemunhos digitais, além de seu aspecto espacial, a dimensão temporal que é capaz de (re)apresentar: o momento do resgate da morte (em geral filmado ao vivo pela igreja); a chegada do jovem ferido ao templo; seu corpo sangrando; dias depois, o momento em que ele já reaparece com curativos e imobilizações; sua nova vestimenta - o terno; até que esse jovem apresenta-se no vídeo convertido, dando seu testemunho de uma nova vida cidadã, em Cristo.

O efeito audiovisual mais significativo utilizado nesse testemunho da mudança é o da tela dividida ao meio, tendo de um lado a imagem do jovem maltrapilho, ferido, drogado, e do outro lado sua imagem redimido, de terno, na igreja, contando sua história de salvação. Ao tempo e espaço da perdição são contrapostos e justapostos o tempo e o espaço da redenção.

Essas imagens reinvestem-se também no dia a dia da igreja. O testemunho ao vivo no culto é acompanhado por essas imagens do passado, do resgate, da dor. As telas na igreja também se dividem ao meio. De um lado, o passado. Do outro, o presente. O mesmo presente que se assiste ao vivo, e que se replica nas telas, gerando um efeito de multitemporalidade: o presente ao vivo, o presente na tela, e o passado na tela. Projetados para além das imagens, ainda, outros dois tempos completam o enredo: o tempo da morte da qual se escapou, e o futuro no céu, com Cristo.

O relato dos atos cruéis cometidos por esses homens antes da conversão torna-se fala legítima quando enquadrada enquanto testemunho. Suas histórias podem ser contadas até entusiasticamente. Parte significativa da vida desses homens pode ser acionada, com um orgulho torto, ambíguo, de quem sabe que não deve se orgulhar do pecado, mas revive ali a emoção e a "adrenalina" do crime. O testemunho permite reviver-se a lembrança do ato criminoso, sem culpa. Afinal, no enredo da história em forma de testemunho, após o prazer do crime vem o sofrimento, a dor, e o arrependimento. O prazer é testemunhado enquanto ilusão, fantasia e enganação demoníaca. O sofrimento, este sim, é o enunciado do real.

Outra característica desses testemunhos é o grau de importância e gravidade que o relato sob a forma de testemunho é capaz de conferir aos atos cometidos, se comparados com o status destes no "mundo do crime". O perfil dos homens da Adud é de jovens com incursões muitas vezes tímidas no crime. Seus pequenos atos ganham, no testemunho, aura de grande delito. E "quase bandidos" forjam-se rapidamente em "importantes ex-bandidos" na economia de almas da igreja que tem seu mérito confirmado pelo demérito daqueles que salva.19 19 Foucault (2008b), ao referir-se ao poder pastoral cristão como elemento constitutivo das razões do Estado moderno, formula a ideia de uma "economia das almas" própria ao pastorado, na qual o mérito do pastor depende do demérito da ovelha. Na genealogia foucaultiana, essa é uma das bases da conformação de uma concepção de sujeitos que necessitam de um governo, como ovelhas perdidas, e assim demandam a condução de suas condutas, o governo de suas almas.

Essa projeção da fama20 20 A relação direta entre fama e mídia pode "simplificar" de maneira prejudicial a análise dos aspectos aqui analisados, reduzindo-os a um debate restrito ao circuito dos meios de comunicação de massa. O sentido antropológico da "fama" em Gawa, tal como discutido por Munn (1986), onde as mídias de massa não ocupam a cena, destaca elementos que explodem o conceito de "circulação da fama" para além das especificidades do campo midiático, expandindo seu uso analítico como categoria social. Apresentada como uma "dimensão circulante da pessoa" (Munn, 1986, p. 105) para além de sua presença física e que enquanto tal cria valores positivos, essa leitura antropológica da fama faz das mídias de massa apenas mais uma de suas formas de mediação, sem uma atribuição de exclusividade ou preferência para esse formato. de trajetórias criminais muitas vezes tímidas é reforçada pelo elemento midiático do projeto da Adud. Os "resgatados" não são apenas homens convertidos dentro da igreja, vivendo ordinariamente sua vida cidadã, mas membros de uma banda gospel, protagonistas de DVDs, missionários nas favelas e agentes de novos resgates de almas, tornando-se personagens conhecidos para aqueles que acompanham o trabalho da igreja. São conhecidos e reconhecidos pelo nome, voltando a viver uma modalidade de fama e poder, agora legítima, pois seus atos, em última instância, conferem "a Deus toda honra e toda glória".

A via de redenção oferecida pela Adud é, assim, uma composição complexa de diferentes elementos significativos: o acolhimento do sofrimento e da dor do bandido; o perdão de seus pecados - não importando quais sejam; a valorização - e mesmo supervalorização - de seu passado no crime como prova do poder redentor de Cristo; a reconfiguração de sua subjetividade de fama e poder dentro do Evangelho, a partir da figura potente do "resgatado"; a difusão de suas práticas através de diferentes meios e mídias que afirmam a legitimidade dessa sua nova posição no mundo, posição esta que engloba o criminoso que ele foi, indispensável na configuração do missionário que ele passa a ser. É esse conjunto de práticas, discursos e mediações que denomino aqui de dispositivo pentecostal para lidar com o sofrimento através do contornamento da vitimização.

A potência do bandido investe de força o evangelista que ele se torna. Daí o sentido da tela dividida ao meio em seu testemunho. Menos uma confirmação da linearidade temporal que conduz o jovem do passado no crime a um presente cidadão na igreja, a tela dividida é um símbolo do presente, presente este dependente dessas duas faces do convertido, ali atualizadas. A tela dividida permite a presentificação da força virtual do bandido e o poder atual do convertido.

A mídia é certamente um dos elementos centrais nesse projeto de potencialização. O sofrimento midiatizado projeta e potencializa os "resgatados da morte". Ao invés de sair do crime para fadar-se ao anonimato da pobreza, o "ex-bandido" passa a ocupar um lugar de destaque, conhecimento no meio, e o reconhecimento que o acompanha. Recebe um novo nome (diferente de seu nome no crime), e é conhecido por ele: evangelista Paulo, evangelista Daniel. Tornam-se personagens, no sentido em que suas trajetórias individuais tornam-se tipos ideais que representam os sofrimentos de vários em um, e um caminho possível de reestruturação da vida e da subjetividade.

Essa mídia é ainda uma mídia autoral: os "resgatados" não são apenas aqueles que aparecem nos vídeos ou executam as canções. Eles são autores e compositores. São eles mesmos os responsáveis pela filmagem dos vídeos e sua edição. São os próprios "resgatados", igualmente, os autores das canções que são executadas por eles. Esse protagonismo, afirmo, é mediação indispensável na passagem do lugar de bandido para o lugar de evangelista. Se o crime um dia concedeu a eles um papel de destaque social, agora quem o concede é a igreja.

Parte do valor do crime é essa modalidade particular de fama que ele é capaz de acionar. O crime retira o pobre desconhecido do lugar de anonimato e o projeta à condição de "bandido famoso". A fama, nesse caso, refere-se à sua crueldade ou ao seu suposto poder, em geral um poder de vida e de morte. Por isso a presença no cotidiano das cidades de narrativas, muitas vezes superdimensionadas, construídas acerca da "fama do bandido". As histórias contadas sobre ele são parte indispensável de seu lugar privilegiado no mundo do crime. O crime tem assim sua própria versão de "testemunho": o relato do crime cometido, sem o qual a ação perde potência, visto que a força do ato criminoso está também em sua circulação e divulgação.

Na versão pentecostal, a "fama do bandido" é reinventada, mas não dispensada. O que lhe confere fama nesse novo contexto é também a crueldade de seus atos cometidos no crime, mas o que mais se destaca é o sofrimento por ele vivido e sua capacidade de resistir, de sobreviver. Seus testemunhos são assim novas narrativas de sua história subjetiva, e esses que antes contavam histórias exclusivamente ligadas às glórias do crime contam agora outras histórias que incluem parte das histórias do crime, mas que vão para além destas, destacando menos suas ações cruéis e mais os seus sofrimentos, e exaltando ao final a "glória de Deus". Mas garante-se a esses homens nesses contextos religiosos o direito de contarem suas histórias, sem condená-los exclusivamente ao silenciamento e à vergonha.

O tema da "fama" é uma questão antropológica potente para análises acerca da noção de pessoa e dos processos de subjetivação. Em sua análise da fama em Gawa, Munn (1986) discute o modo como a transformação espaço temporal dos valores dos agentes em relação gera efeitos em certos tipos de práticas e pode ser percebida também como transformações no valor do self dos atores (Munn, 1986, p. 15). Dessa forma, os atos produtores de valor produzem efeitos diretos sobre a criação dos valores que os membros de determinado grupo fazem de si mesmo.

Essa ideia de um gradiente de valor dos agentes é, certamente, uma pista importante para o que aqui podemos falar sobre a fama dos agentes religiosos em discussão. A fama do ex-bandido, agora evangelista famoso, o coloca numa posição privilegiada de mediador: mediador entre o crime e a igreja; entre o bandido e a polícia; entre os famosos da mídia e os famosos da igreja; entre o crime e o Estado; e entre a igreja e o Estado.

As igrejas pentecostais do Rio de Janeiro são hoje espaços privilegiados de mediação da vida social conflitiva que marca o cotidiano das periferias fluminenses. No templo da Adud reúnem-se frequentemente bandidos, policiais, "famosos", políticos. Esses diferentes atores nem sempre se encontram sentados lado a lado na igreja, convergindo em seus projetos e intenções. Mas o que pretendo aqui destacar é a sua presença constante nessa igreja. Presença essa muitas vezes simultânea, mesmo que divergente. E este potencial de congregar divergências é uma das marcas de projetos como os da Adud e suas lideranças. Proponho-me neste momento do texto a apresentar alguns casos onde esse potencial se realiza em situações específicas.

A Adud conta em seu rol de evangelistas com o cantor Waguinho. Ex-integrante do grupo de pagode Os Morenos, Waguinho conta em seu testemunho como em sua vida a "fama do mundo" foi apenas uma ilusão, e como ele se perdeu no "mundo das drogas". Waguinho não relata envolvimento com o crime, mas com a "fama" e seus malefícios, sendo a droga o principal deles. Sua narrativa de sofrimento, e do momento em que chegou ao "fundo do poço", inclui uma experiência de quase morte por causa das drogas. Sua recuperação, conta o pagodeiro, se deu no Instituto Vida Renovada, da Adud. Waguinho atualmente é figura central do projeto religioso e secular da Adud.

Sua condição de "famoso" na mídia secular abre portas para a Adud e faz dele um mediador privilegiado dessa instituição. Waguinho, hoje cantor de pagode gospel, vai com certa frequência a programas de TV contar sua história e dar seu testemunho. Quando eventualmente pedem para Waguinho cantar seu hit secular Marrom bombom,21 21 "Tira a calça jeans/Bota o fio dental/Morena você/É tão sensual/Na areia nosso amor/No rádio o nosso som/Tem magia nossa cor/Nossa cor marrom/Marrom bombom." (Os Morenos). com o qual foi sucesso no grupo Os Morenos, ele cantarola o refrão da música com a mesma melodia, mas outra letra: no lugar de "marrom bombom", Waguinho canta "Jesus é bom". Aproxima-se também de outros cantores de pagode e funk, às vezes mesmo participando de seus shows, e levando a mensagem pentecostal em ambientes seculares do mercado musical brasileiro. Waguinho também consegue levar esses músicos "do mundo" a eventos evangélicos. O lançamento de seu CD na casa de espetáculos Via Show, na Baixada Fluminense, realizado em 2012, contou com a presença de Neguinho da Beija-Flor,22 22 Neguinho da Beija-Flor é um intérprete de samba conhecido nacionalmente, com importante carreira na música popular brasileira, e puxador dos sambas-enredo da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, cidade da Baixada Fluminense, região onde se localiza a Adud. dentre outros convidados. Em uma das celebrações na Adud, Waguinho levou o grupo de pagode Bom Gosto23 23 Grupo musical brasileiro de pagode formado em 1997, que alcançou as paradas de sucesso do ano de 2007 com o lançamento de seu primeiro CD, firmando-se no mercado até o presente momento. ao culto, e com eles cantou Segura na mão de Deus.

A visibilidade conferida à Adud por Waguinho, e a ele pela Adud, expandiram-se para o campo da política. Waguinho foi candidato ao Senado pelo estado do Rio de Janeiro e, mesmo não eleito, alcançou mais de um milhão de votos. Sua candidatura ao governo do estado foi fortemente cogitada após essa votação expressiva alcançada na campanha ao Senado. Waguinho, o pastor Marcos Pereira e outros evangelistas da Adud ocupam assim também um lugar no campo da política fluminense. Além de Waguinho, o irmão do pastor Marcos Pereira, Alan Pereira, foi também candidato nas eleições cariocas, concorrendo ao cargo de vereador na cidade do Rio de Janeiro. Frequentam os cultos da Adud nomes de destaque na política fluminense, desde vereadores locais até deputados federais e senadores. O pastor Marcos já foi condecorado duas vezes na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e também nesses dois atos públicos recebeu apoio de diferentes políticos do legislativo fluminense.24 24 Em 2011, o pastor Marcos Pereira recebeu na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro a Medalha Tiradentes. E em 31 de agosto de 2012, o título de Benemérito do Estado do Rio de Janeiro.

Mas para além do campo formal da política partidária, a Adud produz modalidades específicas de relação com as políticas públicas fluminenses, particularmente, nos últimos anos, com o projeto de pacificação25 25 Segundo os dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro, no site da UPP: "As UPPs trabalham com os princípios da polícia de proximidade, um conceito que vai além da polícia comunitária e que tem sua estratégia fundamentada na parceria entre a população e as instituições da área de segurança pública. A atuação da polícia pacificadora, pautada pelo diálogo e pelo respeito à cultura e às características de cada comunidade, aumenta a interlocução e favorece o surgimento de lideranças comunitárias. O programa das UPPs engloba parcerias entre os governos - municipal, estadual e federal - e diferentes atores da sociedade civil. Projetos educacionais, culturais, esportivos, de inserção social e profissional, além de outros voltados à melhoria da infraestrutura, estão sendo realizados nas comunidades por meio de convênios e parcerias firmados entre segmentos do poder público, da iniciativa privada e do terceiro setor." (Rio de Janeiro, [s.d.]). da segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Uma parceria com a Unidade de Polícia Pacificadora do Turano, favela da zona norte da capital carioca, fez com que a Adud se tornasse local privilegiado de interlocução dos policiais ali alocados para o tratamento do "problema das drogas" naquela localidade. Carros da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) levavam à Adud pessoas "em sofrimento" para tratamento de sua adição no Instituto Vida Renovada. A relação direta estabelecida entre aquela UPP e a Adud foi performatizada no ato público de comemoração do aniversário de um ano daquela unidade policial durante o qual a Adud conduziu parte da celebração formal, lado a lado com figuras importantes do poder executivo fluminense, dentre eles o secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame, principal nome da pacificação do Rio de Janeiro.

A relação da Adud com a polícia indicava àquela época uma nova frente de parcerias da igreja. Durante a maior parte dos mais de 20 anos de existência da Adud, questionava-se na esfera pública sua proximidade com o mundo do crime e com as facções criminosas fluminenses, especialmente o Comando Vermelho. A circulação de "bandidos" pelos espaços da Adud era uma denúncia frequente contra a igreja, acusada muitas vezes de acolhê-los para escondê-los. Ouvi dos novos parceiros policiais da Adud que eles mesmos teriam começado a frequentar a igreja na busca por foragidos da polícia. Mas diziam esses policiais em seus testemunhos que, ao sentarem nos bancos da igreja, puderam ver mais do que isso: viram um trabalho de "poder" e de combate ao crime no Rio de Janeiro. E a esse projeto alguns desses policiais se associaram.

A relação da Adud com o crime se realiza, assim, em um complicado espectro que vai do combate à proximidade. A seu favor, a ideia de que a proximidade é indispensável ao seu projeto de combate ao crime, entendido não como responsabilidade do criminoso, mas como ação diabólica que se dá através dele. A proximidade do crime é assim fundamental para a escuta acolhedora do sofrimento do bandido e sua possível salvação. Contra a igreja, uma compreensão das práticas da Adud como mais uma versão dos ilegalismos26 26 Sobre o tema dos ilegalismos, ver Telles (2010). característicos da vida urbana na atualidade, que se configuraria como uma forma perigosa de poder, forjada lado a lado com o crime, sua proteção e seus próprios métodos. A Adud, nessa interpretação, teria suas práticas associadas a uma facção criminosa carioca e seus mediadores, esses sim os verdadeiros responsáveis e facilitadores das ações atribuídas à Adud, tais como o término de rebeliões em presídios e a intervenção nos tribunais do tráfico.

Esse campo complexo de questões evidencia o papel de destaque da Adud e seus agentes na cena pública carioca. Evangelistas, pastores, cantores, todos os atores associados à Adud mantêm-se de algum modo como mediadores privilegiados em situações de conflito e de tensão. O projeto pentecostal, nesses termos, apesar da mediação privilegiada do sofrimento do algoz, não produz como resultado sujeitos "pacificados",27 27 A ideia de "pacificação" vem ganhando sentidos variados na atualidade ao articular significados históricos a outros contemporâneos, especialmente aqueles impulsionados pelas questões em torno da "política de pacificação" da segurança pública fluminense e suas Unidades de Polícia Pacificadora. Para uma análise adensada do tema da "pacificação", conferir Birman (2012), Machado (2013) e Oliveira (2014). corpos domesticados e práticas docilizadas. Os "resgatados da morte" mantêm-se na cena pública em um contexto de conflito e guerra. E sua fama nesse "cenário de guerra" desenvolve-se simultaneamente em duas direções: ora no sentido da exaltação de seu trabalho missionário voltado para o combate ao crime, ora na direção das denúncias contra a igreja e seu pastor enquanto agentes articulados ao mundo do crime.

Considerações finais

O trabalho aqui apresentado propôs-se o delicado desafio antropológico de discutir o sofrimento de algozes da violência. Analisando as práticas da Assembleia de Deus dos Últimos Dias, discutiu-se o ex-bandido redimido e os mediadores político-religiosos que operam nesse projeto de salvação.

Asad (2003) afirma que a dor pode ser pensada não apenas como uma causa para a ação, mas como um tipo de ação. Asad posiciona-se contra uma concepção que associa toda forma de agência à ausência racional e/ou secular do sofrimento, e a vitimização à presença emocional e/ou religiosa da dor. "Sofredores são também pessoas sociais", afirma Asad (2003, p. 85), "e seu sofrimento é parcialmente constituído pela forma através da qual eles habitam, ou são constrangidos a habitarem, suas relações com os outros". Sofrer não é assim retirar-se do mundo, mas agir nele.

Pretendi neste trabalho evidenciar a "agência através da dor" de algozes da violência, e as consequências de uma ação de reconhecimento de seus sofrimentos que não redunde em justificativas de seus atos, mas na escuta interessada daquilo que só eles podem nos fazer ouvir acerca do mundo da política, e das razões e "desrazões" do Estado em suas práticas. Para tal, discuti os modos de operação de um dispositivo pentecostal que lida com o sofrimento do algoz através de um contornamento da vitimização, reposicionando-o no mundo da cidadania não como um anônimo, mas como mediador privilegiado de conflitos e tensões da cena urbana. Um mediador controverso, poroso, complexo, não domesticado e nada docilizado.

Depreende-se desta análise do sofrimento dos algozes formas cruéis da atuação do Estado em suas margens. Os testemunhos dos ex-bandidos da Adud conferem especial visibilidade ao excesso de violência, à tortura, ao uso abusivo da força através do aparato policial e penitenciário. No conteúdo de suas histórias encontram-se dores que se expressam violentamente, e que de tão violentas em sua expressão nos fazem considerar o teor das violências sofridas por esses algozes, as quais nem somos talvez capazes de imaginar se não nos dispusermos a ouvir seus testemunhos, sem lhes negar a palavra, e ao mesmo tempo sem lhes justificar os atos.

A condição redentora do encarceramento é um elemento deste trabalho que, acredito, mereça futuros desenvolvimentos. Metáforas do aprisionamento vêm se multiplicando nos contextos religiosos evangélicos, tal como a categoria de "alvará espiritual" sugerida pela Adud,28 28 Letra da música Alvará, interpretada por Waguinho: "Só quem já sofreu atrás das grades/Sabe o que a dor de uma saudade/Longe da família, longe dos amigos/Olha o que o inimigo fez contigo/Agora está na hora de se libertar/Jesus está chegando com seu alvará/Ele resolve os problemas/E vai tirar as algemas." os rituais de "libertação das correntes", os cultos voltados para os "processos", dentre outros vários exemplos que vão nessa direção da judicialização também das práticas religiosas e da configuração de uma tensão aberta entre uma justiça dos homens (as formas jurídicas do Estado) e a justiça de Deus. Pensar o sofrimento a partir do encarceramento e a judicialização das experiências religiosas como recorte analítico pode ser assim uma pista de continuidade para as questões aqui propostas que, espero, possam inspirar outras leituras para esse controverso campo de reflexões.

Recebido em: 30/12/2013

Aprovado em: 09/06/2014

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  • Pentecostalismo e o sofrimento do (ex-)bandido: testemunhos, mediações, modos de subjetivação e projetos de cidadania nas periferias

    Carly Barboza Machado
  • 1
    Pensar a violência a partir da perspectiva do sofrimento tem sido um caminho adotado por diferentes autores que se constituem como referência no campo, como Kleinman, Das e Lock (1997); Das et al. (2000); Biehl (2005); Sarti (2011).
  • 2
    Cf. Vianna e Farias (2011), Brites e Fonseca (2013).
  • 3
    Sobre mães de policiais, mortes violentas e práticas espíritas, ver Pereira (2012).
  • 4
    A questão dos direitos humanos foi discutida e sistematizada pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em dois volumes sobre o tema: Novaes e Kant de Lima (2001) e Kant de Lima (2003). Nenhum dos dois livros aborda a questão das prisões ou da polícia, mas em ambos as tensões em torno da ideia de "direitos humanos universais" é tematizada em sua relação com populações específicas, e tais reflexões podem nos ajudar a pensar as questões aqui propostas.
  • 5
    Essa temática, bem como os autores a ela referidos, serão tratados mais adiante neste artigo.
  • 6
    Destaco, na análise de Sarti (2011) especificamente voltada para o campo da saúde, uma reflexão importante desta autora sobre a determinação social de certos grupos sociais como passíveis de
    sofrer atos violentos, e outros, não. Nesse mesmo processo, podemos pensar, certos grupos são reconhecidos como aqueles passíveis de
    causar atos violentos, e outros, não. Daí a produção conjugada de vítimas e agressores potenciais, sendo aos primeiros reconhecido o direito ao sofrimento e aos segundos, não.
  • 7
    Sobre a categoria "testemunho", afirma Dullo (2011, p. 121): "Palavra que apresenta uma etimologia - traçada por Benveniste (1995, p. 275 ss.) e por Seligmann-Silva (2010) - que reforça a presença do sujeito em um evento ocorrido no passado, sua permanência e sobrevivência a ele. O testemunho cristão é uma forma de apresentação de si que explicita para os demais as transformações ocorridas em sua própria vida a partir de uma manifestação da Graça."
  • 8
    Misse (2010, p. 21) indica em sua análise que o processo de "sujeição criminal" opera sobre uma condição do sujeito, e não sobre sua ação, forjando a criminalidade como essência, e uma essência irrecuperável: "Também por isso podemos considerar que a sujeição criminal é um processo de criminação de sujeitos, e não de cursos de ação. Trata-se de um sujeito que 'carrega' o crime em sua própria alma; não é alguém que comete crimes, mas que sempre cometerá crimes, um bandido, um sujeito perigoso, um sujeito irrecuperável, alguém que se pode desejar naturalmente que morra, que pode ser morto, que seja matável. No limite da sujeição criminal, o sujeito criminoso é aquele que pode ser morto."
  • 9
    Sobre os múltiplos significados atribuídos às religiões pentecostais no interior das unidades penais e como eles circulam nesse campo, ver Scheliga (2005).
  • 10
    Almeida e D'Andrea (2004) discutem o associativismo religioso nas periferias de São Paulo como via de circulação de benefícios materiais e simbólicos, e modos atenuação da condição de "vulnerabilidade" na metrópole paulista. Mafra (2011) analisou a ideia de "cinturão pentecostal" (sugerida por Freston, e discutida por Almeida, 2011) e sua relação com territórios de pobreza e precariedade no Rio de Janeiro. Birman (2012) pauta em sua discussão formas diferentes da relação entre o religioso e o secular no enfrentamento da questão da violência no Rio de Janeiro discutindo, dentre outras temáticas, o projeto de "pacificação" nesse estado. Vital da Cunha (2009) evidenciou em sua pesquisa sobre traficantes evangélicos a presença de uma "gramática pentecostal" no cotidiano do crime em favelas cariocas. Mesquita (2009) discute a relação entre o pentecostalismo e a questão da violência nas periferias de Campos dos Goytacazes (RJ).
  • 11
    As investigações desenvolvidas sobre a Assembleia de Deus dos Últimos Dias fizeram parte das atividades do projeto de pesquisa intitulado "Crime e religião: mediadores sociais do processo de pacificação na região metropolitana do Rio de Janeiro", financiado pela Faperj (APQ1), de 2011-2013.
  • 12
    Destaca-se como referência na pesquisa sobre ex-bandidos e pentecostalismo o trabalho de Teixeira (2011).
  • 13
    Em seu trabalho de 2012, Mariana Cortês pensa a conversão religiosa como uma modalidade de gestão da diferença, dando destaque aos "testemunhos" formulados pelos ex-bandidos (ou "ex-tudo", como destaca Cortês) enquanto versões do sofrimento como "mercadoria simbólica": "A estranheza de suas histórias de vida, ao invés de ser 'resolvida' em um esforço de ordenação e purificação, é constantemente mobilizada nas performances de pregação, que agenciam o passado biográfico, em suas dimensões grotescas, como mercadoria simbólica a ser vendida no mercado religioso em expansão." (Cortês, 2012, p. 20).
  • 14
    Em maio de 2013 o pastor Marcos Pereira foi preso, acusado de estupro. Em setembro de 2013, Marcos Pereira foi condenado a 15 anos de prisão. Até o presente momento da elaboração deste artigo, o pastor permanece encarcerado. Sua prisão deu-se em meio a muitas controvérsias envolvendo diferentes atores da cena pública fluminense, e é a culminância de um conjunto de acusações midiatizadas em final de 2012 pelo líder do Grupo Cultural AfroReggae José Júnior, que apontou o pastor Marcos à época como "a maior mente criminosa do Rio de Janeiro". As acusações na mídia contra Marcos Pereira foram de articulação com o crime e lavagem de dinheiro. Júnior acusou ainda o pastor de haver tramado contra sua vida. Até hoje a igreja defende seu líder e clama pela liberdade do pastor. Questiona os depoimentos das mulheres que acusaram Marcos de estupro dizendo que aqueles foram forjados pelos integrantes do AfroReggae. Questionam ainda a suspeita agilidade da Justiça na condenação do pastor. Voltarei a esse tema no final deste artigo.
  • 15
    O Instituto Vida Renovada é uma organização não governamental vinculada à Adud. Segundo o
    site da igreja: "Criado em 15 de Julho de 1999, o IVR tem como objetivo promover e acolher egressos do sistema penitenciário, dependentes químicos e pessoas marginalizadas, formulando soluções no desenvolvimento social econômico e cultural dos mesmos." (Assembleia de Deus dos Últimos dias, 2013). Sobre o IVR, sugiro a leitura do trabalho de Janine Silva (2014).
  • 16
    A questão da "ressocialização" e do resgate do bandido para a "cidadania" é apontada por Misse (2010) e amplamente analisada por Teixeira (2014).
  • 17
    "Fame can be understood as a coding of influence - an iconic model that reconstitute immediate influence at the level of a discourse by significant others about it. [...] Acts are thus matrixed in a discourse or code that refers back to them. As iconic and reflexive code, fame is the virtual form of influence". (Munn, 1986, p. 117).
  • 18
    DVD disponível na íntegra no YouTube (
  • 19
    Foucault (2008b), ao referir-se ao poder pastoral cristão como elemento constitutivo das razões do Estado moderno, formula a ideia de uma "economia das almas" própria ao pastorado, na qual o mérito do pastor depende do demérito da ovelha. Na genealogia foucaultiana, essa é uma das bases da conformação de uma concepção de sujeitos que necessitam de um governo, como ovelhas perdidas, e assim demandam a condução de suas condutas, o governo de suas almas.
  • 20
    A relação direta entre fama e mídia pode "simplificar" de maneira prejudicial a análise dos aspectos aqui analisados, reduzindo-os a um debate restrito ao circuito dos meios de comunicação de massa. O sentido antropológico da "fama" em Gawa, tal como discutido por Munn (1986), onde as mídias de massa não ocupam a cena, destaca elementos que explodem o conceito de "circulação da fama" para além das especificidades do campo midiático, expandindo seu uso analítico como categoria social. Apresentada como uma "dimensão circulante da pessoa" (Munn, 1986, p. 105) para além de sua presença física e que enquanto tal cria valores positivos, essa leitura antropológica da fama faz das mídias de massa apenas mais uma de suas formas de mediação, sem uma atribuição de exclusividade ou preferência para esse formato.
  • 21
    "Tira a calça
    jeans/Bota o fio dental/Morena você/É tão sensual/Na areia nosso amor/No rádio o nosso som/Tem magia nossa cor/Nossa cor marrom/Marrom bombom." (Os Morenos).
  • 22
    Neguinho da Beija-Flor é um intérprete de samba conhecido nacionalmente, com importante carreira na música popular brasileira, e puxador dos sambas-enredo da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, cidade da Baixada Fluminense, região onde se localiza a Adud.
  • 23
    Grupo musical brasileiro de pagode formado em 1997, que alcançou as paradas de sucesso do ano de 2007 com o lançamento de seu primeiro CD, firmando-se no mercado até o presente momento.
  • 24
    Em 2011, o pastor Marcos Pereira recebeu na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro a Medalha Tiradentes. E em 31 de agosto de 2012, o título de Benemérito do Estado do Rio de Janeiro.
  • 25
    Segundo os dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro, no
    site da UPP: "As UPPs trabalham com os princípios da polícia de proximidade, um conceito que vai além da polícia comunitária e que tem sua estratégia fundamentada na parceria entre a população e as instituições da área de segurança pública. A atuação da polícia pacificadora, pautada pelo diálogo e pelo respeito à cultura e às características de cada comunidade, aumenta a interlocução e favorece o surgimento de lideranças comunitárias. O programa das UPPs engloba parcerias entre os governos - municipal, estadual e federal - e diferentes atores da sociedade civil. Projetos educacionais, culturais, esportivos, de inserção social e profissional, além de outros voltados à melhoria da infraestrutura, estão sendo realizados nas comunidades por meio de convênios e parcerias firmados entre segmentos do poder público, da iniciativa privada e do terceiro setor." (Rio de Janeiro, [s.d.]).
  • 26
    Sobre o tema dos ilegalismos, ver Telles (2010).
  • 27
    A ideia de "pacificação" vem ganhando sentidos variados na atualidade ao articular significados históricos a outros contemporâneos, especialmente aqueles impulsionados pelas questões em torno da "política de pacificação" da segurança pública fluminense e suas Unidades de Polícia Pacificadora. Para uma análise adensada do tema da "pacificação", conferir Birman (2012), Machado (2013) e Oliveira (2014).
  • 28
    Letra da música
    Alvará, interpretada por Waguinho: "Só quem já sofreu atrás das grades/Sabe o que a dor de uma saudade/Longe da família, longe dos amigos/Olha o que o inimigo fez contigo/Agora está na hora de se libertar/Jesus está chegando com seu alvará/Ele resolve os problemas/E vai tirar as algemas."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Recebido
      30 Dez 2013
    • Aceito
      09 Jun 2014
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