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A Covid-19 e suas múltiplas pandemias

COVID-19 and its multiple pandemics

Na linguagem epidemiológica, a irrupção situada de uma infecção entre determinadas populações ou porções geográficas é indicativo de um surto. Se a ocorrência se sustenta e também se avoluma e se espalha, ela caracteriza uma epidemia. Mas quando a escalada se mantém crescente e desordenada dificultando a circunscrição do evento, o caracterizamos como pandemia. Nesse caso, muitos surtos acontecem ao mesmo tempo, distribuídos por toda a parte, algumas vezes, em escala global. Foi assim com a Covid-19. Entre os primeiros casos confirmados na China, em dezembro de 2019, até a declaração de pandemia, feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, mais de 200 países e territórios já confirmavam contaminações com o vírus e, com elas, casos de desenvolvimento da doença e inúmeras mortes. Rapidamente, o “novo coronavírus” se tornava uma unanimidade e a pandemia da Covid-19 passou a produzir cenários de exceção e de incerteza. Setores da ciência correram para desenvolver formas de tratamento e de cura, enquanto que medidas de contenção, baseadas na dinâmica biológica de atuação do vírus, alargaram os sentidos da palavra “protocolo”, compondo novos discursos e práticas que têm intervindo no cotidiano de pessoas e de instituições.

Acontece que o tipo de evento crítico que temos vivido excede a celebração pública da virologia e das categorias que definem as tendências epidemiológicas. A sua escala global não significa universalidade, tampouco justifica a sua homogeneização (Segata, 2020aSEGATA, J. Covid-19, biossegurança e antropologia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 26, n. 57, p. 275-313, maio/ago. 2020a., 2020bSEGATA, J. A pandemia e o digital. Revista Todavia, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 7-15, 2020b.). De forma direta: a pandemia é um evento múltiplo e desigual. Os surtos que a constituem têm intensidades, qualidades e formas de agravo e prevalência muito particulares. Há formas de estabelecer alguns padrões, como, por exemplo, a identificação do agente patógeno e a compreensão da infecção, mas distinções socioeconômicas, culturais, políticas, ambientais, coletivas ou mesmo individuais tensionam a homogeneidade do risco, da vulnerabilidade, da doença e do cuidado “vírus centrado”.

Pandemia é, assim, um tipo abstrato cuja realização precisa ser compreendida a partir de exercícios descritivos do sensível em vez da exaltação de indicadores e métricas internacionais de avaliação. O volume de casos, as proporções entre quem destes adoeceu e precisou cuidados médicos e em que nível de atenção; o número de mortes; as intersecções de gênero, e de raça; o nível socioeconômico, a faixa etária, o grau de instrução ou o tipo de atividade profissional são algumas das informações quantificáveis que são fundamentais para a compreensão dos formatos epidemiológicos da crise. Mas é preciso “preencher” esses dados com trajetórias, biografias e experiências individuais e coletivas que nos permitam dar conta das memórias e múltiplos sentidos desse evento crítico.1 1 Mesmo que pandemias não sejam acontecimentos sem precedentes como foi o caso da Partição da Índia, o assassinato de Indira Gandhi e o desastre de Bophal, analisados por Veena Das (1995), o conceito de “evento crítico”, resgatado por ela a partir da obra de François Furet, fornece pistas para pensar a pandemia de Sars-CoV-2. Destacamos, em especial, o caráter aberto dos “acontecimentos’ e a sua capacidade de se projetar para o futuro; as disputas e apropriações de seus significados por parte de instituições e atores sociais; e sua maneira mais ou menos visível e silenciosa de afetar o presente e moldar futuras expectativas, em consonância com Ortega (2008). Os “eventos críticos” são experiências que, nas palavras deste autor, “desestabilizam categorias socialmente estabelecidas e geram contextos fluidos nos quais o reforço do sentido desempenha um papel fundamental na lógica da mudança, ou seja, nos mecanismos que regem a sucessão de um evento por outro” (Ortega, 2008, p. 31, tradução nossa). Dessa forma, o saber-fazer científico, qualitativo e político da antropologia exerce um papel fundamental no processo de enfrentamento da pandemia, pois, se a Covid-19 não se realiza de forma homogênea, as respostas a ela e às suas múltiplas pandemias também não podem ser. No entanto, a natureza episódica e excepcional desse tipo de crise em tempo real impele respostas imediatas (Rosenberg, 1992ROSENBERG, C. E. Explaining epidemics. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.). Costumeiramente, elas ecoam os modelos globais que, nesse caso, têm o vírus como sendo a infraestrutura central que permite pular de um contexto a outro carregando consigo conhecimentos e técnicas que evitam as interpretações culturalistas de saúde e doença e dificultam os modelos explicativos locais. Portanto, colocar o novo coronavírus um pouco de lado e atentar para outros dispositivos que compõem com ele as múltiplas pandemias é um exercício de descolonização que precisa ser protagonizado pela pesquisa social. Conhecer um agente patógeno é fundamental e o novo coronavírus é um informante privilegiado. Mas a sua superexposição costuma desviar a atenção dos agravantes locais, constituídos de profundas estruturas de desigualdade e injustiça social.

Tendo isso em mente, este número temático de Horizontes Antropológicos explora a multiplicidade da Covid-19 a partir de debates teóricos e experiências etnográficas que intersectam os interesses dos mais diversos campos e temas que constituem a pluralidade da disciplina e que colocam em relevo conhecimentos, práticas e vidas situadas. O que o conjunto de artigos que aqui apresentamos mostra é que,

de um ponto de vista antropológico, um vírus sozinho não faz pandemia tampouco explica a doença que pode resultar do contato com ele. Há sempre um emaranhado mais ou menos contingente que estabelece condições favoráveis para que eventos como este ganhem forma, extensão e intensidade. (Segata, 2020bSEGATA, J. A pandemia e o digital. Revista Todavia, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 7-15, 2020b., p. 8).

Então, a falta d’água em inúmeras comunidades faz pandemia. Economia e trabalho precário que impedem que toda a população se isole e viva o tempo do cuidado com a necessária segurança fazem pandemia. Os muitos negacionismos, as fake news, os números distorcidos e os protocolos continuamente flexibilizados fazem pandemia. O racismo estrutural e ambiental, as desigualdades de gênero, as injustiças e exclusões sociais e a falta de acesso aos direitos fundamentais fazem pandemia. Ônibus lotado, linhas de produção a todo vapor, festas clandestinas e comércio aberto também fazem pandemia. A lista de problemas recalcitrantes é grande e o vírus é só um dos itens dela. Como sugere Segata (2020bSEGATA, J. A pandemia e o digital. Revista Todavia, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 7-15, 2020b., p. 8, grifo do autor), em uma linha de discussão com os termos de Mol (2002)MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002., “são as materialidades, os discursos e as práticas particulares que atuam múltiplas vulnerabilidades e riscos, mas também as formas de cuidado e a própria experiência de saúde, do adoecimento e da cura”.

Múltiplas discursividades

Muitas têm sido as iniciativas antropológicas dispostas a compreender os modos de realização da pandemia inscritos em discursividades, escalas e sentidos em disputa. O artigo que abre este número traz uma amostra dessas frentes. Intitulado “Antropologia e pandemia: escalas e conceitos”, o trabalho de Taniele Rui, Isadora Lins França, Bernardo Fonseca Machado, Gustavo Rossi e José Maurício Arruti apresenta um arrazoado das respostas intelectuais à pandemia, sistematizando algumas das publicações das ciências sociais que marcaram o primeiro trimestre dela. De um lado, o artigo reage à “infodemia” que acompanhou a pandemia - ou seja, ao conjunto amplo, veloz, difuso de informações que buscaram dar sentido à Covid-19, ressaltando o seu caráter múltiplo e agenciado em cadeias de implicações. O trabalho, assim, coloca em relevo iniciativas preocupadas com a promoção de um “debate qualificado” por meio da publicação periódica de textos metodologicamente fundamentados, teoricamente articulados e politicamente combativos. De outro, ele traz uma análise sobre esse conjunto de publicações, ressaltando duas problemáticas - a da escala e a do governo da vida como sendo conceitos-chave para a compreensão do contemporâneo.

Em termos de escala, o artigo caracteriza, de um lado, os trabalhos que tendem a endossar uma suposta experiência global da pandemia, que tem a humanidade como parâmetro universal e é impactada por fenômenos supostamente universais, como a crise diante da irrupção viral, o Antropoceno, o capitalismo e as experiências das classes trabalhadoras. De outro, a escala é notada em trabalhos que se “empenharam em destacar as diferenças e esmiuçar os enfrentamentos locais” de onde emergem análises contextuais e engajadas, cujo foco principal é a forma desigual de como a pandemia atinge diferentes populações. No segundo eixo, Rui, França, Machado, Rossi e Arruti mapeiam o emprego dos conceitos de biopoder, biopolítica e necropolítica para caracterizar o modo como a noção de governo da vida é acionada nas análises da pandemia. Para eles, ao articular “poder, vida e morte, corpo e biologia”, “políticas dos corpos”, “gestão da vida” e a exploração, instrumentalização e “eliminação sistemática de determinados corpos”, essas três categorias se tornaram chaves analíticas incontornáveis para análises sociais e políticas da pandemia de Covid-19. Escala e governo da vida podem ser, como concluem o artigo, articulados entre si, abrindo novos contextos e injunções analíticas que permitem explorar as muitas camadas de complexidade do momento que atravessamos. Confirmando essa afirmação, como veremos na sequência, escala e governo da vida são problemáticas que também servem de norte analítico para alguns dos artigos deste número de Horizontes Antropológicos.

Um exemplo disso é o artigo de Everson Fernandes Pereira, intitulado “A pandemia de Covid-19 na UTI”. O artigo de Pereira analisa os discursos em torno das taxas de ocupação dos leitos das unidades de terapia intensiva (UTI), do município de Porto Alegre. Inspirado no debate antropológico sobre escalas e métricas, e no conceito de necropolítica de Mbembe (2016)MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder soberania estado de exceção política da morte. Artes e Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-151, 2016., o autor analisa como a “normalidade” e o “controle” da situação epidemiológica da cidade passaram a ser construídos sob a ideia de estabilidade dos níveis de ocupação de leitos de UTI, nem sempre fazendo referência ao fato da estabilidade estar condicionada à contínua expansão de leitos disponíveis. A pandemia parecia estabilizada, quando na verdade o crescente número de casos graves não alterava os níveis de ocupação. Esse processo atuou em favor de uma domesticação à abstração, já que a experiência de risco e cuidado passou a ser modulada também por este instrumento, a métrica, cada vez mais distante do sensível: a atenção aos níveis de contaminação passa a se alterar com a sensação de tranquilidade ou de perigo iminente forjada pelo número de vagas de UTI ocupadas. Assim, além de passar a sensação de contínuo investimento em equipamentos de resposta à pandemia, esse jogo equilibrava constantemente a balança entre ocupação e vagas e abria margens para a “retomada da normalidade” nas atividades industriais, comerciais e escolares do município, expondo a população mais agudamente às contaminações com o vírus - uma necropolítica dos números, como sugere o autor.

Ainda na chave da necropolítica, o artigo de Rosana Castro explora o modo como o Brasil se configurou como um dos epicentros da pandemia mundial em 2020 e, assim, um laboratório de vacinas o colocou na mira dos interesses da indústria farmacêutica. Intitulado de “Necropolítica e a corrida tecnológica: notas sobre ensaios clínicos com vacinas contra o coronavírus no Brasil”, o trabalho explora o modo como o envolvimento do Brasil na testagem de vacinas não traz quaisquer garantias de ampla vacinação à população brasileira. A razão são as enormes desigualdades de acesso à saúde, marcadas, entre outras, pelo crônico descaso com populações indígenas e o racismo estrutural que expõe negros e negras a cargas acumuladas de vulnerabilidade, mas que são agravadas, atualmente, pelo negacionismo científico. Assim, a negatividade das ações de controle da pandemia foi convertida em um fator de positividade para a testagem de imunizantes, já que o país sustentou continuamente um quadro epidemiológico com elevadas taxas de contaminação e de mortalidade, em meio a uma população valorada como “racial e etnicamente ‘diversa’ […], interessante para a qualificação e extrapolação dos resultados dos ensaios clínicos”. Trata-se, assim, de uma necroeconomia política da produção biotecnológica, que converte condições de vida “crônicas e agudas […] desigualmente vetorizadas pelo racismo” em um capital de mercado para empreendedores da ciência farmacêutica local e global.

O quarto artigo deste número de Horizontes Antropológicos retoma o acento de análises sobre o modo como são geridos os dados da pandemia. Em “Living the death of others: the disruption of death in the COVID-19 pandemic”, Marcos Freire de Andrade Neves mostra como as informações sobre “contágio” e “óbito” são disputadas (e descontextualizadas) para tornar a pandemia legível e governável entre setores de interesse. Em outros termos, embora a estatística auxilie na governança da pandemia, ela ofusca o cotidiano de vida e morte. Como o autor nos mostra, os números se tornaram ferramentas poderosas para legitimar o poder de governanças nacionais e globais da pandemia. No caso do contágio, eles produzem uma narrativa que coloca o vírus no centro de uma economia moral que reconfigura subjetividades e prioridades. No caso dos óbitos, mesmo que não produzam consensualidade, os números podem imprimir a gravidade do evento, como podem colocá-los em negação, como é o caso, por exemplo, de quando mortes e suas causas são questionadas, banalizadas e negadas. De toda forma, como mostra Andrade Neves, números sobre contágio e óbitos, em si, não permitem conhecer o complexo de mediações técnicas, médico-legais e burocráticas em torno da sua produção, tampouco capturam as complexidades das experiências vividas localmente com o cuidado de si, das coletividades e com a morte.

Na sequência, o trabalho de Palloma Valle Menezes, Alexandre Almeida de Magalhães e Caíque Azael Ferreira da Silva, “Painéis comunitários: a disputa pela verdade da pandemia nas favelas cariocas”, descreve e analisa a iniciativa dos painéis comunitários de mapeamento da Covid-19 em favelas cariocas, mobilizados a partir da falta ou da inconsistência de informações sobre a pandemia nesses territórios. O artigo sugere que as inúmeras dificuldades de sistematização de informações nos mais diversos campos de interesses de políticas sociais, sobremaneira naquelas de saúde, ecoa a insistente política de esvaziamento de dados. Essa escassez de informação realiza um tipo de apagamento de problemas que resulta em precarização que deliberadamente coloca algumas camadas da população em maior exposição a situações como as de contaminação com vírus e agravamento de infecções como a Covid-19. Ao não “existirem enquanto dados” oficiais, as populações de alguns territórios historicamente vulnerabilizados são férteis candidatas a serem excluídas de políticas de testagem, tratamento e imunização, bem como a políticas de assistência social. Contudo, como mostram a autora e os autores do artigo, ao produzirem estatísticas próprias, esses painéis comunitários passam a inscrever um novo ente - “a pandemia nas favelas” - que visibiliza, negocia e agencia uma cadeia de transformações que insere as populações desses territórios e a sua luta em defesa da vida no debate público.

Ainda no registro das discursividades, o trabalho de Alexandre Branco-Pereira, intitulado “Alucinando uma pandemia: ensaio sobre as disputas pela realidade da Covid-19” atenta para as formas de produção singular de mundos pandêmicos onde se sobressaem ansiedades em torno de um vírus potencialmente mortal que são contrapostos por discursos pró-ciência que justificam, entre outras coisas, a reabertura e a flexibilização das atividades de diversos setores em um plano de suposta normalidade. Trata-se, portanto, de realidades em disputa que perpassam experimentações psicológicas, comunidade científica e agentes estatais onde, nas palavras do autor, “a imanência da realidade é um processo política e simbolicamente disputado”. No entanto, em uma espécie de negação dos mundos da pandemia, vividos e experimentados pelos indivíduos, a definição do comum passou a se ancorar na ciência imaginada como neutra e livre de ideologias e a condução do tipo de realidade que resulta desse processo encontrou no Estado o seu gestor legítimo.

Na sequência, trazemos o trabalho de Octavio Bonet, intitulado “La sociedad del espanto. Mallas de vidas en cuarentena”. Mobilizando um conjunto de orientações teórico-metodológicas inspiradas em autores como Marcel Mauss, Gregory Bateson e Tim Ingold, Bonet sugere que a pandemia e a quarentena, como eventos críticos e traumáticos, nos permitem descrever novas identidades e coletividades. Essa sociedade do espanto que emerge com a pandemia é um modo de perceber um mundo transformado, que passa a ser habitado por novas subjetividades em um conjunto entrelaçado de linhas de vida, crescimento e movimento que enredam o humano e os ambientes em dimensões biológicas, psicológicas e sociais.

Finalmente, ainda nessa linha de atenção sobre as múltiplas discursividades da pandemia, o texto de Eliane Sebeika Rapchan e Fagner Carniel, intitulado “Como compor com um vírus!? Reflexões sobre os animal studies no tempo das pandemias”, traz importantes reflexões sobre a pandemia a partir de um olhar dos estudos das relações entre humanos e animais. Ainda que ambivalente - pois esperado e surpreendente ao mesmo tempo -, o aparecimento de um novo vírus é frequentemente naturalizado pelos discursos das antropozoonoses. Mas o trabalho de Rapchan e Carniel tensiona a rapidez com a qual essas explicações zoonótico-emergentistas ganham amplitude nos discursos acadêmicos e na opinião pública, ao mostrar as condições que enredam animais, humanos, ambientes, mas também o capitalismo, a destruição antrópica dos ambientes e as múltiplas formas de convivência e contágio que tecem uma miríada muito mais complexa de relações. Em outros termos, pandemias têm raízes muitos mais profundas e extensas. Problemas sanitários também formam questões políticas, históricas, sociais e ecológicas que são protagonizadas por humanos, animais e ambientes. A antropologia precisa, numa chave multiespécie, encontrar um lugar vívido em etnografias que compreendam essa complexidade.

Múltiplas experiências

Pandemias disputadas nas discursividades também revelam experiências múltiplas. O nono artigo deste número de Horizontes Antropológicos nos traz um bom exemplo disso. Intitulado “Pós-pandemia ou a ‘endemização do (extra)ordinário’? Uma análise comparativa entre as experiências com a fome, Zika vírus e Covid-19 no Brasil”, o artigo de Lis Furlani Blanco e Jonatan Sacramento nos coloca diante das intersecções entre algumas das crises crônicas que são experienciadas simultaneamente no Brasil - a fome, a Zika e a Covid-19. Ao recuperar essas experiências epidêmicas anteriores, os autores tensionam a ideia corrente de “novo normal”. A fome no Brasil é um novo normal há décadas. A Zika e as lutas por direitos à saúde em torno dela, que ainda ganham lugar no Nordeste brasileiro, também já foram convertidas em novo normal. Agora, a despeito de não ter havido significativo declínio nos números de contaminações e mortes, a recalcitrante vontade das autoridades políticas de endemizar o extraordinário já firma também a sua tendência com a pandemia de Covid-19. Para os autores, as experiências com a fome e a Zika atestam que não há um “pós-pandemia”. Antes, as temporalidades desses eventos e os fatores externos à sua epidemiologia é que se mostram decisivos para que eles sejam integrados, perversamente, como parte da vida cotidiana de certas populações que não entram na conta dos interesses internacionais. O novo normal sempre se inscreve em geografias desiguais.

Na sequência, Daniel Granada, Marcia Grisotti, Priscila Pavan Detoni, Rosmari Cazarotto e Maria Conceição de Oliveira, em “Saúde e migrações: a pandemia de Covid-19 e os trabalhadores imigrantes nos frigoríficos do Sul do Brasil”, trazem um importante registro que intersecta o tema da saúde e das migrações a partir dos casos de Covid-19 relacionados à indústria de processamento de carne. O autor e as autoras destacam as dificuldades de acesso à saúde e aos direitos básicos, incluindo as formas de proteção laboral; a discriminação racial, a xenofobia e as vulnerabilidades socioeconômica são alguns fatores que marcam as condições de trabalho desses migrantes nos frigoríficos. Muitos deles são jovens negros, migrantes da Venezuela, do Haiti e do Senegal. Outros são indígenas de territórios do oeste do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná, que trabalham em condições extremamente precárias. Como também já mostraram Segata, Beck e Muccillo (2020)SEGATA, J.; BECK, L.; MUCCILLO, L. A Covid-19 e o capitalismo na carne. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, Pelotas, v. 8, n. 1, p. 354-393, 2020. a respeito da situação das contaminações com Covid-19 entre trabalhadores desse setor no Rio Grande do Sul, a situação analisada por Granada, Grisotti, Detoni, Cazarotto e Oliveira nos mostra como nos frigoríficos, humanos e animais são explorados pelo capitalismo da carne e compartilham situações de vulnerabilidade e sofrimento que demandam atenção urgente em termos de implementação de políticas públicas de saúde. Como sugerem o autor e as autoras do artigo, essas políticas precisam integrar as novas modalidades de interdependência de setores produtivos, indivíduos e grupos sociais - sobretudo migrantes e indígenas - e saúde ambiental, para um enfrentamento mais amplo da pandemia.

O tema da Covid-19 entre populações vulneráveis também é desenvolvido por Paulina Osorio-Parraguez, Pamela Jorquera e Matías Araya Tessini, no artigo intitulado “Vejez y vida cotidiana en tiempos de pandemia: estrategias, decisiones y cambios”. A partir de entrevistas realizadas com idosos de distintas condições socioeconômicas no Chile, eles abordam as transformações cotidianas nos âmbitos econômico-laboral, afetivo, domiciliar e familiar. Em uma linha de trabalho que ressoa o tipo de pesquisa desenvolvida por Schuch, Víctora e Siqueira (2020)SCHUCH, P.; VÍCTORA, C.; SIQUEIRA, M. D. Cuidado e controle na gestão da velhice em tempos de Covid-19. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, Reflexões na Pandemia, p. 1-15, 2020., o artigo também contraria as histórias únicas e generalizantes de construção do sujeito idoso como grupo de risco, exaltadas pelas políticas globais da saúde biomédica que privilegiam a noção de um corpo orgânico, sujeito à infecção de forma mais ou menos homogênea. Em cena, estão as distintas forças e capacidades de agência adquiridas pelos idosos por meio de suas experiências biográficas. Elas envolvem a organização da vida da gestão de riscos frente a crises sanitárias, considerando os diferentes níveis de autonomia, de interdependência familiar, de envolvimento em redes de vizinhos, mas também sua posição social, econômica e de gênero.

Na sequência, Fernanda Loureiro Silva, Jane Russo e Marina Nucci, em “Gravidez, parto e puerpério na pandemia: os múltiplos sentidos do risco”, tensionam as implicações da inclusão das gestantes e puérperas como um “grupo de risco”, lado a lado a pessoas acima de 65 anos e aquelas com doenças preexistentes. Apesar de inexistência de claras evidências de que grávidas e puérperas padecessem de maior risco de adoecimento grave por infecção pelo novo coronavírus do que a população geral, já nos primeiros meses da pandemia o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) divulgou recomendações específicas para esse grupo, sob a justificativa de uma “vulnerabilidade” aumentada própria da sua condição. No artigo as autoras discutem como essa iniciativa - a qual foi recebida com entusiasmo por parte de profissionais da “assistência humanizada”, entre elas, doulas, médicas, enfermeiras - entra em choque com princípios, práticas e significados do movimento de humanização (MH). Além de destacar uma possível incoerência entre, por um lado, a defesa da pauta da “desmedicalização” por parte de ativistas e, por outro, a adesão a uma classificação de risco que implica necessariamente um maior controle biomédico sobre o processo de parto e puerpério, as autoras apontam ainda os efeitos de obscurecimento das desigualdades estruturais operado por uma categoria abrangente de risco, como se a “vulnerabilidade” não tivesse raça/cor nem classe social.

Intitulado “A xawara e os mortos: os Yanomami, luto e luta na pandemia da Covid-19”, o penúltimo artigo de Horizontes Antropológicos, de Marcelo Moura Silva e Carlos Estellita-Lins, oferece uma reflexão sobre os efeitos da pandemia entre os Yanomami. Para além de uma contabilidade de adoecimentos e mortes, o que sem dúvida é importante por revelar desigualdades e vulnerabilidades na relação com diferentes agentes e relações político-etiológicas, os autores discutem as tensões entre concepções Yanomami sobre a morte e origem das doenças e discursos e práticas epidemiológicas e de biossegurança no contexto da pandemia. O artigo analisa em particular a exigência de práticas de sepultamento consideradas biosseguras para aqueles que morrem em decorrência do novo coronavírus e quais as implicações desse tipo de sepultamento para o ritual funerário reahu, que é vital tanto para os mortos, por os colocarem no rumo do seu destino pós-vida, como para os vivos, porque “administram as fronteiras e as dinâmicas de distanciamento e aproximação entre vivos e mortos, parentes e afins, aliados e inimigos (Albert, 1985)”. Os autores analisam ainda a maneira como os Yanomami percebem o coronavírus, menos como um evento excepcional e sim como efeito de relações patogênicas históricas mais amplas.

Por fim, os impactos da pandemia de Covid-19 são colocados em relevo por Thiago Silva de Castro e Antonio Cristian Saraiva Paiva, em “São João em tempos de Covid-19: os impactos da pandemia do novo coronavírus nas experiências de participantes de quadrilhas juninas no interior cearense”. Os autores argumentam, a partir de seu estudo etnográfico, o rico universo das quadrilhas de São João que se apresenta como um espaço singular de atuação e expressão cultural-artística, bem como de inclusão de LGBTI+ e de pessoas autodeclaradas negras ou pardas moradoras da periferia da cidade que ocupam diferentes funções na produção e execução dos espetáculos. A interrupção dos trabalhos dos grupos juninos, nesse sentido, representa mais do que uma lacuna na expressão cultural regional, impactando todo “um espaço de reconhecimento simbólico das potencialidades dos sujeitos que promovem tal manifestação”. A realização de encontros virtuais se apresenta como uma alternativa para alguns participantes, embora seja difícil substituir as dinâmicas afetivas e corporais que se processam nos contextos do São João.

Na seção Espaço Aberto deste número de Horizontes Antropológicos encontramos mais duas importantes contribuições antropológicas para pensar as multiplicidades da pandemia de Covid-19. A primeira delas analisa os “boletins da Anpocs”, como ficou correntemente conhecido o conjunto de publicações que saíram sob a rubrica de Boletim Cientistas Sociais e o Coronavírus. O boletim é objeto da análise do primeiro artigo deste número de Horizontes Antropológicos, de Rui, França, Machado, Rossi e Arruti, já mencionado anteriormente, mas é detidamente analisado por Rodrigo Toniol e Miriam Grossi sob a forma de um profícuo exemplo de intervenção acadêmica no debate público. Intitulado “How Brazilian social scientists responded to the pandemic”, o trabalho apresenta um balanço crítico das produções realizadas durante a pandemia, relacionado-as e constrastando-as com características mais gerais da produção científica das ciências sociais brasileiras na área da saúde. Notando que, no Brasil, a pandemia agiu tal como um caleidoscópio que a cada torção apresenta um novo arranjo de imagens de fundo e conteúdo, os autores referem que a pandemia de Covid-19 tornou-se um ponto de partida para esforços de naturezas bastante variadas, demonstrando não apenas a vitalidade do campo das ciências humanas, mas também a própria relevância da rearticulação de força das instituições científicas da área.

Fechando a seção Espaço Aberto deste número de Horizontes Antropológicos, temos o trabalho de João Biehl, intitulado “Descolonizando a saúde planetária”, que sintetiza um conjunto de críticas ao modo como a saúde global opera um perverso imperialismo tecnocrático que oblitera saberes e práticas locais. Mais que isso, ele reforça a necessidade de um posicionamento crítico-decolonial que amplifique o seu escopo para além dos humanos, privilegiando um olhar sobre ecossistemas e sobre a vida do planeta no seu sentido mais amplo. Percorrendo as possíveis contribuições da antropologia nessa área e, sobretudo, mapeando a relevância dos seus instrumentos e conceitos na produção de estudos críticos acerca da saúde global - tais como as noções de vulnerabilidade estrutural, determinantes políticos, racialização, farmaceuticalização e descolonização do saber - Biehl destaca a importância da noção de “horizontar”. Tal conceito, desenvolvido por Petryna (2017)PETRYNA, A. Horizoning. In: BIEHL, J.; LOCKE, P. (ed.). Unfinished: the anthropology of becoming. Durham: Duke University Press, 2017. p. 243-269., convoca ao prospectar horizontes a partir do “escutar, ouvir e contar outras histórias”, transcendendo a repetição de registros oficiais, muitas vezes excludentes e homogeneizantes.

Múltiplas antropologias

De um modo geral, os artigos deste número de Horizontes Antropológicos ecoam, mais amplamente, os interesses de uma “antropologia pública” (Biehl; Petryna, 2013BIEHL, J.; PETRYNA, A. Critical global health. In: BIEHL, J.; PETRYNA, A. (ed.). When people come first: critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press, 2013. p. 1-22.; Fassin, 2013FASSIN, D. Why ethnography matters: on anthropology and its publics. Cultural Anthropology, Arlington, v. 28, n. 4, p. 621-646, 2013.), na medida em que estão comprometidos com uma problemática emergente de preocupação política coletiva e engajados na produção de conhecimentos que fomentem diálogos críticos com e para públicos diversos e também com e sobre os próprios modelos de gerenciamento da pandemia.

A partir da compreensão da heterogeneidade e da desigualdade associadas a esse evento crítico e movidas pelo esforço de compreensão descritiva do sensível, as abordagens apresentadas neste volume podem ser consideradas simultaneamente responsivas e responsáveis (Fonseca et al., 2016FONSECA, C. et al. Tecnologias de governo. Apreciação e releituras em antropologia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 22, n. 46, p. 9-34, dez. 2016.) - ecoando o chamado de Das (2020)DAS, V. Facing Covid-19: my land of neither hope nor despair. In: AMERICAN ETHNOLOGICAL SOCIETY. [S. l.]: AES, 1 May 2020. Disponível em: Disponível em: https://americanethnologist.org/features/collections/covid-19-and-student-focused-concerns-threats-and-possibilities/facing-covid-19-my-land-of-neither-hope-nor-despair . Acesso em: 10 mar. 2021.
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acerca das responsabilidades antropológicas devidas às comunidades marginalizadas, em face da pandemia da Covid-19. Tais responsabilidades implicariam, segundo a autora, produzir fatos melhores e mais bem fundamentados sobre as variações das realidades locais, bem como acerca dos processos de triagem realizados em cenários de escassez, muitas vezes invisibilizados nas experiências de governança, elas próprias também inspiradoras de reflexões, uma vez que são imensamente variadas e contraditórias. Fundamental, ainda, seria a possibilidade de problematizar a gestão da atual crise a partir de seu relacionamento com as insistentes e permanentes experiências de pobreza e de desigualdade no acesso às infraestruturas de saúde, condições possibilitadoras de agravamento dos efeitos da pandemia (Das, 2020DAS, V. Facing Covid-19: my land of neither hope nor despair. In: AMERICAN ETHNOLOGICAL SOCIETY. [S. l.]: AES, 1 May 2020. Disponível em: Disponível em: https://americanethnologist.org/features/collections/covid-19-and-student-focused-concerns-threats-and-possibilities/facing-covid-19-my-land-of-neither-hope-nor-despair . Acesso em: 10 mar. 2021.
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).

Dessa forma, ao analisar a pandemia a partir de suas multiplicidades de materialidades, discursos, práticas, experiências e formas de cuidado, os artigos deste número optam por uma compreensão sutil e nuançada do fenômeno, já conclamada por Das (2020)DAS, V. Facing Covid-19: my land of neither hope nor despair. In: AMERICAN ETHNOLOGICAL SOCIETY. [S. l.]: AES, 1 May 2020. Disponível em: Disponível em: https://americanethnologist.org/features/collections/covid-19-and-student-focused-concerns-threats-and-possibilities/facing-covid-19-my-land-of-neither-hope-nor-despair . Acesso em: 10 mar. 2021.
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. Tal abordagem importa porque não apenas complexifica o entendimento da pandemia, mas expande nesse escopo as possibilidades de sua discussão para além dos pontos de vista biomédicos, tão comuns no âmbito público, amplificando os debates em torno da criação de opções para o próprio gerenciamento das crises. Nesse cenário, é de suma importância a ideia aqui já trazida de “descolonizar a pandemia”, isto é, de ir além dos modelos globais que privilegiam soluções uniformes, com poucas relações com a variedade das realidades locais. Para tanto, as pesquisas antropológicas possuem um papel fundamental, como também salienta Biehl em seu artigo neste número, na medida em que refletem criticamente sobre formas de conhecimento e intervenção que reproduzem e invisibilizam mecanismos de exclusão, mas também colocam em evidência formas emergentes de política, de cuidado e de resistência que podem ser mecanismos eficazes de enfrentamento à pandemia.

Essa dupla possibilidade constitutiva da tarefa de “descolonizar a pandemia” evidencia os desafios implicados na própria produção de uma “antropologia pública”, nos termos de Fassin (2013)FASSIN, D. Why ethnography matters: on anthropology and its publics. Cultural Anthropology, Arlington, v. 28, n. 4, p. 621-646, 2013.: de “popularização”, que tem a ver com modos criativos e estilos de comunicação dirigidos a públicos variados - incluindo-se o acadêmico -, e de “politização”, referente exatamente à proposição de mudança e com o potencial de impactar as políticas. Já ressaltamos aqui o compromisso com uma antropologia responsiva e responsável presente na configuração das problemáticas de engajamento crítico dos artigos deste número. Cabe destacar, de outro lado, a abertura aqui proposta para formas de escrita e engajamento público que contribuam no alcance de públicos mais amplos do que aqueles diretamente relacionados à antropologia acadêmica.

Com formato especial - mais curtos e com análises críticas e respostas propositivas direcionadas a uma audiência mais ampla do que a da comunidade acadêmica - os artigos aqui presentes estão implicados no desafio de popularizar e politizar as contribuições antropológicas sobre a pandemia. Especialmente no Brasil, país marcado por profundas e persistentes desigualdades sociais, raciais, de gênero e de capacitismo, além de políticas obtusas e contraditórias de enfrentamento à pandemia, esse empreendimento também se reveste de especial importância. Isso porque possibilita a inscrição pública de uma memória das lutas e do luto de comunidades marginalizadas, as quais frequentemente não têm suas mortes mapeadas e oficialmente registradas como tendo sido produzidas pela pandemia e para as quais, portanto, têm sido politicamente recusado o próprio direito ao luto.

Na articulação com o ativismo de organizações e movimentos sociais variados, as pesquisas antropológicas em curso evidenciam esse engendramento político da ilegitimidade de certas vidas, simultaneamente produzindo narrativas e gêneros inovadores de comunicação que visam inscrever lutas e lutos de vidas que deixam saudade. Tais gêneros propõem inscrever politicamente não apenas os esforços de controle na gestão dos mortos pela Covid-19, como aponta Wagner (2020)WAGNER, A. Obituário: vida no território da morte. In: WAGNER, A.; ACEVEDO, R.; ALEIXO, E. (org.). Pandemia e território. São Luís: UEMA Edições, 2020. p. 967-982. no caso do gênero “obituário” analisado para o caso das organizações indígenas e quilomboas, mas a legitimidade das histórias, biografias e rostos de mulheres latino-americanas e caribenhas apresentado na plataforma Instagram pela iniciativa “Women in Times”, formulada por Diniz, Carino e Fraiz ([2020])DINIZ, D.; CARINO, G.; FRAIZ, V. Womenintimes. [2020]. Instagram: @womenintimes. Disponível em: Disponível em: https://www.instagram.com/womenintimes/ . Acesso em: 10 mar. 2021.
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. Nesse mesmo sentido também se destaca o projeto “reliquia.rum”, produzido por Débora Diniz ([2020])DINIZ, D. reliquia.rum. [2020]. Instagram: @reliquia.rum. Disponível em: Disponível em: https://www.instagram.com/reliquia.rum/ . Acesso em: 10 mar. 2021.
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e apresentado via Instagram, o qual produz um relicário das memórias das vidas e mortes de mulheres e de mulheres grávidas no cenário da pandemia no país (Diniz, [2020]DINIZ, D. reliquia.rum. [2020]. Instagram: @reliquia.rum. Disponível em: Disponível em: https://www.instagram.com/reliquia.rum/ . Acesso em: 10 mar. 2021.
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).

Sem dúvida, tais iniciativas materializam esforços já existentes, como, por exemplo, aqueles reunidos no blog Microhistórias. Contando sobre a epidemia do Zika virus a partir das antropologias feitas em Pernambuco, organizado por um coletivo de pesquisadoras coordenado por Soraya Fleischer (Fleischer et al., [2017]FLEISCHER, S. et al. Microhistórias: contando sobre a epidemia do Zika vírus a partir das antropologias feitas em Pernambuco. Blog. [2017]. Disponível em: Disponível em: https://microhistorias.wixsite.com/microhistorias . Acesso em: 10 mar. 2021.
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). A iniciativa do blog - que ecoa em outras mais recentes experiências semelhantes, como o blog antropoLÓGICAS EPIDÊMICAS (UFRGS), por exemplo - tem o triplo objetivo de manter viva a discussão sobre a epidemia do Zika vírus e sobre seus efeitos nas vidas de crianças, mulheres, famílias e comunidades diretamente atingidas; possibilitar o aprimoramento pedagógico das antropólogas em formação, incentivando a escrita de textos mais curtos que provoquem os modos convencionais de escrita acadêmica; e, finalmente, popularizar e fazer chegar mais longe a prática antropológica. E o blog é uma, entre as demais variadas formas de divulgação científica da pesquisa realizada, também publicada em formato de livro em Fleischer e Lima (2020)FLEISCHER, S.; LIMA, F. Micro: contribuições da antropologia. Brasília: Athalaia, 2020. e divulgada em palestras e eventos científicos.

É nesta direção também de popularização da antropologia que poderíamos citar a proliferação recente de podcasts antropológicos produzidos no âmbito de programas de graduação e pós-graduação em Antropologia, como, por exemplo, o Antrópolis (UFPEL), o Antropológica (UFT), o Conversas da Kata (UnB), Conversas (In)Convenientes (UFSC), o Mundaréu (Unicamp/UnB), MuseuLógicas/série Anthropológicas (UFPE), o Selvagerias Podcast (USP), além de outras iniciativas igualmente relevantes formuladas individualmente ou em parceria entre colegas, como o podcast Campo (Paula Lacerda e Carol Parreiras) e o Antropocast (Fred Lúcio).

Também são dignas de nota as propostas das organizações acadêmicas de referência na área, destacando-se a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), que, em parceria com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM), lançaram conjuntamente o Boletim Cientistas Sociais e o Coronavírus, já referido e analisado neste número. O projeto, posteriormente publicado como uma coletânea (Grossi; Toniol, 2020GROSSI, M.; TONIOL, R. (org.). Cientistas sociais e o coronavírus. São Paulo: Anpocs; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020.), reuniu textos curtos, destinados a temáticas variadas, produzidos por cientistas sociais que fazem pesquisa no Brasil, não apenas demostrando o vigor e o comprometimento disciplinar de pesquisadoras e pesquisadores da área no Brasil, mas também produzindo uma memória das formas variadas desse engajamento, na exploração criativa das contribuições possíveis de uma antropologia feita no Brasil em face da pandemia.

Finalmente, cabe ainda mencionar que este número de Horizontes Antropológicos foi projetado há um ano, como uma resposta imediata ao anúncio da pandemia mundial de Covid-19, em 11 de março de 2020. Trata-se de uma iniciativa conjunta dos editores da revista e a Rede Covid-19 Humanidades MCTI. Liderada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS-UFRGS), a Rede mobiliza mais de 90 pesquisadoras e pesquisadores de diferentes áreas das Ciências Humanas, Sociais e da Saúde do Brasil e do exterior. Ela conta com a parceria da Fiocruz, do Instituto Brasil Plural da UFSC, da UnB, da Unicamp, da UFRN, da UFSM e da Unidavi e integra o conjunto de ações da Rede Vírus MCTI financiadas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações para o enfrentamento da pandemia. A Rede produz pesquisas qualitativas que analisam o impacto da Covid-19 entre os profissionais de saúde e grupos vulneráveis em situação de isolamento social, com o objetivo de subsidiar ações na resposta à pandemia no Brasil. O ponto-chave dessas pesquisas vem exatamente ao encontro dos propósitos deste número de Horizontes Antropológicos: colocar em relevo a multiplicidade da pandemia, situando as suas implicações científicas, tecnológicas, sociais, políticas, históricas e culturais. Se a pandemia é múltipla, as respostas a ela também precisam ser.2 2 Temos desenvolvido este tópico a partir de diversas frentes de pesquisa contexto da Rede Covid-19 Humanidades MCTI. Nela integramos o projeto “A Covid-19 no Brasil: análise e resposta aos impactos sociais da pandemia entre profissionais de saúde e população em isolamento” (Convênio Ref.: 0464/20 Finep/UFRGS). Além deste projeto, nossas pesquisas têm sido financiadas também por outras agências: Jean Segata, Patrice Schuch e Arlei Sander Damo são bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq. Ceres Víctora é bolsista Capes (código de financiamento 001).

Assim, tomadas em conjunto, as iniciativas acima descritas e os artigos que compõem este número evidenciam abordagens analíticas densas que, necessariamente, são mais situadas e menos contemplativas e, na medida em que são também feitas em situações de grande incerteza, abrem mão de procedimentos totalizantes e são evidentemente mais abertas às contingências e às provisoriedades das dinâmicas do mundo. Isso sugere que se a antropologia tem um potencial criativo na evocação das múltiplas e desiguais pandemias, como viemos argumentando ao longo desta apresentação, a complexidade desse evento crítico reverbera, por outro lado, como um momento importante de pensar de maneira renovada sobre a própria disciplina e suas formas de politização e de atuação pública.

Na capa deste número apresentamos a escultura Eternal masks is now, do artista Randy Gilson. Exposta no museu a céu aberto Randyland (https://randy.land), em Pittsburgh, Pensilvânia, Estados Unidos, ela representa um segmento de uma obra de arte maior composta por instalações feitas a partir de sucata. O artista autorizou o uso da imagem para fins não comerciais e solicitou que nesta apresentação fosse incluído o seguinte comentário sobre a peça: “We all have something in common.” A foto da escultura, de autoria da fotógrafa Carla Ruas, foi cedida a pedido dos organizadores/as desta edição.

Este número chega ao leitor quando a pandemia completa um ano. Mas ele não encerra os seus desafios. Antes, ele registra alguns dos esforços da disciplina para situar, complexificar, descolonizar e abrir algumas luzes analíticas para a compreensão desse evento crítico. Infelizmente, ao completar esse primeiro ano, a pandemia já acumulou mais de 115 milhões de casos confirmados no mundo, entre os quais mais de 2,5 milhões vieram a óbito. Onze milhões desses casos confirmados são do Brasil, onde o número de mortes já superou os 265 mil.3 3 Ver “Coronavírus (Covid-19)” - estatísticas do Google. Disponível em: https://g.co/kgs/wW8zBY (acesso em 08/03/2021). Esta Horizontes Antropológicos é dedicada às muitas memórias em torno de cada uma das perdas que resultam das pandemias que temos vivido com a Covid-19.

Referências

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    Mesmo que pandemias não sejam acontecimentos sem precedentes como foi o caso da Partição da Índia, o assassinato de Indira Gandhi e o desastre de Bophal, analisados por Veena Das (1995)DAS, V. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. Oxford: Oxford University Press, 1995., o conceito de “evento crítico”, resgatado por ela a partir da obra de François Furet, fornece pistas para pensar a pandemia de Sars-CoV-2. Destacamos, em especial, o caráter aberto dos “acontecimentos’ e a sua capacidade de se projetar para o futuro; as disputas e apropriações de seus significados por parte de instituições e atores sociais; e sua maneira mais ou menos visível e silenciosa de afetar o presente e moldar futuras expectativas, em consonância com Ortega (2008)ORTEGA, F. A. (ed.). Veena Das: sujetos del dolor, agentes de dignidade. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia. Facultad de Ciencias Humanas: Pontificia Universidad Javeriana. Instituto Pensar, 2008.. Os “eventos críticos” são experiências que, nas palavras deste autor, “desestabilizam categorias socialmente estabelecidas e geram contextos fluidos nos quais o reforço do sentido desempenha um papel fundamental na lógica da mudança, ou seja, nos mecanismos que regem a sucessão de um evento por outro” (Ortega, 2008ORTEGA, F. A. (ed.). Veena Das: sujetos del dolor, agentes de dignidade. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia. Facultad de Ciencias Humanas: Pontificia Universidad Javeriana. Instituto Pensar, 2008., p. 31, tradução nossa).
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    Temos desenvolvido este tópico a partir de diversas frentes de pesquisa contexto da Rede Covid-19 Humanidades MCTI. Nela integramos o projeto “A Covid-19 no Brasil: análise e resposta aos impactos sociais da pandemia entre profissionais de saúde e população em isolamento” (Convênio Ref.: 0464/20 Finep/UFRGS). Além deste projeto, nossas pesquisas têm sido financiadas também por outras agências: Jean Segata, Patrice Schuch e Arlei Sander Damo são bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq. Ceres Víctora é bolsista Capes (código de financiamento 001).
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    Ver “Coronavírus (Covid-19)” - estatísticas do Google. Disponível em: https://g.co/kgs/wW8zBY (acesso em 08/03/2021).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021
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