Acessibilidade / Reportar erro

Identidades: estudos de cultura e poder

RESENHAS

Denise Fagundes Jardim

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

FELDMAN-BIANCO, Bela; CAPINHA, Graça (Org.). Identidades: estudos de cultura e poder. São Paulo: Hucitec, 2000. 175 p.

Em Identidades: estudos de cultura e poder, Bela Feldman-Bianco e Graça Capinha reúnem artigos que contemplam múltiplos enfoques e tramas conceituais sobre as relações entre identidades "locais" e os processos "globais". O volume é organizado a partir do encontro entre pesquisadores do Brasil, Portugal e Estados Unidos. Em se tratando de experiências sobre identidade cultural, migrações e globalização, nada mais adequado do que explorar experiências singulares e refletir sobre o instrumental analítico, seu alcance e certezas, através de estudos comparativos.

Identidades, de Bela Feldman-Bianco sublinha os entrecruzamentos e interlocuções necessárias entre perspectivas e pesquisadores para tratar de "identidades". Salienta a possibilidade de um melhor entendimento da produção de unidades culturais e a análise da dimensão cultural quando tratados sob o signo do transnacionalismo, dos constantes deslocamentos de populações. Faz-se necessário analisar como estas situações operam e suas implicações nos jogos de identidade. Jogos estes que envolvem tanto a produção de identidades diferenciadas quanto o seu contrário, a dissolução de fronteiras.

Boaventura de Souza Santos explora as possibilidades de uma concepção multicultural de direitos humanos. Em "Por uma concepção Multicultural de Direitos Humanos", o leitor encontrará definições precisas sobre globalização, localismo e seus nexos: "Aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de fato, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização" (p. 22). O sistema-mundo é uma trama de globalismos localizados e localismos globalizados. Para o autor, o entendimento das relações entre o global e o local, seus diálogos e entrecruzamentos são melhores descritos em situações que devem ser analisadas de modo mais cuidadoso. Há sempre um risco de estabelecer um feixe de relações como "a globalização" quando, do ponto de vista analítico, entende que não existe a globalização bem-sucedida ou genuína.

O autor sugere analisarmos questões pontuais, para refletir sobre a globalização, em especial aquelas que parecem colocar em risco ou dúvida um "patrimônio comum da humanidade". Para isto, toma as noções de "direitos humanos" e a universalidade de noções de dignidade como foco de sua reflexão. Questiona a tradutibilidade de conceitos de dignidade entre culturas e sob que premissas as distintas noções de dignidade poderiam organizar diálogos interculturais sem recorrer a falsos universalismos. Para Boaventura, este exercício permite formular para uma tarefa emancipatória cinco premissas que poderiam organizar os diálogos interculturais. A primeira premissa é a necessária superação do debate sobre o universalismo e o relativismo cultural. A segunda, que todas as culturas tem noções sobre dignidade humana. Terceira, que todas as culturas são incompletas e problemáticas quanto às noções de dignidade humana. Quarta premissa, há que se definir qual o círculo de reciprocidade mais amplo que tal noção singular de dignidade está operando em dada sociedade. A quinta premissa refere a compreensão de que princípios de igualdade e diferença não se equivalem (entre as culturas). Em questão estão as noções de igualdade e diferença gestadas localmente e, mesmo reconhecendo a proposta de uma hermenêutica diatópica como um projeto "demasiadamente utópico", busca reverter os efeitos da globalização e de uma noção unívoca de direitos humanos.

"Laços de Sangue: Os fundamentos raciais do Estado-nação transnacional" de Nina Glick Schiller e Geirges Fouron é um estudo sobre a redefinição de Estados nacionais como transnacionais a partir da experiência de populações em diáspora. A pesquisa se reporta a períodos de 1969 a 1996, antes dos dirigentes políticos haitianos se referirem à diáspora haitiana como parte do Haiti. O artigo possibilita perceber a historicidade dos usos de noções de nação, desde sua definição como natio (lugar de nascimento) até as formulações centradas na noção de raça como o fundamento da nação. O estudo comparativo dos discursos das nações européias, Estados Unidos, América Latina, México e República Dominicana permite compreender os desdobramentos históricos do uso de noções de raça para delinear identidades nacionais.

O Haiti é uma situação singular pelo lugar privilegiado das noções de nação formuladas a partir da retórica racial, uma nação que se define como negra e que expulsou a dominação francesa (desde 1804). Mesmo assim, noções sobre a civilização como branca e conceitos de superioridade da raça branca atravessam o universo de referências dos intelectuais desta nação: "os intelectuais haitianos passaram a falar como se o mundo estivesse dividido em populações biologicamente distintas como se os africanos negros não fossem de fato civilizados" (p. 50).

O artigo salienta os entrecruzamentos da noção de raça e sangue e sua atualização por um amplo setor da população, que se vê obrigado a emigrar. A diáspora haitiana e a obrigação de sustentar a família no Haiti demonstra-nos a vitalidade de lealdades tidas como primordiais e que se utilizam de metáforas de parentesco e sangue para traçar reciprocidades e a unidade de todos os haitianos. O Estado nação transnacional "é legitimado pela ideologia de uma linha de descendência que liga os indivíduos a um corpo comum haitiano. E esse corpo comum é negro". (p. 53).

Conhecer aspectos da identidade nacional no Haiti é fundamental para pesquisadores que refletem sobre a historicidade das identidades nacionais e seus ideólogos na América Latina. O Haiti é um caso exemplar de recriação da noção de raça negra como um idioma para a produção de uma unidade política do Estado nação, agora transnacional. Seguindo a perspectiva comparativa dos estudos reunidos neste volume, devemos lembrar o quanto o "medo do Haiti" foi inspirador para políticas de branqueamento no Brasil e, portanto, de incremento do "fator de civilização" - a migração de colonos europeus - assim referido pelos ideólogos da nação nos lugares de poder no Brasil. Assim, ler sobre o Haiti atual e sobre a produção de um "tipo nacional", acrescenta entendimento dos processos de "crioulização" na América Latina e, de outro lado, do branqueamento no Brasil. Ajuda-nos a perceber como nos relacionamos de forma singular com noções de "raça" e "tipos nacionais".

Angela Gilliam percorre o que chama de conjunções culturais complexas. Em "Globalização, identidade e os ataques à igualdade nos Estados Unidos: esboço de uma perspectiva para o Brasil", a autora discorre sobre as políticas assistenciais do Estado, o impacto dos debates sobre os direitos de minorias nos EUA e o universo prisional naquele pais. Mostra a articulação entre as empresas que participam da privatização da indústria prisional e a sustentação de uma indústria dentro das prisões, que isenta empregadores da necessidade de pagamento de direitos trabalhistas, bem como, os mecanismos que reiteram a igualdade e que criam um "daltonismo" como o "parceiro ideológico" do discurso do "mercado aberto".

O artigo é fundamental no que diz respeito à análise do sistema prisional americano, pois mostra os nexos entre racismo, políticas de Estado e sua ingerência sobre o sistema prisional, mostrando-nos a criminalização da pobreza e a continuidade de um sistema escravista nas formas de reclusão oficiais contemporâneas.

A autora compara a utilização da "affirmative action", nos EUA e no Brasil, pelos "militantes" e "intelectuais", que falam sobre relações raciais e preconceito no Brasil. Formula uma crítica aos autores que dizem que o modelo da "affirmative action" não contribuiria para a compreensão das relações multirraciais no Brasil. Para a autora, é uma outra expressão do daltonismo que serve como ponto de vista analítico: "Negar a capacidade de iniciativa a esses descendentes de escravos que optam por apropriar-se da hipodescendência em seu favor é reproduzir o seu silenciamento, ao mesmo tempo que torna mais difícil compreender por que é que tantos negros brasileiros procuram a affirmative action apesar do seu apadrinhamento neoliberal. Tudo isso está relacionado com a eterna demanda da cidadania plena." (p. 99).

"A poesia dos emigrantes portugueses no Brasil: Ficções críveis no campo da(s) identidade(s)" de Graça Capinha pretende uma análise microscópica do fenômeno da emigração, trazendo à tona o entendimento do que chama de "espaço de fronteira", como um lugar em que se pode construir um leque de configurações identitárias. É através da poesia (da linguagem e na linguagem) que o "centro histórico" da identidade portuguesa tem se firmado perante aos outros falantes do idioma. Para a autora, a situação de emigrante é uma posição privilegiada para perceber a interseção e confronto entre "duas línguas e duas culturas" (p. 121). Centra seu estudo em poetas populares e, averiguando suas trajetórias, percebe os deslocamentos a que foram impelidos - quanto mais locais, mais trânsitos - e os espaços de reflexão sobre o espaço "entre" lugares.

Mary Garcia Castro investiga a centralidade das mulheres portoriquenhas, mexicanas e chicanas na recriação de unidades políticas perante experiências transnacionais. Para isso, "Transidentidades no Local Globalizado. Não-identidades, margens e fronteiras: vozes de mulheres latinas nos EUA" centra-se na análise das reflexões de autoras chicanas sobre ícones tradicionais como, por exemplo, a Virgem de Guadalupe. Castro compreende que a experiência da diáspora exige pensar situações de "múltiplas subalternidades" e readequar sua identidade de gênero a outros imperativos e a uma noção de "consciência mestiça" neste "outro" Estado nação. Em foco, encontram-se questões sobre a necessidade de refazer o mapa dos processos de exclusão econômica e cultural, bem como as agendas que sublinham as questões relativas a minorias (negros, mulheres, homossexuais) e que omitem questões de classe que organizam a reflexão sobre identidades coletivas.

Em suma, a coletânea é de grande interesse pela diversidade de objetos empíricos e, além disso, pela unidade na forma de explorar os paradoxos que incidem na produção de identidades culturais e políticas, centrando-se nas relações de poder que incidem sobre a configuração de identidades, "des-identidades e não-identidades", como parte da constituição de unidades sociais. Os autores tratam de populações que se situam entre Estados nacionais e refletem sobre as políticas de Estado. Salientam os elementos que são co-produtores de unidades sociais como, por exemplo, os efeitos inesperados das políticas de Estado e a produção literária e intelectual.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2001
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br