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O que faz o dinheiro da casa

What house money does

Resumo

O dinheiro da casa é uma forma de nomear, separar e mobilizar valores monetários que expressa um nexo prático-valorativo a partir do qual pessoas, casas, relações e dinheiros se constituem mutuamente. O texto se baseia em pesquisa etnográfica realizada em uma favela carioca, no Complexo do Alemão e parte da análise de diferentes categorias de dinheiro para pensar sobre as imbricações entre relacionalidade e economia. O dinheiro certo, grande e pequeno, dos homens e das mulheres, são estados transitórios e situados em processos mais amplos de trânsitos e conversões que envolvem materialidades (casas, comida, cédulas, moedas), moralidades (ligadas à proximidade e ao gênero) e linguagens e imaginações específicas (do parentesco, das quantidades). O artigo procura explorar teoricamente as afetações mútuas entre as antropologias da relacionalidade e da pessoa e os estudos sociais sobre o dinheiro.

Palavras-chave:
dinheiro; casa; gênero; relacionalidade

Abstract

The house money is a manner of naming, separating, and mobilizing monetary values that expresses a practical-valuative nexus from which people, houses, relations, and money are mutually constituted. The text is based on ethnographic research conducted in a Rio de Janeiro favela, in the Complexo do Alemão, and starts from analyzing different categories of money to think about the imbrications between relationality and economy. The certain money, big and small, of men and women, are transitory states situated in broader processes of transits and conversions that involve materialities (houses, food, banknotes, coins), moralities (linked to proximity and gender), and specific languages and imaginations (of kinship, of quantities). The article explores theoretically the mutual affectations between the anthropologies of relationality and personhood and social studies on money.

Keywords:
money; house; gender; relatedness

Ouvi a expressão “dinheiro da casa” durante meu trabalho de campo no meio de conversas sobre diferentes assuntos: em discussões sobre gastos financeiros, em meio a fofocas sobre um desafeto, em um cochicho sobre uma suspeita de traição ou tratando da necessidade de ajudar um parente em dificuldade. Seu uso corriqueiro entre meus interlocutores expressa um conjunto de ideias e de práticas que relacionam formas de usar o dinheiro aos valores das pessoas e às maneiras como se tornam e se mantêm próximas umas às outras. Este texto parte desse termo para tratar do dinheiro da casa (sem aspas) como um nexo prático-valorativo que participa na construção de pessoas, relações e das casas elas mesmas. Ele se situa, portanto, na interseção entre temas e questões que foram mais comumente tratados de forma apartada na antropologia e explora a produtividade analítica de cruzamentos entre os estudos sobre casa e aqueles sobre dinheiro. Este trabalho se baseia em pesquisa etnográfica feita principalmente entre 2012 e 2014 em uma favela carioca e, especialmente, na convivência na casa da minha principal interlocutora em campo, que chamo em meus textos de Maria.

Maria e Antônio, seu marido, moravam, enquanto convivi com eles, em uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, na favela Aliança,1 1 Os nomes das pessoas citadas como meus interlocutores em campo são fictícios, assim como da comunidade em que moram. uma das comunidades que compõem o Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Eles tiveram quatro filhos juntos, dos quais apenas as duas mulheres estavam vivas. A mais nova tinha um filho quando nos conhecemos, assim como a mais velha. Ambas moravam também na Aliança, cada uma com sua prole e marido.

As crianças eram presenças constantes na casa de Maria, as filhas apareciam bastante e os maridos também, mas com menos frequência. Minha amiga e principal interlocutora era considerada uma liderança na comunidade. Tinha um projeto social e participava de reuniões com gestores da prefeitura sobre as políticas de economia solidária. Católica, não frequentava muito a igreja, mas tinha alguns afilhados e afilhadas, em quantidade que nunca consegui saber ao certo. Entre parentes, irmãs de igreja, companheiros de projeto, vizinhas e vizinhos, fui incluída na extensa rede de pessoas dela - mais à frente explico esse termo - e passei uma grande parte do tempo em campo no lugar por onde todos passavam: a cozinha da casa de Maria. De lá participei do preparo de almoços e jantares de família, lanches para as crianças do projeto, comidas para festas.

Maria tinha uma casa dela, não pagava aluguel. O marido estava empregado, com carteira assinada e eles ainda eram proprietários de duas quitinetes2 2 Quitinetes são casas ou apartamentos compostos de apenas um cômodo e banheiro. que alugavam. Estavam longe de “passarem necessidade”, como ela me disse, mas a quantidade de dinheiro que ganhavam fazia com que tivessem que administrar com cuidado os recursos. A preparação dos pratos de feijão com arroz e macarrão, cachorro quente ou arroz doce era precedida por processos trabalhosos, que tomavam grande parte do tempo da minha amiga. Várias conversas se davam em torno de como comprar os insumos, onde e quando, e eram necessários muitos cálculos, monetários e morais, que incluíam também quem comeria em cada ocasião, o que e quanto. Essas considerações eram atravessadas por comentários sobre relacionamentos amorosos, sobre o caráter de um vizinho ou sobre a ajuda a uma amiga. O dinheiro da casa estava presente na maior parte delas.

Há quase cem anos, Marcel Mauss (2003)MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 183-314. propôs uma investigação sobre a vinculação social a partir da ideia de dádiva, capaz de tornar visíveis os três princípios por meio dos quais as pessoas se conectariam e permaneceriam em relação: os deveres de dar, receber e retribuir. Seu caminho analítico colocou as práticas de presentear e trocar no centro de uma pergunta sociológica fundamental: por que e como as pessoas se sentem obrigadas umas às outras e a regras coletivas? Sua investigação etnográfica e comparativa o levou a sugerir que as coisas dadas carregam nelas algo do doador, força capaz de criar dívidas materiais e morais e incluir o presentado em um ciclo infinito de retribuições obrigatórias.

Embora Mauss sugira, no Ensaio sobre a dádiva, que este é um princípio presente em sociedades que ele chama de “primitivas”, ele parte delas para tratar da sua presença na “nossa sociedade”. Mesmo nos mercados capitalistas e monetizados, onde a utilidade e a impessoalidade figuram como um ideal moderno, ali também opera o dom. O caráter híbrido das trocas e das relações é enfatizado de diversas maneiras nessa obra. Mostrando a convivência entre generosidade e interesse, entre utilidade e valor, entre competição e vínculo, Mauss abre um universo de perguntas que ultrapassam suas pretensões manifestas.

Há muitas interpretações, apropriações e debates em torno do Ensaio. Está fora da pretensão deste texto propor uma nova ou, mesmo, uma qualquer. O que quero mostrar é que sua inspiração teórica segue viva - mais do que atual - e sua plasticidade propositiva - a ausência de uma grande teoria - permite pensar para além e para fora da própria obra, dos casos que apresenta e dos seus argumentos explícitos. Faço aqui a referência ao Ensaio não em reverência à obra - ou ao seu autor -, mas pelo reconhecimento desta como expressão de uma perspectiva à qual pretendo estar filiada: da etnografia como fonte de produção teórica, da contradição e da tensão como forças permanentes das relações humanas e da economia como dimensão significativa e vital.

Essa agenda se aplica neste artigo a um tipo específico de entidade que passa de pessoa a pessoa, e cujas particularidades como tal poderei discutir ao longo do texto: o dinheiro. Reconheço assim, também, a possibilidade de torções internas produtivas do Ensaio. O dinheiro foi pensado nas ciências sociais - não apenas por Mauss, evidentemente - como meio e produto do esvaziamento das trocas de seu caráter socialmente vinculante e significativo. Mostro, por meio da etnografia, como mesmo os cálculos matemáticos, os contratos, as cédulas e moedas são investidos de grande densidade relacional e simbólica.

Este texto trata de práticas monetárias cotidianas e das formas como estão imbricadas nas moralidades em torno da pessoa, do gênero e da relacionalidade3 3 Uso a palavra “relacionalidade” neste texto como versão do termo relatedness. Em português se perde um dos sentidos da palavra em inglês, que remete tanto a relação em sentido amplo quanto a ser aparentado. Carsten usa o termo como maneira de definir sua abordagem sobre as relações a partir de categorias e concepções nativas e não de conceitos preconcebidos, a que, segundo ela, o termo parentesco (kinship) remete. (Carsten, 1995CARSTEN, J. The substance of kinship and the heat of the hearth: feeding, personhood, and relatedness among Malays in Pulau Langkawi. American Ethnologist, [s. l.], v. 22, n. 2, p. 223-241, 1995. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/646700 . Acesso em: 30 jul. 2023.
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, p. 224). É uma perspectiva sobre o dinheiro através da casa, no sentido mais literal da palavra: sobre o que acontece quando esses fluxos de valores cruzam os espaços domésticos4 4 Apesar dos termos “doméstico” e “domesticidade” terem uma história importante na disciplina e terem sido usados com a força de conceitos teoricamente relevantes, o uso neste texto não vai nesse sentido. Todas as vezes que aparece a palavra “doméstico” é apenas no sentido de “referente a casa”. (apenas imaginados ou situados espacialmente). Sigo, analítica e teoricamente, o caminho invocado pelo meu objeto etnográfico: o cruzamento entre a antropologia da casa - e sua relação com os estudos da família e da pessoa - e a socioantropologia do dinheiro - em especial as perspectivas pragmáticas (Neiburg, 2022NEIBURG, F. Buscando a vida na economia e na etnografia. Mana, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, e282900, 2022. Disponível em: Disponível em: http://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n2a900 . Acesso em: 30 jul. 2023.
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). A pretensão, mais do que dialogar ao mesmo tempo com ambas as vertentes teóricas e temáticas, é explorar sua mútua afetação: como a atenção para o dinheiro provoca os estudos sobre casa e, reciprocamente, como a atenção à relacionalidade instiga os estudos sociais sobre o dinheiro.

As casas são espaços materiais, compostos de paredes, telhas, portas, móveis e objetos de decoração. São também pessoas morais,5 5 Pessoa moral é a versão em português do termo em francês personne morale, usado tanto por Marcel Mauss (2003, p. 190) quanto por Lévi-Strauss (1991, p. 435) para caracterizar as coletividades que se obrigam contratualmente, no caso do primeiro, e, especificamente as casas, para o segundo. É também a expressão que denota o que chamamos no Brasil de pessoa jurídica. instituições do parentesco (Lévi-Strauss, 1991LÉVI-STRAUSS, C. Maison. In: BONTÉ, P.; IZARD, M. (ed.). Dictionnaire de l’ethnologie et de l’anthropologie. Paris: PUF, 1991. p. 434-436., p. 435) e referências na administração financeira. O dinheiro também tem existências múltiplas, circulando por meio de materialidades distintas como cédulas, moedas, cartões, vales ou como um operador social que pode prescindir delas, mas sempre atrelado a quantidades. Um dos meus interesses neste texto é investigar as relações de ambas as entidades - casa e dinheiro - com os objetos que as podem encarnar e com as noções que operam na sua imaginação.

Casas também são referências por meio das quais as pessoas se percebem como próximas umas às outras. Comer juntos ou da mesma comida, cuidar e ser cuidado, são as principais formas pelas quais se constroem ou se atualizam cotidianamente as relações que são percebidas como relações com “parentes” e “amigos”, pessoas que são umas das outras. Me inspiro para esse conceito no termo haitiano moun mwen, tratado por Dalmaso (2014DALMASO, F. Kijan moun yo ye?: as pessoas, as casas e as dinâmicas da familiaridade em Jacmel/Haiti. 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.), Andrade (2019ANDRADE, F. Comércio, mobilidade e dinheiro: a busca pela vida no Plateau Central haitiano e na fronteira dominicana. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.) e Braum (2014BRAUM, P. Rat pa Kaka: política, desenvolvimento e violência no coração de Porto Príncipe. 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.). A tradução literal é minhas pessoas e um indivíduo trata assim aqueles com quem pode contar, e com quem partilha casa, sangue e comida.6 6 A distinção entre familiares e amigos existe (assim como entre categorias de parentes e de amigos), é de grande relevância para meus interlocutores e, portanto, para a análise sobre a proximidade e a familiaridade. Não vou tratar aqui dessas distinções porque isso excederia os objetivos deste texto. Tomo emprestado o conceito haitiano de minhas pessoas, cujo conteúdo expressa as características relevantes para os presentes argumentos. Mas vale pontuar que o vocabulário do parentesco e da amizade dirigido por uma pessoa a outra pode variar na história das relações (ao longo do tempo), mas também segundo a situação de interação em que é usado. Essas condutas que constituem relações não apenas acontecem dentro das casas, mas se fala e se pensa sobre elas tendo as casas como referência.

O dinheiro pouco foi considerado pelos antropólogos e antropólogas que trabalharam sobre a produção e manutenção desses tipos de laços, embora em grande parte dos lares no mundo este seja não apenas uma presença constante e essencial à manutenção da vida (coletiva), mas um meio de manifestação dos valores que os compõem. O dinheiro da casa demonstra essa participação substantiva, já que expressa a imbricação de formas de gerir recursos e de valorar pessoas, lugares e relações, além de ser parte de um idioma por meio do qual se fala de proximidade e de suas implicações: solidariedade, desconfiança, lealdade, traição, amor e rompimento.

Por seu lado, a antropologia do dinheiro dedicou pouca atenção às relações familiares e próximas na constituição própria do dinheiro como prática social. Mesmo que já tenhamos sido advertidos faz tempo sobre a perspectiva, na sintética formulação de Zelizer (2005ZELIZER, V. The purchase of intimacy. Princeton: Princeton University Press, 2005.), dos “mundos hostis”, a atenção sobre as práticas econômicas reais tem gerado proposições negativas ou opositivas. A própria autora usa sua análise sobre marcações e separações de dinheiro (Zelizer, 2003ZELIZER, V. O significado social do dinheiro: “dinheiros especiais”. In: MARQUES, R.; PEIXOTO, J. (org.). A nova sociologia econômica: uma antologia. Lisboa: Celta Editora, 2003. p. 125-165.) para se contrapor aos teóricos da economia e à ideia de fungibilidade. Outros, como Gudeman e Rivera (1990GUDEMAN, S.; RIVERA, A. Conversations in Colombia: the domestic economy in life and text. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.) e de L’Estoile (2020)DE L’ESTOILE, B. de. Oikonomia na Zona da Mata. Ruris: revista do Centro de Estudos Rurais, Campinas, v. 12, n. 2, p. 211-226, 2020., argumentam pela diferença entre os princípios de funcionamento da economia nas casas e comunidades em relação àqueles do mercado. O que acontece se, no lugar de nos perguntarmos sobre as perturbações operadas pelas relações substantivas nas práticas monetárias - ou nas teorias de especialistas sobre elas - e vice-versa, considerarmos de maneira positiva como se apresentam na vida das pessoas?

Ao longo do texto trato de diversas formas de qualificar o dinheiro: da casa, certo, pequeno, feminino, masculino. Essas separações não são desvios específicos de um dinheiro que em algum lugar é neutro, mas apresentações do dinheiro situadas e provisórias e que não desvirtuam as suas qualidades gerais, mas são inseparáveis delas. Da mesma maneira, as brigas, desconfianças e medos em relação a cônjuges, vizinhos, parentes e amigos não são falhas das relações, mas as constituem. Essa pretensão analítica não normativa tira o foco dos conflitos eles próprios para compreender os processos em que estão inseridos. Por isso me interessam, mais que as fronteiras e distinções, os trânsitos e conversões, os processos ao mesmo tempo materiais, morais e imaginativos. Essa atenção às transformações pode ser traduzida por meio de uma formulação que tomo emprestada de Janet Carsten (2013)CARSTEN, J. What kinship does-and how. HAU: journal of ethnographic theory, [s. l.], v. 3, n. 2, p. 245-251, 2013. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.14318/hau3.2.013 . Acesso em: 30 jul. 2023.
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: não se trata de perguntar “o que é o dinheiro da casa?”, mas “o que faz o dinheiro da casa?”. Em uma crítica à formulação de Marshall Sahlins (2013)SAHLINS, M. What kinship is - and is not. Chicago: The University of Chicago Press, 2013. a autora propõe esse tipo de mudança de perspectiva em relação ao parentesco.7 7 O livro de Sahlins (2013) se chama What kinship is - and is not, “O que é parentesco - e o que não é”, em tradução livre. O artigo de comentário de Carsten (2013) ao livro tem o título “What kinship does - and how”, em português: “O que o parentesco faz - e como”. Pretendo, assim como ela, me perguntar sobre processos e enfatizar o caráter mutável, negociado e instável das relações e, com elas, das práticas monetárias. O esforço implica a produção de descrições e análises positivas e que não dialoguem com o que o dinheiro ou a economia sejam ou devessem ser para alguém que não sejam os meus interlocutores.

Uma das coisas que o dinheiro da casa faz é enquadrar moralmente. Na maior parte das situações em que se falou em dinheiro da casa na minha presença, a conversa envolvia a condenação de algum tipo de gasto ou comportamento ou legitimação de outro, por exemplo. Esse enquadramento se articula com práticas comerciais, familiares, monetárias e, assim, o dinheiro da casa também faz pessoas, família e casas. Ao fazer pessoas, o dinheiro da casa faz homens e mulheres, compondo o sistema de diferenças pensado como natural, que chamamos de gênero (Vale de Almeida, 1996VALE DE ALMEIDA, M. Gênero, masculinidade e poder. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, n. 95, p. 161-189, 1996. Disponível em: Disponível em: https://www.periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6602/7539 . Acesso em: 30 jul. 2023.
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). Isso por meio de atividades que também vão fazendo os dinheiros, qualificando-os. Me aproveito aqui da ambiguidade do verbo fazer na pergunta que guia estas páginas - podendo ser o dinheiro entendido como sujeito ou objeto - para salientar meu principal argumento: dinheiros, pessoas, casas fazem-se mutuamente.

Em cada uma das seções trato de diferentes dinheiros, mostrando como cada um se conecta ao nexo prático valorativo do dinheiro da casa por meio da análise de conversões e transformações (efetivas, esperadas ou possíveis), demonstrando o caráter muitas vezes tenso, outras negociado, mas sempre processual do dinheiro. Sigo um percurso lógico que vai da constituição do dinheiro da casa a partir do dinheiro certo do salário, passa pela circulação entre casas atrelada à comida e depois para os fluxos dentro da casa. Concluo tratando dos dinheiros generificados, que não são dinheiro da casa, mas seguem a ele atrelado.

Começo com a descrição da conversão de salário, uma das modalidades do “dinheiro certo”, em dinheiro da casa. Mostro quais são as transformações e tensões envolvidas nesse processo que também conecta casas, corpos e vida cotidiana à escala das instituições estatais nacionais por meio de sua ligação com a regulação do trabalho e da proteção social. Exploro também as relações intrínsecas entre gênero, materialidade e espacialidade na circulação e valoração de dinheiros e pessoas. Procuro, assim, demostrar que não se trata de separação entre mercado e casa, mas da produção das relações entre estes.

Na segunda parte do texto proponho uma investigação sobre os universos morais e práticos que se apresentam em torno do dinheiro da casa na sua relação com os alimentos. Comprar, preparar, transportar comida e comê-la são atividades atravessadas pelo dinheiro, compondo as formas pelas quais se produz e se concebe a proximidade e por meio das quais se expressam desconfianças e expectativas nela implicadas. O dinheiro da casa, demonstro, é dinheiro que conecta muitas casas e pessoas e se encontra no centro da constituição das configurações de casa, conceito a que me refiro à frente. Embora a comensalidade seja um tema caro à antropologia, o fato de que alimentos sejam comprados pouco foi considerado. O material etnográfico que apresento torna visível essa relação e, dessa forma, a participação substantiva do dinheiro nas práticas de comensalidade.

A terceira seção é sobre dinheiro “grande” e “pequeno”, formas de nominar e marcar, mas, principalmente, de fazer circular valores. Assim como outras qualificações do dinheiro feitas pelos meus interlocutores, essas duas categorias expressam estado provisórios em processos de transformação permanente que ocorrem na circulação dentro e para fora da casa.

Na quarta seção a moralidade em torno do dinheiro continua a ser tema, quando trato do dinheiro gasto ou ganho “na rua”, que se opõe moralmente ao dinheiro da casa, ao mesmo tempo que a mantém como referência. A forma como homens e mulheres são objeto de suspeitas e acusações diferentes envolvendo a tensa mistura entre dinheiro e sexo (fora de casa) é o assunto dessa seção. O pagamento por serviços sexuais e o dinheiro entre casais casados são objetos bastante tratados na literatura sobre economia. Meu foco é uma articulação de outro tipo: as suspeitas e ameaças que associam o sexo e a violação das obrigações em torno do dinheiro da casa.

Na quinta e última seção trato de circuitos femininos constituídos principalmente por meio da compra e venda de produtos por catálogo. O dinheiro que flui neles não se confunde nem concorre com o dinheiro da casa, mas tem nela seu lugar privilegiado de realização. A hospitalidade comercial implicada neles é uma dimensão crucial, que se soma ao acesso de coisas para si como forma de exercício de liberdade feminina. Essa análise permite iluminar uma velha polêmica da literatura feminista: será a casa cativeiro ou lugar de liberdade para as mulheres? A questão muda, de partida, quando se considera casas, no plural, e, portanto, relações entre elas, e não apenas a relação de cada mulher com a sua própria.

Dinheiro certo tornando-se dinheiro da casa

O conceito nativo de dinheiro da casa é operado pelos meus interlocutores como maneira de separar, classificar e denominar quantidades usadas para despesas consideradas como parte de um conjunto específico de gastos que se caracterizam pela sua previsibilidade, obrigatoriedade, continuidade e referência à casa. Maria chamava de dinheiro da casa o que era (ou deveria ser) usado para pagar por gás de cozinha, eletricidade, material de limpeza, internet e comida (Motta, 2014MOTTA, E. Houses and economy in the favela. Vibrant: virtual Brazilian anthropology, Brasília, v. 11, n. 1, p. 118-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.vibrant.org.br/issues/v11n1/eugenia-motta-houses-and-economy-in-the-favela/ . Acesso em: 30 jul. 2023.
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).

Essa identificação entre modalidades de ganho com tipos de gasto ocorre com outros fluxos. Maria pagava pelo aluguel de uma sala onde funcionava seu projeto social. Esse valor era coberto pelo que recebia dos inquilinos de duas quitinetes que pertenciam a ela. Testemunhei a negociação de preço com o dono do imóvel que ela alugava e percebi que um dos objetivos era ajustar o valor ao que recebia pelos seus imóveis. Não eram apenas os valores nominais que correspondiam. As notas de dinheiro que recebia eram as mesmas que entregava.

O dinheiro da casa de Maria era composto a partir do salário do seu marido, Antônio. Quando existem na casa, como fonte de dinheiro de algum membro, os salários, pensões e os auxílios pagos regularmente por instituições estatais (aposentadorias, valores repassados por meio de programas de transferência de renda, por exemplo) costumam ser privilegiados para compor o dinheiro da casa. Essas fontes são chamadas de “dinheiro certo”.

O ajuste ideal entre esse tipo de renda e as despesas obrigatórias de uma casa faz com que o dinheiro certo seja um elemento desejado e buscado nas casas e configurações de casas. Mas como está atrelado à casa, ele em geral é aspiração de uma coletividade. Isso faz com que, como pude observar, um casal possa alternar entre eles, segundo as circunstâncias, a dedicação ao trabalho assalariado. O outro “fica liberado” para exercer atividades cujos ganhos não são previsíveis. Isso pode se dar por uma demanda de cuidado com os filhos, por exemplo, mas também a partir da ambição por aumento de ganhos, com a abertura de um negócio que se espera ter muito sucesso.

Com essa pequena digressão quero chamar atenção para dois debates. Um deles diz respeito à dicotomia entre assalariamento com segurança versus negócio com liberdade como ideais concorrentes. Embora esses pares figurem nos discursos, escolhas e aspirações de meus interlocutores, essas não são escolhas exclusivas nem individuais. Pelo contrário, o que se busca é compor uma combinação variada de fontes em uma casa para que se possa usufruir das vantagens de ambas as situações. Luiz Antônio Machado já tinha ensinado que o assalariamento e os pequenos negócios no mundo popular são práticas e projetos que se complementam (Machado da Silva, 2018MACHADO DA SILVA, L. A. Notas sobre pequenos estabelecimentos comerciais. In: CAVALCANTI, M.; MOTTA, E.; ARAÚJO, M. (org.). O mundo popular: trabalho e condições de vida. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2018. p. 45-60.).

A segunda questão tem a ver com a vinculação do dinheiro da casa com a regulação estatal e legal. O dinheiro certo é aquele acordado em contratos garantidos legalmente (no caso dos salários), enquanto pensões, auxílios e aposentadorias são fornecidos diretamente pelo Estado. Há uma relação decisiva, portanto, entre aquilo que circula a partir e dentro da casa e a regulação legal e estatal. Não existe uma dicotomia entre dinheiro regulado e dinheiro da casa, nem mesmo entre as lógicas que regem um ou outro estado do dinheiro: eles são dependentes.8 8 Em sua tese de doutorado, Marcella Araújo (2017) analisa uma modalidade de gestão do dinheiro da casa que envolve práticas de inscrição em formas de planilhas eletrônicas na casa de sua principal interlocutora. Uma das fontes do dinheiro da casa eram os ganhos do marido, que tinha uma pequena empreiteira. As práticas contábeis obrigatórias do negócio participavam na administração doméstica, ao mesmo tempo que operavam na especialização de espaços domésticos as atividades como administradora e como dona de casa. E isso não acontece apenas com a fonte de renda, mas com os gastos: as contas, parcelas de produtos que foram comprados com cartão, por exemplo, todos regulados por contratos escritos ou cobrados por agências estatais, são obrigatórios de uma maneira particular, cujo não cumprimento implica, por exemplo, o chamado “nome sujo”.9 9 Ter o “nome sujo” significa ter restrições de crédito por causa de dívidas.

Isso não significa que não há diferenças. Pelo contrário, o que acontece é uma verdadeira conversão. A maior parte do valor recebido por Antônio da empresa em que trabalhava ia se tornando dinheiro da casa em um processo que começava a acontecer quando ele fazia o saque do pagamento no banco. O que se transferia da empresa para ele era uma quantidade abstrata, classificado como “saldo”, que depois poderia ser manipulado por diversos meios, segundo sua escolha: por meio de cartão de débito, ou materializado por meio de cédulas ou moedas. O regramento que determina a quantidade e a regularidade dos pagamentos, entre outras coisas, ao mesmo tempo que determina características fundamentais do dinheiro recebido, cessa sua influência depois que ele é depositado na conta de Antônio. Dizendo simplesmente: da perspectiva de seu empregador e do garantidor do cumprimento do contrato - para dizer rapidamente, uma empresa e o Estado brasileiro - ele pode fazer o que bem entender com seu salário, que, no caso dele, ia quase todo para a casa.

Em seu clássico sobre a economia entre os Tiv, Paul Bohannan (1955)BOHANNAN, P. Some principles of exchange and investment among the Tiv. American Anthropologist, [s. l.], v. 57, n. 1, p. 60-70, 1955. sugere a existência de três esferas de troca, associadas a diferentes classes morais de serviços e objetos. Ele chama de conversões as trocas que ocorrem entre esferas, mostrando que há sempre um esforço de que os intercâmbios atravessem de uma de menor valor a uma de maior, enquanto a ação contrária é sempre evitada. Considero as conversões que descrevo a partir de um movimento analítico na mesma direção da crítica de Jane Guyer a Bohannan, mas no sentido oposto. A autora argumenta que, ao situar historicamente e expandir espacialmente as práticas Tiv, a ideia das esferas separadas se enfraquece. Ela propõe que as conversões sejam vistas como “inflexões em trajetórias transacionais” (Guyer, 2004GUYER, J. Marginal gains: monetary transactions in Atlantic Africa. Chicago: The University of Chicago Press, 2004., p. 30, tradução minha),10 10 No original: “junctures in transactional pathways”. no lugar de referência a esferas particulares. Para compreender a conversão do salário em dinheiro da casa proponho também situar a transformação, mas diminuindo a escala da observação, em vez de aumentando e, como ela, dando ênfase ao “caminho” (pathway) do dinheiro, literalmente.

Não consegui nunca saber quanto do salário de Antônio ficava com ele. Sei que não era um valor exato sempre, porque ouvi Maria reclamando certa vez que ele tinha pegado um pouco mais do que de costume. De qualquer forma, ele entregava a maior parte a Maria, que guardava as notas em uma bolsinha que depois era posta dentro do armário do quarto. O salário, de dinheiro de um homem, passava então a ser gerido por uma mulher. Essa dimensão é significativa porque não entregar o dinheiro do salário é sempre, em última instância, uma coisa que o homem, em um casal, precisa escolher fazer. O domínio pelo homem do dinheiro no curso de se transferir para a casa é uma fonte de tensão. Se considera que os homens não têm o mesmo compromisso que as mulheres com a casa e que podem mais facilmente ser irresponsáveis e gastar de forma indevida.11 11 As políticas públicas incorporam essa moralidade generificada ao privilegiarem as mulheres como titulares de políticas de transferência de renda, como no caso do Programa Bolsa Família, por exemplo (Eger; Damo, 2014).

O arranjo na casa de Maria, evidentemente, não se repete em todas as casas. Além de nem sempre os componentes serem um casal heterossexual com filhos, muitas vezes quem ganha salário, quando é o caso de alguém ter um emprego regular, é uma mulher. Pode-se observar em outras situações diferenças generificadas que operam nesse tipo de conversão, mesmo em casas em que apenas mulheres são os adultos cuidadores, por exemplo. As mulheres mais jovens são consideradas menos responsáveis, assim como aquelas que são “crentes”12 12 Nesse contexto etnográfico, são chamados de crentes os evangélicos que frequentam uma igreja e, especialmente, aqueles que ostentam sinais de sua filiação religiosa por meio de roupas consideradas recatadas, do vocabulário e de trazerem sempre consigo uma Bíblia. são consideradas mais confiáveis. Essas imagens femininas estão associadas à suposta maior ou menor disponibilidade sexual. Tratarei novamente da relação entre sexo e dinheiro da casa mais adiante.

O risco de ser assaltado também tensionava esse momento limiar, enquanto o dinheiro de Antônio estava no caminho da casa. Isso tem efeitos importantes como o desenvolvimento de estratégias de deslocamento pela cidade e de formas de esconder o dinheiro junto ao corpo. As pessoas escondem notas dentro de sapatos e meias, em bolsos internos costurados à roupa, entre os seios e em cuecas e calcinhas. Como se espera que os ladrões conheçam essas estratégias, o espalhamento das notas é feito de modo que, se perda houver, ela seja a menor possível. O fracionamento em uma quantidade de cédulas deve ser suficiente para que os valores possam ser distribuídos, mas não tão grande que gere volumes que podem chamar atenção.13 13 Marcos Campos (2022) mostra a relação entre a materialidade dos dinheiros, os corpos e transporte e a circulação na cidade ao tratar do dinheiro da passagem.

Esse processo de conversão de valor material e generificado por que passava o salário de Antônio culminava com uma transformação moral fundamental: o dinheiro deixava de ser individual e se tornava coletivo, já que a casa é um arranjo de pessoas e sempre se constitui, também, a partir da conexão com outras casas.

Dinheiro da casa, dinheiros de muitas casas

Maria usava o dinheiro da bolsinha, então, para as compras de comida, pagava a internet, o gás de botijão, os produtos de limpeza e de higiene e, depois da instalação de relógios pela Light, a eletricidade.14 14 Em 2008 começou no Rio de Janeiro a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). A política fazia parte da preparação da cidade para a Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016). No Complexo do Alemão as UPPs foram instaladas em 2012, depois de uma ocupação militar começada em 2010. Como em outras favelas, à instalação da polícia pacificadora se seguiu a instalação de relógios pela companhia elétrica Light nas casas e para cobrança pelo serviço. Ver sobre isso Cunha e Mello (2011) e Werneck e Loretti (2018). Nesse mesmo contexto, como mostra Lúcia Müller (2017), foram instaladas agências bancárias, serviços de formalização de negócios e outras instituições em favelas “pacificadas”. Esses produtos e serviços são aqueles que possibilitam que a casa acolha as atividades necessárias à manutenção da vida dos seus membros, no caso, ela e o marido Antônio: alimentação, água quente para o banho, iluminação, comunicação, entre outras coisas. Mas, além disso, oferecem também os meios para acolher, de diversas formas, pessoas de outras casas. Ela e outras mulheres, por exemplo, se preocupavam em manter a internet funcionando bem em suas residências para que as crianças e adolescentes quisessem ir para lá e permanecessem “dentro de casa”. Isso porque, “na rua”, podem andar em “más companhias” e “fazer coisas erradas” (Motta, 2020MOTTA, E. Uma casa boa, uma casa ruim e a morte no cotidiano. Etnográfica, [s. l.], v. 24, n. 3, p. 775-795, 2020.). Mas essa atração de pessoas de outras casas para a de Maria na maior parte das vezes envolvia comida, já que as visitas se davam em torno de refeições.

Comer juntos é uma das maneiras mais importantes por meio das quais os humanos constroem e mantêm relações. Antropólogas e antropólogos, tratando de universos etnográficos os mais variados, mostraram desde o nascimento da disciplina que compartilhar refeições cria laços de consubstancialidade, constituindo pessoas em relação (Bloch, 1999BLOCH, M. Commensality and poisoning. Social Research, [s. l.], v. 66, n. 1, p. 133-49, 1999. Disponível em: Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40971306 . Acesso em: 30 jul. 2023.
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; Carsten, 1995CARSTEN, J. The substance of kinship and the heat of the hearth: feeding, personhood, and relatedness among Malays in Pulau Langkawi. American Ethnologist, [s. l.], v. 22, n. 2, p. 223-241, 1995. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/646700 . Acesso em: 30 jul. 2023.
https://www.jstor.org/stable/646700...
; Mintz, 2001MINTZ, S. Comida e antropologia. Uma breve revisão. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 16, n. 47, p. 31-41, 2001. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69092001000300002 . Acesso em: 30 jul. 2023.
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). As práticas cotidianas em torno das refeições, por meio da circulação de comida e de pessoas que comem nas casas umas das outras, participam na construção das relações de proximidade e existência mútua na Aliança.

Maria recebia os netos todos os dias depois das aulas. Sempre havia comida na casa dela e grande parte dos almoços de domingo, refeições que reuniam o maior número de pessoas, era feita lá. A circulação de pessoas em torno da comida e das refeições expressava a centralidade que Maria ocupava em uma configuração de incluía diversas casas, cujos membros iam lá almoçar, jantar e de lá levavam potes cheios para outras pessoas.

Mas comer - juntos - e preparar as refeições é uma parte daquilo que envolve a alimentação: legumes, verduras, grãos e carnes chegam às casas por meio da compra, de presentes ou mesmo empréstimos.15 15 O empréstimo de comida se dá quando uma certa quantidade de alimentos é cedida a outra casa com a expectativa de que, em pouco tempo, quantidade e qualidade equivalentes sejam retornadas à primeira. Isso pode se dar por meio de um acordo explícito sobre essas condições (Motta, 2014). Na Aliança a maior parte da comida servida nas casas é comprada ou preparada a partir insumos comprados, e a alimentação tem um enorme peso nos gastos das pessoas.16 16 Quanto menor a renda das pessoas e das famílias, maior é a participação relativa dos gastos com comida nos orçamentos domésticos, como demostra a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo IBGE. Os dados mais recentes são de 2017-2018 (Belik, 2020, p. 6-10). As maneiras como comida e dinheiro se articulam nas casas mostra a centralidade da alimentação na construção das relações para além da comensalidade. A relação com a alimentação faz com que o dinheiro seja um elemento crucial na constituição do que chamo de configuração de casas e das hierarquias que marcam esses arranjos.

A ideia de configuração de casas foi formulada por Louis Marcelin (1996MARCELIN, L. H. A invenção da família afro-americana: família, parentesco e domesticidade entre os negros do Recôncavo da Bahia, Brasil. 1996. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996., 1999MARCELIN, L. H. A linguagem da casa entre os negros no Recôncavo Baiano. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 31-60, 1999. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-93131999000200002 . Acesso em: 30 jul. 2023.
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). Em outro texto propus algumas inflexões teóricas no termo a partir do meu material de campo, me remetendo às proposições analíticas de Norbert Elias (1980)ELIAS, N. Introdução à sociologia. Braga: Edições 70, 1980. em torno da ideia de configuração. Assim, proponho que configuração de casa é um conceito que procura tornar visíveis as relações mutáveis e hierárquicas entre casas por meio da análise dos fluxos entre elas e tendo uma casa como referência.17 17 “Applying the idea of configuration to Aliança and its houses, therefore, we can define the ‘configuration of houses’ as a perspective that affords a more intelligible account of the multiple and diverse relations between a house and other houses, each one of them relatively autonomous but dependent on others. The house and the configuration of houses will give substance on the analytic level to what the ethnography allows to emerge through the observation of everyday practices” (Motta, 2014, p. 128).

A obtenção de comida era uma questão crítica para Maria: dentre todas as despesas era a que podia variar mais porque mais suscetível a escolhas de compra. Ao longo do mês, por exemplo, havia carne, frango ou ovos no almoço segundo a quantidade de recursos disponíveis. Em alguns momentos, havia azeite para acompanhar a salada, um luxo apreciado especialmente por Antônio. As marcas dos produtos também variavam segundo o mesmo critério.

Assim como outras mulheres, Maria calculava os custos do transporte, do tempo gasto indo fazer compras e as possibilidades de se beneficiar de algum tipo de crédito em relação aos preços que poderia encontrar. Em geral os produtos nos locais perto de casa, nos mercados dentro da favela, são mais caros, mas, por outro lado, não é preciso gastar com transporte, pode-se eventualmente pagar depois se o comerciante é amigo e a compra consome menos tempo. Além disso, é possível encontrar insumos fracionados em unidades menores. No supermercado, por exemplo, a venda de temperos prontos se dá em embalagens com vários sachês ou tabletes, enquanto nas vendas na favela é possível obter apenas uma unidade por vez. Esse tipo de avalição não apenas fazia parte da forma como Maria, assim como outras mulheres, decidia como fazer as compras (onde e quando), mas também ensejava práticas coletivas. Estas, além das implicações imediatas e mais explícitas relativas a gastar menos para obter os produtos, produzem e expressam a circulação de outros valores.

Didi, que tem uma lanchonete na comunidade, por vezes pedia ao sobrinho, que tem um carro, que fosse às compras com ela. Ela podia assim ir a um mercado que ficava mais longe e praticava preços menores. Para isso valer a pena, porém, ela precisava antes juntar uma quantidade de dinheiro - quando ia a um mercado que só aceita pagamentos à vista - e também fazia compras para algumas amigas e familiares, dividindo com elas, proporcionalmente às compras, o custo do combustível. Fazendo, então, uma “compra grande”, os gastos monetários, o esforço de ir longe e pedir um favor ao sobrinho eram compensados pela economia com os produtos.

O objetivo manifesto e imediato da “compra grande” é que todos paguem menos pelos produtos no cômputo final. Mas essa prática só existe por meio da mobilização de favores e gentilezas entre pessoas que se sentem fortemente vinculadas, parentes e amigos. Ao mesmo tempo que depende dessas relações, cada “compra grande” reforça esses laços. As quantidades nominais de dinheiro são valores muito relevantes e em torno dos quais a prática se justifica e mobiliza as pessoas, mas se combinam a outros cálculos. Ouvi Didi conversando com o filho sobre a dúvida de pedir ou não para o sobrinho levá-la às compras. Disse que este era uma pessoa muito boa, mas não podia “abusar”, já que precisava poder contar com a “boa vontade dele” para outras coisas, que poderiam ser mais urgentes, como levá-la ao médico.

A compra em conjunto para várias casas tem outras implicações que demonstram a necessidade prévia de confiança, mas cria também algumas tensões nas relações que precisam ser administradas. Os envolvidos conhecem os valores que cada um gastou com as compras e que produtos vão ter nas suas casas, e essas informações podem ser delicadas. Se há dívidas entre as pessoas, a observação das compras pode dar base para um julgamento sobre o devedor como bom ou mau pagador, de acordo com a qualificação dos produtos como necessários ou supérfluos. Se alguém visita e é convidado para comer e conhece os produtos que há na casa, pode fazer considerações sobre se a ela está sendo servido o que há de melhor, ou não.

Essas conexões são experimentadas como pessoais, mas também como relações entre casas. Isso se mostra quando se espera que não apenas aquela amiga que se beneficiou imediatamente do favor de participar de uma compra grande ou o pediu demonstre gratidão, mas também aqueles que compartilham do que foi preparado com o que foi comprado. Comer a comida que foi produzida a partir de matérias-primas obtidas envolvendo o favor de alguém gera a expectativa de gratidão e reciprocidade com essa pessoa. O ato de comer na casa da mãe, por exemplo, está conectado não apenas às relações de preparar, oferecer e compartilhar aquela refeição, mas envolve também aquelas e aqueles que se considera terem participado da chegada da comida à mesa, como quem levou o comprador de carro, ofereceu crédito para comprá-la ou permitiu que se pagasse menos por ela.

Há, portanto, nos atos de comer em uma casa, para além da consubstancialidade produzida pelo compartilhamento da refeição, outros elos, visíveis a partir da relação com o dinheiro. O dinheiro da casa, além de incluir os gastos, com o que permite que as pessoas vão a uma casa e assim se tornem próximas por meio das práticas de cuidado e alimentação, conecta casas e pessoas por meio das formas pelas quais os insumos chegam. Apesar, portanto, de se basear na casa, o dinheiro da casa é relacional, conectivo com outras casas.

Dinheiro grande, dinheiro pequeno

Se o dinheiro da casa é tematizado no discurso dos meus interlocutores assim, no singular, em termos materiais ele é múltiplo, espalhado, e convoca a um trabalho constante de separação e coleção. Na casa de Maria, a maior parte dos valores circulava por meio de cédulas e moedas. Apesar de ela e o marido terem contas em bancos, eles se limitavam a sacar toda a quantidade disponível e fazer todas as transações em espécie. A desconfiança em relação aos bancos e as dificuldades de operar as máquinas e celulares fazia com que os dois evitassem ao máximo utilizar serviços dessas instituições.

Pude observar como Maria manipulava materialmente os valores monetários e morais com que operava para gerir o dinheiro da casa. A distinção mais marcada que fazia era entre “dinheiro grande” e “dinheiro pequeno”, que separava em duas bolsinhas diferentes, uma a que já me referi, que ficava guardada no armário de roupas no quarto, e outra que ficava na gaveta de um armário na cozinha. O dinheiro grande em geral era composto por cédulas de valores altos e por nenhuma moeda.18 18 As notas de valores altos eram de R$ 50,00, 20,00 e 10,00. As cédulas de R$ 100,00 eram evitadas porque poderia haver dificuldade de conseguir troco ao usá-las. A rejeição a essas notas fazia com que vários de meus interlocutores procurassem conhecer as máquinas automáticas nos bancos onde elas não eram disponibilizadas, ou fazer vários saques diferentes de valores que não chegassem a essa quantidade. As notas grandes iam sendo usadas para pagar as compras no mercado, por exemplo, e o troco, transformado em dinheiro pequeno, ia sendo depositado na outra bolsinha. Não todo ele. Notas que ainda eram consideradas altas eram postas na bolsinha que ficava no quarto.

A quantidade de dinheiro grande podia ser facilmente aferida por se tratar de poucas notas de valores altos. Maria sabia, em geral, quanto havia nesse recipiente. O dinheiro pequeno, por outro lado, não era conhecido em detalhe. Maria muitas vezes se dirigia à gaveta e constatava que lá havia mais ou menos do que ela imaginava. O dinheiro pequeno era usado para compras nos mercados que ficavam perto da casa, para comprar produtos que seriam usados naquele mesmo dia, em geral um ingrediente que estivesse faltando para preparar o almoço ou o jantar. Também podia ser usado para comprar um doce ou um envelope de suco instantâneo que os netos pedissem, coisas que eram tratadas como agrados, presentes.

Essa divisão operada por Maria separava o dinheiro da casa segundo quantidades totais (às vezes havia muito ou pouco dinheiro grande, mas nunca havia muito dinheiro pequeno), segundo o fracionamento em cédulas e moedas e também espacialmente. O dinheiro grande ficava guardado no espaço mais oculto e menos acessível da casa (no quarto do casal e, dentro dele, no armário) e só Maria o manipulava. O dinheiro pequeno ficava na cozinha, lugar de maior circulação de pessoas e que promovia uma identificação espacial com sua função (comprar comida). Eu mesma mexi no dinheiro pequeno, assim como as crianças, quando éramos convocados a “dar um pulinho no mercado” para “buscar” alguma coisa na venda.

A destinação esperada do dinheiro sempre guarda um espaço de indeterminação. Eventos inesperados podem obrigar a que algum valor que se pensava dever ser usado para uma coisa seja usado para outra. Testemunhei em uma ocasião que Maria retirou da bolsinha uma nota de 50 reais para pagar o transporte de táxi de uma vizinha para o hospital. Entre a separação e a decisão de como gastar e seu efetivo empenho existe sempre uma tensão que faz com que o dinheiro da casa só o seja definitivamente depois que já foi gasto. Essa incerteza diz respeito, muito comumente, às obrigações envolvidas nas relações de proximidade especialmente naquilo que é percebido como “ajuda”. Se alguém próximo precisa de dinheiro, por exemplo, uma quantidade que seria destinada a uma despesa pode ser entregue a essa pessoa alternativamente.

Dinheiro de homem, dinheiro de mulher

O principal fator que particulariza o dinheiro da casa para os meus interlocutores é sua oposição a formas de ganhar e gastar dinheiro que se consideram moralmente inferiores ou expressamente condenáveis. Gastos com o que é considerado como diversão ou vaidade, por exemplo, são considerados como supérfluos. Escolhi esses dois termos para tratar de uma distinção generificada sobre dinheiros masculino e feminino cujo valor moral é tratado como subordinado ao dinheiro da casa. O dinheiro de diversão - “sair com amigos”, por exemplo - dos homens e o gasto por vaidade - roupas, cabeleireiro e perfumes - das mulheres são vistos como menos nobres. Esses dinheiros não devem, segundo a moralidade que os envolvem, concorrer com o dinheiro da casa.

A valoração moral desses gastos está relacionada a suspeitas igualmente diferenciais segundo o gênero. Os homens que “saem” muito ou as mulheres que “se arrumam demais para ir para a rua” podem ser objeto de especulação sobre possíveis relações amorosas e sexuais com pessoas que não são seus cônjuges - no caso dos casados - ou com homens ou mulheres que possam pertencer a mundos considerados perigosos ou moralmente rebaixados: “bandidos” ou “putas”. As suspeições se expressam pela vigilância sobre a quantidade de dinheiro que se gasta, sejam elas realmente conhecidas ou inferidas.

Uma das mulheres com quem convivi me disse que sempre contava o dinheiro que encontrava nos bolsos do marido. Como ela mesma fazia os gastos da casa e sabia o valor do salário dele, podia calcular com precisão o que ele gastava “na rua”. Quando percebia um aumento, “ligava as antenas”, querendo dizer com isso que ficava atenta a sinais de que estivesse se relacionando com outra mulher. Ficava aliviada quando encontrava moedas e várias notas de pouco valor. Era sinal de pequenos gastos, dinheiro “picado”, que ela supunha incompatíveis com aqueles relacionados a possíveis “programas”, palavra ambígua no português do Rio de Janeiro, que, me parece, ela usava de propósito, e que pode significar um conjunto de atividades de entretenimento - um jantar, depois de assistir a um filme, por exemplo - ou o pagamento por serviços sexuais.

O dinheiro associado à prostituição se contrapõe fortemente em termos morais ao dinheiro da casa e é nessa oposição que são colocadas as principais suspeitas e acusações em relação ao dinheiro feminino. Convivi com duas mulheres para quem isso se colocava de maneira dramática na relação com seus maridos. Elas eram proibidas de trabalhar fora de casa com a justificativa, me explicaram, cada uma à sua maneira, de que seus companheiros não toleravam a possibilidade de que o dinheiro trazido para a casa fosse dado por outro homem porque isso abria a possibilidade de que tivesse sido ganho em troca de sexo. A suspeita não era exatamente sobre elas serem ou poderem ser profissionais do sexo propriamente, mas de que o sexo pudesse ser parte de uma relação com um homem com quem tivessem trocas monetárias, como um possível patrão. A ameaça sentida pelos maridos de minhas interlocutoras era a soma das duas maiores ameaças à honra masculina: a de terem outro homem sustentando suas casas - mesmo que indiretamente - e a de serem “cornos”.

A oposição do dinheiro da casa aos dinheiros especificamente femininos e masculinos gastos “na rua” combina a suspeição moral sobre o comportamento sexual de homens e mulheres e a opacidade sobre quantidades e gastos específicos. A vigilância sobre moedas e cédulas trazidas para casa é a expressão disso. Tanto as desconfianças quanto a atribuição de maior valor moral ao dinheiro da casa também se associam à oposição entre individualidade e coletividade. O dinheiro que uma só pessoa controla não pode ser escrutinado com o mesmo detalhe que o dinheiro que se dirige a mais pessoas e, além disso, o bem coletivo é sempre moralmente mais valorizado que o bem de si.

As oposições que analisei aqui não se operam sem ambiguidades. Por exemplo: a quantidade de dinheiro que um homem gasta com diversão, desde que esteja claro que não falta para o dinheiro da casa, pode valorizá-lo moralmente, assim como a uma mulher que “faz o cabelo e a unha” sempre. O que vai para o bar e o salão pode ser interpretado como sucesso econômico, justamente como sinal de que aquilo que é obrigação está garantido. O embelezamento da casa, por meio de pintura da fachada e objetos decorativos também carrega a mesma ambiguidade. Pode ser visto como sinal de fartura ou de descontrole e imprevidência.

O dinheiro da casa é o centro de um conjunto de concepções e de uma linguagem que fazem com que as pessoas se preocupem sobre como suas condutas de ganhos e gastos podem ser interpretadas e julgadas e, também, se ocupem elas mesmas de promover narrativas sobre as condutas dos outros.

Dinheiro de mulheres

Descrevi em outro texto a cena em que Maria, em frente a uma caixa com produtos da Natura, de que era revendedora, me contava que não poderia usar dinheiro da casa para comprar aquele tipo de produto para si (Motta, 2014MOTTA, E. Houses and economy in the favela. Vibrant: virtual Brazilian anthropology, Brasília, v. 11, n. 1, p. 118-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.vibrant.org.br/issues/v11n1/eugenia-motta-houses-and-economy-in-the-favela/ . Acesso em: 30 jul. 2023.
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). A venda de produtos por catálogo é uma atividade bastante comum entre as minhas interlocutoras, sejam elas empregadas domésticas, auxiliares de enfermagem ou dedicadas ao cuidado da família. Esse tipo de comércio apresenta algumas características que o torna atraente, não exigindo grande investimento inicial, não implicando em gastos permanentes (como é o caso de uma loja), por exemplo. Além disso, estão associadas a ele atividades por meio das quais as mulheres podem exercer um tipo de autonomia individual, implicada em uma relação diferente daquela em que elas são gestoras de valores considerados coletivos.

As práticas comerciais, monetárias e financeiras em torno dos catálogos constituem circuitos eminentemente femininos. As mulheres são vendedoras, a maioria das compradoras e os produtos são considerados, também, especificamente femininos. Além dos cosméticos de empresas como Natura, Avon, Jequiti e Hinode, vendem-se por esse sistema também lingeries e bijuterias.

Na cena que citei, Maria também me mostrou que o valor que receberia pelas vendas para suas clientes seria usado para pagar produtos para ela. A venda por catálogo funciona de maneira simples. Os preços que aparecem nas revistas são aqueles que as clientes pagam. As revendedoras pagam à empresa um valor menor e ficam com a diferença. Seguindo, mais uma vez, uma contabilidade que identifica formas de ganhar e gastar, Maria primeiro reunia todas as encomendas que recebia e, dessa forma, calculava quanto ia ganhar. Então encomendava para ela mesma alguns produtos, que, como ela dizia, “saiam de graça”. Vender Natura, portanto, era uma forma, também, de consumir esses cosméticos.

Levar e buscar revistas ou produtos a clientes e amigas era a justificativa para visitas às suas casas, que não raro originavam conversas que podiam ser curtas ou se estender por horas em volta de copos com café e pacotes de biscoito.19 19 O café adoçado é o produto que mais frequentemente se oferece às visitas, que são as pessoas que chegam até a casa para uma estadia rápida e sempre tomam cuidado para não fazê-lo na hora das refeições, de modo a não constranger a anfitriã que sempre se sentirá obrigada a convidar a comer. Biscoitos são ofertados em sinal de estima e de disposição para uma conversa mais longa. No caso de uma anfitriã que não seja uma amiga “muito chegada”, a etiqueta manda recusar refeições, mas obriga a aceitar café e biscoitos. Acompanhando Maria nessas ocasiões testemunhei várias vezes a troca de revistas. A da Natura era entregue e minha interlocutora levava consigo uma de lingerie, por exemplo. Ela se sentia obrigada a receber o catálogo de sua cliente e de, eventualmente, fazer alguma compra.

Além dessas visitas de uma à casa da outra, aconteciam reuniões de várias mulheres, de diferentes casas, em que havia demonstração de produtos e distribuição de amostras. Muitas vezes as vendas e compras nessas ocasiões, como me disse Maria, ficavam “no zero a zero”, uma versão expandida do caso dos produtos que saiam “de graça” para ela: as mulheres vendiam umas às outras, de modo que o que cada uma pagava, servia para comprar o produto de outra. O que ocorria eram, na prática, trocas de produtos.

Essa hospitalidade comercial, além de uma dimensão central da sociabilidade feminina, constitui circuitos de dinheiros na maioria das vezes desconectados do dinheiro da casa, mas muito ligados a ela, já que associadas à circulação pelos espaços domésticos. A liberdade está associada a eles de diversas maneiras. A mais imediata é a possibilidade de obter produtos para si mesma sem colocar em risco, nem em termos práticos nem morais, o dinheiro da casa. Mas, além disso, essas mulheres podem se reunir com uma justificativa legítima, conversar, trocar informações e se ajudar.

Iris Marion Young (2002)YOUNG, I. M. House and home: feminist variations on a theme. In: MUI, C. L.; MURPHY, J. S. Gender struggles: practical approaches to contemporary feminism. New York: Oxford University Press, 2002. p. 314-346. faz uma interessante crítica às teóricas feministas que rejeitam a casa ou o lar (home) como espaços e valores necessariamente opressores e patriarcais. Sua crítica está baseada na universalidade das experiências de construir casa, no papel da casa na subjetividade e da moradia como direito. Estou de acordo com Young, mas enfatizo que experiências especificamente femininas permitem a crítica a essa perspectiva eminentemente negativa. Considerar essas práticas permite enxergar a relação das mulheres não apenas com as suas próprias casas e, portanto, com os afazeres que as obrigam em relação a seus maridos e filhos, como cozinhar e limpar. Elas fazem muitas outras coisas nas casas, que são os espaços privilegiados de uma sociabilidade e hospitalidade construídas em torno do comércio. A questão, portanto, não é apenas sobre a relação da mulher com a (sua) casa, mas das mulheres com as casas umas das outras. Aí aparecem estratégias propriamente econômicas ao lado de maneiras de ser amigas que permitem que falem, sejam ouvidas, se informem.20 20 Abu-Lughod trata do consumo desse tipo de produto por jovens beduínas. A autora argumenta que comprar e usar cremes e lingeries são formas de resistência das mulheres mais jovens contra a valorização moral da discrição e da contenção, à qual as gerações mais velhas são mais afeitas (Abu-Lughod, 1990, p. 49-50). Para a autora, essa nova sexualidade, na qual a atração individual e o romance a dois é cada vez mais importante, denota a transformação nas formas de poder às quais essas jovens estão submetidas, com um afastamento daquele baseado nos laços de parentesco, àquele da “economia global” (Abu-Lughod, 1990, p. 52).

Considerações finais

As práticas e concepções reunidas em torno do que se chama de dinheiro da casa, os usos, riscos e tensões que envolvem sua manipulação e as distinções operadas na classificação, ela mesma, mostram imbricação entre cálculo, relacionalidade, materialidades e pessoalidade. O que tento demonstrar é que não apenas essas dimensões estão misturadas, mas se combinam de maneiras específicas e situadas e são interdependentes. Rejeito, assim, qualquer interpretação em que uma ou outra dimensão seja determinante ou epifenômeno da outra.

A atenção às transformações e conversões por meio do trânsito de objetos, substância e pessoas entre casas mostra que cada modalidade de dinheiro não é um dinheiro particular, como enfatiza Viviana Zelizer (2003)ZELIZER, V. O significado social do dinheiro: “dinheiros especiais”. In: MARQUES, R.; PEIXOTO, J. (org.). A nova sociologia econômica: uma antologia. Lisboa: Celta Editora, 2003. p. 125-165. sobre os “dinheiros especiais”, mas um estado necessariamente provisório tensionado por possibilidades futuras, julgamentos morais e necessidades prementes. As incertezas, suspeitas e a possibilidade, sempre presente, de que não se cumpram regras e expectativas, faz com que o dinheiro da casa seja, na verdade, sempre um processo de tornar-se dinheiro da casa. A atenção sobre ele e às possibilidades específicas de transformação do dinheiro abrem uma perspectiva sobre as relações que torna visível seu caráter sempre inconcluso e em processo, o que se expressa bem pela noção de becoming, em inglês, utilizada por Biehl e Locke (2017)BIEHL, J.; LOCKE, P. (ed.). Unfinished: the anthropology of becoming. Durham: Duke University Press, 2017..

Sua grandeza quantificada e as frações de valor materializadas em moedas e notas são aspectos fundamentais na maneira como participa das vidas das pessoas. Os nexos entre dinheiro e casa explicitam essa característica comum: os dois podem figurar de maneira puramente imaginada em determinadas situações, mas nessa imaginação está sempre implicada a materialidade ou uma existência objetiva, tanto de casas quanto de dinheiros. A palavra “imaginação” me parece realmente mais adequadamente alusiva ao que pretendo descrever do que a palavra que usei em outros textos, “simbólico” (Motta, 2014MOTTA, E. Houses and economy in the favela. Vibrant: virtual Brazilian anthropology, Brasília, v. 11, n. 1, p. 118-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.vibrant.org.br/issues/v11n1/eugenia-motta-houses-and-economy-in-the-favela/ . Acesso em: 30 jul. 2023.
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). Ela remete a imagem e isso se aproxima melhor do que quero argumentar sobre como tanto casas quanto dinheiros figuram na maneira como as pessoas pensam e falam sobre eles diretamente, ou outras coisas. Como argumenta Mary Douglas (1991)DOUGLAS, M. The idea of a home: a kind of space. Social Research, [s. l.], v. 58, n. 1, p. 287-307, 1991., a casa é sempre um onde. O dinheiro é sempre um quanto. Isso chama duas discussões importantes.

Essa perspectiva desloca o debate sobre fungibilidade que animou cientistas sociais a anunciar que ela não existia, já que os dinheiros são específicos, marcados, socialmente situados. O material etnográfico que apresentei aprofunda a ideia de especificidades, ao mesmo tempo que demostra que as quantidades são elementos centrais na construção delas. Os valores expressos por meio de grandezas quantificáveis não se opõem à manipulação material de moedas e cédulas, pelo contrário. Sendo (também) um quantum, o dinheiro permite trânsitos, conversões e comparações que conectam aspectos, espaços e relações muitos variados, como os que descrevi.

Uma das relações críticas entre quantidades e qualidades morais dos dinheiros têm a ver, também, com o total de recursos que uma pessoa ou um conjunto de pessoas são capazes de mobilizar. Muito claramente: trato aqui de famílias consideradas “pobres” sob vários pontos de vista. A criticidade colocada pelas (relativamente pequenas) quantidades de dinheiro disponíveis tem peso grande na moralidade a ele atribuída, porque torna cada escolha estratégica e cada estratégia a assunção de riscos enormes.21 21 Ariel Wilkis (2017) propõe também a existência desse elo entre o dinheiro dos pobres e moralização, mas para demonstrar como opera em outra escala: na expressão e manutenção de hierarquias sociais vinculadas à desigualdade em escala nacional.

Esse vínculo, porém, não constitui uma economia moral favelada, apesar de esses meus argumentos se aproximarem bastante dos de James Scott (1977)SCOTT, J. C. The moral economy of the peasant: rebellion and subsistence in Southeast Asia. Yale University Press, 1977.. Também não sugerem uma distinção que justifique o uso de um outro termo para designar as práticas que descrevi, como propõe de L’Estoile (2020)DE L’ESTOILE, B. de. Oikonomia na Zona da Mata. Ruris: revista do Centro de Estudos Rurais, Campinas, v. 12, n. 2, p. 211-226, 2020. sobre o uso de oikonomia. A densidade moral do dinheiro num contexto em que há pouco dele não é função da escassez. Tampouco opõe casa e o mundo exterior. Também não se apresenta como uma forma de resistência, de uma economia com adjetivo que se opõe à economia - sem adjetivo. As tensões vividas pelas pessoas no processo de conversão em dinheiro da casa não podem ser confundidas com a existência de modos distintos e opostos de compreender a economia ou lidar com o dinheiro. O que procurei demonstrar é que as quantidades se articulam às tensões e perigos que são parte constituintes das relações. As quantidades não produzem uma moralidade específica e muito menos ainda uma cultura da pobreza (Lewis, 1966LEWIS, O. La vida: a Puerto Rican family in the culture of poverty. New York: Random House, 1966.). Mas são absolutamente relevantes para a compreensão de como o dinheiro participa das relações.

As tensões, conflitos e desconfianças, como bem chamou atenção Janet Carsten (2013)CARSTEN, J. What kinship does-and how. HAU: journal of ethnographic theory, [s. l.], v. 3, n. 2, p. 245-251, 2013. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.14318/hau3.2.013 . Acesso em: 30 jul. 2023.
https://doi.org/10.14318/hau3.2.013...
em sua crítica à romantização do parentesco por Marshall Sahlins (2013)SAHLINS, M. What kinship is - and is not. Chicago: The University of Chicago Press, 2013. e outros, são parte central das relações de proximidade. O estranhamento analítico desse aspecto constituinte é o que pode levar a considerar que, quando há desconfiança e medo, o que há é um conflito entre o âmbito da família (constituída por meio de laços entendidos como positivos) e o mercado, o mundo lá fora, interesseiro e objetificador.

Grande parte da agenda de pesquisa dos estudos sociais da economia se montou sobre a pretensão de superar “grandes divisões” que são atribuídas aos economistas neoclássicos (Dufy; Weber, 2007DUFY, C.; WEBER, F. L’ethnographie économique. Paris: La Découverte, 2007.; Neiburg, 2010NEIBURG, F. Os sentidos sociais da economia. In: MARTINS, C. B. (coord.). Horizontes das ciências sociais no Brasil. São Paulo: Anpocs: Ciência Hoje: Discurso Editorial: Barcarolla, 2010. p. 225-258.). Mas parece que se produziram, em resposta, outras divisões, baseadas na fantasia de que, em algum lugar, ainda há vida que se vive sem economia22 22 Referência à tão citada frase de David Schneider, “Uma das fantasias fundamentais da antropologia é que em algum lugar deve haver uma vida que vale a pena ser vivida”. A afirmação, já célebre, na maioria das vezes é referida sem que se considere a sua ironia, efeito do recorte que a descontextualiza. Schneider (1966, p. vii) argumenta, em prefácio a uma obra de Roy Wagner, que um bom trabalho de campo é essencial, mas não é suficiente, e justifica: “Legions are the stories of anthropologists who are so magnificent field workers that they actually went native, or should have, that could do the tribal dances but not describe them, who could be possessed by the native spirits but could not discuss them. Such stories are no surprise, of course, since one of the fundamental fantasies of anthropology is that somewhere there must be a life really worth living.” (e que isso seria bom). O dinheiro da casa demonstra que a economia é substantivamente vital, provavelmente, em todo lugar.

Referências

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  • 1
    Os nomes das pessoas citadas como meus interlocutores em campo são fictícios, assim como da comunidade em que moram.
  • 2
    Quitinetes são casas ou apartamentos compostos de apenas um cômodo e banheiro.
  • 3
    Uso a palavra “relacionalidade” neste texto como versão do termo relatedness. Em português se perde um dos sentidos da palavra em inglês, que remete tanto a relação em sentido amplo quanto a ser aparentado. Carsten usa o termo como maneira de definir sua abordagem sobre as relações a partir de categorias e concepções nativas e não de conceitos preconcebidos, a que, segundo ela, o termo parentesco (kinship) remete.
  • 4
    Apesar dos termos “doméstico” e “domesticidade” terem uma história importante na disciplina e terem sido usados com a força de conceitos teoricamente relevantes, o uso neste texto não vai nesse sentido. Todas as vezes que aparece a palavra “doméstico” é apenas no sentido de “referente a casa”.
  • 5
    Pessoa moral é a versão em português do termo em francês personne morale, usado tanto por Marcel Mauss (2003MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 183-314., p. 190) quanto por Lévi-Strauss (1991LÉVI-STRAUSS, C. Maison. In: BONTÉ, P.; IZARD, M. (ed.). Dictionnaire de l’ethnologie et de l’anthropologie. Paris: PUF, 1991. p. 434-436., p. 435) para caracterizar as coletividades que se obrigam contratualmente, no caso do primeiro, e, especificamente as casas, para o segundo. É também a expressão que denota o que chamamos no Brasil de pessoa jurídica.
  • 6
    A distinção entre familiares e amigos existe (assim como entre categorias de parentes e de amigos), é de grande relevância para meus interlocutores e, portanto, para a análise sobre a proximidade e a familiaridade. Não vou tratar aqui dessas distinções porque isso excederia os objetivos deste texto. Tomo emprestado o conceito haitiano de minhas pessoas, cujo conteúdo expressa as características relevantes para os presentes argumentos. Mas vale pontuar que o vocabulário do parentesco e da amizade dirigido por uma pessoa a outra pode variar na história das relações (ao longo do tempo), mas também segundo a situação de interação em que é usado.
  • 7
    O livro de Sahlins (2013)SAHLINS, M. What kinship is - and is not. Chicago: The University of Chicago Press, 2013. se chama What kinship is - and is not, “O que é parentesco - e o que não é”, em tradução livre. O artigo de comentário de Carsten (2013)CARSTEN, J. What kinship does-and how. HAU: journal of ethnographic theory, [s. l.], v. 3, n. 2, p. 245-251, 2013. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.14318/hau3.2.013 . Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://doi.org/10.14318/hau3.2.013...
    ao livro tem o título “What kinship does - and how”, em português: “O que o parentesco faz - e como”.
  • 8
    Em sua tese de doutorado, Marcella Araújo (2017)ARAÚJO, M. Obras, casas e contas: uma etnografia de problemas domésticos de trabalhadores urbanos no Rio de Janeiro. 2017. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. analisa uma modalidade de gestão do dinheiro da casa que envolve práticas de inscrição em formas de planilhas eletrônicas na casa de sua principal interlocutora. Uma das fontes do dinheiro da casa eram os ganhos do marido, que tinha uma pequena empreiteira. As práticas contábeis obrigatórias do negócio participavam na administração doméstica, ao mesmo tempo que operavam na especialização de espaços domésticos as atividades como administradora e como dona de casa.
  • 9
    Ter o “nome sujo” significa ter restrições de crédito por causa de dívidas.
  • 10
    No original: “junctures in transactional pathways”.
  • 11
    As políticas públicas incorporam essa moralidade generificada ao privilegiarem as mulheres como titulares de políticas de transferência de renda, como no caso do Programa Bolsa Família, por exemplo (Eger; Damo, 2014EGER, T. J.; DAMO, A. S. Money and morality in the Bolsa Família. Vibrant: virtual Brazilian anthropology, Brasília, v. 11, n. 1, p. 250-284, 2014. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1809-43412014000100009 . Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://doi.org/10.1590/S1809-4341201400...
    ).
  • 12
    Nesse contexto etnográfico, são chamados de crentes os evangélicos que frequentam uma igreja e, especialmente, aqueles que ostentam sinais de sua filiação religiosa por meio de roupas consideradas recatadas, do vocabulário e de trazerem sempre consigo uma Bíblia.
  • 13
    Marcos Campos (2022)CAMPOS, M. Sobre o corre da arte: uma etnografia dos futuros vividos e do ganhar a vida na cidade do Rio de Janeiro. 2022. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022. mostra a relação entre a materialidade dos dinheiros, os corpos e transporte e a circulação na cidade ao tratar do dinheiro da passagem.
  • 14
    Em 2008 começou no Rio de Janeiro a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). A política fazia parte da preparação da cidade para a Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016). No Complexo do Alemão as UPPs foram instaladas em 2012, depois de uma ocupação militar começada em 2010. Como em outras favelas, à instalação da polícia pacificadora se seguiu a instalação de relógios pela companhia elétrica Light nas casas e para cobrança pelo serviço. Ver sobre isso Cunha e Mello (2011)CUNHA, N. V. da; MELLO, M. A. da S. Novos conflitos na cidade: a UPP e o processo de urbanização na favela. Dilemas: revista de estudos de conflito e controle social, [s. l.], v. 4, n. 3, p. 371-401, 2011. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7232/5818 . Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
    e Werneck e Loretti (2018)WERNECK, A.; LORETTI, P. Critique-form, forms of critique: the different dimensions of the discourse of discontent. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 973-1008, 2018. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/2238-38752018v839 . Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://doi.org/10.1590/2238-38752018v83...
    . Nesse mesmo contexto, como mostra Lúcia Müller (2017)MÜLLER, L. H. Bancos na favela: relações entre agências bancárias e moradores de uma região urbana alvo de políticas de pacificação. Tempo Social, São Paulo, v. 29, p. 89-107, 2017. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.118415 . Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.20...
    , foram instaladas agências bancárias, serviços de formalização de negócios e outras instituições em favelas “pacificadas”.
  • 15
    O empréstimo de comida se dá quando uma certa quantidade de alimentos é cedida a outra casa com a expectativa de que, em pouco tempo, quantidade e qualidade equivalentes sejam retornadas à primeira. Isso pode se dar por meio de um acordo explícito sobre essas condições (Motta, 2014MOTTA, E. Houses and economy in the favela. Vibrant: virtual Brazilian anthropology, Brasília, v. 11, n. 1, p. 118-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.vibrant.org.br/issues/v11n1/eugenia-motta-houses-and-economy-in-the-favela/ . Acesso em: 30 jul. 2023.
    http://www.vibrant.org.br/issues/v11n1/e...
    ).
  • 16
    Quanto menor a renda das pessoas e das famílias, maior é a participação relativa dos gastos com comida nos orçamentos domésticos, como demostra a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo IBGE. Os dados mais recentes são de 2017-2018 (Belik, 2020BELIK, W. Estudo sobre a cadeia de alimentos. [S. l.]: Imaflora, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.ibirapitanga.org.br/wp-content/uploads/2020/10/EstudoCadeiaAlimentos_%C6%92_13.10.2020.pdf . Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://www.ibirapitanga.org.br/wp-conte...
    , p. 6-10).
  • 17
    “Applying the idea of configuration to Aliança and its houses, therefore, we can define the ‘configuration of houses’ as a perspective that affords a more intelligible account of the multiple and diverse relations between a house and other houses, each one of them relatively autonomous but dependent on others. The house and the configuration of houses will give substance on the analytic level to what the ethnography allows to emerge through the observation of everyday practices” (Motta, 2014MOTTA, E. Houses and economy in the favela. Vibrant: virtual Brazilian anthropology, Brasília, v. 11, n. 1, p. 118-158, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.vibrant.org.br/issues/v11n1/eugenia-motta-houses-and-economy-in-the-favela/ . Acesso em: 30 jul. 2023.
    http://www.vibrant.org.br/issues/v11n1/e...
    , p. 128).
  • 18
    As notas de valores altos eram de R$ 50,00, 20,00 e 10,00. As cédulas de R$ 100,00 eram evitadas porque poderia haver dificuldade de conseguir troco ao usá-las. A rejeição a essas notas fazia com que vários de meus interlocutores procurassem conhecer as máquinas automáticas nos bancos onde elas não eram disponibilizadas, ou fazer vários saques diferentes de valores que não chegassem a essa quantidade.
  • 19
    O café adoçado é o produto que mais frequentemente se oferece às visitas, que são as pessoas que chegam até a casa para uma estadia rápida e sempre tomam cuidado para não fazê-lo na hora das refeições, de modo a não constranger a anfitriã que sempre se sentirá obrigada a convidar a comer. Biscoitos são ofertados em sinal de estima e de disposição para uma conversa mais longa. No caso de uma anfitriã que não seja uma amiga “muito chegada”, a etiqueta manda recusar refeições, mas obriga a aceitar café e biscoitos.
  • 20
    Abu-Lughod trata do consumo desse tipo de produto por jovens beduínas. A autora argumenta que comprar e usar cremes e lingeries são formas de resistência das mulheres mais jovens contra a valorização moral da discrição e da contenção, à qual as gerações mais velhas são mais afeitas (Abu-Lughod, 1990ABU-LUGHOD, L. The romance of resistance: tracing transformations of power through Bedouin women. American Ethnologist, [s. l.], v. 17, n. 1, p. 41-55, 1990. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1525/ae.1990.17.1.02a00030 . Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://doi.org/10.1525/ae.1990.17.1.02a...
    , p. 49-50). Para a autora, essa nova sexualidade, na qual a atração individual e o romance a dois é cada vez mais importante, denota a transformação nas formas de poder às quais essas jovens estão submetidas, com um afastamento daquele baseado nos laços de parentesco, àquele da “economia global” (Abu-Lughod, 1990ABU-LUGHOD, L. The romance of resistance: tracing transformations of power through Bedouin women. American Ethnologist, [s. l.], v. 17, n. 1, p. 41-55, 1990. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1525/ae.1990.17.1.02a00030 . Acesso em: 30 jul. 2023.
    https://doi.org/10.1525/ae.1990.17.1.02a...
    , p. 52).
  • 21
    Ariel Wilkis (2017)WILKIS, A. The moral power of money: morality and economy in the life of the poor. Stanford: Stanford University Press, 2017. propõe também a existência desse elo entre o dinheiro dos pobres e moralização, mas para demonstrar como opera em outra escala: na expressão e manutenção de hierarquias sociais vinculadas à desigualdade em escala nacional.
  • 22
    Referência à tão citada frase de David Schneider, “Uma das fantasias fundamentais da antropologia é que em algum lugar deve haver uma vida que vale a pena ser vivida”. A afirmação, já célebre, na maioria das vezes é referida sem que se considere a sua ironia, efeito do recorte que a descontextualiza. Schneider (1966SCHNEIDER, D. Foreword. In: WAGNER, R. The curse of Souw: principles of Daribi clan definition and alliance in New Guinea. Chicago: The University of Chicago Press, 1966. p. vii-viii., p. vii) argumenta, em prefácio a uma obra de Roy Wagner, que um bom trabalho de campo é essencial, mas não é suficiente, e justifica: “Legions are the stories of anthropologists who are so magnificent field workers that they actually went native, or should have, that could do the tribal dances but not describe them, who could be possessed by the native spirits but could not discuss them. Such stories are no surprise, of course, since one of the fundamental fantasies of anthropology is that somewhere there must be a life really worth living.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2023
  • Aceito
    25 Abr 2023
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