Resumo
Este trabalho se volta às experiências de famílias de crianças que vivem conflitos identitários com as normas de gênero, analisando o caso etnográfico de uma família das camadas médias de Pernambuco no curso de processos de medicalização em torno do diagnóstico de Disforia de Gênero na Infância. O objetivo é refletir sobre as condições sociais e culturais em que explicações e práticas das ciências médico-psi se tornam uma alternativa para reorganizar as relações familiares em torno do conflito vivido pela criança. Exploro, por um lado, a dimensão dos valores de família e infância mobilizados nos conflitos e dilemas da interlocutora e seu filho e, por outro, as práticas de tutela familiar e médica sobre crianças e sobre experiências e identificações de gênero em conflito com as normas sociais.
Palavras-chave:
criança; família; gênero; transexualidade
Abstract
This is an analysis of the experiences of families with children who have identity conflicts with gender rules, looking specifically to one ethnographic case concerning a middleclass family from Pernambuco that undergoes a process of medicalization through a diagnostic of Gender Dysphoria in Children. The objective is to understand the social and cultural conditions in which medical and psychological explanations and practices become an alternative to reorganize family relations around the conflict experienced by the child. I explore the dimension of family and childhood values mobilized in the dilemmas and conflicts experienced by the interlocutors, as well as the practices of family and medical control of children and experiences of gender identification that conflict with the social norms.
Keywords:
children; family; gender; transsexuality
Introdução
Esta é uma reflexão antropológica1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001. sobre crianças que “transicionam” o gênero designado no nascimento,2 2 Entendo a transição de gênero como um “deslocamento na ordem de gênero” no sentido proposto por Raewyn Connell (2016, p. 238): trata-se de um processo de mudanças de posição na estrutura de relações de gênero que é corporificado, ou seja, que se inscreve nos corpos tanto quanto é produzido por eles à medida que esses corpos mudam. buscando compreender as condições sociais e culturais que organizam essas experiências a partir da análise de um caso envolvendo uma família das camadas médias urbanas de uma cidade de Pernambuco. Os dados etnográficos que recorto aqui são relevantes para discutir como determinadas noções de família e infância e as relações que estas organizam estão implicadas no modo como crianças que expressam um “conflito identitário com as normas de gênero” (Bento, 2014BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Natal: EDUFRN, 2014.) podem mobilizar as famílias a buscar explicações e uma terapêutica nas áreas médico-psi. Também permitem refletir sobre os conflitos e dilemas de famílias envolvendo questões de autoridade e afeto que se configuram em relações complexas de medicalização e tutela.
Embates sobre os mecanismos pelos quais crianças passam a se entender como pertencentes a um ou outro gênero e como formam a sua sexualidade se tornaram importantes no cenário cultural e político brasileiro dos últimos anos, ganhando visibilidade a partir de disputas sobre qual é o papel de diferentes instituições nesses processos, assim como o que deve ser compreendido como efeito de fenômenos econômicos e culturais mais amplos, como a globalização de modelos de produção de identidades de gênero e identidades sexuais, por exemplo.
Diferentes discursos proliferam e circulam, com conotações as mais diversas, e grupos com interesses distintos e opostos fazem política a partir de categorias saturadas de afetos sociais: “ideologia de gênero”, entre segmentos da população reacionários a avanços nos direitos de mulheres, pessoas LGBT e a políticas de educação em gênero e sexualidade; “criança viada”, por pessoas LGBT que tornam públicas suas lembranças enquanto crianças com expressões de gênero aquém às normas sociais; “criança LGBT”, bandeira do movimento de famílias de pessoas homossexuais e trans, e “criança trans”, emergindo recentemente na reivindicação de direitos por pessoas trans.3 3 Uso o termo “pessoas trans” para me referir às diferentes experiências identitárias (trans, travestis, transexuais, transgêneros, não binárias) que têm em comum se constituírem pelo que Berenice Bento (2014) define como um conflito identitário com as normas de gênero.
Esse debate certamente é fruto de processos sociais complexos na sociedade brasileira e seria inviável aprofundá-los neste espaço, mas cabe citar a expansão dos movimentos sociais de identidades sexuais e de gênero, a ampliação do acesso ao ensino superior, a popularização da internet e as recentes transformações no cenário econômico internacional em direção a uma agenda ao mesmo tempo ultraliberal na economia e conservadora em valores sobre gênero, família e sexualidade. Interessa-me aqui enfatizar que esses processos envolvem o manejo de sistemas simbólicos de gênero e sexualidade imbricados àqueles relacionados à infância e ao lugar social da criança.
Crianças que expressam preferências por roupas, brinquedos e comportamentos considerados inadequados para seu gênero provocam inquietação e reação dos adultos ao seu redor, pois desafiam o alinhamento desejado e esperado entre sexo e gênero para a produção de homens e mulheres como duas categorias distintas, opostas e complementares de pessoas. Ao fazê-lo, tensionam também o que se entende e se espera de uma infância “normal”, em que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”, ou seja, onde crianças são passivamente socializadas para aprender normas de gênero que seriam apenas a expressão cultural de diferenças pretensamente naturais entre os sexos.
Autores de diferentes escolas teóricas da antropologia4 4 Clarice Cohn (2005) realizou uma revisão das principais escolas, autores e obras, passando pela Escola de Cultura e Personalidade, pelo estrutural-funcionalismo e pelas teorias sobre a agência das crianças na cultura. Heather Montgomery (2009) também publicou uma ampla revisão histórica e teórica. Para um estado da arte do campo da antropologia da criança no Brasil, ver Cohn (2013). problematizaram essas concepções de que as crianças desenvolvem qualidades e habilidades sob impulsos puramente biológicos, de que o contexto sociocultural age apenas na forma de expressão de características naturais e de que as crianças são passivas nos processos de aprendizagem e na vida social. Margaret Mead, por exemplo, uma das pioneiras nos estudos antropológicos com crianças (Cohn, 2005COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.), não apenas argumentava que culturas diferentes produziam “temperamentos” bastante distintos em homens e mulheres (Mead, 1977MEAD, M. Sex and temperament in three primitive societies. London: Routledge & Kegan Paul, 1977.), mas já evidenciava a maneira coercitiva e muitas vezes violenta com que a diferença de gênero é produzida em crianças.
Em seu estudo sobre os manu das Ilhas do Almirantado, na Nova Guiné, publicado em 1930, Mead descreveu como a passagem de meninas da vida de criança para o ambiente doméstico das mulheres, por volta dos 8 anos, envolvia conflitos e resistências: “Essa mudança não ocorre sem certa infelicidade e rebeldia. As menininhas chutam as suas saias de folhas e se rebelam contra as tarefas domésticas nas quais são envolvidas por sua presença mais frequente em casa” (Mead, 1963MEAD, M. Growing up in New Guinea: a study of adolescence and sex in primitive societies. Middlesex: Penguin Books, 1963., p. 120, tradução minha).5 5 No original: “This shift is not made without some unhappiness and rebellion. The little girls kick off their grass skirts and rebel against the domestic tasks in which their more frequent presence at home involves them.” Mais adiante, a autora segue argumentando que “[…] essa identificação próxima da menina com a mulher não é nem voluntária e nem entusiástica. […] Se as mulheres se amontoam juntas, é como prisioneiras, sob o jugo comum da precaução e do tabu” (Mead, 1963MEAD, M. Growing up in New Guinea: a study of adolescence and sex in primitive societies. Middlesex: Penguin Books, 1963., p. 122, tradução minha).6 6 No original: “But this close identification of the girl with the women is neither voluntary nor enthusiastic. […] If the women huddle closely together, it is as prisoners, under a common yoke of precaution and taboo.”
Margaret Mead analisava que, longe de ser um processo natural, a produção da diferença de identificações e papéis sociais entre meninos e meninas envolvia um forte constrangimento cultural. A conclusão de Mead era que a cultura geralmente triunfava, fosse entre os manu ou em qualquer outra sociedade. Porém, considerava sempre existirem crianças que cresciam com “personalidades desajustadas”, localizando nelas o potencial de mudança cultural e o “fardo de construir novos mundos” (Mead, 1963MEAD, M. Growing up in New Guinea: a study of adolescence and sex in primitive societies. Middlesex: Penguin Books, 1963., p. 173). Alguns anos depois, em Sexo e temperamento, Mead (1977)MEAD, M. Sex and temperament in three primitive societies. London: Routledge & Kegan Paul, 1977. elaborou uma reflexão profunda sobre como as sociedades produzem homens e mulheres “inadaptados” e como estes poderiam contribuir para a cultura se o “temperamento” de cada indivíduo for considerado mais relevante do que sua conformação ao esperado para seu sexo. Vemos que mesmo nessa perspectiva culturalista, depois criticada pela maneira enrijecida de compreender os processos culturais (Cohn, 2005COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.), havia um entendimento de que as culturas sempre deixam brechas para a produção de diferenças.
No Brasil, como em outros contextos, as formas de lidar com as crianças que não se adéquam às normas de gênero dependem da configuração de relações sociais em que elas estão inseridas em uma dada realidade sociocultural. As explicações para o que provoca o comportamento visto como problemático variam, mas comumente dividem-se em considerar se há o efeito de influências externas ou se a criança “nasceu assim”. A pesquisa de Luciana Ribeiro de Oliveira (2018)RIBEIRO DE OLIVEIRA, L. M. Maria/Pedro: um estudo sobre vivências, identificações e variações de gênero no período da infância. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, João Pessoa, v. 17, n. 49, p. 81-96, abr. 2018., o primeiro estudo antropológico realizado no Brasil sobre o tema das infâncias trans, demonstrou como a divisão binária de sexo e de papéis culturais para meninos e meninas impõe tensionamentos morais sobre os modos de entender as diferentes identificações de gênero de crianças, limitando a compreensão dessas experiências à patologia e ao estigma.
É recorrente que pais, familiares e não raro outros adultos de convívio próximo da criança, na comunidade, na escola, em igrejas e outros espaços de seu convívio, procurem intervir para que esta se torne alguém cuja expressão e identificação de gênero estão de acordo com as normas sociais e práticas culturais de seu contexto social. Não são raros os casos em que ocorrem sanções sociais violentas, tanto simbólica quando fisicamente, de repreensões verbais a humilhações e punições físicas, frequentemente por parte de pais, irmãos e outros familiares, no próprio âmbito doméstico. Entretanto, as famílias não respondem somente dessa maneira.
A busca por psicólogos e psiquiatras para acompanhar filhos com comportamentos “desviantes” é uma forma de intervenção recorrente, principalmente entre as camadas médias, como sabemos a partir das pesquisas de Gilberto Velho (2013)VELHO, G. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.. Porém, o emprego das categorias de diagnóstico específicas para experiências de conflito de gênero de crianças ainda é um fenômeno recente entre profissionais do campo médico-psi no contexto brasileiro. O foco deste artigo não é comparar as diferentes condições culturais e sociais em que as famílias agem de formas distintas diante de crianças que vivem esses conflitos, mas refletir sobre as experiências daquelas que se engajam em processos de medicalização informados por uma adesão ao modelo médico-psi de crianças classificadas com as categorias diagnósticas de “disforia”, “transtorno” ou “incongruência” de gênero.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) autoriza o tratamento hormonal e cirúrgico de pessoas adultas “diagnosticadas” como transexuais desde 1997. Ao longo dos anos, tem regulamentado a prática médica a partir das categorias de diagnóstico do Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS), que, desde os anos 1980, classifica as experiências de pessoas trans, sejam crianças, adolescentes ou adultos, no capítulo reservado aos transtornos mentais. Após décadas de luta de movimentos sociais contra a patologização das identidades trans, na mais recente revisão do CID, ainda em processo de implementação, a OMS deslocou as classificações que contemplam as experiências trans para o capítulo que trata de questões relativas à saúde e ao desenvolvimento sexual.
Quando a mudança foi anunciada, em junho 2018, provocou opiniões diversas entre pessoas trans, ativistas, acadêmicos e especialistas de diferentes áreas que trabalham com questões de transexualidade e transgeneridade. Acompanhei essas discussões em atividades e eventos dos movimentos sociais, assim como em postagens e debates nas redes sociais da internet. Várias instituições, entidades, organizações e núcleos de pesquisa também declararam posicionamentos em notas públicas. Para alguns acadêmicos e ativistas, a patologização continuava, já que as experiências e identidades trans seguiam classificadas no CID. Outros avaliaram a mudança como uma importante vitória, pois, ainda que não se tratasse de uma despatologização de fato, ela possibilitava superar o estigma de doença mental e garantir o direito a atendimento médico em países com sistemas públicos de saúde.
No Brasil, o atendimento para pessoas travestis e transexuais na rede pública se expandiu ao longo da última década a partir da implementação7 7 A Portaria n. 2.803/2013 (Brasil, 2013) do Ministério da Saúde redefiniu e ampliou o Processo Transexualizador, substituindo a Portaria n. 1.707/2008 (Brasil, 2008), que primeiro instituiu esse atendimento no SUS. do Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS), mas continua limitado a poucos ambulatórios e hospitais, geralmente em centros urbanos de médio e grande porte. Na rede particular, a oferta também é escassa e os profissionais qualificados costumam cobrar valores altíssimos para consultas e cirurgias. No que se refere a crianças, tudo é ainda mais restrito. Em primeiro lugar, as normas para a atenção a menores de 16 anos só foram publicadas pelo CFM na recente Resolução n. 2.265 de 2019 (Conselho Federal de Medicina, 2020CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.265, de 20 de setembro de 2019. Dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero e revoga a Resolução CFM nº 1.955/2010. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 158, n. 6, p. 96-97, 9 jan. 2020.). Além disso, apesar de o atendimento especializado a adultos e adolescentes travestis e transexuais estar incluído entre as modalidades de serviços do SUS há mais de uma década, as portarias que regulamentam o Processo Transexualizador ainda não se referem a qualquer forma de atendimento a crianças.
Essa apresentação inicial dos debates públicos e da história recente do atendimento médico a pessoas travestis e transexuais no Brasil é importante para entender a grande relevância social e política do tema, que mobiliza diferentes agentes na sociedade civil, no governo e no campo da saúde. A discussão que aqui proponho justifica-se em função desse contexto, sobretudo pela complexidade dos aspectos médicos e jurídico-legais, mas também morais e emocionais que estão implicados nas experiências de famílias de crianças que desejam viver em outro gênero que não aquele designado no nascimento. Nesse cenário, considero que a antropologia pode contribuir para iluminar a complexidade das relações sociais no cotidiano de famílias que de fato vivem processos de transição de gênero com seus filhos.
Não está no escopo deste artigo argumentar em torno de teorias da psicologia, da biologia ou da medicina a respeito de quando e como crianças formam uma “identidade de gênero”. Não considero que essa seja uma questão relevante em termos antropológicos, entendendo que estamos interessados em gênero e identidade como fenômenos sociais vividos nas relações e práticas do cotidiano dos interlocutores, de cujo “ponto de vista” queremos nos aproximar (Geertz, 1983GEERTZ, C. From the native’s point of view. On the nature of anthropological understanding. In: GEERTZ, C. Local knowledge: further essays in interpretive anthropology. New York: Basic Books, 1983. p. 55-72.). Nessa perspectiva, quero refletir sobre quais são as condições em que crianças “transicionam” o gênero de nascimento, entendendo as relações sociais em que estão implicadas e as concepções culturais sobre família, gênero e infância que estão constituindo esses processos.
Os dados etnográficos que discuto aqui são parte de uma pesquisa de campo mais ampla para minha tese de doutorado sobre transexualidade e família. Etnografei serviços de saúde e assistência social para pessoas travestis e transexuais, além de atividades de ativismo de uma organização de mães e familiares de gays, lésbicas e pessoas trans. Entre as muitas pessoas de quem me aproximei nesses contextos, conheci a pernambucana Penélope,8 8 Todos os interlocutores e agentes do mundo social etnografado receberam pseudônimos neste texto para preservar o seu anonimato. uma mulher branca, na faixa dos 40 anos de idade, psicóloga, cuja história de “transição de gênero” do filho foi o primeiro caso envolvendo uma criança que encontrei durante a pesquisa de campo. Depois, a partir da intermediação de Penélope, que se tornou uma interlocutora importante, conheci outras famílias em situação semelhante.
Como as outras mães que participavam de atividades de ativismo, Penélope militava pela “causa” dos direitos de pessoas LGBT e de suas famílias, mas tinha uma atuação muito direcionada a expor a precariedade do atendimento médico para “crianças trans”, crianças em conflito identitário com o gênero designado no nascimento. As reivindicações partiam da sua própria experiência pessoal como mãe. Lucas, o seu único filho, na época com 11 anos, era um “menino trans”, como se refere Penélope. Ele havia “transicionado” do gênero feminino para o gênero masculino de identificação em um processo longo, delicado e tenso, marcado por dilemas morais, conflitos sociais e profundamente transformador para ambos.
O fato de Lucas ter realizado a sua transição de gênero enquanto criança traz implicações sociais que merecem um exame diferenciado em função da complexidade das relações de tutela que estão em jogo. Antônio Carlos Souza Lima (2002LIMA, A. C. S. Sobre gestar e gerir a desigualdade: pontos de investigação e diálogo. In: LIMA, A. C. S. (org.). Gestar e gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. p. 11-22., p. 13) descreve o poder tutelar como um modo de governo que controla, organiza e gerencia determinadas populações consideradas com “capacidade civil relativa” e, por isso, tratadas de forma específica na legislação e nas práticas administrativas a partir do estabelecimento de tutela jurídica. Pessoas trans são “tuteladas”, uma vez que legalmente dependem do diagnóstico de médicos e da avaliação de equipes multidisciplinares de especialistas para poder decidir sobre seus corpos e até recentemente não podiam retificar documentos de registro civil sem autorização judicial (cf. Alexandre, 2015ALEXANDRE, J. R. Emoções, documentos e subjetivação na construção da transexualidade em João Pessoa/PB. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015.; Freire, 2015FREIRE, L. M. A máquina da cidadania: uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.). Crianças também o são, a partir de mecanismos administrativos e jurídicos que as submetem ao cuidado da família e outras instituições.
Adriana Vianna (2002VIANNA, A. R. B. Limites da menoridade: tutela, família e autoridade em julgamento. 2002. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002., p. 7) argumenta que crianças estão em condição de “menoridade”, termo pelo qual define um tipo de dinâmica social de autoridade e dominação que estabelece um ou mais responsáveis legais para responder por um indivíduo e que os insere em relações de subordinação. É dessa maneira que interpreto como relações de tutela configuram casos envolvendo crianças em processos de medicalização por conflitos identitários com as normas de gênero. As crianças dependem das famílias e responsáveis legais nos mais diferentes aspectos sociais - jurídicos, econômicos, afetivos, materiais - e não podem “transicionar” sem sua autorização e ajuda. Ao mesmo tempo, os pais não podem autorizar e decidir sobre a transição de gênero das crianças fora das práticas de regulação e controle da medicina. Há o controle familiar sobre as crianças e há o controle de médicos e psicólogos sobre as possibilidades para a transição de gênero a partir de categorias diagnósticas e práticas terapêuticas específicas agindo sobre a família e a criança.
Nesse contexto, o caso de Penélope e Lucas revela a forma como as disputas e conflitos em torno da vida de crianças tocam em valores importantes sobre família que podem mobilizar decisões complexas e mudanças profundas na vida das pessoas envolvidas em relações tão desiguais. É a necessidade de garantir que Lucas fique vivo que mobiliza Penélope a buscar respostas para os questionamentos e para os anseios do filho, movendo-se em uma trajetória de transformações nas relações em diferentes âmbitos sociais. Nesse percurso, confronta os modelos de produção de gênero e de identidades da família e envolve-se em processos complexos de medicalização, chegando a questionar protocolos e regulações em vigor na medicina que não respondem às necessidades urgentes de seu filho.
De crianças “transtornadas” a “incongruentes”: uma breve contextualização
Embora a visibilidade pública de “crianças transgênero” e “gênero não conforme” seja um fenômeno considerado relativamente novo, atribuído ao início dos anos 1990 na América do Norte (Meadow, 2018MEADOW, T. Trans kids: being gendered in the twenty-first century. Oakland: University of California Press, 2018.), crianças sempre estiveram presentes na história da transexualidade. Como demonstra Julian Gill-Peterson (2018)GILL-PETERSON, J. Histories of the transgender child. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2018., o modelo de “plasticidade do sexo”, importante para que o campo emergente da endocrinologia vislumbrasse a possibilidade de interferir no sexo humano, foi deslocado das pesquisas em biologia animal às ciências médicas, no começo do século XX, em uma articulação com noções de desenvolvimento infantil: o sexo de uma criança se tornaria gradativamente menos “plástico” até atingir a idade adulta. Crianças intersexo foram, posteriormente, o foco de pesquisas e experimentos que desenvolveriam técnicas e protocolos hormonais e cirúrgicos empregados depois na nova medicina transexual. Na segunda metade do século, o surgimento do conceito de “identidade de gênero”, distinguindo o sexo anatômico do senso subjetivo de ser homem ou mulher, tornou famílias e crianças objeto de intervenção clínica por psiquiatras e psicanalistas que visavam interferir em relações familiares consideradas disfuncionais de modo a fazer com que as crianças se tornassem adultos com alinhamento entre sexo e gênero (Meadow, 2018MEADOW, T. Trans kids: being gendered in the twenty-first century. Oakland: University of California Press, 2018.; Meyerowitz, 2002MEYEROWITZ, J. How sex changed: a history of transsexuality in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 2002.).
Desde 1980, manuais e documentos internacionais norteadores da prática médica trazem categorias etiológicas para situar expressões de conflitos identitários com as normas de gênero entre crianças, classificando-as como transtornos de identidade. Atualmente, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) da Associação Americana de Psiquiatria (APA) trabalha com a categoria de Disforia de Gênero na Infância, que, em tese, deixa de localizar o problema no comportamento de gênero tido como desviante para situá-lo no sofrimento psíquico da experiência de “disforia”. Já o CID-10 da OMS ainda se refere a Transtorno de Identidade de Gênero na Infância, mas vimos que sua 11ª revisão introduzirá mudanças nas classificações vigentes. Uma nova categoria diagnóstica, a Incongruência de Gênero na Infância, será incluída no capítulo intitulado “Condições relativas à saúde sexual”.
De um modo geral, apesar de as diferenças de classificação expressarem mudanças na compreensão médica quanto ao fenômeno (Meadow, 2018MEADOW, T. Trans kids: being gendered in the twenty-first century. Oakland: University of California Press, 2018.), os critérios diagnósticos são muito similares e mudaram pouco nas revisões que sofreram ao longo dos anos: referem-se à expressão contínua de um desejo intenso de pertencimento ao outro sexo/gênero, incluindo um forte desconforto com o próprio corpo e a vontade de mudá-lo, além de preferências por brincadeiras, atividades e companhias típicas de crianças do outro gênero. O simples comportamento “variante” de gênero, porém, não é considerado suficiente para atestar o diagnóstico. É preciso que esses “sintomas” venham acompanhados de uma forte angústia e que por causa deles a criança esteja enfrentando problemas na escola, na família e em outros espaços e relações importantes de seu cotidiano.
Concepções culturais sobre quais comportamentos são normais ou anormais para crianças estão relacionadas às noções de saúde e adoecimento no campo das doenças mentais na infância (Nakamura; Santos, 2007NAKAMURA, E.; SANTOS, J. Q. Depressão infantil: abordagem antropológica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 41, n. 9, p. 53-60, 2007.). Nos casos das classificações médicas para crianças com conflitos identitários com as normas de gênero, há notadamente uma articulação entre concepções de infância, gênero e família construindo crianças “disfóricas” ou “incongruentes”. Além de listar comportamentos considerados atípicos para meninos e meninas (que são exatamente os comportamentos considerados normais para o gênero oposto), a noção de que o universo de relações das crianças se dá em torno de brincadeiras, da escola e da família universaliza uma concepção de infância muito específica de certos contextos ocidentais norte-americanos e europeus, que no Brasil está mais próxima das experiências de crianças em famílias de camadas médias urbanas.
Práticas de tutela relacionadas a noções de infância também informam os protocolos terapêuticos. Estes são construídos a partir do entendimento de que a identidade de gênero de uma criança está em processo de desenvolvimento ao longo da infância (Hembree et al., 2009HEMBREE, W. et al. Endocrine treatment of transsexual persons: an endocrine society clinical practice guideline. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, Washington, v. 94, n. 9, p. 3132-3154, Sept. 2009.). Assim, crianças não têm legitimidade para afirmar por si mesmas as suas preferências e identificações de gênero ou tomar decisões sobre sua identidade quando esta se contrapõe às normas sociais. Precisam ser acompanhadas e monitoradas por especialistas que possam avaliá-las. Os protocolos podem incluir terapias psicológicas para a criança ou para a família, acompanhamento por uma equipe multidisciplinar de especialistas e, como último recurso, a chamada “transição social”, isto é, a autorização e o suporte para que a criança assuma uma identidade pública no gênero em que se sente mais confortável e com o qual expressa identificação. Essas práticas visam reduzir o sofrimento experimentado pela criança até que os especialistas concluam que o diagnóstico persistirá durante a adolescência até a vida adulta.
Há forte ansiedade em torno da ideia de que as crianças possam “se arrepender” de fazer a transição de gênero. A busca por transexuais “verdadeiros” já é uma preocupação recorrente de médicos e psicólogos que atendem pessoas adultas (Bento, 2014BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Natal: EDUFRN, 2014., p. 48) e assume um caráter ainda mais obsessivo nos casos de crianças, pois se considera o diagnóstico mais complicado. As Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero da World Professional Association for Transgender Health (WPATH), principal organização internacional a nortear padrões de qualidade para o cuidado em saúde de pessoas trans, argumentam nesse sentido que “[…] existe um processo de desenvolvimento rápido e dramático (físico, psicológico e sexual), maior fluidez e variabilidade nos resultados, especialmente em crianças que ainda não passaram pela puberdade” (Coleman et al., 2012COLEMAN, E. et al. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. [S. l.]: World Professional Association for Transgender Health, 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_Portuguese.pdf . Acesso em: 17 dez. 2019.
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, p. 12). Assim, a preocupação em identificar crianças que serão “persistentes”, “desistentes” e possivelmente “arrependidas”9
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Tradução livre para os termos persisters, desisters e regretters, utilizados por Meadow (2018).
de fazer a transição de gênero substitui hoje o antigo modelo diagnóstico de psicopatologia e cura (Meadow, 2018MEADOW, T. Trans kids: being gendered in the twenty-first century. Oakland: University of California Press, 2018.).
Em torno do debate sobre a necessidade de precisão do diagnóstico, discute-se também o uso de protocolos hormonais no processo terapêutico. A terapia hormonal de supressão de puberdade consiste em bloquear a produção de hormônios responsáveis por desenvolver características sexuais secundárias, como seios e barba, e é utilizada por médicos de clínicas de gênero especializadas em crianças desde o final da década de 1990, em países como Canadá e Estados Unidos. O benefício terapêutico da supressão de puberdade estaria em “ganhar tempo”: permitir o amadurecimento da criança para decidir se realmente deseja fazer a transição de gênero na adolescência e, ao mesmo tempo, evitar que o corpo passe por mudanças durante a puberdade que demandariam cirurgias e outros procedimentos estéticos em um futuro como adulto transexual (Cohen-Kettenis et al., 2008COHEN-KETTENIS, P. et al. The treatment of adolescent transsexuals: changing insights. The Journal of Sexual Medecine, [s. l.], v. 5, n. 8, p. 1892-1897, 2008., p. 1894).
No Brasil, as normas de atendimento a crianças estabelecidas pelo CFM na Resolução n. 2.265 de 2019 determinaram que a puberdade deve ser experimentada no mínimo até seus estágios iniciais antes de qualquer intervenção com hormônios bloqueadores, prática que tem sido recomendada na literatura médica (Coleman et al., 2012COLEMAN, E. et al. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. [S. l.]: World Professional Association for Transgender Health, 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_Portuguese.pdf . Acesso em: 17 dez. 2019.
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; Hembree et al., 2009HEMBREE, W. et al. Endocrine treatment of transsexual persons: an endocrine society clinical practice guideline. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, Washington, v. 94, n. 9, p. 3132-3154, Sept. 2009.). As terapias com “hormônios sexuais cruzados”, que induzem o desenvolvimento de características do gênero de identificação, foram proibidas antes dos 16 anos de idade. Durante o período de realização desta pesquisa, que antecedeu a publicação da nova resolução do CFM, a aplicação de qualquer desses protocolos hormonais para crianças e adolescentes ainda estava restrita a alguns poucos ambulatórios vinculados a universidades, como parte de projetos de pesquisa. Diante da ausência de regulamentação formal para intervenções médicas com crianças e adolescentes, muitos profissionais de saúde se recusavam a receber esse público em seus consultórios, alegando inviabilidade legal.
Ao longo desta seção, discorri sobre como as práticas de medicalização de crianças em conflitos com as normas de gênero têm se transformado nas últimas décadas e estão cada vez mais distantes das terapias de “cura”. Nos dias atuais, voltam-se principalmente a oferecer suporte às famílias e a acompanhar a criança em seu processo de construção e afirmação de gênero (Coleman et al., 2012COLEMAN, E. et al. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. [S. l.]: World Professional Association for Transgender Health, 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_Portuguese.pdf . Acesso em: 17 dez. 2019.
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). Como veremos nas próximas páginas deste artigo a partir da história de Penélope e Lucas, o vocabulário explicativo da medicina e suas práticas terapêuticas têm uma importância fundamental para reorganizar as relações familiares ante as tensões em torno dos conflitos da criança com o gênero designado no nascimento.
Um estudo com médicos e psicólogos de serviços que atendem crianças e adolescentes trans no Brasil sugeriu que há uma “partilha da responsabilidade decisória” entre profissionais e famílias, com possíveis efeitos sobre as hierarquias entre médicos e pacientes (Pontes; Silva; Nakamura, 2020PONTES, J. C. de; SILVA, C. G. da; NAKAMURA, E. “Crianças” e “adolescentes” trans. A construção de categorias entre profissionais de saúde. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 35, p. 112-132, ago. 2020.). Contudo, a concepção cultural de que crianças e adolescentes não são sujeitos completos em si mesmos, mas futuros adultos em desenvolvimento (Ariès, 2016ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2016.), e de que as famílias guardiãs de crianças em conflito também devem ser monitoradas (Vianna, 2002VIANNA, A. R. B. Limites da menoridade: tutela, família e autoridade em julgamento. 2002. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.) ainda confere aos médicos um lugar de autoridade para regular o processo, controlar o acesso aos recursos tanto biomédicos quanto jurídicos e mediar a relação entre crianças e famílias e entre famílias e demais instituições e agentes.
“Mãe, me chama de João?”
Lucas,10 10 A narrativa a seguir resulta de diversas conversas informais e entrevistas que realizei com Penélope. As referências a falas e atitudes de Lucas em seu processo de identificação de gênero são elaborações a partir de eventos e situações que a interlocutora me descreveu e devem ser lidas sob essa perspectiva. Até o momento, não conheço a história do ponto de vista de Lucas. que na época era Maria, tinha 4 anos quando começou a questionar Penélope: “Mãe, por que eu não sou um menino?” Foi uma pergunta desconcertante e inesperada, para a qual Penélope ofereceu a resposta que achou que cabia à época. Explicou que fora “a vontade de Deus”. Achou que solucionaria a questão, mesmo que ela própria não acreditasse num imperativo divino, mas não foi o que aconteceu. Lucas sempre voltava com mais perguntas. Penélope imaginou que as inquietações estavam relacionadas à recém-iniciada vida escolar e às novas interações com um grupo muito maior e mais diversificado de crianças. Não se preocupou. Porém, as questões assumiram gradativamente a forma de recusa à identidade feminina e, se de início as dúvidas infantis a divertiam, com o tempo se transformaram em um problema. “Mãe, ser menina é muito chato. Elas são bobas. Quando eu vou ser um menino? Quando eu vou ter pitoca?” As perguntas se somavam enquanto Lucas rezava para que Deus o transformasse em um menino, frustrando-se a cada dia que acordava sem seu desejo realizado. “Mãe, por que Deus fez isso comigo?”, angustiava-se.
Uma vez que as preces de Lucas continuavam sem resposta, as questões foram assumindo, entre seus 4 e 9 anos de idade, a forma de uma interpelação por reconhecimento: “Mãe, me chama de João?” Ela resistiu aos apelos por um tempo, desejando que tudo fosse apenas uma fantasia infantil, mas João - que depois mudou de nome algumas vezes até se tornar Lucas - era bastante insistente. Penélope tentou cercá-lo de objetos, roupas e brinquedos considerados femininos, além de matriculá-lo em uma escola de balé. Ele rejeitava tudo. Deixava as bonecas empoeirarem na prateleira, intocadas, pois preferia brincar de skate, futebol, videogame e se fantasiar de super-herói ou outro personagem masculino de filmes e desenhos animados. Os conflitos entre eles se tornaram diários: Lucas esperneava, chorava e Penélope o colocava de castigo, observando-o se tornar uma criança retraída, solitária e agressiva, que não tinha amigos na escola e chegava em casa machucado de brigar com outros meninos. Parecia perigosamente próximo de um quadro clínico de depressão.
Na busca de Penélope por explicações e por ajuda, uma colega lhe indicou literatura sobre transexualidade e ela passou a ler, a estudar e a procurar ajuda psicológica especializada para o filho. À medida que compreendia mais a respeito, permitia pouco a pouco que Lucas vivesse como desejava. Ao longo do processo de mudanças, o filho a encorajava: “Mãe, você vai se acostumar. Do mesmo jeito que você se acostumou comigo assim, você vai se acostumar comigo de outro jeito.” Aos poucos Penélope deixou que Lucas se desfizesse das roupas e brinquedos considerados femininos e que trocasse seu guarda-roupa para bermudões e camisetas de manga comprida. Cortou curtos os cabelos longos que antes o deixavam com jeito de surfista, andrógino, e provocavam dúvida e curiosidade sobre o gênero da criança por onde passavam. Algumas pessoas chegavam a abordá-la na rua para perguntar: “É menino ou é menina?” Nesses pequenos e grandes gestos cotidianos, nas interações sociais entre mãe e filho e com outras pessoas e instituições, Lucas foi se tornando real, assumindo seu corpo. Maria foi ficando no passado, nas fotos que Penélope guardou em uma caixa de lembranças, junto com uma mecha de cabelo comprido e outros objetos de memória para as quais voltava, primeiro, com tristeza, depois, com saudade, de tempos em tempos.
A decisão de permitir e apoiar que Lucas vivesse da forma como se identificava trouxe diversas consequências para a vida de Penélope, que passou a enfrentar diferentes formas de coerção social, não somente em termos morais, mas também jurídicos. Em diversos contextos e situações sociais enfrentou a culpabilização pelo comportamento do filho por pessoas que questionavam a qualidade da sua maternagem e da sua feminilidade. Acusações de que estava “incentivando” a criança também eram recorrentes. O pai de Lucas, de quem havia se separado logo que ele nasceu e que sempre fora bastante ausente no cotidiano do filho, não apenas confrontou e recusou as suas decisões como a denunciou ao Ministério Público por maus-tratos à criança. Ao mesmo tempo que lidava com essas repercussões em diferentes relações sociais e com a forma como a sua própria identidade como mãe e como mulher fora profundamente abalada, Penélope também precisou reorganizar aspectos de sua vida relacionados à moradia e à vida profissional, chegando a mudar de emprego e de cidade para estar mais próxima de profissionais de saúde aptos a acompanhar o caso de seu filho.
“Acho que essa é uma das primeiras vezes em que eu falo sobre isso sem chorar”, lembro que me disse Penélope, com um sorriso tênue, quando compartilhou comigo a sua história em um de nossos primeiros encontros. Entendo que emoções são formas de ação na vida social, manejadas nas interações cotidianas de modo a negociar relações, situações e o significado de eventos (Lutz, 1998LUTZ, C. Unnatural emotions: everyday sentiments on a Micronesian atoll & their challenge to western theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1998.). Nessa perspectiva, o choro de Penélope pode ser melhor interpretado não como a expressão de um estado subjetivo, mas sim como uma linguagem que mobiliza significados e valores culturais partilhados no seu universo social e com o pesquisador.
Penélope constrói os sentidos dos eventos narrados a partir dos significados coletivos do choro, que conota a complexidade de sua experiência com a transição de gênero de Lucas e os conflitos profundos em suas relações como mulher e mãe ao longo desse processo. Ao mesmo tempo, expõe a sua posição social como mãe de um “menino trans”, onde vive culpabilização, preconceito, embates morais, dificuldades cotidianas e todas as responsabilidades de assumir o processo de transição de gênero do filho. O choro é também a resposta moral possível às acusações que enfrentou e que ainda enfrenta em retaliação às suas escolhas para conduzir a resolução dos conflitos de Lucas. O fato de Penélope observar que não chora mais explicita o entendimento de que viveu uma trajetória de transformação, tanto em termos de superação de inúmeros problemas quanto em relação à aceitação de seu filho. Hoje, posiciona-se como a mãe de um “menino trans” de um outro lugar.
As histórias de famílias sobre como vieram a apoiar a transição de gênero dos filhos na infância são, em geral, muito parecidas com as de Penélope no que encontrei ao longo de minha pesquisa de campo. São marcadas por conflitos profundos, desgastantes brigas familiares e sentimentos avassaladores, visto que o conflito da criança tensiona, desestabiliza e transforma relações. Diante de um cenário com implicações tão profundas para a vida pessoal e familiar, é fundamental entender as condições sociais e culturais que circunscrevem a decisão de apostar no processo de transição de gênero como solução para os conflitos enfrentados pela criança. Quero me deter aqui à forma como valores atribuídos à família e às crianças se inscrevem nos dilemas e nas atitudes parentais em torno do conflito de gênero do filho, tomando para exame aqueles que têm caracterizado as camadas médias em sua adesão ao “modelo ocidental-moderno” nas relações familiares.
A família que emerge como valor moderno tem as suas características de nuclearização, intimidade e afetividade nas relações conjugais e de filiação organizadas fortemente em torno da afeição pelas crianças, do cuidado do seu corpo e da atenção à sua educação; esses aspectos são articulados a um crescente individualismo que se projeta na criação das crianças, como sabemos a partir das obras de Philippe Ariès (2016)ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2016., Michel Foucault (1977)FOUCAULT, M. A história da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977. e Elisabeth Badinter (1985)BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985., entre outros autores. O plano dos sentimentos e dos afetos entre os membros da família se torna uma de suas dimensões mais importantes, principalmente, talvez, para as relações entre mães e filhos, visto que é nesse contexto também que emerge a ideia de “amor materno” (Badinter, 1985BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.) como uma construção cultural potente sobre a vida das mulheres.
Historiadores e cientistas sociais brasileiros têm apontado para a necessidade de entender que no âmbito nacional existem tanto outras modalidades de família quanto formas específicas de articulação dos valores ditos modernos descritos por intelectuais europeus (Duarte, 1995DUARTE, L. F. D. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In: RIBEIRO, I.; RIBEIRO, A. C. T. Famílias em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Loyola, 1995. p. 27-43.; Machado, 2001MACHADO, L. Z. Famílias e individualismo: tendências contemporâneas no Brasil. Interface, Botucatu, v. 4, n. 8, p. 11-26, 2001.). Luiz Fernando Dias Duarte (1995)DUARTE, L. F. D. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In: RIBEIRO, I.; RIBEIRO, A. C. T. Famílias em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Loyola, 1995. p. 27-43. sugeriu, por exemplo, que esses valores seriam mais característicos das camadas médias da população. Nas famílias desse segmento, relações hierárquicas de gênero e geração estariam em constante tensão com seus valores individualistas, que prezam por uma maior independência entre os membros da família para perseguir projetos próprios e para aderir a valores outros que não os do grupo.
O fato de que muitas interlocutoras da pesquisa que decidiram apoiar a transição de gênero de filhos na infância ou na adolescência são de camadas médias permite considerar, nesses casos, que essa dimensão simbólica da família informa em alguma medida as relações entre pais e filhos, as tensões geracionais e as decisões em torno do conflito da criança com as normas de gênero. Saliento que não estou argumentando em torno de uma generalização da influência do “individualismo da família moderna” como aspecto cultural e social determinante. Também não estou localizando as experiências de crianças que “transicionam” exclusivamente a esse segmento da população, uma vez que ao longo da pesquisa de campo encontrei famílias em contextos de camadas populares que decidiram apoiar a transição de gênero de seus filhos. Lia Zanotta Machado (2001)MACHADO, L. Z. Famílias e individualismo: tendências contemporâneas no Brasil. Interface, Botucatu, v. 4, n. 8, p. 11-26, 2001. argumentou em favor de considerar a combinação de um código relacional e hierárquico e de um código individualista na sociedade brasileira coexistindo em arranjos distintos em famílias de diferentes contextos sociais. Acredito que essa seja a chave de análise pertinente para pensar como os valores relacionados à família estão implicados em diferentes casos.
Um primeiro aspecto que se apresenta nos casos envolvendo crianças de camadas médias diz respeito à centralidade que ocupam na vida dessas famílias. Em torno delas são mobilizadas relações afetivas e práticas de cuidado organizadas por uma ética de valorização de sua saúde física e psicológica, visando tanto o seu direito de “ser criança” quanto o seu desenvolvimento enquanto indivíduos para a vida adulta. As habilidades sociais de interagir com outras crianças, o bom desempenho na escola e as relações com a família são importantes marcadores que revelam possíveis problemas que necessitam de intervenção. Quando os filhos rompem com valores e expectativas sociais, família de camadas médias podem considerar que os desvios são indícios de doença ou perturbação mental (Velho, 2013VELHO, G. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.).
Nesse sentido, um outro ponto relevante diz respeito às noções de normalidade e anormalidade da infância partilhadas pela família. A importância das concepções do que é uma infância normal para a forma como as famílias dão sentido ao comportamento das crianças foi apontada por Eunice Nakamura e José Quirino Santos (2007)NAKAMURA, E.; SANTOS, J. Q. Depressão infantil: abordagem antropológica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 41, n. 9, p. 53-60, 2007. em seu estudo sobre diagnósticos de depressão infantil. Os autores discutem como noções culturais de normalidade da infância estão presentes quando os comportamentos das crianças são percebidos como estranhos e problemáticos pelas famílias, movendo a busca por explicações médicas à medida que as relações com as crianças se tornam o foco de conflitos familiares e trazem a sensação de perda de controle aos pais. No caso de Penélope, é possível apreender como a tristeza, a solidão, a introspecção e a agressividade do filho, que se agravam o longo do tempo e passam a ser interpretados como sintomas de depressão a partir de sua formação como psicóloga, são fundamentais para que o conflito de Lucas com o gênero designado no nascimento se configure como um problema grave e urgente.
As concepções de infância aparecem também nas compreensões de Penélope a respeito do que uma criança pode fazer e dizer sobre si mesma, ou seja, em que medida há a noção de que crianças podem entender e afirmar com palavras e ações questões importantes sobre a sua própria identidade. “As crianças também têm agência!”, recordo que Penélope enfatizou em uma de nossas conversas a esse respeito. Na sua narrativa sobre os eventos que levaram à decisão de apoiar a transição de gênero do filho, Lucas aparece como protagonista, interpelando-a, questionando-a, resistindo de todas as formas às tentativas da mãe de fazê-lo menina e afirmando decididamente quem ele é de verdade: “Mãe, Maria nunca existiu!”
A forma como Lucas emerge como personagem nas palavras de Penélope mostra a compreensão da mãe de que os fatos foram mobilizados por um conhecimento profundo de Lucas sobre sua própria identidade. Além disso, há o forte entendimento de que os eventos não estavam sob o controle de Penélope, de que foram as ações de Lucas que culminaram na sua decisão de apoiá-lo, de que a relutância no começo se transformou em segurança à medida que Lucas a encorajou, voltando a ter amigos, a brincar e a ser carinhoso com ela, demonstrando que estava se sentindo mais feliz.
Sabemos que as crianças têm ação na vida social, mas dentro das limitações e das possibilidades da cultura e das relações sociais. Como salientou Flávia Pires (2008)PIRES, F. Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 17, n. 17, p. 133-151, 2008., é exatamente porque estão engajadas em relações com outras crianças e adultos que as crianças têm agência, visto que a agência é uma qualidade de indivíduos enquanto parte da sociedade. Nesse sentido, além das práticas de tutela legal de crianças e adolescentes, que são aspectos evidentes a construir essas relações, Clarice Cohn (2005COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., 2013COHN, C. Concepções de infância e infâncias. Um estado da arte da antropologia da criança no Brasil. Civitas, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 221-244, maio/ago. 2013.) tem chamado a atenção também para a forma como o que se entende culturalmente por “infância” em cada contexto social configura o modo como os adultos agem em relação às crianças e o próprio repertório de ação das crianças.
As crianças “[…] atuam em resposta, e cientes, ao modo como se pensa a sua infância” (Cohn, 2013COHN, C. Concepções de infância e infâncias. Um estado da arte da antropologia da criança no Brasil. Civitas, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 221-244, maio/ago. 2013., p. 230, grifo meu). Essa compreensão pode ter nuances e diferenças, uma vez que crianças têm suas particularidades e estas devem ser reconhecidas, como observou Pires (2008)PIRES, F. Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 17, n. 17, p. 133-151, 2008., mas trata-se de um conhecimento que se constrói na relação com adultos e outras crianças. É a partir desse lugar construído por noções e práticas de infância que crianças agem para afirmar ou transformar suas relações nas “margens de manobra” da cultura (Cohn, 2005COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.). Nesse sentido, a certeza de que crianças têm conhecimento sobre a própria vida, uma personalidade, uma identidade, e que têm agência, como expressa a narrativa de Penélope, atribuindo valor de indivíduo à criança, é em si mesma uma noção importante para configurar a própria possibilidade de ação de Lucas.
A tensão entre a hierarquia geracional e a função social de produção de novos indivíduos, que Luiz Fernando Dias Duarte (1995)DUARTE, L. F. D. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In: RIBEIRO, I.; RIBEIRO, A. C. T. Famílias em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Loyola, 1995. p. 27-43. descreve como inerente ao modelo moderno de família, parece delinear as margens dos embates travados entre mães e filhos: as crianças desafiam a mãe quando questionam o gênero designado no nascimento, mas são barradas pela sua autoridade; as mães, por outro lado, reagem para reafirmar o gênero de nascimento dos filhos, mas são constrangidas pelo imperativo afetivo e moral de zelar pela sua vida e pela sua felicidade e de reconhecer e aceitar a sua individualidade.
O plano das emoções, que é fundamental para tecer essas relações, revela-se como aquele onde os limites são afirmados, contestados, disputados e redefinidos: por um lado, há a insatisfação profunda do filho e as formas como ele age com tristeza, raiva e agressividade diante das pressões para que tenha certos comportamentos e assuma a identidade de gênero esperada; por outro, a frustração da mãe em não conseguir interferir e mudar a criança encontra o medo do fracasso do filho em dimensões da vida consideradas importantes, como a escola, e suas consequências futuras, temor que se concretiza em seu extremo no pavor diante da possibilidade de morte física do filho. Essa dinâmica cresce a um nível de tensão em que a busca por explicações e por uma terapêutica na psicologia e na medicina se torna a alternativa capaz de reorganizar as relações.
É importante salientar que a adesão aos discursos e práticas de médicos e psicólogos não necessariamente significa que as famílias classificam a experiência dos filhos como um transtorno psiquiátrico. Esse não é o caso de Penélope, que faz uma leitura em termos de experiência identitária a partir das suas próprias pesquisas como psicóloga. Outras interlocutoras elaboraram explicações alternativas, sobretudo religiosas, para dar conta do que viviam com os filhos, ainda que não descartassem explicações médicas e psicológicas.
Além disso, perspectivas etiológicas e terapêuticas distintas coexistem no “campo social da saúde trans” (Vieira do Rego, 2020VIEIRA DO REGO, F. C. A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia das políticas da vida no campo social da saúde trans. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.), algumas “reguladoras” e outras “facilitadoras” (Meadow, 2018MEADOW, T. Trans kids: being gendered in the twenty-first century. Oakland: University of California Press, 2018.). Diversos médicos que encontrei durante a pesquisa de campo já adotavam um distanciamento de noções patológicas, se não na prática de tutela médica de controle do acesso aos recursos hormonais e cirúrgicos, ao menos ao trazer explicações para o fenômeno. Muitos já naturalizavam a existência de pessoas trans e localizavam na “disforia” vivida nessas experiências o objeto de intervenção.
O que se mostra relevante aqui é o modo como, mesmo diante de uma adesão parcial às explicações médico-psi, as relações com médicos e psicólogos parecem se traduzir na dinâmica das famílias com os filhos de modo que tende a facilitar que a criança se expresse no gênero de identificação, amenizando os conflitos na relação que se davam em torno dessa questão. No âmbito das relações no núcleo familiar, a adesão ao modelo médico de transição de gênero possibilita que a autoridade entre mãe e filho seja renegociada. A mãe passa a ter um controle relativo da situação, tornando-se uma aliada que colabora com o processo e que media as relações da criança em diferentes esferas. Os vínculos entre eles tendem a se adensar em relações de forte confiança. Penélope me resumiu bem a situação ao desabafar, com uma dose de humor, que Lucas às vezes parece achar que ela é uma super-heroína capaz de resolver qualquer dos seus problemas.
Entretanto, como vimos na seção anterior, as práticas de médicos e psicólogos implicam o engajamento das crianças e suas famílias em relações complexas de tutela e controle que buscam estabelecer regulações e limites para determinadas experiências de gênero na infância. Na sequência, continuando a seguir a história de Lucas e Penélope, discutirei como a necessidade de atendimento endocrinológico para Lucas se torna uma questão dramática diante de médicos que se recusam a atendê-lo e de alternativas terapêuticas que não respondem aos seus conflitos, movendo Penélope a optar por um modelo de tratamento experimental para Lucas.
“Eu queria que o meu filho continuasse vivo”
Lucas estava em seu lugar preferido da escola, a quadra de esportes, jogando futebol com um grupo de meninos quando Penélope e eu chegamos para buscá-lo. Era o final de uma manhã de segunda-feira e estávamos a caminho de mais uma consulta médica em um grande hospital da capital pernambucana, algo que já havia se tornado rotina para a família. À porta do colégio particular onde Lucas estudava, uma funcionária monitorava a entrada e saída de crianças com seus adultos responsáveis. Ela chamou o nome de Lucas, sobrepondo-se ao som de vozes e risadas dos alunos que estavam dispersos pelo pátio. Ele se aproximou correndo. Gingou o corpo esguio até a mesa onde estava a sua mochila, jogou-a sobre os ombros e correu em direção a nós. Entramos no carro, um modelo esportivo de um tom vermelho vistoso e alegre, mas antes de seguir nosso percurso paramos para comprar um sorvete de iogurte muito popular na região, refrescando o final da nossa manhã. No rádio do carro, uma playlist musical mesclava cantoras como Janis Joplin a artistas da cena alternativa pernambucana.
Aquela era a segunda vez que eu me juntava à família para comparecer a uma consulta com o médico que acompanhava Lucas há quase um ano em sua transição de gênero: o endocrinologista “Doutor” Batista, como se referia11 11 Vou usar o termo “doutor” para os médicos envolvidos no tratamento de Lucas, conforme a interlocutora fazia, pois ele denota aspectos da relação da família com os profissionais mencionados. Na linguagem popular, chamar um médico de “doutor” não é uma referência à titulação acadêmica de doutorado. O uso do termo pode ser melhor compreendido como um modo de reconhecer autoridade e expressar respeito, demarcando também a relação hierárquica entre médicos e pacientes. Penélope. Na época em que decidira procurar por alternativas de intervenção médica para a transição de Lucas, o filho, que já vivia há cerca de três anos como menino, estava passando por novos conflitos com os primeiros sinais de início da puberdade em seu corpo. Ele se analisava no espelho com desconfiança. “Mãe, menino tem peito?”, perguntava, consternando-se quando Penélope respondia que “Não, filho…”. Desconfortável com o próprio corpo, Lucas já não andava mais sem camisa pela casa ou tomava banho de piscina, voltando a demonstrar tristeza e a se isolar. Penélope observava com preocupação as mudanças de comportamento. A situação assumiu um caráter dramático quando a mãe encontrou um caderno, esquecido sobre o sofá da sala, em que Lucas divagava sobre a possibilidade de cometer suicídio. Para Penélope, aquele não fora um simples esquecimento, mas sim um pedido de ajuda.
Antes de encontrar suporte com o endocrinologista que os atendia, o caso foi rejeitado, direta ou indiretamente, por todos os médicos com experiência em transexualidade que Penélope procurou. Eles diziam não ter respaldo para aceitar pacientes menores de 18 anos, alegando que essa era a idade mínima estabelecida pelo Ministério da Saúde ao regulamentar o Processo Transexualizador. Depois de uma experiência péssima em um dos ambulatórios para travestis e transexuais do SUS que aceitou o caso de Lucas - a psicóloga da equipe parecia mais interessada em analisar Penélope do que em ouvir o que Lucas tinha a dizer - uma amiga indicou que procurassem a Doutora Nina, uma psiquiatra especialista em crianças e adolescentes. A médica aceitou atender Lucas e, após diversas sessões, atestou um diagnóstico e encaminhou a família para seu colega endocrinologista, o Doutor Batista, que estava conduzindo um projeto de pesquisa com crianças “transgênero”.
Conversávamos na cozinha do apartamento de Penélope quando ela me contou sobre o início do tratamento do filho com o endocrinologista. Ecoava pela sala o som das vozes e risadas de Lucas e um grupo de amigos cujos chinelos coloridos se amontoavam na porta da casa enquanto faziam um trabalho de escola. Penélope me explicou que o projeto buscava desenvolver um protocolo de tratamento hormonal alternativo aos então empregados nas modalidades de “bloqueio de puberdade” vigentes. O médico calculava que os resultados seriam mais eficientes e ofereceriam riscos colaterais menores, mas se tratava de um processo experimental. Lucas teria que ser monitorado com exames laboratoriais e de imagem periódicos, além de uma rotina de avaliações clínicas em consultório, onde o Doutor Batista analisaria o progresso do tratamento e compartilharia suas análises com a equipe de médicos residentes. Penélope decidiu pelo tratamento, mas lembrava sempre a Lucas que ele poderia mudar de ideia se quisesse e quando quisesse.
A decisão de autorizar a participação de Lucas no projeto não era, de modo algum, simples, pois envolvia aceitar os riscos de um tratamento experimental para a saúde do filho no presente e no futuro, mesmo que todos os cuidados cabíveis estivessem sendo tomados por ela e pelo médico. Envolvia também conviver com a responsabilidade de assumir essa decisão pelo resto da sua vida, tanto em termos jurídico-legais quanto na própria relação com o filho e com o restante da família. Em outra ocasião, perguntei-lhe sobre a razão de acreditar que aquele tratamento era a melhor opção para Lucas. “Eu queria que o meu filho continuasse vivo e o prognóstico da espera não era bom”, ela me respondeu, explicando-me como, diante das circunstâncias, a alternativa de intervenção médica proposta por Doutor Batista era a única escolha possível que poderia solucionar o problema do filho.
Eu me lembrava dessas conversas enquanto aguardava na movimentada recepção do hospital, com Penélope e Lucas, que o médico nos chamasse para a consulta que estava agendada para aquela tarde. Lucas estava insistindo com Penélope que ela emprestasse seu celular para que ele usasse a internet; ela negava, argumentando que ele ia acabar com a bateria do aparelho. Lucas me parecia despreocupado, mas Penélope estava séria e atenta observando a movimentação à porta que dava acesso ao setor de endocrinologia. Não precisamos esperar muito tempo. Um médico jovem e simpático acenou para Penélope, sorrindo, e nos conduziu para uma das poucas salas vazias. Eu os acompanhei, apresentado por Penélope como um amigo da família.
O médico era Thiaguinho, como Penélope afetuosamente o chamava. Thiaguinho, um jovem branco de cabelos escuros cuidadosamente alinhados, conduzia toda a parte prática de interação com os pacientes: agendava consultas, intermediava a relação com a recepção do hospital, prescrevia receitas de medicamentos e pedidos de exames; também fazia exames clínicos e cálculos a partir dos resultados dos exames laboratoriais de Lucas, dados que o Doutor Batista analisava para definir os rumos do tratamento. A atmosfera com Thiaguinho era leve e cordial, embora a hierarquia entre médico e paciente estivesse nítida na posição de quem ocupava a mesa que o separava de Penélope, sentada na cadeira do paciente, e Lucas, que permanecia de pé encostado na parede. Thiaguinho mantinha uma conversa sobre assuntos corriqueiros em paralelo às perguntas específicas sobre o tratamento, mas seus olhos e sua atenção pouco se desviavam dos exames de Lucas e da tela do computador.
O ambiente transformou-se rapidamente quando o Doutor Batista chegou. Era um homem mais velho, branco, de cabelos grisalhos, altivo, que trajava camisa e gravata sob o jaleco branco. Acompanhava-o um “exército” de outros 15 médicos residentes. Munidos de blocos de anotações e canetas, espalharam-se por todos os cantos possíveis na sala: sentaram-se na maca de exames, encostaram-se nas paredes ou amontoaram-se atrás de Thiaguinho, que se endireitou na cadeira, parecendo tenso. O Doutor Batista analisava habilmente os exames em uma linguagem bastante técnica, dirigindo-se diretamente aos residentes. “Esses são dados inéditos na literatura”, concluiu, por fim. Voltou-se para Thiaguinho: “Já podemos pensar em publicar um report!”
Penélope acompanhava tudo o que os médicos diziam com muito cuidado. Seu corpo estava inclinado para a frente denotando extrema atenção, mas o Doutor Batista só a olhou nos olhos quando ela lhe dirigiu uma pergunta, como se só então a notasse. Encostado na parede, encolhido entre o mundo de jalecos brancos que tomara a sala, Lucas olhava para os próprios pés, balançando levemente o corpo para a frente e para trás. Ele raramente interagia com os médicos a não ser obedecendo às orientações para a condução dos exames físicos e, quando o fazia, era com poucas palavras. A tarefa de entender e falar “mediquês”, como Lucas se referia à linguagem dos médicos, era responsabilidade de Penélope.
A forma como o Doutor Batista utilizava um vocabulário especializado para se dirigir aos residentes, demarcando também a sua própria posição de autoridade em relação a eles, traduzia as experiências de Lucas com seu corpo “em transição” em exames, cálculos, números, gráficos e dados, ao mesmo tempo que parecia reservar à Penélope uma posição de espectadora. Penélope, por sua vez, recusava-se a esse lugar passivo e procurava ter maior controle sobre a situação aprendendo a decifrar os jargões e o vocabulário médico ou interpelando o Doutor Batista com dúvidas e questionamentos. Porém, a preocupação em garantir a continuidade do tratamento de Lucas exigia que esses movimentos fossem cautelosos para não confrontar a autoridade médica.
A experiência de Penélope à procura de médicos para Lucas e a relação que estabeleceu com esses profissionais traz elementos que iluminam aspectos importantes das relações entre famílias e profissionais de saúde nesses casos. A tutela exercida pelos responsáveis legais das crianças encontra a tutela que a medicina exerce sobre pessoas trans, produzindo formas específicas de relações de subordinação entre médicos, famílias e crianças. Essas relações se organizam sobretudo em torno do diagnóstico, das práticas terapêuticas que se constroem como possibilidade a partir dele e das formas como o próprio diagnóstico se materializa em laudos médicos e pareceres psicológicos, estendendo o saber médico-psi e a autoridade desses profissionais para diferentes esferas no cotidiano da família.
O diagnóstico oferece um vocabulário legítimo para descrever e explicar os conflitos de gênero das crianças, mas não somente. O diagnóstico também justifica que as crianças ajam em contrariedade às normas de gênero e que os pais autorizem esses comportamentos. Excedendo o âmbito da clínica, laudos médicos e pareceres psicológicos materializam a autoridade médica e se tornam meios pelos quais a legitimidade social do saber médico pode ser mobilizada de forma prática em diferentes situações que dizem respeito à tutela da criança, como ao acessar serviços de saúde ou para negociar com a escola o direito de o filho ser tratado por um nome e por pronomes de acordo com o gênero com que se identifica.12 12 No Brasil existem portarias e resoluções na esfera federal e algumas leis estaduais que autorizam o uso do chamado “nome social” para pessoas travestis e transexuais em instituições públicas, como postos de saúde, hospitais e escolas. Trata-se de um recurso que pode ser utilizado por pessoas trans que não retificaram o prenome na certidão de nascimento. Porém, esse direito nem sempre é acessado facilmente, sobretudo por crianças e adolescentes.
Esses documentos legitimam as escolhas da família de permitir roupas, brinquedos e comportamentos públicos de afirmação do gênero de identificação da criança diante de situações de desconfiança, questionamento e enfrentamentos diretos. São, sobretudo, instrumentos que trazem segurança jurídica. Por esse motivo, algumas organizações de famílias de crianças “transgênero” nos Estados Unidos orientam que os pais carreguem sempre um dossiê de documentos para resguardá-los caso precisem provar a identidade da criança ou sejam abordados pela polícia (Meadow, 2018MEADOW, T. Trans kids: being gendered in the twenty-first century. Oakland: University of California Press, 2018.). A pasta deve conter o laudo psiquiátrico e o parecer psicológico, declarações da família e um relatório policial informando que os pais nunca praticaram abuso infantil (Solomon, 2013SOLOMON, A. Longe da árvore: pais, filhos e a busca da identidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.).
“O laudo [médico] abre portas”, disse-me Penélope, que costumava carregá-lo na bolsa por precaução. O laudo médico foi também um dos documentos mais importantes para fundamentar a decisão favorável do juiz que julgou o processo de mudança de nome e gênero de Lucas no registro civil. Quando Penélope me escreveu para contar a notícia, estava exultante de alegria e alívio após dois longos anos esperando que o processo fosse a julgamento. Essas emoções, comumente experimentadas por pessoas trans quando retificam a certidão de nascimento (Alexandre, 2015ALEXANDRE, J. R. Emoções, documentos e subjetivação na construção da transexualidade em João Pessoa/PB. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015.), mostram como a mãe, ao apoiar a transição de gênero do filho, assume como sua responsável legal todas as barreiras no plano jurídico e nas interações sociais envolvendo documentos de registro civil.
Se por um lado a autoridade médica pode somar-se à autoridade familiar e “abrir portas” na vida social, vimos que também define limites para as possibilidades de a família atuar na resolução do conflito da criança. A busca desesperada de Penélope por médicos que aceitassem o caso de Lucas encontrou portas fechadas e negativas diversas de profissionais que ora não aceitavam sequer recebê-los, ora tornavam Penélope o objeto de escrutínio e análise. Esses médicos apoiavam-se na legislação vigente para sustentar sua posição, uma vez que estavam submetidos também ao controle corporativo do CFM e da portaria que institui o Processo Transexualizador no SUS.
O caso do médico Roberto Farina é paradigmático na história da transexualidade do Brasil para entender o que está em jogo. O importante e respeitado cirurgião plástico foi preso, teve o seu direito de exercer a medicina cassado, a carreira e o prestígio social destruídos após ser julgado por uma denúncia de que realizava cirurgias clandestinas em pacientes transexuais na década de 1970. Entre os seus pacientes estava João W. Nery, que décadas depois se tornou um importante ativista pelos direitos LGBT. João precisou confeccionar uma nova identidade de forma irregular, abandonar uma carreira de professor universitário e viver de bicos, em segredo, por mais de 40 anos, para não ser ele mesmo julgado por falsidade ideológica. Os casos de Roberto Farina e João W. Nery expõem as relações de poder, os conflitos no campo da medicina, a forma como saberes médicos e jurídicos se complementam no governo da vida e as consequências profundas para médicos e pacientes que desafiam instâncias de regulação corporativas com a influência e a autoridade do CFM.
A história de Farina deve ser pensada em paralelo com o caso de Penélope e Lucas para explicitar o contexto delicado em termos sociais e jurídicos em que a mãe busca uma forma alternativa de tratamento para seu filho. Os recursos de capital social e econômico de Penélope possibilitaram que encontrasse em sua rede de relações uma brecha a partir das próprias disputas que constituem o “campo social da saúde trans” (Vieira do Rego, 2020VIEIRA DO REGO, F. C. A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia das políticas da vida no campo social da saúde trans. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.). Porém, a opção da mãe por um tratamento experimental para o filho implica adentrar uma dinâmica de relações de poder onde se articulam as hierarquias entre os próprios médicos, entre médicos e pacientes e entre famílias e crianças.
As decisões de Penélope não podem ser entendidas de forma simplista. Há uma longa trajetória de conflitos na relação com o filho e de dilemas morais que movem transformações pessoais para Penélope na forma como passa a entender a profundidade e a legitimidade da experiência de Lucas. Nesse processo, a força de mobilização de valores como família e maternidade em suas articulações possíveis nesse contexto social constrói uma ética da vida em que a necessidade de fazer com que Lucas fique vivo para ter uma chance de futuro leva-os por caminhos alternativos, frágeis e incertos. Porém, caminhos em que a vida para Lucas é possível e vivível.
Concluindo
Iniciei esta análise observando como o debate sobre “crianças trans” mobiliza disputas entre agentes em posições sociais distintas e com interesses diversos na sociedade. Crianças são centrais para práticas sociais e culturais que articulam as esferas da intimidade doméstica à vida pública em torno de questões fundamentais na vida social: concepções de pessoa, moralidades, sexualidade, amor, poder e autoridade, entre muitas outras (Scheper-Hughes; Sargent, 1998SCHEPER-HUGHES, N.; SARGENT, C. Introduction. In: SCHEPER-HUGHES, N.; SARGENT, C. (ed.). Small wars: the cultural politics of childhood. Berkeley: University of California Press, 1998. p. 1-34.). Assim, em torno do significado da vida de crianças e do valor de uma determinada noção de infância travam-se também batalhas políticas e ideológicas para sustentar ou desafiar os limites das normas de gênero.
Formas de controle e tutela que se constituíram historicamente nas esferas da família e de outras instituições do Estado estão presentes nas experiências de infância e, ainda que essas não sejam as únicas relações na vida social de crianças com identificações de gênero que desafiam os modelos tradicionais, compõem estruturas sociais que configuram práticas importantes sobre elas e para elas. As relações de tutela da vida de crianças articulam-se às que regulam os processos de transição de gênero, enrijecendo as dimensões de controle sobre todos os envolvidos.
Ao longo deste artigo, procurei descrever alguns aspectos das relações entre médicos, famílias e crianças que “transicionam” o gênero de nascimento a partir da história de Penélope e Lucas, com o objetivo de apontar para as urgências, os dilemas morais e os valores que estão em jogo nas experiências de famílias que tomam decisões tão complexas como as de Penélope. Descrevi como as relações entre famílias, médicos e psicólogos são fortemente marcadas por desigualdades de poder, mas acredito ter demonstrado que é extremamente equivocado entender essas relações apenas enquanto formas coercitivas de “normalização”, supondo que haja necessariamente uma adesão passiva das famílias ao discurso médico ou que as crianças não tenham nenhuma ação no curso desses eventos.
Médicos e famílias tecem um mundo de diagnósticos, laudos, receitas médicas, exames e conversas em “mediquês” que tanto controla quanto torna possível que crianças como Lucas possam “transicionar” do gênero designado no nascimento. Ainda que as crianças estejam submetidas a decisões das quais não tomam parte diretamente, é importante não ignorar o fato de que elas se expressam de todas as formas possíveis, com seus corpos, com seu comportamento e com emoções como alegria, raiva ou tristeza. Mobilizam as respostas de seus pais dentro da sua margem de ação, a partir das possibilidades dadas pela cultura e pelas relações sociais no curso de processos históricos que atualizam e transformam valores de gênero, família e infância.
Todas essas mudanças profundas vividas por essas famílias podem ter efeitos inimaginados e imprevistos sobre identidades, visões de mundo e trajetórias de vida. Penélope, por exemplo, refletiu em nossas conversas sobre as importantes transformações trazidas pela transição de gênero de Lucas ao seu entendimento sobre gênero e sexualidade. Passou a repensar a relação com o seu próprio corpo, seus desejos e inclusive suas possibilidades de relacionamentos afetivos e sexuais. Também se envolveu profissionalmente com o campo das identidades trans, engajou-se em grupos de ajuda mútua para famílias de filhos trans e começou a participar de movimentos sociais de familiares de pessoas LGBT.
Esses agenciamentos não excluem aqueles relacionados a agentes, instituições e mecanismos de tutela médica e jurídica ou os processos lentos e dolorosos de lidar com emoções de luto, perda e saudade relacionadas à transição de gênero; são, pelo contrário, constituídos e impulsionados por eles. Adriana Vianna e Juliana Farias (2011)VIANNA, A.; FARIAS, J. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37, p. 79-116, 2011. demonstraram entrelaçamentos similares ao refletir sobre os usos de valores de gênero, família e maternidade por mães que reivindicam justiça para filhos mortos pela polícia. Processos semelhantes foram observados em pesquisas sobre famílias de filhos LGBT que se organizam em associações e grupos de ajuda mútua (Oliveira, 2013OLIVEIRA, L. de. Os sentidos da aceitação: família e orientação sexual no Brasil contemporâneo. 2013. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.) ou como movimento político de luta por direitos (Costa Novo, 2017COSTA NOVO, A. L. “Mães pela Diversidade”: as políticas da parentalidade em um grupo ativista de mães e pais de pessoas LGBT. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO, 11.; WOMEN’S WORLDS CONGRESS, 13., 2017, Florianópolis. Anais eletrônicos […]. Florianópolis: UFSC, 2017.; Novais, 2018NOVAIS, K. C. Gestos de amor, gestações de lutas: uma etnografia desenhada sobre o movimento mães pela diversidade. 2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2018.). Há, portanto, uma dimensão transformadora que esse contexto de afetos delicados e potentes movimenta: a qualidade micropolítica de valores, emoções e moralidades de família de atuar tanto nas relações íntimas e nas subjetividades quanto nos agenciamentos diversos, incluindo aqueles para a organização social e o ativismo político.
Referências
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1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.
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2
Entendo a transição de gênero como um “deslocamento na ordem de gênero” no sentido proposto por Raewyn Connell (2016CONNELL, R. Gênero em termos reais. São Paulo: nVersos, 2016., p. 238): trata-se de um processo de mudanças de posição na estrutura de relações de gênero que é corporificado, ou seja, que se inscreve nos corpos tanto quanto é produzido por eles à medida que esses corpos mudam.
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3
Uso o termo “pessoas trans” para me referir às diferentes experiências identitárias (trans, travestis, transexuais, transgêneros, não binárias) que têm em comum se constituírem pelo que Berenice Bento (2014)BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Natal: EDUFRN, 2014. define como um conflito identitário com as normas de gênero.
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4
Clarice Cohn (2005)COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. realizou uma revisão das principais escolas, autores e obras, passando pela Escola de Cultura e Personalidade, pelo estrutural-funcionalismo e pelas teorias sobre a agência das crianças na cultura. Heather Montgomery (2009)MONTGOMERY, H. Children within anthropology: lessons from the past. Childhood in the Past, Barnsley, v. 2, n. 1, p. 3-14, 2009. também publicou uma ampla revisão histórica e teórica. Para um estado da arte do campo da antropologia da criança no Brasil, ver Cohn (2013)COHN, C. Concepções de infância e infâncias. Um estado da arte da antropologia da criança no Brasil. Civitas, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 221-244, maio/ago. 2013..
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5
No original: “This shift is not made without some unhappiness and rebellion. The little girls kick off their grass skirts and rebel against the domestic tasks in which their more frequent presence at home involves them.”
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6
No original: “But this close identification of the girl with the women is neither voluntary nor enthusiastic. […] If the women huddle closely together, it is as prisoners, under a common yoke of precaution and taboo.”
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7
A Portaria n. 2.803/2013 (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualiza-dor no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 150, n. 226, p. 25-30, 21 nov. 2013.) do Ministério da Saúde redefiniu e ampliou o Processo Transexualizador, substituindo a Portaria n. 1.707/2008 (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.707, de 18 de agosto de 2008. Institui, no âmbito do Sistema Único deSaúde (SUS), o Processo Transexualizador,a ser implantado nas unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 145, n. 159, p. 43, 19 ago. 2008.), que primeiro instituiu esse atendimento no SUS.
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8
Todos os interlocutores e agentes do mundo social etnografado receberam pseudônimos neste texto para preservar o seu anonimato.
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9
Tradução livre para os termos persisters, desisters e regretters, utilizados por Meadow (2018)MEADOW, T. Trans kids: being gendered in the twenty-first century. Oakland: University of California Press, 2018..
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A narrativa a seguir resulta de diversas conversas informais e entrevistas que realizei com Penélope. As referências a falas e atitudes de Lucas em seu processo de identificação de gênero são elaborações a partir de eventos e situações que a interlocutora me descreveu e devem ser lidas sob essa perspectiva. Até o momento, não conheço a história do ponto de vista de Lucas.
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Vou usar o termo “doutor” para os médicos envolvidos no tratamento de Lucas, conforme a interlocutora fazia, pois ele denota aspectos da relação da família com os profissionais mencionados. Na linguagem popular, chamar um médico de “doutor” não é uma referência à titulação acadêmica de doutorado. O uso do termo pode ser melhor compreendido como um modo de reconhecer autoridade e expressar respeito, demarcando também a relação hierárquica entre médicos e pacientes.
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No Brasil existem portarias e resoluções na esfera federal e algumas leis estaduais que autorizam o uso do chamado “nome social” para pessoas travestis e transexuais em instituições públicas, como postos de saúde, hospitais e escolas. Trata-se de um recurso que pode ser utilizado por pessoas trans que não retificaram o prenome na certidão de nascimento. Porém, esse direito nem sempre é acessado facilmente, sobretudo por crianças e adolescentes.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Ago 2021 -
Data do Fascículo
May-Aug 2021
Histórico
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Recebido
29 Jan 2020 -
Aceito
04 Mar 2021