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Pode uma travesti ser mestra? F(r)icções de gênero na tradição do guerreiro em Juazeiro do Norte (CE)

Can a travesti be a master? Gender f(r)ictions in the guerreiro tradition in Juazeiro do Norte (CE)

Resumo

Entre arte e antropologia, discuto performatividade e performance a partir da experiência da Mestra Mellysa Giselly pela tradição do Guerreiro Beija-Flor na cidade de Juazeiro do Norte, região do Cariri, no interior do Ceará. Assim, trago a passagem em que a brincante participa pela primeira vez do cortejo oficial do Ciclo de Reis de 2021 como momento-chave para relacionar vida e obra. Desse modo, essa proposta busca o movimento caleidoscópico entre corpo e brincadeira no estilhaço dessas imagens do popular que irrompem por f(r)icções de gênero. Ao apostar em uma microutopia queer, vejo como o afeto pode ser central para a discussão da travestilidade na cultura, levando em conta o fabular da transgeneridade e sua capacidade de esgarçar a tradição e sua viga cisgênera.

Palavras-chave:
cultura popular; guerreiro; performatividades de gênero; dissidências sexuais

Abstract

Between art and anthropology, I discuss performativity and performance based on the experience of Mestra Mellysa Giselly in the tradition of the Beija-Flor in the city of Juazeiro do Norte, Cariri region, in Ceará. Thus, I bring the passage in which the brincante participates for the first time in the official procession of the 2021 Kings Cycle as a key moment to relate between life and work. In this way, this proposal seeks the kaleidoscopic movement between body and brincadeira in the splintering of these images of the popular that erupt through f(r)ictions of gender. By betting on a queer micro-utopia, I see how affect can be central to the discussion of travestilidade in culture, taking into account the fabulation of transgenerity and its ability to fray tradition and its cisgendered beam.

Keywords:
popular culture; guerreiro; gender performativities; sexual dissidences

De Tica, uma constelação pelo Ceará1 1 Apoio da Faperj - Programa Nota 10 e Capes - PrInt. ,2 2 No decorrer deste artigo, apresento um conjunto de fotografias, entrevistas e conversações realizadas com as pessoas colaboradoras nesse contexto etnografado entre 2016 a 2021 em Juazeiro do Norte (CE).

Juazeiro do Norte, região do Cariri, interior do Ceará. Francisca da Silva, 58 anos, mais conhecida como Tica, brincante do Reisado Santa Helena do Mestre Dedé, estava na primeira fila do cordão durante o cortejo do Ciclo de Reis de 2021, realizado no dia 21 de dezembro. No figural de embaixadora, ela descia a Rua São Pedro, principal trajeto do festejo oficial do munícipio, que havia iniciado às 16h no Santuário São Francisco das Chagas, e seguia em direção ao Memorial Padre Cícero, cruzando os bairros Franciscanos e Centro da cidade. Sem encontrar Tica há quase três anos, me afeto por sua presença na rua, pois a última vez que a tinha visto performar foi no Ciclo de Reis de 2018, realizado no dia 6 de janeiro, Dia de Reis, perfazendo aquele mesmo trajeto vestida de branco, com uma coroa de pérolas e um anel verde que ela havia pedido para eu escolher momentos antes.

Após a performance em cortejo, onde eu acompanhava naquele momento a Mestra Mellysa Giselly com o grupo Guerreiro Beija-Flor do bairro João Cabral, procurei Tica na dispersão da folia brincante na tentativa de que ela me reconhecesse, tendo em vista que ambos estávamos com máscaras no rosto, seguindo os protocolos de segurança indicados pela Prefeitura Municipal para o enfrentamento da Covid-19, haja vista que aquele cortejo foi o primeiro depois do isolamento social da pandemia. Às 17h48 ela estava próxima a um dos bancos da Praça do Cinquentenário ao lado do Mestre Dedé, que de longe me reconheceu. Nesse breve reencontro, indaguei se ela lembrava de quando saiu três nos antes no figural de rainha. A brincante disse que sim, mas balançou a cabeça de modo negativo, o que me fez lembrar de quando deixou o figural no começo do ano de 2019.3 3 Para acompanhar a relação entre performance, ritual e corpo na vivência de Tica, ver Oliveira Junior (2019) e Oliveira Junior e Fortes (2020).

Em pouco tempo, o Reisado Santa Helena se dispersou na multidão. Voltei para o aglomerado que reunia o grupo da Mestra Mellysa Giselly, e a brincante Manul Marinho, que ocupava o figural de embaixadora no Guerreiro Beija-Flor, ao ver Tica indo embora apontou para ela e me perguntou se eu a conhecia. “A primeira trans a ser rainha no reisado! Ela é uma senhorinha, se não fosse por ela a gente não tava aqui, viu?”, exclamou Manul. Essa fala da brincante me relembrou um encontro muito importante que tive durante a escrita da minha pesquisa de dissertação, quando fui chamado de “teimoso” e “moderno” pelo teatrólogo e professor Oswald Barroso, uma das principais referências da minha pesquisa em andamento sobre os reisados no Ceará. Era o dia 7 de agosto de 2019 quando estávamos sentados em um dos bancos do espaço de lazer da unidade Sesc de Juazeiro do Norte. Apesar de acreditar que confluímos, penso na nossa divergência como um ponto de partida interessante.

Ao citar o meu encontro com Tica, tida como uma das brincantes trans com idade mais avançada nos grupos de reisado em Juazeiro do Norte, Barroso contrapõe a sopa de letrinhas da sigla que eu mencionei ao fato de que para ele não faz diferença a brincante encenar a rainha, afinal o figural poderia ser encenado por qualquer pessoa que quisesse ser uma rainha, por assim dizer. Insisto um pouco mais e cito vários exemplos sem aprofundá-los dos meus encontros que sucediam até aquele momento, destacando até mesmo a relação de mestras e mestres da cidade que partilhavam da cena com pessoas brincantes trans e travestis, a exemplo de Mestre Dedé, Mestra Lúcia e Mestre Xexéu, mas Barroso responde com um quê irônico: “Mas isso faz uma diferença danada, né?”

De fato, entendo que o debate de gênero não faz parte do interesse do autor e sua abordagem foca mais na dimensão teatral e ritual, mas fiquei inquieto por ele afirmar que sempre houve essa participação nos reisados, a exemplo de quando ele traz o figural das catirinas como personagens que provocavam tensões de gênero. No entanto, nesse mesmo exemplo vejo que ele parece naturalizar as categorias de homem e mulher, uma vez que os figurais de catirinas são interpretados por homens fantasiados que imitam um suposto ideal de feminilidade, e as vivências dissidentes de gênero que ele diz sempre ter existido não aparecem no seu trabalho. O que acaba produzindo um apagamento nessa justificativa de que “sempre houve” a presença de brincantes LGBTQIA+ e uma justaposição da cisgeneridade como uma normativa que organiza essas corporalidades e as identidades de gênero no enredo da performance. Ele menciona apenas a palavra “travesti”, que aparece no segundo livro da trilogia sobre o teatro brincante (Barroso, 2013BARROSO, O. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza: Armazém Cultural, 2013.), quando descreve uma performance do Mestre Aldenir, 89 anos, que há quase 70 atua no Reisado Reis de Congo da cidade de Crato, no momento em que o brincante incorpora uma sereia.

No sentido de trabalhar com essas elipses, desenvolvo atualmente uma cartografia pelos reisados no Ceará com a finalidade de estudar as performances a partir da experiência estética de brincantes LGBTQIA+4 4 LGBTQIA+ é a sigla de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queer, intersexuais e assexuais. Embora trate de exemplos-eventos da vivência de brincantes trans no contexto etnografado, utilizo a sigla brevemente apenas como forma de apresentar na introdução o olhar mais geral da pesquisa. nos grupos, no sentido de acordar outras formas de ver e dizer a tradição. Há sete anos, desde 2016, tenho acompanhado a produção performativa do teatro brincante de Reis através das relações de gênero e sexualidade. Apesar de ter entrado nos reisados pela afetação com um figural e diante de um só grupo, quando escrevi sobre a vivência de Tica na pesquisa entre 2016 e 2018, no momento em que ela ocupou pela primeira vez o figural de rainha no ano de 2015 no Reisado Santa Helena, segui sob indicação da brincante para o bairro João Cabral, que apareceu na pesquisa de dissertação, entre 2018 e 2020, como a localidade que mais possui essa participação em Juazeiro do Norte. Atualmente, desde 2020 com a pesquisa de tese5 5 Segui com o objetivo de fazer de Juazeiro do Norte uma cidade-piloto para percorrer os 14 municípios cearenses, mapeados pela Coordenadoria de Patrimônio Cultural e Memória (Copam) da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult), retentoras do registro institucional de mestras e mestres da tradição do reisado reconhecidos na Lei 13.842/2006 (Ceará, 2006) dos Tesouros Vivos da Cultura, sendo esse dado institucional apenas uma das entradas no campo, pois reconheço a própria limitação dele em deixar de fora diversos grupos que inclusive seguem me guiando para fora desse roteiro previsto. tenho percorrido o Ceará do eixo sul para o eixo norte, viajando pelas cidades6 6 Até agora 19 cidades foram percorridas entre Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha, Caririaçu Milagres, Potengi, Fortaleza, Ocara, Quixadá, Quixeramobim, Russas, Choró, Quixerê, Massapê, Canindê, Sobral, Granja e Fortaleza. que possuem o registro da tradição e outras localidades do estado, tomando como fio dessa cartografia a presença de brincantes LGBTQIA+ e seus agenciamentos criativos e locais culturais específicos.

Por isso, pensar no que me levou até o reisado é pensar como Tica me trouxe pelo reisado. Como uma estrela ao sul do Ceará, Tica alumiou meus caminhos sendo o corte que desatou toda uma constelação brincante. Nessa busca, faço do pensamento constelar de Benjamin (1984)BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. de que as ideias são como constelações um guia para buscar conexões com partes dispersas nesse tracejar das dissidências de gênero pelas manifestações do estado. Nessas andanças pelos grupos, verso pela proposta metodológica da cartografia sentimental em Rolnik (1989)ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Liberdade, 1989., sendo o meu interesse perceber os mundos performados e seus processos de subjetivação. Ao tomar a performance como uma forma de fazer-crer e compreender outras realidades na experiência do comum, penso com Schechner (1988)SCHECHNER, R. Performance theory. New York: Routledge, 1988. sobre a brincadeira ser um jogo que cria o “como se” na incorporação, uma vez que a articulação do passado e do presente nos mostra como a experiência brincante se realiza na expressão da performance (Turner, 1982TURNER, V. From ritual to theatre: the human seriousness of play. New York: PAJ, 1982.).

Entre arte, performance e antropologia, procuro no olhar benjaminiano de Dawsey (2005)DAWSEY, J. C. O teatro dos “bóias-frias”: repensando a antropologia da performance. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 15-34, dez. 2005. atentar para a irrupção de imagens de tensão na construção dessas performances de tradição, levando em conta as corporalidades e os seus lampejos que enredam o que a constitui. Embora tenha trabalhado muito com o artivismo (Raposo, 2015RAPOSO, P. “Artivismo”: articulando dissidências, criando insurgências. Cadernos de Arte e Antropologia, Uberlândia, v. 4, n. 2, p. 3-12, out. 2015.) em sua forma brincante, recentemente tenho pensado até que ponto essa noção me ajuda a compreender essas dissidências. Assim, penso como o reisado sofreu deslizamentos de sentido, repercutindo em outros modos de fazê-lo, ainda que os gestos e as imagens inscritas nos corpos dos participantes ao longo do tempo sejam os mesmos. Nessa direção, busco repensar com Albuquerque Junior (2013a)ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. Feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013a. sobre os termos folclore, cultura popular e cultura nordestina, uma vez que esses conceitos operam como tipos de “balaios” por conseguirem produzir significação para uma infinidade de práticas ao longo de distintas temporalidades.

Nessa deriva de situar a territorialização desse contexto, não busco pensar a região do Cariri e a cidade de Juazeiro do Norte como sinônimo da ideia de Nordeste, pois tenho trabalhado no entorno de agentes específicos em suas respectivas espacialidades. Por isso, vejo o Cariri como espaço de produção de imagens e expressões na instiga de Marques (2015)MARQUES, R. Imagens do popular no Cariri: algumas notas à luz das obras de Geraldo Sarno e J. Figueiredo Filho. Politica & Trabalho, João Pessoa, v. 1, n. 42, jan./jun. 2015. de acompanhar o que vaza nesse acordar de novas visibilidades, sobretudo na direção de provocar outras dizibilidades sobre Juazeiro. Nessa relacionalidade, encontro em Sansi (2015)SANSI, R. Art, anthropology and the gift. London: Bloomsbury, 2015. uma maneira de pensar essas performatividades pela força criativa da brincadeira, afinal, não me interessa tematizar essa territorialidade de modo universal como um “Cariri nação das utopias” (Cariry, 2001CARIRY, R. Cariri, a nação das utopias. Diário do Nordeste, Fortaleza, p. 3-4, 5 mar. 2001.) ou pensar essa manifestação por suas grandes narrativas que traçam a rota do reisado como “um grupo de brincantes, sem começo ou fim, na busca interminável de utopia” (Barroso, 2013BARROSO, O. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza: Armazém Cultural, 2013., p. 12). Mais próximo de uma “microutopia”, busco esse olhar para o menor que parece estar entre afetos e sensações como um espaço de criação de outros modos de vida pelo artifício à sombra de um olhar queer (Lopes, 2016LOPES, D. Afetos. Estudos queer e artifício na América Latina. E-Compós, Brasília, v. 19, n. 2, p. 1-16, 2016.), levando em conta os agentes e suas incorporações da tradição.

Neste artigo, trabalho mais no horizonte da performatividade de gênero do que da própria performance de gênero, principalmente, para tentar repensar essa noção central de “teatro como encantamento”. Ao levar em conta o artifício como categoria estética para articular o encantamento desse “corpo brincante” (Oliveira Junior, 2022OLIVEIRA JUNIOR, R. J. Corpo brincante: a presença travesti nas performances dos quilombos de Reisado. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 12, n. 3, e118634, jul./set. 2022.), não busco tratar da “cultura popular” de modo reiterado, como se existisse de anterior à cena e/ou aos artifícios ou precedente até mesmo dos agentes em sua produção, pelo contrário, creio que falar sobre essas grafias do queer em uma perspectiva “transviada” (Bento, 2017BENTO, B. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: Edufba, 2017.) talvez possa incitar questões sobre arte popular, tradição e autenticidade pelas próprias corporalidades que constituem essas leituras. Nessa visão, caberia pensar o corpo negro e suas poéticas em torno do que Sodré (2017)SODRÉ, M. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes, 2017. aponta sobre o sensível como “forma intensiva de existência”, notadamente, ao pensar os constitutivos do gênero por uma “regência afetiva”, isto é, uma forma de agir sobre o mundo.

Nesse viés, busco lugares de insurgência por esses modos de criar mundos, como trazem Raposo e Grunvald (2019)RAPOSO, P.; GRUNVALD, V. Sobre modos de fazer etnografia e modos de fazer mundos. GIS, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 9-13, out. 2019., para observar o ato de se encantar como um ato entre performance e performatividade. Para grifar a diferença entre esses dois momentos, cabe mencionar Butler (2022)BUTLER, J. Desfazendo gênero. São Paulo: Unifesp, 2022. para contextualizar que a parte do “gênero” que atua não é em nenhum sentido a “verdade” do gênero, pois de acordo com ela a “atuação” é um ato “limitado”, sendo a performatividade o que excede o ator na reiteração de normas. Logo, viso refletir sobre as relações entre as pessoas brincantes e as suas obras incorporadas (Colling, 2021COLLING, L. A vontade de expor: arte, gênero e sexualidade. Salvador: Edufba, 2021.), observando o “encantamento” nesse entremear da performance e da performatividade, no sentido de acender e provocar um “encantravamento”, como propõe Dodi Leal (2021)LEAL, D. T. B. Fabulações travestis sobre o fim. Conceição/Conception, Campinas, v. 10, n. 1, e021002, maio 2021., que nos move nessa leitura da travestilidade na cultura popular.

Para debater isso, apresento uma das passagens da pesquisa em andamento onde a Mestra Mellysa Giselly, mais conhecida como Pinto, performa pela primeira vez com o Guerreiro Beija-Flor em uma edição do Ciclo de Reis, evento tido como de prestígio pelos agentes não institucionais e de legitimação da experiência brincante pelos agentes institucionais da cultura. Nesse adensamento etnográfico, levo em conta o que aproxima essas performatividades de gênero na tradição pelo “fabular da transgeneridade” (Leal, 2021LEAL, D. T. B. Fabulações travestis sobre o fim. Conceição/Conception, Campinas, v. 10, n. 1, e021002, maio 2021.). Afinal, pode uma travesti ser mestra? Essa questão nos provoca não no sentido de encaixar a brincante Mellysa Giselly nesse lugar, mas de pensar como estar em disputa com esse lugar pode nos mostrar outras dizibilidades e visibilidades. Além disso, a própria performatividade de gênero brincada pode se transformar em elementos centrais do que se entende por tradição, mostrando como a transgeneridade pode proliferar os sentidos e contestar a cisgeneridade (Vergueiro, 2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.) como matriz dessa herança corporal.

Textualização de Cariri, fragmentação de Juazeiro

Diante dessas inquietações, lanço-me nessa temporalidade pelo olhar de Barroso (1996)BARROSO, O. Teatro popular tradicional: Reis de Congo. Fortaleza: Minc: MIS, 1996. que durante suas primeiras viagens, iniciadas em 1976, notou que na região do Cariri os reisados aparecem em maior quantidade, fazendo os primeiros registros visuais em fotografia e filme super-8 e entrevistas com mestres e brincantes nas cidades atualmente localizadas na Região Metropolitana do Cariri, entre Barbalha, Juazeiro do Norte e Crato. A exemplo disso fala de encontros com diversos agentes, como Mestre Luís Vitorino do Sítio Pelo Sinal em Barbalha, Mestre Aldenir no Sítio Baixio Verde no Crato, Mestre Tico no Sítio Buriti e mestres Zuza Cordeiro, Sebastião Cosmo, Miguel Francisco e a Mestra Margarida, já na zona urbana de Juazeiro do Norte. Desses mestres, cheguei a alcançar Mestre Aldenir e a Mestra Margarida, que hoje tem 87 anos e atua no Guerreiro Santa Joana D’arc, sendo esta uma brincante que sempre me abençoou nos encontros que tivemos desde 2016.

Nesse arco temporal de 40 anos, é interessante ver como esses encontros que Barroso teve abarcam os encontros que também tive. Diante dos meus interesses e no sentido de traçar pontos de contato, busco frestas por onde abrir essa deriva queer nos reisados e vejo a presença da Mestra Margarida, mencionada por ele como uma das “raízes” da tradição em Juazeiro, e recordo de um encontro que tive com ela. Mulher, negra, migrante, romeira e celebrada como Tesouro Vivo da Cultura cearense desde 2004, Mestra Margarida é considerada essa figura lendária como matriarca por ter migrado de Alagoas para o Ceará aos 8 anos em promessa ao Padre Cícero e organizado os primeiros grupos de mulheres na região. Certa vez, em 2016, falando com essa mestra sobre a brincante Tica, Margarida lembrou por alguns minutos e me voltou com um ar de estranheza: “Ah, eu lembro! Mas dois homens juntos? Dá certo, não!”, se referindo à vivência trans de Tica, ainda menina quando brincou como aprendiz no seu grupo.

Cito esse diálogo com a Mestra Margarida não no intuito de desconsiderar o seu legado na cultura ou de realçar essa reificação do estigma e dos estereótipos em relação às transgeneridades nessas performances, embora seja controvertido esse problema na sua fala, mas busco tomar essa visão como forma de situar os limites da cisgeneridade na tradição e as possibilidades performativas do gênero para além dessa estrutura que ainda possui em seu cerco imaginário enquadramentos masculinos e cisgêneros. Assim, há uma potência na Mestra Margarida em nos mostrar tanto uma ancestralidade negra como oferecer um horizonte possível para discutir o gênero como categoria de análise nessa manifestação. Isso faz pensar na própria “cisgeneridade como normatividade para estas diversidades corporais e de identidades de gênero” (Vergueiro, 2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015., p. 42), uma vez que pode aparecer como um operador para articular a constituição de moralidades em torno de um conjunto de entendimentos do que se diz por tradição entre esses agentes locais, principalmente diante das transgeneridades e suas presenças e os modos implícitos ou explícitos de regulamentos da cultura (Noleto, 2020NOLETO, R. S. Regulamentos da cultura: diversidade sexual e de gênero nos concursos juninos de Belém. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 1, e56099, dez. 2020.).

Nesse viés histórico, Barroso (1996)BARROSO, O. Teatro popular tradicional: Reis de Congo. Fortaleza: Minc: MIS, 1996. traz que tanto a presença dos congos quanto a do bumba meu boi, folguedos que deram origem ao reisado, são muito antigas no Ceará, tendo como data de aparecimento provavelmente o início do século XVIII, ao lado das entradas de gado de Pernambuco e da Bahia. No Ceará, o povo usa o termo reisado para designar o espetáculo que reúne entremeios e peças, sendo destaque o entremeio do boi, que muitas vezes aparece fechando a função após a cantoria de despedida. Em vários lugares, o nome do próprio reisado pode ser boi, e sua manifestação possui tipos esboçados por Barroso (1996)BARROSO, O. Teatro popular tradicional: Reis de Congo. Fortaleza: Minc: MIS, 1996.. De acordo com ele, o reisado se tornou de reisado de congo, reisado de couro e reisado de baile quando “tomou” emprestado a corte dos reis negros da congada, a família sertaneja do Nordeste e o baile medieval da Idade Média, respectivamente.

Em ressonância com Martins (1997)MARTINS, L. M. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza, 1997., dos reis de congo para as congadas, caberia refletir sobre o “povo reinado” no curvo movimento da memória de condensar o legado ancestral negro e encená-lo no ato de criação da performance em sua transmissão. Nesse olhar para o gesto fabular de incorporação do acontecimento valeria pensar na fabulação e sua relação com o encantamento e suas performatividades. Por tratar do guerreiro como uma forma do reisado, retomo Brandão (2007)BRANDÃO, T. O reisado alagoano. Maceió: Edufal, 2007., que define ambas as manifestações como festas religiosas que celebram o novo por meio da herança portuguesa que se misturou às expressões negras. Segundo esse autor, os trajes do guerreiro são coloridos e o folguedo se organiza por peças, embaixadas e entremeios como partes cantadas, declamadas e encenadas, concomitantemente. O conceito de “teatro como encantamento” reluz para Barroso (2013)BARROSO, O. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza: Armazém Cultural, 2013. quando ele traz que o brincante se encanta para incorporar uma figura lúdica e se desencanta para retornar ao cotidiano.

Quando fala do Cariri como uma “nação de utopias”, Cariry (2001)CARIRY, R. Cariri, a nação das utopias. Diário do Nordeste, Fortaleza, p. 3-4, 5 mar. 2001. trata da região e de Juazeiro como esse lugar onde todas as utopias já foram profetizadas, mencionando nomes de agentes locais, a exemplo da Mestra Margarida Guerreira, no entorno de uma grande constelação que reluz entre manifestações culturais. Semelhantemente, Barroso (2013)BARROSO, O. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza: Armazém Cultural, 2013. discute a performance do reisado como uma manifestação cultural onde se busca a utopia, sendo esse imaginário o que libera o corpo para a incorporação fugaz da alegria. Ao tratar do Cariri, Nunes (2011)NUNES, C. Reisado cearense: uma proposta para o ensino das africanidades. Fortaleza: Conhecimento, 2011. traz que os reisados de congo se espalharam por toda a região onde a presença negra foi marcante nas zonas de engenho de cana e utilizada na produção de aguardente e rapadura, sendo presentes em zonas de influência alagoana. Os reisados juazeirenses que situam o nosso debate aparecem para ela como uma das manifestações culturais mais fortes na cidade, sendo o bairro João Cabral mencionado por abrigar a maior quantidade de grupos e o Reisado dos Irmãos (discípulos do Mestre Pedro) dos Mestres Antônio e Raimundo destacado como exemplo de como se organiza a tradição.

Ao dizer que não sabe ao certo quem começou a dançar reisado em Juazeiro, a autora cita Ribeiro (1992)RIBEIRO, S. Juazeiro em corpo e alma. Juazeiro do Norte: Royal, 1992., que descreve de modo importante como a festa de Dia de Reis influenciou a formação do que viria a ser o reisado na cidade, ainda no tempo em que o Padre Cícero era vivo, santo popular tido como fundador de Juazeiro, sendo destaque o bairro Horto, onde fica o atual monumento dele. Nesse contexto, vale destacar a visão de Feitosa (2022)FEITOSA, A. L. C. Sentidos e projetos de mediação: bairro, periferia e cultura popular em Juazeiro do Norte-CE. Iluminuras, Porto Alegre, v. 23, n. 63, p. 97-125, dez. 2022. para a periferia de Juazeiro do Norte e a produção de cultura quando ele fala dos sentidos e dos projetos de mediação do João Cabral como “bairro brincante”. O autor cita o Pequeno atlas de cultura popular do Ceará - Juazeiro do Norte (Instituto Nacional do Folclore, 1985INSTITUTO NACIONAL DO FOLCLORE. Pequeno atlas de cultura popular do Ceará - Juazeiro do Norte. Rio de Janeiro: Funarte, 1985.) para nos mostrar como os processos de emergência de novas espacialidades identificadas sob a “cultura popular” podem tecer novas cartografias, a exemplo de como o João Cabral emerge nesse contexto.

Nos reisados juazeirenses, Nunes (2011)NUNES, C. Reisado cearense: uma proposta para o ensino das africanidades. Fortaleza: Conhecimento, 2011. destaca o papel da Mestra Margarida e fala da participação de mulheres ainda causar um certo estranhamento, sendo vista como uma conquista e oriunda de um processo de modernização. Ainda que aprofunde a visão de Barroso (2013)BARROSO, O. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza: Armazém Cultural, 2013., a autora não destaca formas agenciadas desse protagonismo para além da imagem da mestra e traz apenas um único relato de uma brincante que afirmava ter vergonha de participar pelas pessoas não acharem apropriado. Assim, embora a visão de Barroso (2013)BARROSO, O. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza: Armazém Cultural, 2013. sobre o reisado no Ceará e a abordagem de Nunes (2011)NUNES, C. Reisado cearense: uma proposta para o ensino das africanidades. Fortaleza: Conhecimento, 2011. em Juazeiro do Norte sejam importantes para embasar o meu argumento, ambos os autores parecem defender o resgate de formas culturais que emergem do que seria o povo dentro dessas tradições, ao proferirem que pode ocorrer uma suposta fragmentação e descaracterização em torno do fato de as indústrias culturais transformarem rito em espetáculo, evidenciando o que Albuquerque Junior (2013a)ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. Feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013a. denomina de “síndrome do resgate”.

No sentido de ir na contramão a esse pensamento, penso com Albuquerque Junior (2013a)ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. Feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013a. na cultura popular não pela sua defesa, pelo seu resgate ou pela sua preservação, mas pela percepção de que ela não é uma realidade dada, mas uma colagem de fragmentos que foram um objeto de apropriação e nomeação por um importante grupo de folcloristas que atuaram no país entre o final do século XIX e meados do século XX. Ao tratar o Nordeste como uma invenção, ele desfaz a ideia de que essa região teria uma cultura particular, uma cultura regional distinta, onde a cultura brasileira se relaciona com uma verdadeira cultura de raiz que teria se mantido imune ao moderno, cosmopolita e contemporâneo.

Nesse mesmo sentido, ao discutirem imagens do popular no Cariri, Marques e Paz (2013)MARQUES, R.; PAZ, R. M. Quem é o povo da cultura popular? Algumas reflexões a partir das noções de Cariri, religiosidade e festas. In: CORDEIRO, D. S. (org.). Temas contemporâneos em sociologia. Fortaleza: Iris, 2013. p. 41-58. partem da ideia de que sensibilidades da “cultura popular” não são resultado de suposta totalidade ou particularidade cultural, mas de vivências que são agenciadas pelos sujeitos por categorias historicamente situadas, na medida em que essa ideia de “Cariri popular” aparece como uma imagem sedimentada. Quando esses autores se questionam quem é o “povo” do popular, encontro um ponto de partida interessante para pensar nos jogos de diferença por essas performatividades, pois ao passo que nos questionamos sobre as imagens desse “popular” podemos ver como corporalidades lampejam e f(r)iccionam (Dawsey, 2009DAWSEY, J. C. Corpo, máscara e f(r)icção: a “fábula das três raças” no Buraco dos Capetas. Ilha, Florianópolis, v. 11, n. 1-2, p. 41-62, maio 2009.) a tradição em sua ordem normativa masculina, cisgênera e heterossexual. “O nordestino é definido como um homem que se situa na contramão do mundo moderno, que rejeita suas superficialidades, sua vida delicada, artificial, histérica” (Albuquerque Junior, 2013bALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. Nordestino: invenção do “falo” - uma história do gênero masculino. São Paulo: Intermeios, 2013b., p. 150).

Por isso, busco aqui pensar na região e suas imagens do popular pelo que vaza, isto é, “seu trânsito, suas imagens múltiplas, caleidoscópios com lantejoulas e vidrilhos refletindo diferenças, maravilhas banais encarnadas em formas diversas de diferenças em carne e osso” (Marques, 2015MARQUES, R. Imagens do popular no Cariri: algumas notas à luz das obras de Geraldo Sarno e J. Figueiredo Filho. Politica & Trabalho, João Pessoa, v. 1, n. 42, jan./jun. 2015., p. 374). Diante dessa perspectiva, acredito que possa estar próximo do artifício como categoria central para discutir não só essas performances e suas f(r)icções de gênero, mas toda uma forma de repensar categorias estéticas e significados da cultura. Assim, Lopes (2016)LOPES, D. Afetos. Estudos queer e artifício na América Latina. E-Compós, Brasília, v. 19, n. 2, p. 1-16, 2016. nos apresenta o artifício como uma categoria conceitual, sócio-histórica, estética e mediadora da vida material que deve ser articulada não como oposição à realidade, mas como dissolvente da dualidade entre real e irreal, e serve como forma de pensar a experiência queer pelos afetos. Se há nessas estéticas do artifício uma visão antinaturalista e antiautêntica, creio que seja possível tomar essas performances pela sua possibilidade de ampliação de categorias estéticas inseridas na cultura midiática e tidas como descaracterizadoras da “tradição” que tanto valorizam formas do grotesco e expressões supostamente autênticas como fontes de agência criativa.

Inclusive, se Marques (2015)MARQUES, R. Imagens do popular no Cariri: algumas notas à luz das obras de Geraldo Sarno e J. Figueiredo Filho. Politica & Trabalho, João Pessoa, v. 1, n. 42, jan./jun. 2015. nos fala que algumas dizibilidades do Cariri acabam sendo pouco criativas e carentes de afeto, argumento em torno dessa afetividade queer como forma de multiplicar essas dizibilidades. Por isso, na leitura de Barroso (2013)BARROSO, O. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza: Armazém Cultural, 2013. sobre o encantamento creio que seja possível acrescentar uma dimensão que escapa e aparece como importante, que são os afetos. Dessa forma, vale pensar com Cavalcanti (2018)CAVALCANTI, M. L. V. C. O ritual e a brincadeira: rivalidade e afeição no bumbá de Parintins, Amazonas. Mana, Rio de Janeiro, v. 24, p. 9-38, abr. 2018. na brincadeira como um conceito-chave para qualificar a experiência vivida, localizada por tessituras ficcionais, entre ritual e festa na sua capacidade afetiva de engajamento com experiências na performance. “O mundo do ‘brincar de boi’ é feito de afeições intensas: é preciso escolher para pertencer ao todo festivo instituído pela própria brincadeira” (Cavalcanti, 2018CAVALCANTI, M. L. V. C. O ritual e a brincadeira: rivalidade e afeição no bumbá de Parintins, Amazonas. Mana, Rio de Janeiro, v. 24, p. 9-38, abr. 2018., p. 14). Desse modo, Marques (2020)MARQUES, R. Problemas de patrimônio como problemas de gênero: disjunções entre feminismo e cultura popular na Festa de Santo Antônio em Barbalha (CE). Interseções, Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 463-481, dez. 2020. traz como cultura popular, gênero e Cariri se organizam em uma textualização da cultura de modo persistente e multifacetado, oferecendo um horizonte para pensar essas performances no reisado pela ação brincante e suas gramáticas particulares.

15 de dezembro de 2021, quarta-feira, 19h. Logo quando chego no bairro João Cabral, Mellysa Giselly me pergunta se eu estava adivinhando de ir à sua casa justamente naquele dia em que iria ocorrer um dos ensaios do Guerreiro Beija-Flor. Antes de começar aquele encontro, enquanto jovens e crianças aguardavam o ensaio, sento-me na sala de jantar em uma cadeira, próximo ao sofá onde a sua irmã, Ceyssa Batista, 32 anos, trançava o cabelo de uma cliente. Na sala de estar da casa da mestra há uma imagem do Sagrado Coração de Jesus e um grande oratório da família (Figura 1). Transitando entre todos os cômodos para organizar aquele dia, Mellysa escuta minha conversa com Ceyssa e fala que vai trançar o cabelo para os festejos natalinos. “Quero estar toda pa-lo-sa!”7 7 “Palosa” pode ser visto como termo êmico constantemente articulado no campo, onde Mellysa o utiliza para descrever a forma como quer estar na performance, evidenciando uma estilização de si.

Figura 1
Oratório da casa da Mestra Mellysa, 2021.

Embora tenha sido articulado desde 2019, o grupo Guerreiro Beija-Flor surge em 2020 pela vontade de brincantes trans e travestis de se reunirem nessas performances de tradição, tendo Mellysa como figura central de mestra. Desde que a conheci, ela reforçava ser uma discípula do Mestre Nena (Figura 2), 72 anos, do atual grupo Bacamarteiros da Paz, por ele ter ensinado a brincante a jogar espadas, quando ela ainda era criança. Mas, de modo recente a mestra tem buscado sua ancestralidade na cultura, quando fala do seu bisavô, que foi um brincante de reisado ainda no bairro Horto. O trajeto da brincante pelos grupos se deu pelo aprendizado múltiplo, a exemplo de Mestra Lúcia do Estrela Guia, Mestre Dudu do Renascer da Tradição, do Mestre Antônio do Reisado dos Irmãos e do Mestre Tarcísio do Reisado São Miguel. Hoje, ela conta ser reconhecida pela forma como se apresenta, sendo uma mulher trans, mas quando começou a brincar era apenas uma “criança viadíssima”. Nesse percurso, ela fala que muitas vezes sua inserção era vista e dita por um olhar moralizador, diz já ter ouvido julgamentos de brincantes do bairro, a exemplo de homens cis em alguns grupos. O que acaba entrando em ressonância com o que Mestra Lúcia me disse uma vez, que o fato dela colocar travestis no Estrela Guia era visto como “desmoralizador” pela devoção religiosa.

Figura 2
Mestra Mellysa Giselly e o Mestre Nena no Museu Orgânico dele, 2021.

Naquela época, em 2021, o grupo contava com a juventude do bairro, sendo quatro mulheres trans, Manul Marinho, Emilly, Evellyn e Juh, além de pessoas cis como gays, lésbicas e homens heterossexuais. Esses homens heterossexuais ocupam a função de tocar (zabumba e triângulo) e performar alguns figurais tidos como masculinos, como o figural do mateu e do príncipe. A exemplo disso, naquele ensaio os dois tocadores foram os primeiros a chegar, Matheus e Fabiano; moradores do bairro Mutirão, eles pedalam até o João Cabral com os instrumentos. A primeira brincante a chegar é Luh, uma das jovens cis que dançam na frente do cordão. Nesse fluxo, vejo como os brincantes cresceram em pouco tempo, a exemplo de Emilly e Evellyn que fizeram a transição de gênero dentro do grupo e participam desde crianças da quadrilha que Mellysa também coordena, chamada Balão Junina Cariri.

Naquela noite, tive um panorama amplo de como o Guerreiro Beija-Flor estava se organizando com as performances e os ensaios. Pinto ressalta a falta de compromisso em alguns momentos, relembra que na madrugada anterior à performance que gravou para a Mostra Sesc Cariri de Culturas de 20218 8 O trecho da performance gravada no Museu Orgânico do Mestre Nena pode ser visto a partir do minuto 31 em Mestres… (2021). não havia dormido, pois precisava terminar os capacetes que seriam usados na cena. Na menção dos capacetes, ela lembra de sua ideia. Foi o momento em que ela fala que quer inovar na performance do Ciclo de Reis mesmo ainda sem saber se iria brincar ou não, utilizando lâmpadas de LED nos artefatos.

Pinto puxa a primeira peça, zabumba entra no ritmo e apito conduz o instante performado. Apesar de já ter começado, o ensaio recomeça várias vezes à medida que cada pessoa vai chegando na sala, cada brincante que chega vai adentrando o lugar no seu cordão, lado esquerdo e direito. “Tudo que tá ensaiando aqui, já vai ser lá. Nós tem que dar o nome!”, relembra Pinto ao grupo. Ao falar que quer “dar o nome” a mestra fala de uma afirmação de si na vontade de disputar um lugar, mobilizando o corpo de todas as pessoas em cena para também ocupar aquele espaço, como lastro do seu legado.

Atenta ao ritmo, Manul Marinho diz que o grupo saiu da posição antes de a zabumba começar a tocar. Quando encena seus gestos, Manul joga com um jeito mais exagerado do que as outras meninas, tendo um estilo próprio de segurar as espadas. Luan, um dos meninos que ocupa o figural de mateu, ao ver Manul dançando diz que as outras meninas não conseguem acompanhar. “Manul, não invente muita coisa diferente, não…”, retruca ele. Pinto fala que ela, como a primeira embaixadora da fileira no seu cordão, tem que dançar e todas precisam repetir igualmente. “É Manul, se uma puxar todas têm que imitar, senão fica uma coisa diferente, porque, assim, […] elas não sabem muito ‘close’ e nós somos ‘closetas’9 9 “Closetas”, termo bastante utilizado pelas brincantes, está associado a um gestual mais realçado da brincadeira e ressoa entre performance e performatividade em um modo de jogar com o corpo e trejeitos mais exagerados. demais”, comenta Pinto sobre os gestos da brincante. Quando fala em ser “closeta” ou dar o “close” vemos indícios do que está entre a performatividade e a performance, principalmente, no aprendizado desse corpo como devoção. “Não é eu que tô ensinando, não, são vocês que tão me ensinando, por isso que eu digo, não sou mestra, não, vocês que são mestre porque eu aprendo com vocês!”, reforça Mellysa.

Nesse momento, é possível perceber com essa fala de Pinto como ela incorpora a tradição e entende o seu papel como mestra. Há uma preocupação em como o grupo será visto, por isso ela pede que nenhum brincante, principalmente os meninos no figural de mateu, tire o traje após as performances e fique nos arredores dos locais sem camisa e muito menos que as meninas rezem com brincadeiras. A mestra fala isso mostrando a sua vontade de disputar e mostrar que ela brinca como se apresenta, produzindo “embates” nessa escala de grupos maiores e de mais prestígio e menores e de menos prestígio (Albernaz; Oliveira, 2015ALBERNAZ, L. S. F.; OLIVEIRA, J. M. Sinfonia de tambores: comunicação e estilos musicais no maracatu nação de Pernambuco. Anthropológicas, Recife, v. 26, n. 1, p. 75-102, jul. 2015.). “Tem mestre que só diz ver gente mostrando grupo, sem saber ser mestre. Nós é que somos mestres, ascendendo de cultura, pra mostrar que nós é nós, que nós somos uma geração que estamos inovando, levando a cultura, entendeu?” Quando ela fala de inovação, desperta curiosidade de quem está no ensaio e aproveita para falar dos capacetes iluminados:

Como a gente representa o Natal e o pisca-pisca representa também, a manjedoura, a árvore de Natal, o que que aconteceu… Vou ver se tem como eu ir essa semana ainda mais, Manul, lá no centro pra comprar 4 m de luz de LED. “Mas para quê, Pinto?”, pra botar alguns pedaços desse LED em cada capacete, de cada menina e nos mateus. Vai ser umas carreira de LED nos capacetes deles. Cada peça que for sendo cantada vocês vão acendendo. (Mellysa Giselly, 15/12/2021).

A mestra aproveita esse momento e faz um pedido para cada brincante:

Eu espero de cada um de vocês o respeito em cima das meninas trans, em cima dos gays, das lésbicas, dentro do grupo, e das mulheres. O grupo não é só focado de meninas, não, mulheres, não, casadas com seus maridos, não. O grupo é formado por crianças, trans, gays, lésbicas e outros gostos pessoais de cada um de vocês, espero que todos os meninos [saibam] como têm que lidar com Emilly, tem umas que conhece ele por Torrero, morreu Torrero. Se ela quer ser chamada por Emilly, Emilly vai ser, é o gosto dela. Manul Marinho, era quem? Emanuel! Não é mais, é Manul Marinho, principalmente, os homens héteros do grupo que é os tocadores e mateu, quando tiver alguma apresentação eu quero escutar isso. Vocês [aponta para os meninos] conhecem elas duas de dentro da quadrilha, de muitas, e as que vão vir. Espero que cada um dos homens que participe do grupo e esteja no movimento aprendam a chamar cada trans, cada gay conforme quer ser chamado. Se eu escutar alguém chamando pelo nome, vai escutar o que não queria ouvir, porque direito é pra todos, respeito é pra todos e amar é viver. (Mellysa Giselly, 15/12/2021).

Dois dias antes do cortejo e daquele ensaio, enquanto Dona Kiu ainda costurava a bata de um mateu, tive uma conversa inesperada sobre o legado familiar da Mestra Mellysa na cultura popular, pois na verdade tinha ido conversar com a brincante sobre os ensaios. Mas acabei encontrando a sua mãe trabalhando na máquina - talvez, aqui, esteja próximo dos eventos que acontecem por acaso, nos termos de Sansi (2015)SANSI, R. Art, anthropology and the gift. London: Bloomsbury, 2015.. Era 18 de dezembro às 16h14 no João Cabral. O Guerreiro Beija-Flor ainda tinha dois dias para organizar os trajes e ensaiar as peças e danças. Enquanto Pinto descansava da madrugada que havia passado costurando, sua mãe fumava e costurava, como de costume. “Pinto me pediu para fazer a roupa de dois mateu”, disse a mãe da mestra. Assim, faço apenas uma pergunta e Dona Kiu (Figura 3) desembaraça todo um novelo de imagens sobre passado, como quem sabe desatar os nós que estávamos fazendo.

Figura 3
Dona Kiu costurando, 2021.

“E essa agulha aqui já tá puxando, mas esse tecido acaba a agulha, Ribamar, botei essa agulha ontem, tu tá vendo como já tá?”, retruca Dona Kiu, estalando a língua nos dentes. Olho para azul cintilante do tecido e pergunto para ela como eram os trajes antigamente do reisado.

O pai da minha mãe era Cícero. Olha, Ribamar, lá no museu [Museu do Horto] tem umas espadas e tinha umas, assim, aquelas espadas pertenceu a todos os mestres que foram os fundador do reisado de Juazeiro. O meu avô brincava quando meu Padim Ciço ainda vivia aqui. Ele autorizava. Meu avô foi um dos chefes dos reisados, num sabe? Eles iam brincar, só que reisado antigamente era diferente de hoje. Tinha os mestres, tinha meu avô, tinha Mestre Pedro, tinha mais outros mestres e brincavam todo mundo e todo mundo era amigo, eles brincavam, eles ia, mode você ver como as coisas era fraca… Tinha uma renovação em Aurora e quinze dias antes da renovação a pessoa vinha montado de cavalo fazer o convite a eles pra brincar na renovação. Eles iam três, quatro dia antes da renovação porque ia de pés pra Aurora. (Dona Kiu, 13/12/2021).

Nesse contexto, Dona Kiu relembra as grandes distâncias que não só seu avô, mas quase todos os mestres - chamados antigamente de “chefes” - tinham que percorrer para brincar em outras localidades, a exemplo da cidade de Aurora, que fica a 51 km da cidade de Juazeiro do Norte. De acordo com ela, o pagamento para essas apresentações eram alimentos ou bichos de criação que serviam para comer, como galinhas ou ovos. Quando explora essas lembranças, a mãe da Mestra Mellysa diz que sua família morava onde atualmente é o bairro Horto.

Menino, meu Padim Ciço foi quem batizou minha mãe, minha mãe foi batizada por meu padrinho Ciço, por sinal ele batizou e ele mesmo é o padrinho. E a madrinha Nossa Senhora das Dores. Eu não cheguei a ver o Padre Cícero, minha mãe era pequena… (Dona Kiu, 13/12/2021).

Antes de ela terminar de contar a história, Pinto acorda e nos interrompe. Dona Kiu para falar, termina a roupa do mateu e pergunta a Pinto se está boa. “Se ela passar na sua cabeça, está boa”, fala Pinto. A camisa não passa. Dona Kiu conta que precisa descansar um pouco antes de descosturar o traje e reabrir o tecido. Pinto senta na máquina de costura e eu permaneço no mesmo banco ao lado. Nessa posição, a Mestra Mellysa começa a falar sobre um problema que teve na aceitação do grupo Beija-Flor em participar do Ciclo de Reis de 2021. Dona Kiu e Mellysa Giselly, mãe e filha, sentadas no mesmo banco daquela mesma máquina pareciam falar da mesma coisa em tempos diferentes. No caso, Mellysa me explica entre bocejos e olhos cansados que a Secult naquele ano declarou incerta a performance do guerreiro no cortejo pelo motivo de “não conhecer o grupo”, ou seja, da brincante não ter “experiência” para performar.

Esse assunto continua por controvérsias, na verdade, ela não sabia o real motivo pelo qual o grupo não havia sido convocado e nem quem exatamente afirmou isso, apenas algo ficou subentendido nessa justificativa precipitada do grupo não ter sido convocado, mesmo estando em todas as reuniões coletivas de preparação para o Ciclo de Reis, organizado pela instituição. De repente, um grito lá na porta: “Mellysa!” Era Manul Marinho que completa a fala da mestra reafirmando que a Secult não convocou o grupo de modo direto pelo guerreiro não ter “conhecimento, experiência na cultura”. Por isso, Manul acha que Pinto deveria ter dito que era uma mestra cadastrada pelo Sesc desde o começo daquele ano. Aqui, a questão da experiência e a mobilização do grupo aparecem como forma de reivindicação de um lugar, mas nesse contexto vale pensar nas disjunções entre gênero, tradição e agentes locais.

Além disso, o movimento de ocupar esse lugar me fez pensar se o artivismo pode servir para observar essa reivindicação, pois embora essas brincantes não utilizem o termo para se identificarem, vejo que a arte aparece como frente dessa contestação pela articulação de dissidências com o lugar de mestre na festa e a criação de insurgências pelo corpo travesti na tradição (Raposo, 2015RAPOSO, P. “Artivismo”: articulando dissidências, criando insurgências. Cadernos de Arte e Antropologia, Uberlândia, v. 4, n. 2, p. 3-12, out. 2015.). Desse modo, quando pergunto se Mellysa acha que o guerreiro não foi selecionado por ter em sua maioria brincantes LGBTQIA+, ela considera que não, embora Manul ache que sim e tenha mobilizado um movimento de resistência no Instagram do Guerreiro Beija-Flor acusando essa decisão institucional como uma forma de preconceito. Continuando, quando Mellysa fala dos desafios que tocam na sua função enquanto mestra vejo a relação de “reXistência” (Grunvald, 2022GRUNVALD, V. Terrorismos e pontes do musicar local: Linn da Quebrada e seu artivismo de reXistência e desidentificação. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 65, n. 2, p. 1-23, jan. 2022.) com o grupo.

É porque, assim, Ribamar, tem coisas que a pessoa tem saber conversar, tem que saber interpretar a maneira das opinião de todo mundo, porque todo mundo tem uma opinião. Que nem, ó, as pessoas antigas, num tem essa mentalidade que nem nós tem. A opinião que você tem, que compreende, qualquer pessoa, as pessoas antiga vão se acostumar a chamar um “homem vestido de mulher” como mulher trans? Tem que se habituar, tudo isso, né? (Mellysa Giselly, 13/12/2021).

Nessa argumentação, a Mestra Mellysa fala como muitas vezes ainda é vista por brincantes mais velhos ou por grupos mais consolidados que participam desses festejos oficiais - e ainda possuem fortemente a presença de homens cisgêneros e heterossexuais nessa figura de mestre - enfatizando a transfobia nessa redução da existência de mulheres trans ao papel de “homem vestido de mulher”. Em toda parte dessa fala, Manul concorda com a mestra que reabria o traje do mateu costurado por sua mãe minutos antes. Quando rasga o tecido para reabrir o traje que Dona Kiu havia costurado é como se ela rasgasse a costura de um outro tempo, sobretudo, pelo lapso temporal na memória delas na costura do presente. A conversa vai findando, Pinto pergunta o que eu estava falando com sua mãe. A agulha cai no chão. Ela procura e não a encontra. Quando acho a agulha, ela relembra que eu falava sobre o seu avô, como uma imagem que irrompe (Dawsey, 2009DAWSEY, J. C. Corpo, máscara e f(r)icção: a “fábula das três raças” no Buraco dos Capetas. Ilha, Florianópolis, v. 11, n. 1-2, p. 41-62, maio 2009.). Ela fala que quer buscar essa memória. Entrego a agulha na sua mão, mas ela não queria mais costurar.

Figura 4
Mestra Mellysa Giselly costurando, 2021.

Encantarias travestis e performatividades brincantes

Quando pensei nesse “tom menor” da utopia que atravessa as performances do teatro de Reis, tentei relacioná-lo com a noção de microutopia (Sansi, 2015SANSI, R. Art, anthropology and the gift. London: Bloomsbury, 2015.), no sentido de reler esse “espaço para a manifestação dos deuses que riem e para a utopia fugaz que nos visita; se toma o corpo do ator, deixa-o livre para viver sua alegria” (Barroso, 2015BARROSO, O. A máscara: teatro ritual ao teatro brincante. Fortaleza: Armazém Cultural, 2015., p. 209). Aqui, creio que os encontros têm mais a ver com sensações e afetos que mobilizam do ponto de vista sensível a criatividade do corpo brincante do que com grandes narrativas míticas ou práticas mágicas. Nessa visão, busco o movimento que Dawsey (2009)DAWSEY, J. C. Corpo, máscara e f(r)icção: a “fábula das três raças” no Buraco dos Capetas. Ilha, Florianópolis, v. 11, n. 1-2, p. 41-62, maio 2009. reflete a partir do caleidoscópio do corpo e da máscara na incorporação do rito do guerreiro em cena. “Os restos de uma história incorporada, latentes, encontram na superfície dos corpos os sinais diacríticos capazes de provocar não apenas os gestos de diferenciação, mas também impulsos de rememoração” (Dawsey, 2009DAWSEY, J. C. Corpo, máscara e f(r)icção: a “fábula das três raças” no Buraco dos Capetas. Ilha, Florianópolis, v. 11, n. 1-2, p. 41-62, maio 2009., p. 57). Ao incorporar essa herança que possui uma estirpe cisgênera, a Mestra Mellysa Giselly nos mostra que um corpo que f(r)icciona a máscara pode ser feito de máscaras de antepassados que também viraram corpos.

Se Marques (2015)MARQUES, R. Imagens do popular no Cariri: algumas notas à luz das obras de Geraldo Sarno e J. Figueiredo Filho. Politica & Trabalho, João Pessoa, v. 1, n. 42, jan./jun. 2015. fala de um Cariri que vaza por múltiplas imagens caleidoscópicas e Lopes (2016)LOPES, D. Afetos. Estudos queer e artifício na América Latina. E-Compós, Brasília, v. 19, n. 2, p. 1-16, 2016. traz a imagem como corpo e gestos, retomo o artifício como uma categoria estética que pode agenciar modos de vida queer e repensar formas expressivas de tradição. O encantamento como um tipo de máscara no corpo de quem brinca pode nos mostrar como afetos queer disputam esses enredos da tradição em disjunções. A centralidade do afeto que Cavalcanti (2018)CAVALCANTI, M. L. V. C. O ritual e a brincadeira: rivalidade e afeição no bumbá de Parintins, Amazonas. Mana, Rio de Janeiro, v. 24, p. 9-38, abr. 2018. atribuiu à forma da brincadeira nos ajuda a pensar essas questões da inventividade das tradições populares, sobretudo, na relação com os agenciamentos queer nessa zona temporária que emerge (Raposo, 2022RAPOSO, P. Performances políticas e artivismo: arquivo, repertório e re-performance. Novos Debates, Brasília, v. 8, n. 1, E8119, jul. 2022.) com paisagem nodal. Não estou afirmando que o gênero por si só é uma encenação ou que a travestilidade seja encenada, uma vez que vale realçar que existem figurais tidos como femininos que são encenados por homens cisgêneros e acabaríamos reforçando que a identidade travesti possa ser acessada por esse regime da cis-heteronormatividade (Nascimento, 2021NASCIMENTO, L. Transfeminismo. São Paulo: Feminismos Plurais, 2021.). Não estou trabalhando com a travestilidade como um disfarce dentro do encantamento, mas pensando nas reXistências (Grunvald, 2022GRUNVALD, V. Terrorismos e pontes do musicar local: Linn da Quebrada e seu artivismo de reXistência e desidentificação. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 65, n. 2, p. 1-23, jan. 2022.) entre performance e performatividade, vida e obra (Colling, 2021COLLING, L. A vontade de expor: arte, gênero e sexualidade. Salvador: Edufba, 2021.).

Portanto, a questão de como esses deslocamentos multiplicam dizibilidades sobre a tradição pode estar atrelada à forma como o artifício e sua encenação de afetos aproxima performatividades de gênero e imaginários espaciais (Marques, 2022MARQUES, R. Nordeste, contracultura e cultura popular: lugares cognitivos e ficções persistentes na poética de João do Crato. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 65, n. 2, ago. 2022.), não negando ou simplificando discursos de identidade, mas negociando os seus sentidos nesse “através” (Sodré, 2017SODRÉ, M. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.). Nesse caminho, Colling (2021)COLLING, L. A vontade de expor: arte, gênero e sexualidade. Salvador: Edufba, 2021. sugere entre performance e teatro que seja mais interessante pensar o que está entre performance de gênero e performatividade de gênero, sobretudo, ao invés de especificar somente as suas diferenças. Se revejo um encantamento como um ato performativo entre performance e performatividade, não procuro nessa atmosfera brincante fronteiras rígidas. No sentido de percorrer os limites da abordagem de Butler, Colling (2021)COLLING, L. A vontade de expor: arte, gênero e sexualidade. Salvador: Edufba, 2021. cita um texto em que a autora se refere às visões de Schechner e Turner para pensar o gênero como ato e suas constituições. Através dessa leitura, concordo que é um erro não só reduzir performatividade à “atuação de gênero”, mas também pensar que toda performatividade de gênero seja distinta da performance de gênero realizada por uma pessoa artista (Colling, 2021COLLING, L. A vontade de expor: arte, gênero e sexualidade. Salvador: Edufba, 2021.).

Assim, no dia 21 de dezembro de 2021 ocorreu o cortejo no Ciclo de Reis. Costurando desde o dia anterior, eram 15h e Mellysa ainda não tinha se arrumado e muito menos sabia quando iria fazer isso, pois estava terminando algumas encomendas que pegou de última hora. Nesse momento, a mestra pede para que eu vá em Manul e chame Juh. Sem saber ao certo o motivo, fui até a casa de Manul do outro lado da rua. Na porta da casa de Manul tinha um adesivo de “Fora Bolsonaro!”10 10 O adesivo dialoga com as disputas políticas de 2018 a 2022 durante o governo de Bolsonaro. Ela me permite entrar apenas por ser eu. Emilly pede para que eu a ajude a fechar a saia, pois ela tinha acabado de se maquiar e os seus dedos estavam marcados com base de rosto, se ela pegasse no traje iria sujá-lo de maquiagem. No figural de contraguia, ela conta que gosta da sua posição.

Ajudo Emilly a calçar o meião e quando ela calça o tênis me pergunta se eu não vou me arrumar, como se quisesse retribuir a ajuda no figurino ou dizer que eu não estava arrumado o suficiente para seguir com o grupo no cortejo. “Tu não quer se maquiar não? Quer que eu faça o quê?” Digo que quero um delineado no olho. Manul ainda almoçava, mas observava Emilly fazer o meu delineado. Ao ver que a nádega de Emilly aparece quando ela se inclina para maquiar o meu rosto, Manul exclama: “Emilly, cadê o short?” Ela rebate de volta: “Que short? Vou sem short, vou de calcinha [peça íntima]!” O meu delineado do olho esquerdo ficou quase pronto, ela pede apenas para finalizar a ponta na altura da sobrancelha. Continuam batendo na porta. Eu pergunto se aquelas batidas não são para dizer algo importante, mas Emilly briga comigo: “Não mexe! Não abre o olho! Vai borrar. Não abre o olho, trans. Vou assoprar!”

Figura 5
Brincante Emilly se maquiando na casa de Manul, 2021.

Ainda de olhos fechados, converso com Manul, que começa a vestir o traje. “Agora sim, abre o olho. Cadê o espelho pra mostrar a ela?”, diz Emilly. Se a casa de Pinto parecia ser um tipo de ateliê dos figurinos, a sede do grupo, a casa de Manul era tipo um camarim, um espaço de intimidade e parentescos, sobretudo, nesse cuidado de Manul com Emilly. Juh chega já vestida e exclama que está parecendo uma cheerleader das torcidas de futebol das escolas norte-americanas. “Manul, tem agulha? Quero dar mais um ponto na saia”, fala Emilly. Quando pergunto o porquê desse ponto já que a saia vestia bem, ela diz que quer a saia mais alta e Manul pede para que vá na casa da Mestra Mellysa pedir isso a ela na máquina. “Agora, tá muito curto essa saia, Emilly…”, reflete Manul ao perguntar se ela não vai “aquendar”11 11 O termo “aquendar” nesse contexto revela uma prática de produção de si a partir de lugares múltiplos que ressoa na construção desse corpo trans enredado pela tradição, envolvendo moralidades e subversões nesse gesto de esconder a genitália nessas performances onde os shorts ou calcinhas às vezes ficam à mostra na dança. para sair pro cortejo, e Emilly justifica que não porque iria caminhar muito e poderia arder entre as suas pernas. Mas na porta ela para e pensa um pouco. “Tu jura que eu vou aquendar? Claro que não, se Pinto não vai, por que eu vou?” e sai rindo.

A partir desse momento performativo com Emilly e Manul, procuro acompanhar o encantar do corpo brincante e suas performatividades. No caso, para refletir essas microutopias (Sansi, 2015SANSI, R. Art, anthropology and the gift. London: Bloomsbury, 2015.) na brincadeira, tenho apostado no que Muñoz (2019)MUÑOZ, J. E. Cruising utopia: the then and there of queer futurity. New York: NYU Press, 2019. denomina como utopia queer, onde o gesto fabular dessa estética do artifício faz da performance um modo de imaginar outro tempo e lugar pelo corpo presente, pelas fábulas (Martins, 1997MARTINS, L. M. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza, 1997.) que aqui podem ser de gênero. Concordando com Butler (2022)BUTLER, J. Desfazendo gênero. São Paulo: Unifesp, 2022., entendo que o encantar e desencantar tenha a ver com fazer e desfazer, pois, se o gênero é um tipo de fazer, essas performatividades mostram como existem conjunções e disjunções do que reiteram da performance de tradição. Essas improvisações do corpo trans podem ser vistas como movimentos que saem de uma coreografia estabelecida do corpo cisgênero, evidenciando o processo de fabricar - e até mesmo brincar - um lugar para si fora da transformação cotidiana (Preciado, 2022PRECIADO, P. B. Dysphoria mundi. Barcelona: Anagrama, 2022.), na medida em que esse encantamento incorpora saberes locais em experimentação coletiva.

Na rua, o Guerreiro Beija-Flor era o último grupo do circuito brincante do Ciclo de Reis de 2021 em Juazeiro, e mesmo com a experiência da Mestra sendo colocada em questão na performance por agentes institucionais que fazem as regulações do certame (Noleto, 2020NOLETO, R. S. Regulamentos da cultura: diversidade sexual e de gênero nos concursos juninos de Belém. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 1, e56099, dez. 2020.) da festa oficial ela se mostrou disposta a negociar esse lugar e conseguiu se afirmar. Antes mesmo de adentrarem a performance, há um afeto que une e a transgeneridade “toma palavra”, como fala Jaqueline Gomes de Jesus (2019)JESUS, J. G. Xica Manicongo: a transgeneridade toma palavra. Redoc, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 250-260, jan./abr. 2019.. Aqui, falo do capacete, das saias, do saiote e das espadas. Há nessas performances uma força alegre de resistência diante do que o corpo pode ser, no que ele pode se encantar e a partir de quem esse encantamento acontece. Com o filho de uma das moradoras do bairro que ajuda o grupo, Mestra Mellysa entra em cena com o apito na boca. O cordão segue na realeza negra de um corpo brincante que encena no presente a devoção enquanto promessa de uma microutopia queer, onde a tradição pode ser retrabalhada. Para isso, considero a visão de Dodi Leal (2021)LEAL, D. T. B. Fabulações travestis sobre o fim. Conceição/Conception, Campinas, v. 10, n. 1, e021002, maio 2021. importante para articular essa relação entre cisgeneridade e tradição pela irrupção da existência travesti. A partir das transgeneridades se faz possível pensar nessa fabulação (Martins, 1997MARTINS, L. M. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza, 1997.) do teatro de Reis como uma forma de pensar o encantamento por essa performatividade de gênero em “encantravamento”.

Figura 6
Guerreiro Beija-Flor no Ciclo de Reis, 2021.

Afinal, “encantravar o mundo é o encantamento travesti do mundo” (Leal, 2021LEAL, D. T. B. Fabulações travestis sobre o fim. Conceição/Conception, Campinas, v. 10, n. 1, e021002, maio 2021., p. 10). O encantamento travesti do mundo pode ser relacionar com o reencantamento do mundo que Barroso (2013)BARROSO, O. Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas. Fortaleza: Armazém Cultural, 2013. enfatiza como premissa utópica. Desse modo, esse corpo pode escavar a tradição por uma temporalidade das colagens travestis que fazem dos gestos em performance um modo de fabular outros lugares para si por meio da incorporação e suas poéticas, principalmente, se pensarmos que a tradição em si mesma não existe, pois como explica Castiel Vitorino Brasileiro (2021)BRASILEIRO, C. Eclipse. New York: CSS Bard: Hessel Museum, 2021., na passagem do conhecimento corpo a corpo o que atravessa em superfície é sempre uma modificação, sutil e/ou radical. É por esse olhar que alcançamos a condição mutante da própria tradição, uma vez que essas transgeneridades em performance buscam e tecem outras formas de produzir dizibilidades e visibilidades por uma performatividade que se encanta.

ReXistências

Alguns dias depois desses festejos natalinos de 2021, Mellysa Giselly me disse que os capacetes de LED encantaram os espectadores e despertaram até a curiosidade de alguns mestres. Ao citar o Mestre Antônio do Reisado dos Irmãos, ela conta que ele ficou observando de longe os fios luminosos, primeiro achou muito “inovador” e só depois começou a gostar da ideia. Não só o exemplo da agência criativa nos capacetes, mas toda uma gramática local dessas vivências na tradição, a exemplo das produções de si a partir desses múltiplos lugares do corpo, revelam modos de perfazer mundos pelo artifício e suas encarnações. Apesar de utilizar o conceito de teatro como encantamento, tenho pensado que essa incorporação pode ser vista não por um tempo cósmico, onde as hierarquias sociais são suspensas e a identidades culturais são invertidas, mas sim por uma encenação de afetos e sensações que permite encontrar tensões entre performances e performatividades. Afinal, há um modo de jogar “closeta” que põe a performatividade de gênero no matiz do meu debate sobre o encantamento, onde essas brincantes se encantam, mas a sua forma de apresentar o gênero pode fazer irromper imagens do popular e dos enredamentos da tradição mesmo quando voltam ao cotidiano.

Ainda que hoje seja mestra, Mellysa diz não se ver como Tesouro Vivo da Cultura. É interessante destacar que não abordei de modo suficiente a cisgeneridade e sua viga dentro da produção dessas tradições, sendo uma discussão que pretendo avançar talvez em contraponto ao artivismo na cultura popular. Por muito tempo, trabalhei com a noção de artivismo brincante, mas o que essas reXistências têm a dizer para além dessas ressonâncias? Ainda não sei, mas entendo que não há nada a ser resgatado, mas sim reimaginado através de um Nordeste em devires, no caleidoscópio que o Cariri e Juazeiro do Norte podem ser, trocando a “folclorização” pela “fechação” de todo um fio constelar de céu brincante. Assim, vejo que a fala da brincante Manul Marinho sobre Tica poderia ser uma resposta para Oswald Barroso, pois embora performar como rainha possa não fazer diferença para ele, a performatividade de gênero de quem performa parece importar.

Referências

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  • 1
    Apoio da Faperj - Programa Nota 10 e Capes - PrInt.
  • 2
    No decorrer deste artigo, apresento um conjunto de fotografias, entrevistas e conversações realizadas com as pessoas colaboradoras nesse contexto etnografado entre 2016 a 2021 em Juazeiro do Norte (CE).
  • 3
    Para acompanhar a relação entre performance, ritual e corpo na vivência de Tica, ver Oliveira Junior (2019)OLIVEIRA, R. J. Tica nasceu de papo para cima: enunciados performativos na rainha do Reisado Santa Helena. Cadernos Pagu, Campinas, n. 55, e195523, 2019. e Oliveira Junior e Fortes (2020)OLIVEIRA JUNIOR, R. J.; FORTES, L. O simulacro da Rainha: performance, ritual e corpo no Reisado Santa Helena. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 26, n. 56, p. 87-115, jan./abr. 2020..
  • 4
    LGBTQIA+ é a sigla de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queer, intersexuais e assexuais. Embora trate de exemplos-eventos da vivência de brincantes trans no contexto etnografado, utilizo a sigla brevemente apenas como forma de apresentar na introdução o olhar mais geral da pesquisa.
  • 5
    Segui com o objetivo de fazer de Juazeiro do Norte uma cidade-piloto para percorrer os 14 municípios cearenses, mapeados pela Coordenadoria de Patrimônio Cultural e Memória (Copam) da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult), retentoras do registro institucional de mestras e mestres da tradição do reisado reconhecidos na Lei 13.842/2006 (Ceará, 2006CEARÁ. Lei nº 13.842, de 27 de novembro de 2006. Institui o registro dos “Tesouros Vivos da Cultura” no Estado do Ceará e dá outras providências. Diário Oficial do Estado, Fortaleza, ano 9, n. 227, p. 1-3, 30 nov. 2006. Disponível em: Disponível em: http://imagens.seplag.ce.gov.br/PDF/20061130/do20061130p01.pdf . Acesso em: 30 set. 2022.
    http://imagens.seplag.ce.gov.br/PDF/2006...
    ) dos Tesouros Vivos da Cultura, sendo esse dado institucional apenas uma das entradas no campo, pois reconheço a própria limitação dele em deixar de fora diversos grupos que inclusive seguem me guiando para fora desse roteiro previsto.
  • 6
    Até agora 19 cidades foram percorridas entre Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha, Caririaçu Milagres, Potengi, Fortaleza, Ocara, Quixadá, Quixeramobim, Russas, Choró, Quixerê, Massapê, Canindê, Sobral, Granja e Fortaleza.
  • 7
    “Palosa” pode ser visto como termo êmico constantemente articulado no campo, onde Mellysa o utiliza para descrever a forma como quer estar na performance, evidenciando uma estilização de si.
  • 8
    O trecho da performance gravada no Museu Orgânico do Mestre Nena pode ser visto a partir do minuto 31 em Mestres… (2021)MESTRES guardiões da memória - Museu Casa do Mestre Nena. Direção: Rodolfo Richard. Produtor: Helton Amâncio. Fortaleza: Sesc Ceará, 2021. 1 vídeo (44min37s). Publicado no canal Sesc Ceará. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NOyGQEl6xXI . Acesso em: 29 set. 2022.
    https://www.youtube.com/watch?v=NOyGQEl6...
    .
  • 9
    “Closetas”, termo bastante utilizado pelas brincantes, está associado a um gestual mais realçado da brincadeira e ressoa entre performance e performatividade em um modo de jogar com o corpo e trejeitos mais exagerados.
  • 10
    O adesivo dialoga com as disputas políticas de 2018 a 2022 durante o governo de Bolsonaro.
  • 11
    O termo “aquendar” nesse contexto revela uma prática de produção de si a partir de lugares múltiplos que ressoa na construção desse corpo trans enredado pela tradição, envolvendo moralidades e subversões nesse gesto de esconder a genitália nessas performances onde os shorts ou calcinhas às vezes ficam à mostra na dança.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2022
  • Aceito
    05 Maio 2023
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