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Utopia higienista argentina

An Argentinean public health utopia

LIVROS & REDES

Utopia higienista argentina

An Argentinean public health utopia

Beatriz Teixeira Weber

Professora doutora do Departamento de História/Universidade Federal de Santa Maria. Rua Tuiuti, 2434/301. 97060-420 -Santa Maria - RS - Brasil. beatriztweber@gmail.com

No Brasil ainda conhecemos pouco da produção no campo da história da saúde que se realiza na Argentina. O autor Alejandro Kohl é médico psiquiatra que se dispôs a refletir sobre história e antropologia sanitárias, como ele denomina sua área de investigação. O livro Higienismo argentino é um de seus primeiros trabalhos publicados e tem como proposta uma análise do imaginário social vinculado à saúde, com base no que ele chama de utopia sanitária ao longo da história argentina, desde a década de 1870 até a de 1950. O marco utilizado pelo autor para o surgimento da utopia em relação à saúde é 1874, como resultado do desafio representado pelas diversas epidemias sofridas pela Argentina nos anos anteriores, em especial a de febre amarela, em 1871. A análise se encerra com o afastamento de Ramón Carrillo da vida pública. Carrillo foi um médico de orientação liberal que atuou como referência orientadora na proposta de utopia do higienismo, graças à oportunidade que lhe ofereceu o presidente Juan Perón.

O autor define utopia como a configuração imaginária de uma sociedade inexistente, convertida em ideia de futuro, em referência orientadora da práxis de múltiplas manifestações culturais. As várias lideranças políticas argentinas e seus representantes no campo da análise sanitária construíram discursos com perspectiva utópica, quando a realidade em que viviam não oferecia alternativas; daí definirem um discurso representativo, com imagens poéticas visando ao desejo de ser daquela sociedade, através de suas lideranças. Kohl entende o termo poética como teoria da produção de discursos, com o intento de resgate da imaginação de formas de reducionismo que menosprezariam o aspecto fundante do discurso. Segundo o autor, utopia remeteria à ideia de um lugar inexistente, ao passo que outro conceito, o de ideologia, procuraria legitimar as circunstâncias existentes.

Pensar o discurso como fundador da proposta higienista reflete preocupação com a organização original dessa proposta, como ideário que dá sentido inicial, que constitui o próprio campo de análise e posterior discussão É o discurso que dá sentido às políticas que seriam referendadas adiante. O autor procura dar visibilidade a um campo tido como dado, embora, como ele demonstra, seja constituído - o que lhe dá existência -, podendo ter, portanto, diversas possibilidades de constituição inicial.

O ponto de partida de Kohl localiza-se nas novas preocupações com a higiene dos espaços urbanos a partir de 1830, com o avanço social da burguesia inglesa. O argumento principal se relaciona com as condições ambientais em desenvolvimento nas cidades. O estado de insalubridade da população, nos espaços urbanos ampliados pelas indústrias, seria resultado da falta de higiene da água e das casas, e sua superação ocorreria com a implantação de medidas de engenharia articuladas pelo Estado. Associavam-se miséria e enfermidade, e a intervenção do Estado proporcionaria adequada organização social para prevenir enfermidades em meio à força de trabalho disponível.

No caso argentino, o projeto liberal de incorporar o país ao mercado mundial como produtor agroexportador e o desenvolvimento urbano subsequente alentaram as expectativas de aplicação do modelo utilitarista a partir da década de 1880. As ideias do modelo inglês seriam vinculadas a um pensamento pragmático, propenso a implementar medidas circunstanciais para resolver problemas pontuais e tensões políticas. Como consequência das epidemias de cólera em 1869 e febre amarela em 1871, o governo adotou medidas de caráter marcadamente anticontagionista, relacionadas à segurança nos portos. Quanto às medidas de segurança interna, adotou as que visavam regular o espaço dos cemitérios, a provisão dos alimentos, o lixo - enfim, a vida nas cidades.

A partir do fluxo migratório ocorrido da Europa para a região do Prata, base da urbanização decorrente, foi necessário adotar medidas alternativas que beneficiassem o comércio, restringindo-se as quarentenas mas de tal modo que estivessem ajustadas às condições prescritas internacionalmente. Em face dessas questões teria nascido a utopia do higienismo, que se distinguia da proposta internacional e procurava traduzir uma certa forma de projetar a nação argentina com seus interesses particulares, atendendo às necessidades de sua população, mas que seria a base da articulação com os países mais avançados.

Os 'higienistas utopizantes' teriam o mérito de haver articulado a experiência popular ao contexto imaginário de uma sociedade ideal que se converteria em ponto de referência de diferentes agentes culturais, durante as décadas seguintes. Alejandro Kohl descreve como as propostas teriam chegado na Argentina com diferentes leituras e interpretações por ideólogos locais, e os vínculos que seus autores teriam a partir dessas propostas originais. Também procura mostrar as diferentes formulações que assumiu o discurso utópico higienista ao longo dos governos posteriores.

Segundo Kohl, a utopia do higienismo teve como autor principal Guillermo Rawson, ministro do Interior durante o governo de Bartolomeu Mitre (1862-1868) e primeiro docente da cátedra de Higiene da Universidade de Buenos Aires desde 1874 - embora outros autores também tenham servido de inspiração. Rawson formulou ideias sobre a necessidade de afirmar a saúde biológica e social para o conjunto da população, defendendo que essa preocupação deveria ser do interesse de todos que prestavam serviços ao país. Sua proposta contrapunha-se ao ideal civilizatório de projeção de uma sociedade criada sob o signo da saúde e propunha a fórmula ideal de redefinir uma república possível, na situação imposta pelas condições epidêmicas.

As figurações simbólicas do patológico que emergem do urbano ofereciam o substrato necessário para a confecção de mitos, a partir dos quais os higienistas edificaram o sistema que culminou em utopia. A relação enigmática entre civilização urbana e enfermidade da população seria a que os higienistas procuraram explicitar, constituindo novos mitos: dos casebres como locais da enfermidade; do destino dos cadáveres; da ciência como recurso ideal para dominar a natureza; da tuberculose pulmonar. O programa do higienismo elegeu temas para tratar, a exemplo do ar atmosférico, da urbanização, das residências, das obras de salubridade, do destino dos cadáveres, da higiene industrial, da alimentação e da educação pública. A partir dessas propostas, o higienismo enfrentou diversas conjunturas, que o autor explicita.

As circunstâncias que limitaram a realização dos projetos dos higienistas foram as demais ideologias imperantes, encarnadas em atores sociais com interesses calcados na ordem existente e para quem não era necessária 'a exploração do possível'. Os discípulos do higienismo tiveram que se converter em atores sociais e disputar o poder para levar a efeito suas ideias, gerando políticas e práticas nem sempre condizentes com o ideário formulado, as quais o autor denomina projetos "francoatiradores no campo social", nos governos posteriores.

A política argentina esteve marcada por diversos ideários e práticas, responsáveis pela aplicação de projetos de salubridade que introduziram elementos além daqueles da perspectiva higienista. Durante o século XX, no período investigado pelo autor, organizou-se um tipo de medicina que ele chama de assistencial e que antecedeu a medicina moderna. A perspectiva higienista argentina esteve marcada por uma concepção que acreditava no potencial de reflexão da população, resgatando uma sociedade ideal - um dos elementos que compuseram as propostas de organização política mais geral, também inseridas nas políticas internacionais do período.

Alejandro Kohl dá visibilidade a uma proposta utópica, com ideário simbólico constituído por diversos interesses e que foi sendo reapropriado conforme as circunstâncias. Seu mérito está em perceber esse ideário como um arcabouço mítico que deu forma a aspectos posteriores da sociedade argentina, que também bebeu da perspectiva liberal. Nem sempre esse ideário apresentou vínculos efetivos com aquela sociedade, embora tenha ajudado sua composição. Além disso, o autor procura tratar a relação desse ideário com o contexto social em que se produziram essas ideias, demonstrando como os diversos grupos sociais apresentam formatos muito complexos na apropriação das imagens que os constituem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2010
  • Data do Fascículo
    2010
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