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Pluralismo e dissensão: o magnetismo animal em debate no Portugal de meados de Oitocentos

Pluralism and dissent: animal magnetism in debate in Portugal in the mid-nineteenth century

Resumo

Em meados do século XIX, em Portugal, discutiu-se, com relativa intensidade, medicina e sistemas médicos alternativos e complementares, quer na imprensa periódica especializada, quer em alguns jornais de cunho generalista. Desses sistemas médicos, que emergiram com vigor no Portugal do Romantismo, um parece ter gerado especial debate: o magnetismo animal. O presente artigo, em perspectiva comparada, visa resgatar o alcance histórico desse sistema clínico, analisando a curiosidade popular e especializada em torno dessa terapia. Finalmente, contextualizar-se-ão as querelas literárias e institucionais que o magnetismo animal desencadeou no período.

história; pluralismo; controvérsia; magnetismo animal; saúde

Abstract

In mid-nineteenth century Portugal, alternative and complementary medical systems and medicine were discussed with relative intensity in the specialized press and in some mainstream newspapers. One of these medical systems, which gained ground during Portugal’s romantic era, seems to have sparked particular debate: animal magnetism. A comparative approach is taken to review the historical scope of this healing system, analyzing popular and specialized curiosity regarding this therapy. Finally, the literary and institutional disagreements that animal magnetism unleashed during the period are contextualized.

history; pluralism; controversy; animal magnetism; health

Ao folhearmos a imprensa especializada ou até alguns jornais de cunho generalista, verificamos que os debates em torno dos sistemas médicos alternativos e complementares ocuparam algum espaço literário no Portugal de meados do século XIX. Desses sistemas médicos, um parece ter gerado um debate algo especial, particularmente vivo, mas bem circunscrito no tempo: o magnetismo animal. Com efeito, apesar de encontrarmos referências anteriores ao magnetismo e à prática da magnetização, o ponto mais intenso do debate parece ocorrer num ano específico: 1845. A circunstância é significativa por si só, uma vez que, nos anos imediatamente subsequentes, eram descobertos os efeitos anestésicos do éter (1846) e do clorofórmio (1847), bem como a sua aplicação em contexto cirúrgico. Cairia, assim, por terra uma das eventuais virtualidades terapêuticas do magnetismo animal, ou, pelo menos, a que mais parece ter despertado a atenção dos facultativos portugueses: a cirurgia sem dor. Experimentada em outros contextos nacionais, que brevemente analisaremos, cremos que esta aplicação terapêutica do magnetismo – indução da perda da sensibilidade geral do corpo e aproveitamento dos seus poderes anestésicos – não terá sido levada à prática em Portugal. Apesar de reconhecida e discutida, quer na imprensa, quer no seio das agremiações profissionais e científicas, essa possibilidade foi rodeada por uma espécie de tabu epistémico. Foi analisada e debatida entre profissionais de saúde, entre médicos e cirurgiões, mas algumas instituições, como veremos, parecem ter bloqueado a sua discussão mais aberta.

No presente artigo, em perspectiva comparada, visamos ilustrar a curiosidade geral em torno do magnetismo, as querelas que envolveram essa prática, acompanhando quer as disputas literárias, quer algumas respostas institucionais a respeito da sua validade clínica. Se se tratou aqui de uma viva controvérsia ou, antes, de polémicas mais ou menos localizadas, tecidas entre públicos circunscritos, é o que nos importará detalhar nas próximas páginas. Em linhas gerais, o presente artigo visa identificar os termos gerais desse debate e as razões que o motivaram, dando igualmente conta de um sistema terapêutico que foi votado ao esquecimento historiográfico. O que se segue cumpre, assim, um duplo propósito: por um lado, visa resgatar um debate em torno de um sistema médico, que fez parte inequívoca do universo clínico do século XIX, dotado de subtilezas e complexidades que se traduziram na multiplicidade de agentes e teorias médicas em confronto, muitas vezes exorbitando os saberes e procedimentos ortodoxos e academicamente validados; por outro lado, tratar-se-á de ensaiar, no sentido rigoroso do termo, uma breve exemplificação da importância do estudo das controvérsias em medicina – motivações, desenvolvimento e conclusão – realçando, nesse processo, a forte interpenetração entre factores epistémicos (argumentos, teorias, procedimentos clínicos) e aspectos de natureza não científica (modelos de argumentação, decisões interpretativas, estratégias de legitimação profissional e disciplinar).1 1 Sobre o estatuto e possibilidades inerentes ao estudo das controvérsias, cf. Gil (1990). Ainda que provisórias, as conclusões deste artigo apontam para a relativa importância, na sociedade portuguesa de então, dos debates em torno de sistemas médicos que se apresentaram como alternativos ou complementares do saber médico oficial. Inquirir quem aderia a um desses sistemas médicos – o magnetismo animal –, quer como eventual praticante, quer como paciente, é também um dos objetivos do nosso trabalho.

O magnetismo animal: “objeto de curiosidade e de moda”

Não é fácil determinar, ao certo, o momento da introdução do magnetismo em Portugal. Teorizado e amplamente praticado por Franz Anton Mesmer (1734-1815) em finais do século XVIII, em cidades tão diversas como Viena ou Paris, e redefinido logo depois por autores como Amand de Puységur (1751-1825) ou o português José Custódio de Faria (1756-1819), mais conhecido por abade Faria, o magnetismo animal ou mesmerismo constituiu uma prática controversa que, em alguns sectores médicos e não obstante outras aplicações clínicas, foi encarada como uma via possível para a realização da cirurgia sem dor. Quanto a nós, essa parece ter sido a hipótese que mais seduziu os facultativos portugueses, conduzindo-os a estudar e discutir o magnetismo.

Claro que as demais possibilidades terapêuticas do mesmerismo, como também foi designado, não foram esquecidas. De acordo com as ideias preconizadas pelo seu fundador, o magnetismo animal postulava a ideia de que o corpo humano era percorrido por um fluido e que a doença era o resultado de um obstáculo ou bloqueio no organismo humano que impedia o livre curso dessa mesma energia que, de resto e tal como se defendia, cercava e compunha todos os corpos presentes na natureza.2 2 A bibliografia sobre o magnetismo animal como prática terapêutica é assaz volumosa. Destacamos apenas os seguintes títulos fundamentais: Darnton (1986), Gauld (1992), Crabtree (1993) ou Winter (1998). A esse propósito é também fundamental a consulta de Montiel e De Pablo (2003). Importa sublinhar que essas noções, porventura estranhas à nossa sensibilidade, eram perfeitamente inteligíveis e credíveis, não só para os estratos sociais mais baixos, mas inclusive para as próprias elites intelectuais e científicas de finais do século XVIII (Edelman, 2009EDELMAN, Nicole. Un savoir occulté ou pourquoi le magnétisme animal ne fut-il pas pensé ‘comme une branche très curieuse de psychologie et d’histoire naturelle’? Revue d’Histoire du XIXè Siècle, v.38, n.1, p.115-132. 2009., p.117). Ao arrepio das representações oriundas da anátomopatologia e da fisiologia que se imporão em inícios do século XIX, o magnetismo sugeria uma visão muito esquemática e intuitiva dos estados de saúde e doença – a circulação dos fluidos no corpo correspondia à saúde, e o seu bloqueio, ao desequilíbrio somático – e assegurava também que o homem, longe de constituir um átomo isolado, se continuava a inscrever na vasta sintaxe do mundo, isto é, num tecido de amplas influências cósmicas e sociais que o condicionavam, mormente na sua saúde, robustez e vitalidade (Edelman, 2009EDELMAN, Nicole. Un savoir occulté ou pourquoi le magnétisme animal ne fut-il pas pensé ‘comme une branche très curieuse de psychologie et d’histoire naturelle’? Revue d’Histoire du XIXè Siècle, v.38, n.1, p.115-132. 2009., p.117).

Com base nesses pressupostos, as diferentes práticas de mesmerização procuravam assim desbloquear, controlar e reforçar a ação dessa força energética nos pacientes: a cura pelo toque (passes magnéticos) (Figura 1), a aplicação de massagens ou a utilização de cubas ou banheiras magnéticas, dispositivos sui generis compostos por garrafas de cristal cheias de água magnetizada, e à volta das quais se dispunham os pacientes em busca da cura, eram algumas dessas técnicas que atraíram a atenção de públicos muito consideráveis na Europa, estando bem documentado o caso francês, com especial incidência na década pré-revolucionária (Darnton, 1986DARNTON, Robert. Mesmerism and the end of the enlightenment in France. Harvard: Harvard University Press. 1986.).3 3 Este dispositivo foi inventado por Mesmer e constituiu um dos aspectos mais emblemáticos do magnetismo como prática terapêutica. Acerca desse assunto, cf. Montiel (2005). De facto, desde 1778, ano em que se fixa em Paris, num apartamento onde instala uma dessas “banheiras”, e fazendo-se acompanhar por uma série de pacientes, Mesmer persegue o reconhecimento e a validação das agremiações científicas e profissionais da época. Mas, não obstante o pretenso sucesso obtido na cura de alguns doentes, o que foi ventilado em panfletos distribuídos na cidade de Paris, a resposta da classe médica e da universidade foi bastante contundente.

Figura 1
: Capa de Princípios de magnetologia (Lisboa: Tipografia do Progresso, 1884)

Artigos inseridos em publicações como o Journal de Médecine e a Gazette de Santé, redigidos por alguns influentes médicos e professores da Universidade de Medicina de Paris, vão hostilizar imediatamente Mesmer e os seus procedimentos (Darnton, 1986DARNTON, Robert. Mesmerism and the end of the enlightenment in France. Harvard: Harvard University Press. 1986., p.50). As elites académicas reagiam assim, importa sublinhá-lo, ao sucesso do mesmerismo quer entre as elites, quer entre os cientistas amadores. Do ponto de vista universitário francês, o mesmerismo constituirá, desde logo, uma heresia que importaria extirpar, silenciar e doravante esquecer “em nome da razão” (Neubern, 2008NEUBERN, Maurício da Silva. Reflexões sobre o magnetismo animal: contribuições para a revisão da história da psicologia. Estudos de Psicologia, v.25, n.3, p.439-448. 2008., p.444). A purga institucional foi a segunda consequência imediata, e, para a história, fica o nome do médico Charles Deslon (1750-1786), um dos primeiros e mais reputados clínicos convertidos ao mesmerismo na França e que seria expulso da universidade num longo processo que se arrastou entre 1781 e 1784: o convertido Deslon ocupava então o cargo de docteur regent da faculdade médica parisiense, posição que acumulava com o de premier médecin do conde de Artois. Não obstante o interesse popular em torno do mesmerismo, ser membro da faculdade médica e adepto da magnetização constituíam aspectos irreconciliáveis no percurso profissional e científico dos médicos franceses de finais do século XVIII. Ao que parece, os membros da Faculdade de Medicina de Paris terão sido mesmo impelidos a rejeitar publicamente qualquer tipo de relação com o magnetismo animal por meio da assinatura de uma declaração de condenação desse tipo de práticas (Neubern, 2008NEUBERN, Maurício da Silva. Reflexões sobre o magnetismo animal: contribuições para a revisão da história da psicologia. Estudos de Psicologia, v.25, n.3, p.439-448. 2008., p.442). Esse processo de marginalização académica e científica ajudar-nos-á a compreender o tratamento universitário e institucional que o magnetismo animal recebeu na primeira metade do século XIX também em Portugal.

Em termos mais globais, e no período imediatamente subsequente ao que vimos referindo, o entusiasmo parece ter sido relativamente generalizado em torno das experiências de magnetização também em Portugal, acompanhando uma tendência que pode ser identificada não só no caso francês, mas também em países como o Brasil, a Inglaterra e suas colónias, sem esquecer os EUA, onde o magnetismo animal terá sido introduzido em 1836, em vários lugares (Boston, Rhode Island, Nova Inglaterra, Nova Iorque) por iniciativa do francês Charles Poyen e onde não terá encontrado tantos obstáculos como na França (Safont, 2014SAFONT, Juan Marcos Bonet. La imagen del magnetismo animal em la literatura de ficción: los casos de Poe, Doyle y Du Maurier. Dynamis, v.34, n.2, p.403-423. 2014.). Sintomático desse interesse coletivo pelas práticas da mesmerização e da hipnose, para lá do campo propriamente clínico, foi a sua utilização literária, por autores como Edgar Allan Poe, Arthur Conan Doyle ou George du Maurier, num recurso que esteve longe de corresponder a algo de fortuito ou circunstancial (Safont, 2014SAFONT, Juan Marcos Bonet. La imagen del magnetismo animal em la literatura de ficción: los casos de Poe, Doyle y Du Maurier. Dynamis, v.34, n.2, p.403-423. 2014.). O interesse pelo magnetismo, no decurso de Oitocentos, parece mais abrangente do que à partida poderíamos pensar: cientistas, médicos, académicos e poetas, entre outros públicos mais heterogéneos, foram particularmente sensíveis a essa teoria e a suas aplicações.

Seja como for, em Portugal e por volta de 1838, o Conselho de Saúde Pública do Reino, órgão consultivo do governo na área da saúde coletiva, podia já lamentar que o magnetismo animal constituísse uma metamorfose do charlatanismo “bem formidável” e que urgia combater, o que indicia, pelo menos, o incremento do número de magnetizadores em Portugal e, porventura, a curiosidade das populações em torno dessas matérias (Anais..., 1839ANAIS.... Anais do Conselho de Saúde Pública do Reino, t.3, 1a parte. Lisboa: Tipografia Lisbonense. 1839., p.36-37).

Para a década de 1840, a imprensa periódica portuguesa evidencia bem esse interesse geral pelo magnetismo que, como aqui brevemente mostraremos, não se circunscreveu a uma cidade ou uma camada social. A Gazeta Médica do Porto chegará mesmo a falar do magnetismo como inequívoco “objeto de curiosidade e de moda”. Pela mesma altura, numa “carta” assinada por uma “obscura portuense”, publicada na Revista Universal Lisbonense, em maio de 1845, podia também afirmar-se que “magnetiza-se no Porto com uma facilidade que me assusta”, rematando-se, “que os facultativos se sirvam do magnetismo para experiências, ou para tentarem alguma cura, muito bom o creio; mas que por divertimento se [use] … parece-me tentar a Deus” (Gusmão, maio 1845, p.545). Para o mesmo ano, o jornal portuense O Cosmopolita dá conta de que um praticante tinha dado início aos seus “experimentos na biblioteca pública” da mesma cidade (Magnetismo..., 12 maio 1845).

Ainda a norte de Portugal, na zona da Feira, encontramos indícios de movimentações semelhantes. Em maio de 1845, o Periódico dos Pobres no Porto noticiava “uma numerosa reunião de famílias”, em casa de um habitante local, e sob a assistência do administrador do Concelho, entre outras figuras administrativas locais, e onde se realizariam sessões de magnetismo. Escrevia-se: “(o) magnetizador foi aplaudido”, sendo que o mesmo “também pretendeu magnetizar alguma das Senhoras, mas não lhe foi possível” (Notícias..., 28 maio 1845, p.502).

Mais a sul, em Coimbra, tendências semelhantes. Um artigo publicado pelo médico F.A. Rodrigues de Gusmão (19 jun. 1845), nome a que voltaremos mais à frente, referia-se também à moda de magnetizar, nomeadamente entre os estudantes e professores da universidade. Aqui, dizia-se, teria sido um senhor Sanches o primeiro a realizar experiências magnéticas (p.573-574). A tais sessões haviam assistido, segundo o relato, dois ou três médicos, estudantes e “várias outras pessoas”. Segundo o autor, “imediatamente se arvoraram em magnetizadores numerosos estudantes, que sujeitaram aos processos todo o género de pessoas”, sendo que, testemunhando-se o caráter eclético da assistência, “muitos dos catedráticos desejaram presenciar, e testemunhar tão espantosos sucessos” (Gusmão..., 19 jun. 1845, p.573-574). Apesar de muito crítico em relação a essas práticas, o artigo citado é bem claro em relação à curiosidade, mormente académica, suscitada pelo magnetismo. Isso mesmo o comprova, também, uma extensa lista publicada na Revista Académica de Coimbra, da autoria do médico José Ferreira de Macedo Pinto (1814-1895), nome ao qual voltaremos mais à frente, e que regista os nomes dos magnetizadores e magnetizados nessa cidade (Pinto, 1845b, p.118-120). Para além do próprio Macedo Pinto, surgem mencionados como magnetizadores Pina Rollo, oficial de marinha e estudante de matemática e filosofia, e o supracitado senhor Sanches, referindo-se que “[o]utras muitas pessoas magnetizaram, e foram magnetizadas em Coimbra” (p.120). Importa destacar que, nos casos referenciados neste artigo, quase não são identificados propósitos de cunho terapêutico, denotando-se um interesse científico quase exclusivo em comprovar a veracidade do estado de sonambulismo induzido pela magnetização. A exceção é um apontamento muito evasivo a um paciente, estudante de direito na mesma universidade, que “foi ultimamente magnetizado em sua casa por duas ou três vezes e desde então sentiu alívio em incômodos que sofria durante o sono” (Pinto, 1845b, p.118).4 4 No decurso da presente investigação, não conseguimos localizar qualquer tipo de documentação que se assemelhe aos diários de tratamentos magnéticos recolhidos do Archiv für den thierischen Magnetismus, e estudados recentemente por Luis Montiel. Com base no estudo desses escritos, o autor assinala o protagonismo acentuado, que apelida de inédito, do paciente na cena terapêutica. Para Montiel, o estudo desses documentos manifesta, quase sem exceções, uma maior simetria de poderes no âmbito desse tipo de relação terapêutica. Subvertendo a relação terapêutica clássica de matriz hipocrática – o paciente que se deve subordinar ao médico que detém o saber-poder – a posição do doente em face do magnetizador é muito diversa: em virtude do sonambulismo, considera-se que o primeiro detém um saber privilegiado sobre o seu corpo próprio, sendo práticas comuns quer o autodiagnóstico quer a autoprescrição terapêutica. Cf. Montiel (2006a, 2006b). Não duvidando dessa revalorização do paciente no âmbito do magnetismo animal, cremos que o desequilíbrio de poderes entre praticantes e pacientes, no Antigo Regime, não terá sido tão acentuado como pressupõe Luis Montiel. A esse propósito, a bibliografia é caudalosa, mas remetemos para os artigos clássicos de Jewson (2009) e Waddington (1975).

Por volta do mesmo período, o jornal Periódico dos Pobres no Porto relata verdadeiras viagens de certos magnetizadores pelo país, que impunham a sua presença junto das populações, mobilizando plateias com alguma expressão, em assembleias públicas e privadas. Ilustrando bem esse movimento, o jornal sublinhava, em abril de 1845, ter chegado à cidade de Coimbra, um “sujeito que veio de Lisboa, e que diz ter aí aprendido com um francês” e que “continua nesta cidade a magnetizar, causando espanto” (Magnetizador, 25 abr. 1845, p.394). Ainda segundo a notícia, o magnetismo assumia foros de verdadeira “mania”, principalmente entre a comunidade estudantil, num interesse que tinha tanto de intelectual como de subversivo e erótico. Como podemos ler: “[o]s Estudantes têm magnetizado muitas meretrizes e se divertem a ouvir-lhes a vida” (p.394). A notícia era rematada com a informação útil de que esse magnetizador se dirigia para o norte do país, a caminho de Valença, sendo quase certa a sua permanência na cidade do Porto, onde se dedicaria aí a esse tipo de práticas.

Importa assinalar que, nesse domínio, a realidade portuguesa está longe de constituir uma exceção. No Brasil, por exemplo, podem ser encontradas referências a magnetizadores na imprensa periódica pelo menos desde 1836, num movimento que permanecerá muito vivo até finais de Oitocentos. Em cidades tão diversas como o Rio de Janeiro, Recife ou Salvador, um crescente número de magnetizadores e magnetizadoras foram assim promovendo as suas pretensas capacidades de cura, em salas de teatro ou em salões da corte, traçando diagnósticos clínicos e oferecendo soluções terapêuticas que passavam, claro, pela magnetização efetuada por meio do toque (passes magnéticos), mas também realizando previsões sobre o futuro ou fazendo as mais diversificadas adivinhações (Veronese, 2017VERONESE, Michelle. Magnetizadoras, sonâmbulas e médiuns: as ousadas brasileiras do século XIX e o caldeirão de práticas que influenciaram o espiritismo. Religare, v.14, n.1, p.109-130. 2017.). Esse quadro não deve fazer esquecer as aplicações imediatamente terapêuticas do magnetismo, levadas a cabo frequentemente por indivíduos sem habilitações legais. Em 1836, um José Leopoldo Gamard podia assim publicitar o seu consultório no Rio de Janeiro, na rua do Ouvidor, onde curava apenas com recurso ao magnetismo, afirmando tratar de desordens do útero, cancro no peito, estreitamentos, carnosidades na uretra e, entre outros males, moléstias nervosas, sem o emprego de qualquer tipo de procedimento cirúrgico e, claro, contrapondo as suas práticas àqueles dolorosos tipo de intervenção (Veronese, 2017VERONESE, Michelle. Magnetizadoras, sonâmbulas e médiuns: as ousadas brasileiras do século XIX e o caldeirão de práticas que influenciaram o espiritismo. Religare, v.14, n.1, p.109-130. 2017., p.113). Com o decurso do século XIX, o interesse geral pelo mesmerismo parece ter-se acentuado no Brasil, e, a 17 de julho de 1853, o Jornal das Senhoras anunciava mesmo que aquele constituía “a ordem do dia, tanto para as senhoras quanto para os homens”, estando em causa uma moda “autenticada … por célebres e acreditáveis doutores alemães, portugueses, americanos e franceses” (citado em Veronese, 2017VERONESE, Michelle. Magnetizadoras, sonâmbulas e médiuns: as ousadas brasileiras do século XIX e o caldeirão de práticas que influenciaram o espiritismo. Religare, v.14, n.1, p.109-130. 2017., p.114). Esta última referência permite-nos aventar que a análise do percurso dos médicos magnetizadores portugueses e das polémicas em que se envolveram, que aqui esboçaremos, possa ter particular interesse para o estudo do caso brasileiro, já que a sua influência nesses praticantes é explicitamente mencionada, na imprensa da época, como fonte de legitimação e autoridade.

Significativo é, também, o recurso ao magnetismo como alternativa a intervenções de carácter cirúrgico que verificamos no caso deste último praticante brasileiro. Ainda que noutro sentido, foi também a mitigação da dor que mobilizou alguns médicos e cirurgiões do lado de cá do Atlântico a empreender investigações sobre os efeitos anestésicos do magnetismo animal. Convém sublinhar que, no caso português, apesar de não termos encontrado referência explícita à utilização do magnetismo na realização de cirurgia, a hipótese foi conhecida e, como veremos, esteve na iminência de ser tentada por um clínico e professor das Escolas Médico-cirúrgicas. Como se sabe, o magnetismo animal foi aplicado nesse domínio, com aparente sucesso em outras realidades nacionais, pelo que a sua discussão se impôs, já que em causa estava o velho sonho de se poder realizar operações cirúrgicas de forma indolor, induzindo igualmente a plena passividade do paciente.

Dessa história geral, e muito significativa pelos contornos que viria a adquirir, é indissociável o célebre cirurgião escocês James Esdaile (1808-1859), formado pela Universidade de Edimburgo, que alcançou grande notoriedade no Reino Unido e na Índia Britânica, gerando controvérsia devido ao recurso ao magnetismo para efeitos cirúrgicos. Entre 1846 e 1849 aproximadamente, Esdaile pôde assim, ao que parece, colocar os seus pacientes sob efeito anestésico, praticando diversas operações cirúrgicas – estão documentados casos de extração de tumores de grandes proporções, na antiga colónia britânica, pelo médico escocês –, o que lhe terá valido o apoio não só do governador-geral da Índia, lorde Dalhousie, mas também das elites indianas e das populações locais. Devido a esses sucessos, Esdaile terá obtido mesmo do governador autorização para a criação de um hospital experimental nas imediações de Calcutá, mas os seus apoios recuaram com a descoberta dos efeitos sedativos do éter e do clorofórmio e das possibilidades resultantes de, por esse meio, de forma mais económica e imediata, se proceder a operações cirúrgicas sem dor (Ernst, 2004ERNST, Waltraud. Colonial psychiatry, magic and religion: the case of mesmerism in British India. History of Psychiatry, v.15, n.1, p.59-61. 2004.). Regressando à Escócia logo depois, James Esdaile seria votado a uma imediata marginalização académica e científica pelos seus pares e, de efeitos mais duradouros, a um longo sono historiográfico, associado que foi o autor ao charlatanismo e a práticas consideradas doravante de carácter extracientífico (Ernst, 2004ERNST, Waltraud. Colonial psychiatry, magic and religion: the case of mesmerism in British India. History of Psychiatry, v.15, n.1, p.59-61. 2004.). Contudo, não se pense que estamos perante um caso ímpar. Também no Reino Unido, o médico John Elliotson (1791-1868), professor de medicina na Universidade de Londres, grande entusiasta da aplicação do magnetismo nas doenças neurológicas e defensor do seu potencial anestésico em cirurgia, seria obrigado a resignar da sua posição universitária na sequência das suas investigações e experiências no âmbito do magnetismo, que atingiram o seu auge entre 1837 e os primeiros anos da década de 1850 (Nicholls, 2013NICHOLLS, Phillip A. Medical pluralism in Britain, 1850-1930. In: Jütte, Robert (Ed.). Medical pluralism: past, present, future. Stuttgart: Franz Steiner. p.101-125. 2013.). A “desonra profissional” e a marginalização foram, também nesse caso, o preço a pagar pela curiosidade científica em torno de uma heterodoxia médica. O que terá sucedido, em Portugal, aos médicos que se interessaram pelo magnetismo e o praticaram? Qual o olhar das autoridades de saúde e da academia em relação a essas práticas?

A “mania de magnetizar”: medindo o alcance de uma querela literária

Tal como na França, no Reino Unido ou na Índia Britânica, o magnetismo animal foi encarado em Portugal com uma atitude identicamente ambígua pelas instâncias de poder académico. O interesse de alguns sectores da classe médica e de algumas elites académicas e sociais pela magnetização – feita, como vimos, em sessões públicas e privadas em várias cidades do país – contrasta com um discurso muito crítico das autoridades de saúde. Relembremos a posição do Conselho de Saúde Pública que, num Relatório geral referente aos trabalhos do ano de 1838, declarava ter incrementado a perseguição aos curandeiros na cidade de Lisboa e onde lamentava, ao mesmo tempo, que o magnetismo animal se apresentasse como uma nova faceta do charlatanismo, sendo nocivo simultaneamente à religião, à política, à moral e, finalmente, à medicina. Segundo o documento, o magnetismo exercia uma “notável influência sobre a moral das pessoas fracas, de uma imaginação móvel, e por isso fáceis de iludir-se” e, “cercado de argumentos, tirados da mais obscura e subtil metafísica, se apresenta como um meio curativo com formas bizarras, e com uma linguagem mística” (Anais..., 1839ANAIS.... Anais do Conselho de Saúde Pública do Reino, t.3, 1a parte. Lisboa: Tipografia Lisbonense. 1839., p.36-37). Pese embora o teor aparentemente inequívoco da argumentação, o texto é dúbio em relação às eventuais aplicações terapêuticas daquela prática. Não deixa contudo de se aventar que, dadas as incertezas quanto à influência do magnetismo sobre a saúde, se exigiam experiências exatas que o permitissem avaliar de forma cabal. Com efeito, no estado dos conhecimentos de então, avançava-se a hipótese de os efeitos desses procedimentos mais não serem do que o resultado da impressão de uma imaginação “fraca, e fácil a exaltar”, sendo, por isso, “mui perigoso empregá-lo como meio terapêutico” (Anais..., 1839ANAIS.... Anais do Conselho de Saúde Pública do Reino, t.3, 1a parte. Lisboa: Tipografia Lisbonense. 1839., p.36-37). Finalmente, o “relatório” terminava anunciando a publicação futura de um trabalho contendo propostas para a “diminuição, ou extinção completa” dessas eventuais práticas charlatãs. Nesse particular, o órgão de saúde pública português não inovava no teor das suas recomendações. Sem ir mais longe, a vizinha Espanha tinha, alguns anos antes (1827), emitido decretos governamentais consagrados à proibição do magnetismo animal, na sequência do interesse moderado que este tinha vindo a despertar, nomeadamente em Madri, desde pelo menos 1816, após uma primeira vaga de rejeição por parte da comunidade médica (De Pablo, 2006DE PABLO, Ángel González. Animal magnetism in Spanish medicine, 1786-1860. History of Psychiatry, v.17, n.3, p.279-298. 2006., p.283). Essa época coincidiu com a restauração do absolutismo no país e com a repressão de quaisquer ideias que soassem aos ideais do liberalismo político, o que sucedia com o magnetismo que, desde cedo, adquirira a aura de doutrina liberal (De Pablo, 2006DE PABLO, Ángel González. Animal magnetism in Spanish medicine, 1786-1860. History of Psychiatry, v.17, n.3, p.279-298. 2006.; Montiel, 2006a, p.142-149).

Daquele trabalho anunciado pelo Conselho de Saúde não encontramos eco nem nos números subsequentes daquela publicação periódica, nem na restante documentação compulsada. Todavia, é significativo o tom de lamento em relação ao magnetismo, o que deixa pelo menos supor que os magnetizadores fossem impondo a sua presença já em finais da década de 1830 em Portugal. Indícios há, também, de que essa doutrina tenha sido estudada e debatida nos círculos universitários, mormente no curso médico da Universidade de Coimbra. Em meados da década de 1840, o médico José Ferreira de Macedo Pinto, futuro catedrático de medicina legal, era claro a esse propósito. Numa “Preleção sobre o magnetismo animal” (1845), publicada originalmente na Revista Académica de Coimbra, anunciava claramente que “[a] doutrina do ‘Magnetismo animal’ era há muito tempo conhecida n’esta Universidade: durante o nosso curso médico um distinto Professor despertou a nossa atenção sobre este objecto” (Pinto, 1845a, p.355; destaque no original). À data da redação dessas palavras, Macedo Pinto teria por volta de 31 anos, sendo plausível situar o seu contato com as doutrinas de Mesmer em finais da década de 1830 e inícios da seguinte, já que se terá matriculado em medicina, pela primeira vez, em outubro de 1838 (Rodrigues, Queirós, Almeida, 1992).

Em oposição a James Esdaile ou John Elliotson, ostracizados pelas instituições universitárias e pelos pares, Macedo Pinto ingressou na carreira universitária em meados da década de 1840 – ascenderia mais tarde à posição de catedrático de medicina legal – usufruindo de reconhecimento por parte dos seus colegas universitários e prestígio junto das principais agremiações médicas desse período. A título de exemplo, era sócio correspondente da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, e, por maioria de razão, estamos longe de estar perante uma figura heterodoxa e objeto de marginalização, como o foram aqueles médicos britânicos. Dado que todos eles terão aderido ao magnetismo e praticado a magnetização, talvez importe questionar por que razão as consequências foram, para cada um deles, tão diferentes. Uma resposta provisória pode ser a seguinte: enquanto James Esdaile, por exemplo, praticou a mesmerização em contexto clínico, Macedo Pinto tê-la-á realizado em circunstâncias muito diversas, em sessões onde se alimentava mais a curiosidade, do que se testava uma eventual aplicabilidade terapêutica ou cirúrgica. Por outro lado, relembramos, a adesão ao magnetismo animal adquirira contornos aparentemente alargados na universidade, nomeadamente entre o corpo catedrático, o que desvinculou essa prática, pelo menos em termos sociais, do seu estatuto de marginalidade. As palavras de Macedo Pinto (1845a, p.355) são muito claras a esse respeito: “e este [processo de magnetizar] por tal forma se vulgarizou n’esta cidade, que poucas pessoas haverá, que não tenham presenciado seus resultados”. Mas não se tratará aqui de uma generalização excessiva?

Como vimos, a avaliarmos a realidade nacional pela imprensa periódica da altura, não são infundadas as palavras do futuro catedrático de medicina a propósito do apetite intelectual em torno do magnetismo. Por outro lado, a matéria despertava interesse intelectual. Aliás, o artigo que acabamos de citar originaria imediatamente uma resposta que ilustra até que ponto estamos perante uma matéria controversa. Num artigo muito crítico das palavras de Macedo Pinto, publicado na Revista Universal Lisbonense pelo clínico F.A. Rodrigues de Gusmão (1845GUSMÃO, F.A. Rodrigues de. Magnetismo animal. Revista Universal Lisbonense: jornal dos interesses físicos, morais, e literários por uma sociedade estudiosa, t.4, n.48, p.573-575. 19 jun. 1845., p.29), da cidade de Coimbra, esse autor refere-se, com termos muito significativos, à “mania de magnetizar” e aos “prodígios magnéticos” que, afirma, “tanto deslumbraram a mocidade académica”; mania que, acrescenta, “já, mercê de Deus, é terminada”. Mas, nas suas palavras, estava “ainda inédita” essa “mui filosófica história dos Magnetistas Coimbrãos (sic)” (p.31). Não restam dúvidas quanto à pregnância do fenómeno; a história desses magnetizadores, contudo, havia de permanecer inédita por largo tempo.

Na contenda literária, a natureza dos argumentos utilizados por Gusmão é muito significativa: por um lado, critica a subdivisão, feita por Macedo Pinto, dos fenómenos do magnetismo animal e dos resultados obtidos na magnetização (fenómenos positivos, duvidosos e não realizados), como sendo pouco original, roçando o plágio, e também equívoca, por outro, estranha não só que Macedo Pinto “concebesse tal teoria”, mas ainda mais “que a escrevesse, e publicasse à face da Universidade, excede toda a admiração e espanto” (Gusmão, 1845, p.30). A crítica de Gusmão articula, assim, razões de natureza epistémica – o autor rejeita que as magnetizações dadas como positivas por Macedo Pinto pudessem ser compreendidas como tal – e aspectos de carácter não epistémico (de natureza institucional e deontológica). Do ponto de vista de Gusmão, há uma nítida inconsistência entre o ethos académico e a adesão ao magnetismo animal. As razões dessa afirmação podem ser as seguintes: a aprendizagem do magnetismo fazia-se maioritariamente à revelia da universidade, que só pontualmente discutia tal assunto; os fenómenos de magnetização colocavam o magnetizado numa posição de subordinação em relação ao agente magnetizador, o que levantava imediatamente a questão do abuso de confiança e das más práticas (incluindo de natureza sexual); e, finalmente, não seria indiferente o facto de o contingente dos seus praticantes ser constituído maioritariamente por leigos, que se furtavam à tutela das universidades ou mesmo das autoridades de saúde constituídas. Como reconhecia o próprio Macedo Pinto (1845a, p.362), o “magnetizado fica sujeito ao magnetizador; é portanto evidente que este pode abusar da sua posição para descobrir segredos, roubá-lo, e outros fins … útil seria que o nosso Governo vedasse a prática do magnetismo às pessoas que não estivessem habilitadas para dele fazerem uso”.

Não obstante a referência implícita ao ethos académico, Rodrigues de Gusmão não se furtava à discussão de razões, à análise de casos concretos e, o que é mais, a uma eventual revisão da sua posição de partida, o que, pelo menos desde Leibniz, constitui uma das pedras de toque da verdadeira controvérsia (Dascal, 2006DASCAL, Marcelo. Introductory essay. In: Dascal, Marcelo (with Quintín Racionero and Adelino Cardoso). G.W. Leibniz: the art of controversies. Dordrecht: Springer. p.XIX- LXXII. 2006., p.XIX-LXXII). Sob o peso das razões, dirá Gusmão (1845GUSMÃO, F.A. Rodrigues de. Magnetismo animal. Revista Universal Lisbonense: jornal dos interesses físicos, morais, e literários por uma sociedade estudiosa, t.4, n.48, p.573-575. 19 jun. 1845., p.31), “daremos testemunho de docilidade, desdizendo-nos”. A resposta de Macedo Pinto (3 jun. 1845, p.562-563) não se fez esperar, e, num artigo publicado na Revista Universal Lisbonense a 3 de junho de 1845, o autor rebate as acusações de plágio e aponta as contradições evidentes da argumentação de Gusmão, nomeadamente o facto de este lamentar a falta de “suficiente número de observações” que lhe permitissem formar mais cedo a sua própria opinião e, simultaneamente, repudiar e parodiar a realização de experiências de carácter prático que permitissem elucidar o fenómeno. Em nome do esclarecimento útil, Macedo Pinto defende assim a legitimidade das suas experiências e da sua preleção “perante um numerosíssimo auditório”, reconhecendo contudo que expusera “com ingenuidade” os resultados dessa mesma sessão. Rematando o seu artigo, Macedo Pinto (3 jun. 1845, p.563) evoca o papel da experiência na resolução do que chama de “discussão literária”, lançando um repto ao seu adversário: “e se porventura não quiser dar-se ao trabalho de magnetizar, convidamo-lo a presenciar os ensaios que continuamos a fazer”, e conclui dizendo, “só assim poderemos chegar ao conhecimento da verdade, e não por meio de uma vã polêmica”.

Extravasando esses dois autores, o assunto parece ter mobilizado a opinião especializada, e outros textos se foram publicando sobre o mesmo assunto, quer na imprensa médica, quer na imprensa de cunho generalista. Na Gazeta Médica do Porto, a título de exemplo, lamentava-se que o magnetismo não fosse objeto de rigoroso estudo académico, antes “simples objeto de curiosidade e de moda” (O magnetismo…, 1845, p.36). Referia-se com amargura, em concreto, que a Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa – que coligiu, no seu jornal, os artigos publicados avulsos na imprensa periódica sobre essa matéria – não promovesse um estudo sério do magnetismo e das suas aplicações terapêuticas que, nesse texto sem autoria, são consideradas inegáveis. Como se referia, “os fatos presenciados, e vistos nas Cidades do Porto e Coimbra, mostram evidentemente, que o hipnotismo não é mera invenção” (O magnetismo..., 1845O MAGNETISMO... O magnetismo animal, ou o hipnotismo em Portugal. Jornal da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, v.22, p.33-37. 1845., p.37). Lembremos que já anos antes o Conselho de Saúde Pública expressara a necessidade de um estudo aprofundado dessa matéria, tarefa que não parece ter levado a efeito.

Sem termos ainda conseguido determinar cabalmente se o magnetismo foi utilizado em contexto cirúrgico – inclinamo-nos a dizer que não –, sabemos que essa hipótese era bem conhecida e esteve na base de certo interesse despertado entre a classe médica e cirúrgica. Macedo Pinto (1845a), no seu artigo, havia já exposto as eventuais vantagens da sua aplicação quer na medicina, quer nas operações cirúrgicas: e se foi relativamente céptico em relação à primeira utilização, parece acreditar firmemente nas vantagens da magnetização no segundo caso, em detrimento do recurso aos narcóticos cujo uso diz, porventura com exagero, “está hoje abandonado por justos motivos” (p.361). Nas suas palavras, o magnetismo aparecia como preferível ao “narcotismo”, “por não ter os inconvenientes deste, e os indivíduos que correm mais riscos nas operações, são os mais nervosos, e estes os que mais facilmente se magnetizam” (p.361). Os benefícios eram claros: possibilidade de induzir a perda dos sentidos e conservar o doente na posição mais adequada para o fim do operador, no tempo necessário para a realização da operação. Os escolhos dessas práticas, para lá da sua aplicação cirúrgica, não eram também esquecidos: possibilidade de afetar o doente, pela acumulação do fluido magnético no cérebro, gerando desarranjos diversos. Na primeira pessoa, o futuro catedrático escreveria: “em uma mulher que magnetizamos, durante a menstruação, esta função suspendeu-se” (p.361).

Não esqueçamos a data do texto que acabamos de citar: 1845, um par de meses antes do sucesso que viria a ser alcançado com o éter e o clorofórmio na realização de cirurgia sem dor. Em Portugal, como em outros contextos nacionais, o magnetismo parece ter consubstanciado a velha quimera da privação temporária dos sentidos em contexto operatório. Os artigos publicados em torno da questão expressam bem as ambiguidades próprias dessa conjuntura. Não é pois de estranhar que um João Clemente Mendes, cirurgião-mor do Regimento n.6, se visse impelido a publicar um texto sobre a matéria no Jornal dos Facultativos Militares. O seu texto procura fazer o balanço entre os prós e os contras da aplicação do magnetismo em medicina não com base na literatura, mas “em vista das experiências, a que assisti, estudo mui superficial e fugitivo feito sob impressões do momento” (Mendes, 1845MENDES, João Clemente. Breves reflexões sobre o magnetismo animal pelo Sr. João Clemente Mendes, cirurgião mor do regimento n. 6, sócio correspondente. Extrato do Jornal dos Facultativos Militares. Jornal da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, v.22, p.37-44. 1845., p.39). No campo cirúrgico, que melhor domina, as suas conclusões divergem das apresentadas por Macedo Pinto: “[n]a aplicação do magnetismo à Cirurgia e prática das operações nada há também de positivo”, rematando, “[o] seu uso não tem sido generalizado, e a maior parte dos Práticos operam administrando ou não, torpentes, sem lhes lembrar recorrer ao magnetismo” (p.42). O autor rejeita, assim, o movimento de abandono do “narcotismo”, referido por Macedo Pinto, como estando em curso em benefício da magnetização. Todavia, não enjeita completamente essa via nas práticas cirúrgicas, sendo identificável alguma ambiguidade nas suas palavras. João Clemente Mendes chega a lamentar que a “dissidência de opiniões” tenha desviado um tal senhor Almeida, lente das Escolas Médico-Cirúrgicas, de proceder à magnetização da sua paciente, antes de uma operação a um cancro mamário, num procedimento especialmente doloroso (p.43). Sob a pressão dos pares académicos e por razões de natureza disciplinar, o tentame de proceder à cirurgia sob o efeito de hipnose magnética seria adiado pelo lente das escolas mas, como anunciava o primeiro cirurgião, “sabemos … que este hábil Prático tenciona ensaiá-lo no primeiro caso, e aguardamos o seu resultado, para formarmos o nosso juízo” (p.43).

O magnetismo discutido no seio das instituições: entre Lisboa e Coimbra

Sob a pressão de certos sectores da classe médica e cirúrgica, em razão da pluralidade de opiniões e da relativa controvérsia desencadeada pelas eventuais aplicações terapêuticas do magnetismo e, finalmente, em face da promessa de poder realizar atos cirúrgicos de forma indolor, as agremiações científicas e profissionais foram impelidas a discutir a temática. Do que apuramos, a Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa debateu com alguma intensidade a questão, ainda que a discussão tenha assumido contornos muito especiais e se tenha circunscrito a um breve período de tempo. Estávamos no segundo semestre de 1845, mais rigorosamente no mês de outubro, quando se constitui uma comissão com o fito de apreciar a validade clínica e científica do magnetismo animal.5 5 A proposta para a criação dessa comissão foi feita pelo doutor Villa, do decurso da sessão de 4 de outubro de 1845, com o objetivo “de fazer um resumo do estado atual da Ciência sobre o magnetismo animal, e colher observações sobre este objeto, e para que a Sociedade entrasse em conversações científicas sobre o mesmo ponto” (O magnetismo..., 1845, p.322).

Em ponto prévio, convém sublinhar que a criação dessa comissão se ficou a dever mais à pressão da opinião especializada do que a um vivo interesse em debater a matéria, pelo menos entre a maior parte dos médicos que compunham a Sociedade de Ciências Médicas. Publicações especializadas como a Gazeta Médica do Porto, poucos meses antes, tinham já tido oportunidade de lamentar que a mesma sociedade lisboeta, “intérprete dos Facultativos, e da Medicina Portuguesa, à imitação do que se há feito em diversas nações, se não ocupou do assunto” (O magnetismo…, 1845, p.37). Respondendo à acusação de inércia científica, seria então criada a comissão que referimos, ainda no decurso de outubro de 1845. A proposta partiria de Nicolau Tolentino Carvalho Vila, um cirurgião do Hospital de São José, e visava à redação e discussão prévia de um relatório sobre o magnetismo, à abertura de um debate alargado, extensível a todos os facultativos, incluindo os não sócios e previa ainda a aquisição de bibliografia atualizada sobre essas questões. Nas suas palavras, tratava-se de promover uma importante “conversação científica sobre este objecto” (Sessão..., 18 out. 1845, p.323). A proposta não foi incontroversa e, ainda que tal não esteja escrito, não terá sido indiferente o facto de a mesma ter partido de um cirurgião. Apesar de cada vez mais posta em causa, permanecia a ideia de que a cirurgia, constituindo uma ocupação largamente manual, não era tão prestigiante, especulativa e erudita como a medicina.

De resto, a falta de interesse pela discussão proposta é bem visível na ata da sessão de 18 de outubro de 1845, realizada sob a presidência do reputado José Maria Grande, médico de formação e lente de botânica e princípios de agricultura na Escola Politécnica de Lisboa, diretor do Jardim Botânico da Ajuda e deputado da Nação.

Nessa agitada noite de outubro, o cirurgião responsável pela proposta de criação de uma comissão sobre magnetismo animal veria impugnada tal intenção, por parte de alguns médicos seus pares, com razões que nos interessa aqui discutir. O primeiro a intervir seria o médico António Joaquim de Figueiredo e Silva que, evocando a sua ausência na sessão anterior onde tal se decidira, aproveitava para referir o carácter inoportuno e, o que se estranha, extemporâneo de tal discussão: “Declaro que” – afirma – “se tivesse assistido à última sessão, teria sido de voto que esta Sociedade se não ocupe da questão do magnetismo animal, senão quando ela for a isso convidada, ou pela Autoridade Pública, ou por algum Facultativo, que se comprometa a apresentar-lhe fenômenos desta ordem” (Sessão..., 18 out. 1845, p.324). Prosseguia lembrando os pareceres da Faculdade de Paris, que condenaram Mesmer e os magnetizadores, rematando com um pedido para ser exonerado do lugar de membro da tal comissão, pretensão no qual foi secundado pelo doutor João José de Simas, médico e vice-provedor de Saúde. Da parte desses críticos, a posição é clara: pretende-se o estabelecimento de um tabu discursivo. Com efeito, não se estranha que não se leiam referências, por parte desses membros, às questões relacionadas com as eventuais aplicações cirúrgicas do magnetismo, ainda que, como vimos, esse fosse um ponto de discussão importante para todos os autores que escreveram sobre o assunto, na imprensa periódica, no decurso de 1845. O facto de serem médicos, e não cirurgiões, pode também ter tido algum peso na recusa em debater.

Mais perplexidade nos causa que as demais interlocuções não foquem esse assunto no decurso dessa mesma sessão. O autor da proposta relativa à criação da comissão, o cirurgião senhor Vila, refere apenas, rejeitando os argumentos dos dois primeiros facultativos, “que o magnetismo animal é um meio terapêutico” e, portanto, “digno de ocupar esta Sociedade, para se ver o que ele oferece de bom para a Ciência, ou se porventura é uma coisa má” (Sessão..., 18 out. 1845, p.325). Dessa forma, este último pretendia manter a discussão no terreno clínico e científico, circunscrevendo-a a uma avaliação dos prós e contras daquela prática, afastando argumentos de autoridade tais como, por exemplo, conclusões de universidades e agremiações estrangeiras. Essa circunscrição das regras do jogo do debate parece ter suscitado adesão nos interlocutores: o cirurgião militar Francisco Joaquim de Morais, pedindo a palavra, interviria em favor da dita comissão e, anuía, “que hoje acreditava nos seus fenômenos [magnetismo], mas que fora um dos mais incrédulos a princípio; porém que suas próprias experiências o vieram convencer” (Sessão..., 18 out. 1845, p.325). Dessa forma, o cirurgião pretendia revogar o argumento do primeiro facultativo a intervir na sessão e que, sublinhara, a questão só deveria ser discutida não em termos abstratos, mas com base em exemplos práticos, experienciados por membros da agremiação ou outros clínicos que se dirigissem à sociedade. Argumento esse que não colhe, pois, nos artigos que citamos anteriormente, há a solicitação expressa, por parte de médicos e cirurgiões, para que a questão fosse discutida no seio da sociedade. De notar, também, que uma linha socioprofissional perpassa esse debate: são cirurgiões que propõem e defendem a criação da comissão e o estabelecimento do debate e são médicos que pretendem impugnar tal comissão.

No desenvolvimento da contenda, ficaria patente que a estratégia argumentativa do primeiro clínico assumia um caráter especioso. Aliás, torna-se explícito que também ele havia testemunhado sessões de magnetismo. O doutor Vila podia assim citar um caso concreto, “a que também assistira o Sr. Dr. Figueiredo, o qual Sr., e diferentes outras pessoas, fizeram tratos ao indivíduo magnetizado nessa ocasião, a fim de conhecerem, se era simulado ou não, o seu estado” (Sessão..., 18 out. 1845, p.326-327). Tendo mostrado “acreditar no magnetismo” nessa ocasião, estranhava-se agora que aquele médico constituísse uma via de bloqueio à livre discussão e avaliação dessas matérias. Implicitamente, o doutor Figueiredo era acusado de trair o verdadeiro “espírito” de membro de uma sociedade médica e científica dessa natureza: o exame aberto de ideias.

Circunscrevendo-se ao acessório, ou pelo menos deixando de lado as aplicações cirúrgicas do magnetismo que interessavam à opinião médica, a discussão encerrar-se-ia às dez e um quarto da noite: os primeiros clínicos seriam desvinculados da comissão para o estudo daquela doutrina. Para a sessão seguinte, estabelecia-se a nomeação de dois novos membros substitutos, a tomarem posse na sessão de 8 de novembro. Algumas surpresas estavam guardadas para essa sessão, que, com efeito, nos permitem compreender melhor o desenvolvimento que pode tomar uma controvérsia ou, talvez melhor dizendo, uma disputa argumentativa.

Nessa sessão, o primeiro clínico a intervir seria o doutor Morais, cirurgião e partidário da comissão sobre magnetismo e, nas suas palavras, hoje crente “nos seus fenómenos”. Sob a pressão dos pares, assim o cremos, o cirurgião ver-se-ia obrigado a reformular a sua posição, não sendo de excluir que algum ascendente socioprofissional dos oponentes médicos também tenha tido alguma quota-parte nessa mudança. Assim, solicita a seguinte emenda à ata da sessão anterior “que não tinha dito, que acreditava em todos os fenómenos magnéticos, descritos pelos diferentes AA., mas somente nos que havia presenciado, e de que fizera menção”, acrescentando, “depois de os ter analisado com placidez, e sem prevenção; quanto ao mais, que esperava, que a observação lhos mostrasse, sem que por isso se possa entender, que os nega” (Sessão..., 8 nov. 1845, p.329). Não é possível determinar, de forma cabal, o que terá estado na origem desse esclarecimento: é provável que a mera intenção do autor de aclarar o sentido das suas palavras, mas também não será de afastar a hipótese de que uma certa pressão exercida entre pares tenha obrigado o clínico a rever o que havia exposto.

Em termos rigorosos, o verdadeiro sentido de uma controvérsia passa, como vimos, pela disponibilidade dos interlocutores para virem a rever as suas posições de partida. Trata-se de um ajustamento dos pontos de vista, mediante argumentos e razões, que constitui um dos aspectos fulcrais das verdadeiras controvérsias. Não sendo de afastar a importância de factores de ordem disciplinar e de manutenção da ortodoxia na reformulação da posição daquele cirurgião, deve ser sublinhado que, entre os oponentes, também o doutor Simas, médico e vice-provedor da Saúde, havia de reformular as suas palavras, “asseverando que ele não tinha dito, que não acreditava nos fenómenos do magnetismo, mas simplesmente que duvidava”, rematando paradoxalmente ou talvez não, “que não tinha verdadeiramente entrado na discussão” (Sessão..., 8 nov. 1845, p.330). A sua posição institucional não terá sido indiferente a essa petição de neutralidade que justifica a sua emenda.

Seja como for, o debate em torno do magnetismo animal e a avaliação das suas aplicações terapêuticas parece-nos ter sido muito condicionado e limitado. Não obstante a criação de uma comissão para o seu estudo, com 11 membros, a produção em torno da questão não nos parece muito significativa no período imediatamente subsequente. Dois anos depois, em 1847, os resultados dessa comissão ainda eram aguardados, e acreditamos que nunca terão chegado a conhecer a luz do dia (JSCML, 2º sem. 1847, p.12-13). É também muito indicativo que a discussão se tenha realizado, pelo que conseguimos apurar, ao arrepio das preocupações clínicas de médicos e cirurgiões que se ocuparam dessas matérias nos jornais e impeliram a discussão na própria Sociedade de Ciências Médicas. Referimo-nos, mais uma vez, à questão da cirurgia sem dor. Circunstancialmente, a descoberta da “eterização” [sic] e do clorofórmio em cirurgia, muito debatida na sociedade nos anos imediatos, invalidaram que a discussão se pudesse dirigir nesse sentido. Tal como no caso inglês, essas descobertas converteram o magnetismo numa prática cada vez mais marginal, fazendo recuar o interesse académico e profissional por essa temática.

Pela mesma altura, o governo português solicitou pareceres sobre o magnetismo animal pelo menos a outras duas instituições de ensino e de saúde pública. Esse requerimento pode indiciar quer um certo mal-estar governativo em face da disseminação dessas práticas, quer algum grau de incerteza quanto à determinação do seu estatuto científico e clínico.

Desconhecendo a data exata dessa solicitação, foram chamados a dar o seu parecer o Conselho de Saúde Pública e o Conselho da Escola Médico-cirúrgica da capital (Mirabeau, 1872MIRABEAU, Bernardo António Serra. Memória histórica e comemorativa da Faculdade de Medicina nos cem anos decorridos desde a reforma da universidade em 1772 até o presente. Coimbra: Imprensa da Universidade. 1872., p.193). Ao que parece, não terá havido consenso e o governo fez ouvir a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Estávamos em 1845 quando foi então criada uma comissão universitária com o propósito de esclarecer dois pontos essenciais: por um lado, determinar a importância do magnetismo como agente terapêutico, e, por outro, emitir um parecer que esclarecesse se os magnetizadores deveriam ser abrangidos pelas disposições penais do decreto de 18 de setembro de 1844, lei destinada, entre outros aspectos, a reprimir os praticantes que curassem sem as devidas habilitações legais. O parecer, emitido a 23 de dezembro de 1845, não seria aprovado por unanimidade, tendo sido objetado por três votos “na forma e na matéria” (p.193). Nas palavras de um catedrático, que resumiu posteriormente o parecer final da comissão, afirmava-se que “nada se podia concluir sobre a influência do magnetismo nos fenómenos fisiológicos, e menos ainda sobre a sua importância como agente terapêutico”, e não fechando a porta a futuras discussões “que se devia conceder lugar entre os conhecimentos médicos aos factos bem averiguados de magnetismo animal, e que por isso convinha repetir as experiências” (p.193). Em relação à segunda questão, a comissão defendia que os magnetizadores, a que faltassem as habilitações legais, deviam ser punidos de acordo com a lei vigente, à excepção de “quando fossem convidados para funcionar na presença de facultativos, reunidos em comissão científica” (p.193). Perante tais conclusões, depreendo que os três votos contra tenham sido oriundos de médicos que se opunham a reconhecer qualquer espécie de validade ao magnetismo e à realização de experiências que o visassem comprovar ou falsificar. Ainda assim, e como seria de esperar em face do documentado interesse catedrático pela magnetização, é de salientar a atitude mais aberta da universidade quando comparada com a posição da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa. No texto em que resume a posição universitária, Mirabeau realça que a revolução que abalou Portugal entre maio de 1846 até junho de 1847 – a Guerra da Patuleia – terá feito cessar esse empenho pelos estudos magnéticos e feito diminuir o prestígio dos magnetizadores (p.194). As informações de que dispomos parecem confirmar essa hipótese.

No dealbar da década de 1840 e nos anos seguintes, a imprensa periódica parece refletir isso mesmo. Em inícios da década de 1850, a Revista Universal Lisbonense tinha a ocasião de publicar uma “condenação dos magnetizadores”, extraída do jornal Semaine (Condenação…, 26 set. 1850, p.34), e, logo depois, o português A Semana, Jornal Literário e Instrutivo podia escrever sobre “os prodígios de que dizem ser ainda capaz a ciência do magnetismo, apesar de ir já agora na sua decadência” (Magnetismo..., 1851MAGNETISMO... Magnetismo animal. A Semana: jornal literário e instrutivo, t.2, p.369-370. 1851., p.369).

Considerações finais

O debate em torno do magnetismo animal – assunto que suscitou a curiosidade pública e mobilizou a opinião especializada em Portugal – não se terá convertido em uma verdadeira controvérsia. No seu sentido mais profundo, uma controvérsia envolve um debate ordenado, orientado para a discussão de razões, tomadas seriamente pelos interlocutores, e com base numa metodologia de discussão rigorosa (Dascal, 2006DASCAL, Marcelo. Introductory essay. In: Dascal, Marcelo (with Quintín Racionero and Adelino Cardoso). G.W. Leibniz: the art of controversies. Dordrecht: Springer. p.XIX- LXXII. 2006., p.XLII). A verdadeira controvérsia assume, assim, também um estatuto deontológico ou procedimental, consubstanciado na possibilidade de nos “colocarmos no lugar do outro”, do oponente discursivo e, se tal se justifique, reformularmos a nossa posição de partida. Nesse sentido, a controvérsia distingue-se da mera disputa ou discussão, que, pelo contrário, surge enredada em formas de argumentação desordenadas e estratégias de evasão dos polemistas, que podem passar pela acomodação ao ponto de vista do outro ou pela condescendência com as suas razões. Em parte, a discussão literária e institucional à volta do magnetismo animal, não obstante a sua oportunidade científica entre nós em meados do século XIX, é, acima de tudo, a história de um debate desordenado, marcado por estratagemas discursivos que pretenderam, com sucesso, neutralizar a verdadeira discussão.

Com base no exemplo concreto do debate promovido na Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, procuramos demonstrar como um assunto pregnante pôde ser rodeado de interditos que impossibilitaram a sua real discussão. Nesse caso, a evolução do debate foi também muito condicionada por razões de natureza socioprofissional e distinções de prestígio que, tendo raízes bem longínquas no passado, não deixaram de ter alguma interferência nessa discussão concreta: de um cirurgião partiu a iniciativa de fomentar uma “conversação científica” sobre o magnetismo; foram médicos que inviabilizaram tal discussão. Se se trata aqui de razões de natureza meramente circunstancial é algo que não é possível esclarecer cabalmente, até porque, como vimos, casos houve em que médicos procuraram debater e experimentar o magnetismo, almejando desfazer dúvidas e verificar a sua respectiva validade clínica. Ainda assim, não duvidamos que a discussão, em Lisboa, tenha sido bloqueada por esse tipo de fatores extracientíficos.

Posição diferente terá sido a da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, quando interpelada diretamente pelo Ministério do Reino. A academia manifestou-se bem mais aberta em relação à averiguação da real eficácia terapêutica do magnetismo, consubstanciada no reconhecimento do direito de cidadania aos magnetizadores e às suas experiências, ainda que devidamente supervisionadas e sob dependência de facultativos acreditados. Nesse particular, não terá sido indiferente o interesse geral verificado na comunidade académica dessa altura – estudantes e professores incluídos – em torno do magnetismo animal e das experiências de mesmerização. Em futuras investigações, procurar-se-á compreender se esse interesse pelo magnetismo terá tido consequência não só na prática clínica desse período, mas inclusive na produção teórica de alguns dos médicos que se interessaram por essas matérias.

AGRADECIMENTOS

Trabalho desenvolvido no âmbito do projeto “O universo clínico no período do Romantismo. Pacientes e práticas terapêuticas em Portugal no século XIX, 1820-1860”, financiado pelo Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa.

REFERÊNCIAS

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  • WINTER, Allison. Mesmerized: powers of mind in Victorian Britain. Chicago: The University of Chicago Press. 1998.

NOTAS

  • 1
    Sobre o estatuto e possibilidades inerentes ao estudo das controvérsias, cf. Gil (1990)GIL, Fernando. La controverse dans les sciences et la philosophie. In: Gil, Fernando (Ed.). Controvérsias científicas e filosóficas. Lisboa: Fragmentos. p.9-20. 1990..
  • 2
    A bibliografia sobre o magnetismo animal como prática terapêutica é assaz volumosa. Destacamos apenas os seguintes títulos fundamentais: Darnton (1986)DARNTON, Robert. Mesmerism and the end of the enlightenment in France. Harvard: Harvard University Press. 1986., Gauld (1992)GAULD, Alan. History of hypnotism. Cambridge: Cambridge University Press. 1992., Crabtree (1993)CRABTREE, Adam. From Mesmer to Freud: magnetic sleep and the roots of psychological healing. New Haven: Yale University Press. 1993. ou Winter (1998)WINTER, Allison. Mesmerized: powers of mind in Victorian Britain. Chicago: The University of Chicago Press. 1998.. A esse propósito é também fundamental a consulta de Montiel e De Pablo (2003).
  • 3
    Este dispositivo foi inventado por Mesmer e constituiu um dos aspectos mais emblemáticos do magnetismo como prática terapêutica. Acerca desse assunto, cf. Montiel (2005)MONTIEL, Luis. Vis medicatrix naturae ex machina: la investigación sobre el baquet magnético en el romanticismo alemán. Frenia, v.5, n.1, p.51-68. 2005..
  • 4
    No decurso da presente investigação, não conseguimos localizar qualquer tipo de documentação que se assemelhe aos diários de tratamentos magnéticos recolhidos do Archiv für den thierischen Magnetismus, e estudados recentemente por Luis Montiel. Com base no estudo desses escritos, o autor assinala o protagonismo acentuado, que apelida de inédito, do paciente na cena terapêutica. Para Montiel, o estudo desses documentos manifesta, quase sem exceções, uma maior simetria de poderes no âmbito desse tipo de relação terapêutica. Subvertendo a relação terapêutica clássica de matriz hipocrática – o paciente que se deve subordinar ao médico que detém o saber-poder – a posição do doente em face do magnetizador é muito diversa: em virtude do sonambulismo, considera-se que o primeiro detém um saber privilegiado sobre o seu corpo próprio, sendo práticas comuns quer o autodiagnóstico quer a autoprescrição terapêutica. Cf. Montiel (2006a, 2006b). Não duvidando dessa revalorização do paciente no âmbito do magnetismo animal, cremos que o desequilíbrio de poderes entre praticantes e pacientes, no Antigo Regime, não terá sido tão acentuado como pressupõe Luis Montiel. A esse propósito, a bibliografia é caudalosa, mas remetemos para os artigos clássicos de Jewson (2009)JEWSON, Nicholas D. The disappearance of the sick-man from medical cosmology, 1770-1870. Sociology, v.10, p.622-633. 2009. e Waddington (1975)WADDINGTON, Ivan. The development of medical ethics: a sociological analysis. Medical History, v.19, n.1, p.36-51. 1975..
  • 5
    A proposta para a criação dessa comissão foi feita pelo doutor Villa, do decurso da sessão de 4 de outubro de 1845, com o objetivo “de fazer um resumo do estado atual da Ciência sobre o magnetismo animal, e colher observações sobre este objeto, e para que a Sociedade entrasse em conversações científicas sobre o mesmo ponto” (O magnetismo..., 1845O MAGNETISMO... O magnetismo animal, ou o hipnotismo em Portugal. Jornal da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, v.22, p.33-37. 1845., p.322).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2018
  • Aceito
    19 Nov 2018
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