Resumos
Os aspectos históricos da medicina animal, examinados mediante revisão de literatura indicam ruptura epistemológica, com as antigas práticas de alveitaria, com introdução dos princípios de racionalidade, a partir do século XVIII, na formação dos médicos-veterinários. Essas práticas curativas, entretanto, não começaram com a implementação dos cursos superiores de medicina animal. No Brasil colonial e particularmente em Pernambuco ocorrem registros históricos de práticas alveitares, mais tarde incorporadas ao currículo da Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda, pela existência de avaliação única no Brasil: o exame physicum.
medicina animal; alveitaria; Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda; exame physicum; Pernambuco (Brasil)
The historical aspects of animal medicine indicate an epistemological break with the old practices of animal medical treatment, with introduction of the principles of rationality in the eighteenth century in the formation of veterinary doctors. These healing practices, meanwhile, did not begin with the implementation of graduate courses in animal medicine. In colonial Brazil and, in particular, in the State of Pernambuco, historical records can be found of animal medical practices that were later incorporated into the curriculum of the São Bento de Olinda Graduate School of Veterinary, marked by the presence of a unique evaluation in Brazil: the physicum examination.
animal medicine; the practice of animal medicine; São Bento de Olinda Graduate School of Veterinary; physicum examination; Pernambuco (Brazil)
ANÁLISE
Lúcio Esmeraldo Honório de MeloI; Francisco de Oliveira MagalhãesII; Argus Vasconcelos de AlmeidaIII; Cláudio Augusto Gomes da CâmaraIV
IProfessor-associado do Departamento de Medicina Veterinária/Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) lucio@dmv.ufrpe.br
IIProfessor adjunto do Departamento de Química/UFRPE mufunbo@yahoo.com.br
IIIProfessor associado do Departamento de Biologia/UFRPE argus@db.ufrpe.br
IVProfessor adjunto do Departamento de Química/UFRPE Rua D. Manoel de Medeiros, s/n 52171-900 - Recife - PE - Brasil camara@dq.ufrpe.br
RESUMO
Os aspectos históricos da medicina animal, examinados mediante revisão de literatura indicam ruptura epistemológica, com as antigas práticas de alveitaria, com introdução dos princípios de racionalidade, a partir do século XVIII, na formação dos médicos-veterinários. Essas práticas curativas, entretanto, não começaram com a implementação dos cursos superiores de medicina animal. No Brasil colonial e particularmente em Pernambuco ocorrem registros históricos de práticas alveitares, mais tarde incorporadas ao currículo da Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda, pela existência de avaliação única no Brasil: o exame physicum.
Palavras-chave: medicina animal; alveitaria; Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda; exame physicum; Pernambuco (Brasil).
ABSTRACT
The historical aspects of animal medicine indicate an epistemological break with the old practices of animal medical treatment, with introduction of the principles of rationality in the eighteenth century in the formation of veterinary doctors. These healing practices, meanwhile, did not begin with the implementation of graduate courses in animal medicine. In colonial Brazil and, in particular, in the State of Pernambuco, historical records can be found of animal medical practices that were later incorporated into the curriculum of the São Bento de Olinda Graduate School of Veterinary, marked by the presence of a unique evaluation in Brazil: the physicum examination.
Keywords: animal medicine; the practice of animal medicine; São Bento de Olinda Graduate School of Veterinary; physicum examination; Pernambuco (Brazil).
Como observam Benchimol et al. (2007), os atuais historiadores da medicina e da saúde pública tiveram que buscar mediadores fora da história factual da medicina, e fazer contato com uma geração extremamente talentosa de médicos-historiadores que começou a escrever na Alemanha, entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, sob a influência da chamada École des Annales. Esse nome advém da ação polemizadora exercida por Marc Bloch e Lucien Febvre na revista Annales d'Histoire Économique et Sociale, fundada em 1929 na Universidade de Estrasburgo, na França. Naquele momento seus organizadores tratavam de combater a história essencialmente política e diplomática, calcada de modo exclusivo nos acontecimentos e focalizada em reis, presidentes e guerras. Tratava-se também de caminhar em sentido multidisciplinar, nutrindo-se e nutrindo outras disciplinas, como a antropologia, a sociologia, a geografia e a psicologia. Esses dois grandes historiadores lançaram ainda as bases do que, num primeiro momento, se chamou de psico-história e, mais tarde, de história das mentalidades.
Nessa perspectiva, Bach e Febvre estabeleceram os fundamentos de uma história da medicina ligada à economia e à sociedade, refletindo não só as tendências da historiografia, mas também os movimentos ocorridos na administração pública no domínio da saúde. Desse modo, surgiu uma história da medicina mais social, mais preventiva, recuperando os ideais do século XIX, de reformadores como Rudolph Virchow, criador da patologia celular e combatente nas barricadas da revolução de 1848, em Berlim. Produziram-se, então, estudos fundamentais, como a história da saúde pública, de George Rosen, publicado em 1958 e ainda hoje um clássico relevante na formação de sanitaristas e uma das fontes centrais para os historiadores da medicina.
As novas gerações de historiadores estudaram criticamente os mecanismos de controle implícitos na medicina, discursos e instituições, posto que estavam interessadas no conhecimento e em práticas alternativas à medicina acadêmica, incorporadas a partir de territórios subjugados nos impérios coloniais, bem como nas capitais no Terceiro Mundo. Sua crítica ao eurocentrismo foi traduzida em renovado interesse pela história dos sistemas médicos que não provinham da matriz greco-romana ou do segmento europeu da medicina. Trataram das questões de raça e gênero, em abordagem mais refinada das classes sociais e categorias, dando atenção a atores e especificidades locais, e chegaram a abordar estudos sobre saúde política, instituições e profissões. A história da medicina não era mais exclusiva de médicos; incluía também pacientes e doenças.
Esses estudos enfocam a medicina sob horizonte mais amplo, enfatizando as sensibilidades, o imaginário, o contexto sociocultural e todos os elementos normalmente inseridos no campo da chamada história das mentalidades, ou seja, uma história interpretativa. Nessa perspectiva, desenvolveram-se diversos trabalhos relacionados à medicina humana. Quanto à medicina animal, contudo, a literatura é muito escassa, predominando textos meramente descritivos ou de características hagiográficas, ainda que a medicina veterinária se inclua entre as profissões mais antigas da humanidade, surgida com as atividades do pastoreio, do cuidado e trato dos animais domesticados, sobretudo o gado bovino e as bestas de carga. Qual seria, então, a razão da escassez dessa bibliografia histórica, em comparação com a da medicina humana?
No sentido de contribuir para tal questionamento, este artigo tem como objetivo abordar criticamente alguns aspectos históricos da medicina animal, desde os tempos mais remotos até a criação das primeiras escolas de medicina veterinária do Ocidente, em meio ao Século das Luzes, interpretado como o marco introdutório da racionalidade e cientificidade da 'nova' profissão e, portanto, do surgimento da profissão de veterinário. Destaca ainda o processo de formação de alveitares no Brasil, as concepções que prevaleciam, entre os colonizadores, sobre os índios aqui encontrados e as peculiaridades históricas e pedagógicas da Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda, em que predominou a ênfase nos estudos de equinocultura e no exame physicum, instrumento de avaliação de caráter público, único na história da medicina veterinária brasileira, originado nas faculdades de medicina alemãs e tratado, pelos beneditinos, com extrema severidade e solenidade na escola que fundaram, em Olinda.
Aspectos histórico-etimológicos
O profissional que se dedica ao exercício desse mister recebeu, ao longo da história, diversas denominações, das quais destacamos mulomedicus, mariscal, maréchal, farrier, albeytar, alveitar, hipologista e veterinário.
Não existe unanimidade quanto à origem do termo veterinário. Para alguns, deriva de veterinarius, o pastor chefe do clã, do átimo latino veteranus (de vetus, velho); para outros, de vehere, que em latim vulgar significa acarretar (de vehe, veículo); há ainda quem o associe a veterina (jumenta) ou a veterinus (animal de carga ou de tiro) (Cordero del Campillo, 2003).
O autor romano Columela teria sido o primeiro a utilizar tanto a expressão veterinaria medicina, para designar a arte de curar cavalos e outras bestas, quanto o nome veterinarius, para o encarregado dessa função (Cordero del Campillo, 2003).
Ainda em latim, existem as designações: medicus pecuarius, médico de gado; equorum medicus, médico militar das unidades romanas; e mulomedicus, denominação integrante da literatura no século VI, a hagiográfica incluída. Um dos muitos episódios edificantes e milagrosos da vida de são Bento, narrada pelo papa são Gregório Magno, retrata o diabo na figura de um mulomédico, identificado por seus instrumentos de trabalho: um vaso de chifre e algumas ataduras. O primeiro servia para introduzir, goela abaixo, as beberagens preparadas pelo mulomédico. Com as ataduras montava-se a tripédica, espécie de peia para reduzir o animal a estado de imobilidade parcial, possibilitando o tratamento desejado (São Gregório Magno, 1999).
A raiz céltica composta de mar´h (cavalo) e shalk (servidor) daria origem, na Germânia, a marhskalk (encarregado de cavalos), na Gália, a maréchal e no reino de Aragão, a mariscal. Na França, a corporação dedicada à medicina animal admitia especializações. A Enciclopédia de Diderot distinguia o maréchal grossier, simples ferreiro, do maréchal ferrant et opérant, que acrescentava ao primeiro ofício a cura dos animais (Gillispie, 1993).
Em terras inglesas, o termo farrier designava o médico de cavalos (horse doctor), encarregado do tratamento das doenças desses animais. Quanto a sua origem, há pelo menos duas opiniões. De acordo com a primeira, farrier deriva do latim faber ferrarius (literalmente, ferreiro); a segunda associa-o a Henry de Ferariis, nobre normando, possivelmente médico de cavalos, que migrou para a Inglaterra em 1066 com Guilherme, o Conquistador (Ryan, 2003).
Na Espanha, usava-se albéytar, proveniente de Bne Albeitar, famoso médico-veterinário árabe, autor do Livro dos simplices (Marques, 2004). De acordo com Cordero del Campillo (2003), a palavra viria de al-baitar, médico-veterinário.
Em língua portuguesa utilizava-se alveitar, o correspondente do espanhol albeytar.
Origem da veterinária e importância histórica do cavalo
Os registros históricos sistematizados sobre a medicina veterinária remontam à Grécia clássica, com a Historia animalium, de Aristóteles, obra datada do século IV a.C.
Flavius Vegetius Renatus ou Publius Vegetius (450-500) escreveu a clássica obra Artis veterinariae sive digestorum mulomedicinae, também referenciada como Digesta artis mulomedicinae (Araújo, 2004), que muita influência teve no Ocidente.
Outra obra clássica fundamental, Hippiatriaka, de 994, é compilação bizantina dos textos sobre medicina dos cavalos em 420 lições, realizada, segundo Marques (2004), por Aspirto, considerado, por isso, o Pai da Medicina Veterinária.
Na alta Idade Média, santo Isidoro de Sevilha escreveu obra enciclopédica, As etimologias, em cujo livro XII, De animalibus, trata dos componentes militares da medicina animal, principalmente do cavalo de guerra (Araújo, 2004).
Desde meados do século XV, na Espanha, registra-se a existência de examinadores dependentes da autoridade civil ou do próprio rei. No século seguinte, um grande acontecimento na história da veterinária foi a criação, em 1500, do Real Tribunal do Protoalbeiterato de Castella, para qualificar a albeitaria, sob a chefia de um protoalbeitar. O processo de formação do alveitar era realizado ao lado de um mestre em exercício e consistia nos estádios de aprendiz, oficial e mestre. Neste último, o candidato a alveitar era submetido, perante banca, a rigoroso exame teórico-prático, que consistia inicialmente em fazer duas ferraduras de cavalo e outras duas de mula, respondendo em seguida aos questionamentos da banca examinadora. Em muitos casos, um escrivão redigia escritura pública (carta de exame), em que eram creditadas as provas para ferrador ou ferrador-alveitar (Cordero del Campillo, 2003).
Os reis católicos de Espanha, por decreto de 1500, instituíram o Tribunal do Protoalbeiterato com a finalidade de regular a atividade: "nenhum alveitar nem ferrador, nem outra pessoa alguma pode armar tendas sem antes ser examinado pessoalmente por nossos alveitares e ferradores maiores" (citado em Belzunegui, 1990)1 1 Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre. . O tribunal se manteve vigente por mais de três séculos. Já o Real Tribunal do Protomedicato na Espanha foi institucionalizado em 1477 como uma espécie de corpo técnico encarregado de vigiar o exercício das profissões sanitárias, assim como de exercer função docente e atender à formação desses profissionais. No século XVI estendeu-se às colônias espanholas, e protomedicatos foram fundados no México e no Peru.
O destaque especial do cavalo decorre da função social desempenhada por esse animal durante vários séculos. De fato, além de meio de transporte e máquina de guerra, ele se tornou símbolo social de poder e riqueza de seu proprietário. Um bom cavalo de guerra custava oitocentas vezes mais do que o cavalo de um camponês (Araújo, 2004). Cordero del Campillo (2003) registrou que em toda a Europa, durante a Idade Média, o exercício da veterinária centrava-se principalmente nas espécies animais de maior interesse para os estamentos mais poderosos da sociedade, isto é, os reis, a nobreza e o clero, ocupando lugar de proeminência o cavalo, seguido dos animais auxiliares para a caça. Outros ruminantes, sobretudo os ovinos, que simbolizavam a riqueza nos países mediterrâneos, reclamavam atenção pela alta estima da lã e da carne.
O hipologista e diretor da Académie Royale d´Équitation, Claude Bourgelat, criou as duas primeiras escolas de medicina veterinária do Ocidente: a de Lyon, em 1762, e a de Alfort (Paris), em 1765, cujos alunos eram recrutados em meio aos maréchaux ferrants, estando a anatomia e a ferradura incluídas nas disciplinas ministradas. Ainda nos dias atuais, apesar dos avanços da epistemologia, a concepção de ciência vigente, de inspiração predominantemente positivista, interpreta esse acontecimento como o redescobrimento da veterinária e o ato fundador da profissão de médico-veterinário. A esse respeito, Cordero del Campillo (2003), após lamentar o esquecimento durante vários séculos do vocábulo veterinário, de origem tão nobre e clássica, conclui: "O descobrimento da veterinária foi fruto do 'século das luzes', com a criação da primeira Escola Veterinária de Lyon, França, graças a Claude Bourgelat (p.14).
Nessa mesma linha de argumentação, afirma-se que os primeiros veterinários oficialmente reconhecidos formaram-se nas grandes escolas veterinárias fundadas entre 1762 e 1821, como o Royal Veterinary College, em 1791 em Londres, sob a inspiração e iniciativa de Alfort (Fisher, 2002). Essa visão incorporou-se ao imaginário e ao senso comum dos profissionais da medicina animal, e a escola de Lyon tornou-se símbolo de modernidade.
Nesse contexto, na edição comemorativa Setenta anos de medicina veterinária em Pernambuco (1912-1982), o autor do capítulo "A medicina veterinária no mundo" afirma: "a arte veterinária moderna data da fundação da Escola de Veterinária de Lyons [sic]" (Setenta anos..., 1982, p.53). Para esse e outros autores médicos-veterinários, 'moderna' significa nova, racional e científica, e contrasta com a antiga profissão, irracional e empírica. Trata-se, portanto, de uma leitura anacrônica. Acusam-se os antigos praticantes da medicina animal de utilizar métodos puramente empíricos, destituídos de qualquer fundamentação teórica e orientados por magia e religião. A introdução de matérias científicas no currículo das escolas de veterinária infunde racionalidade e cientificidade à 'nova' profissão, justificando seu surgimento no Século das Luzes (Fisher, 2002).
Assim, historiadores da veterinária no Brasil, como Germiniani (1998), por exemplo, estabelecem sua origem a partir da formação dos cursos superiores de medicina veterinária, ignorando todo um passado de práticas de alveitaria. Consideram os 'antigos' veterinários curandeiros e charlatães, desautorizados pela sociedade de continuar a exercer atividade de raízes multimilenares, tal como ocorrera no Brasil na primeira metade do Oitocentos com os curandeiros e sangradores, desautorizados e excluídos do conjunto de atividades legais das artes terapêuticas (Pimenta, 2004).
A criação de um órgão formado por médicos e centralizador das determinações sobre saúde pública e exercício médico, observa Pimenta (2004), marca novo período em relação ao iniciado em 1828, quando esses temas estavam diluídos nas responsabilidades da Câmara Municipal e, a partir de 1843, também do Ministério do Império. Todavia, apesar da vigilância de seus membros para garantir aos médicos acadêmicos o monopólio das atividades terapêuticas, a Junta de Higiene não conseguia abranger todo o universo de terapeutas, e aqueles que estavam na ilegalidade continuaram a exercer seus ofícios.
Além disso, para completar, essa reinterpretação do passado restringe o campo de ação daqueles que se dedicavam à medicina animal. Reduz-se o maréchal, o farrier ou o alveitar a faber ferrarius, ferrador, ou seja, simples fabricante de ferraduras sob a orientação do médico-veterinário.2 2 Ressalte-se que a interpretação do passado de uma profissão em função da ciência do Século das Luzes não constitui privilégio da medicina veterinária. A historiografia tradicional analisa a passagem da alquimia para a química em termos de ciência e não ciência. Segundo esses relatos, os alquimistas deixaram como herança um conjunto de operações, técnicas e instrumentos, no entanto os fundamentos teóricos da nova disciplina encontram-se em outra parte. Além disso, os alquimistas, guiados pelo misticismo e irracionalidade, não poderiam realizar experimentos sistemáticos e observações.
As transformações ocorridas com o surgimento, no Século das Luzes, dos 'novos' médicos-veterinários não eliminaram totalmente, entretanto, o prestígio que o cavalo desfrutava na medicina animal.
A medicina animal no Brasil e a Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda
Seguramente uma das primeiras referências aos alveitares no Brasil vem de cruel e irônica alusão do padre José de Anchieta, em carta de 20 de março de 1550, destinada a seus irmãos de ordem em Coimbra:
Neste tempo que estive em Piratininga, que foi mais de um ano, servi de alveitar algum tempo, isto é, de médico daqueles índios, e isto foi sucedendo ao irmão Gregório, o qual, por mandado do p. Nóbrega, sangrou alguns índios, sem nunca o ter feito senão então, e viveram alguns de que se não tinha esperança, porque outros muitos daquelas enfermidades eram mortos. Partindo-se o irmão Gregório de lá, fiquei eu em seu lugar, que foi o mais do tempo, e sangrei muitos duas e três vezes e cobram saúde. E juntamente servia de deitar emplastros, levantar espinhelas e outros ofícios de alveitar, que eram necessários para aqueles cavalos, isto é os índios (Anchieta, 1933, p.57).
As palavras de Anchieta, candidato à canonização, expressam bem a concepção que prevalecia entre nossos colonizadores sobre os habitantes da terra colonizada: os índios eram seres sem alma, portanto, assemelhavam-se aos cavalos.
Desde os tempos do conde João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), governador do Brasil holandês entre 1637 e 1644, praticavam-se em Pernambuco as chamadas cavalhadas. Como exemplo, podem ser mencionadas as corridas de cavalos de 1641, nas quais gozava de enorme prestígio o cavaleiro pernambucano Antonio Pereira Rego, homem inteligente e dotado de largo conhecimento sobre cavalos, como demonstrou em tratado de alveitaria publicado em Coimbra, em 1679, como parte integrante da monografia intitulada Instruções da cavalaria da brida, que teve nova edição publicada em 1712 (Pereira da Costa, 1952).
Este anúncio de um jornal do Recife do século XIX, citado pelo historiador da medicina em Pernambuco Leduar de Assis Rocha (1941, p.67) evidencia a importância da relação entre os alveitares pernambucanos e a criação de cavalos: "Cypriano Correia de Sá, alveitar e picador na rua do Cêbo da Bôa Vista, oferece-se a prestar o seu préstimo a quem tiver cavalos a curar, pois tem genuíno conhecimento da arte a respeito e suficiente prática, levando por curativo dos cavalos o módico preço a saber: por cada sangria 960 rs; por cada operação 1$280; rapar caudas e clinas 960 rs., e igual quantia para limpar cascos".
Um registro pioneiro de formação de alveitares no Brasil ocorreu por iniciativa de dom João VI, que em 1818 inaugurou um curso de alveitaria no Rio de Janeiro, nomeando para coordená-lo o "artista veterinário" português João Batista Moncuet. Em outras colônias americanas, como México, Peru e Cuba, registrou-se a presença de alveitares de formação acadêmica europeia (Cordero del Campillo, 2003).
No Brasil, em relação ao ensino formal de nível superior, a primeira escola de veterinária foi fundada em Pelotas ainda no Império, em 1883, com a denominação Imperial Escola de Medicina e Agricultura Prática (Germiniani, 1998). Em 1909, já então Escola de Agronomia Veterinária, encerrou suas atividades no que concerne à formação de médicos-veterinários. Após sessenta anos, seria criada a Faculdade de Veterinária, atualmente unidade acadêmica da Universidade Federal de Pelotas. Entre 1883 e 1909, a Escola de Veterinária de Pelotas não formou nenhum médico-veterinário. O curso de agronomia ainda funciona, sem ter sofrido qualquer interrupção (Elias, Rombaldi, Meneghello, 2003).
Em 1906 foi criado o Ministério da Agricultura Indústria e Comércio, sob inspiração do modelo americano, e sob sua jurisdição, pelo decreto presidencial 8.319, de 20 de outubro 1910, regulamentou-se o ensino agronômico (incluindo medicina veterinária) no Brasil. Na mesma ocasião criou-se também a Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, que deveria funcionar no Distrito Federal, capital do país. A nova instituição, precursora da atual Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, foi inaugurada em 1912 oferecendo dois cursos, um dedicado à formação de agrônomos e outro à de médicos-veterinários, com muitas matérias em comum que se desdobraram, em 1934, com a criação da Escola Nacional de Agricultura e da Escola Nacional de Veterinária. Durante os 15 primeiros anos de existência, a Escola Superior de Agronomia e Medicina Veterinária diplomou 59 médicos-veterinários (Moacyr, 1942).
A Escola de Veterinária do Exército foi instalada como Curso Prático de Veterinária nas dependências do quartel do 3º Grupo de Obuses, no bairro de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro, constando apenas de dois gabinetes. As instalações, precárias, basearam-se nas instruções para o serviço da segunda missão de médicos-veterinários militares franceses, formada em 1913 pelo capitão André Vantillard e pelo primeiro-tenente Henri Marliangeas (da École Veterinaire d'Alfort). Segundo as instruções, publicadas no Boletim do Exército 304, de 10 de outubro de 1913 (art.3º), os veterinários daquela segunda Missão Militar Francesa (MMF) realizariam
conferências clínicas aos oficiais veterinários, sargentos e cabos de esquadra respectivos dos corpos montados; investigações científicas e processos que devam ser seguidos para o conhecimento prático, o tratamento e a profilaxia das entidades mórbidas comuns aos animais de tropa e das transmissíveis a outros animais e ao homem; consultas sobre todos os casos que precisem ser esclarecidos, quer com a apresentação do animal doente, quer mediante informações minuciosas enviadas pelos veterinários do Exército.
Segundo o periódico Medicina Militar, o corpo docente ficou assim constituído, em 1921: major veterinário Henri Marliangeas (patologia médica), major Paul Dieulouard (patologia cirúrgica) - membros da terceira Missão Militar Francesa, que teve início em 1920; João do Couto Telles Pires (microbiologia e doenças contagiosas); major médico Joaquim Moreira Sampaio (anatomia comparada dos animais domésticos); primeiro-tenente Jesuíno Cardoso de Albuquerque (anatomia patológica, teratologia e histologia normal); major Manoel Marcillac Motta (fisiologia comparada dos animais domésticos); capitão Antônio de Castro Pinto (história natural, especialmente zoologia, higiene e zootecnia e forragens); capitão José Antônio Cajazeira (terapêutica e legislação sanitária militar); major veterinário Augusto Tito da Fonseca (hipologia); e capitão farmacêutico José Benevenuto de Lima (física e química, toxicologia, farmacologia, arte de formular e análises) (Arêas, Velloso, s.d.).
Além das citadas instituições dedicadas ao ensino formal de medicina veterinária, surgiram, no período de 1883 a 1914, duas outras que se tornariam centros de excelência em medicina humana e que trouxeram valiosas contribuições à medicina animal. O Instituto Bacteriológico de São Paulo (1893) - que se transformou, em 1940, no Instituto Adolfo Lutz - especializou-se no enfrentamento de problemas sanitários que afetavam o estado de São Paulo, portanto no combate a doenças como febre amarela, febre tifóide, peste, cólera e varíola. Seus laboratórios também se dedicaram à analise e ao controle de qualidade de alimentos e, a partir de 1916, o Instituto iniciou a fabricação de vacinas. Quanto a sua atuação no campo da medicina animal, podemos citar, a título de exemplo, o estudo que realizou em 1896, com a finalidade de solucionar os problemas decorrentes da doença que afetava os animais de tração da Companhia Paulista de Viação. Como resultado dessa pesquisa, identificou-se pela primeira vez o bacilo que atacava o gado cavalar e asinino. Por sua vez, o Instituto Soroterápico de Manguinhos foi criado em 1900 tendo como modelo o Instituto Pasteur de Paris e como objetivo inicial a solução, em caráter emergencial, da crise de saúde pública provocada pela ameaça de uma epidemia de peste bubônica. Devia, para tanto, fabricar soros e vacinas para substituir os importados. Ao longo do tempo, essa instituição notabilizou-se no campo da medicina experimental e na produção de soros e vacinas em larga escala. Dedicou-se também ao ensino e à difusão das ciências médicas. Em relação à medicina animal, ofereceu 'cursos de aplicação' nas áreas de bacteriologia e parasitologia, higiene e terapêutica veterinárias, os quais exerceram grande influência sobre pesquisadores sanitaristas brasileiros e sul-americanos. Além disso, dedicou-se ao preparo de produtos biológicos e químicos necessários ao tratamento de doenças dos animais (Arêas, Velloso, s.d.).
As escolas de medicina veterinária concentravam-se em dois polos, o Distrito Federal (cidade do Rio de Janeiro) e o Rio Grande do Sul. Nessa perspectiva, a instalação de uma escola de medicina veterinária no Nordeste, mais especificamente em Pernambuco, na cidade de Olinda, parecia empreendimento bastante viável e necessário - mais uma tentativa no sentido de minorar o desequilíbrio econômico entre o norte e o sul do país.
De fato, no início do século XX, a economia brasileira ainda se baseava na monocultura. Mudara, entretanto, o cultivo principal: em vez de cana-de-açúcar o café, cujas plantações, iniciadas por volta de 1825 ao longo do vale do Paraíba do Sul, trouxeram riqueza, prestígio e poder à burguesia das províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e, principalmente, São Paulo. Nas décadas finais do Império, a burguesia do café já controlava a máquina estatal da província de São Paulo. Com o advento da Primeira República (1889-1930), os interesses dos cafeicultores coincidir com os da nação (Fausto, 1997).
Na mesma época, a economia de Pernambuco estava em declínio, uma situação bem diferente daquela vivida nos dois primeiros séculos da colonização portuguesa, quando "era a principal e mais rica região produtora de açúcar do mundo de então" (Mello, 1997). Essa situação despertou a cobiça dos holandeses, que através da Companhia das Índias Ocidentais, fundada em 1621, dominaram Pernambuco durante alguns anos (1630-1654). Durante o período destacou-se a figura de João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), governador do novo domínio holandês de 1637 a 1644. Nassau, que escolheu Recife como a nova capital do Brasil holandês, em substituição a Olinda, revelou-se grande protetor das artes e das ciências (Mello, 1997; Gouveia, 2006).
Nesse contexto, a iniciativa de dom Pedro Roeser (1870-1955), abade do mosteiro de Olinda, de fundar duas escolas destinadas à formação de engenheiros-agrônomos e médicos-veterinários foi bem recebida pela elite local, composta basicamente por senhores de engenho, usineiros e grandes pecuaristas. Nela se vislumbrava alternativa para soerguer a agricultura e a pecuária de Pernambuco. Além disso, abria-se mais uma porta de acesso aos altos cargos da República, mesmo que não se pudesse competir com as faculdades formadoras de bacharéis. Até 1922 a escola havia diplomado 18 veterinários, três dos quais obtiveram prêmio especial de viagem ao exterior; dois se tornaram professores da escola; um, professor da Escola Superior de Veterinária de São Paulo; um, professor da Escola de Agronomia de Pernambuco; três, inspetores de carnes da Indústria Pastoril Federal; um, veterinário chefe do Matadouro do Recife; e um, funcionário da Prefeitura da Paraíba, tendo os demais se estabelecido em empresas particulares do Nordeste (Plaquete, 1962).
Em novembro de 1912 dom Pedro Roeser lançava a pedra fundamental de um edifício para abrigar as duas instituições de ensino superior, e a construção do prédio foi concluída no final de 1913. A Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento adotou, como parâmetro de seus programas, as clássicas Landwirtschaftliche Hochschule de Munique e Halle, sem esquecer, contudo, "o previsto pelo governo federal para taes institutos" (Livro de Atas..., 1912). Essa escolha deveu-se ao fato de, naquela época, a maioria dos monges ser de origem germânica, filhos de camponeses do sul da Alemanha. Além disso, no Brasil, naquele momento, os positivistas e os liberais defendiam o 'ensino livre', o que facilitou o surgimento de escolas livres, ou seja, com liberdade de organizar seus próprios currículos (Cunha, 2007). Por outro lado, a preocupação com as normas oficiais indica que os beneditinos desejavam o reconhecimento da escola por parte do Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio, o que de fato ocorreu com o decreto 13.208, de 18 de maio de 1918 (Setenta anos..., 1982).
A Escola de Medicina Veterinária São Bento de Olinda, em 1918, adotava as seguintes disciplinas em seu curso de quatro anos: no primeiro, física, química, zoologia, botânica, anatomia e histologia; no segundo, fisiologia, química orgânica, embriologia; criação; farmacognose, toxicologia, ferradura; no terceiro, higiene, cirurgia, doenças de cascos e patas, parasitologia, patologia geral, patologia especial, operações, zootecnia, terapêutica e trabalhos práticos; no quarto, inspeção de carnes e medicina legal veterinária; obstetrícia; microbiologia, soroterapêutica, patologia especial, bacteriologia (Quinto relatório..., 1920). O currículo incluía, portanto, atividades e conhecimentos típicos dos antigos alveitares, posteriormente sob domínio de médicos-veterinários.
Entre 1913 e 1915 o corpo docente da Escola foi formado pelos seguintes professores: doutor Hermann Rehaag; doutor Dionysio Meilli (farmacologia, farmacognose e terapêutica); dom João Kehrle (vice-diretor da Escola e professor de anatomia, patologia e bacteriologia); dom Tito Dobbert (zoologia); dom Dunstane Saupp (histologia, cirurgia, clínica e para-sitologia); dom Agostinho Ikas (fisiologia, ferradura, anatomia fisiológica dos cascos e patas, embriologia); dom Pedro Bandeira de Mello (química inorgânica, orgânica, analítica e física); dom Anselmo Fuchs (higiene geral, epidemiologia, soroterapêutica e botânica médica); dom Gabriel de Vasconcellos Beltrão (doutrina sobre a criação de animais domésticos, zootecnia, de pestes e de polícia médica); dom Bernardo Ott (obstetrícia, fiscalização sanitária de carnes e matadouros e medicina legal veterinária) (Relatório, 1916). A disciplina de ferradura teve como primeiro professor dom Bernardo Ott (1895-1973) (Livro de Atas..., 1915). Posteriormente, dom Agostinho Ikas (1892-1968) assumiu fisiologia, ferradura, anatomia fisiológica dos cascos e patas e embriologia.
Como sugerem os sobrenomes dos membros do corpo docente, com exceção do doutor Dionysio, dom Pedro e dom Gabriel todos eram alemães. Deve-se enfatizar que só tinham formação acadêmica o veterinário alemão doutor Hermann Rehaag e o farmacêutico baiano Dionysio Meilli, que assumiu a docência de farmacologia antes de ter concluído a graduação em medicina veterinária, em 1915 (Livro de Atas..., 1915). O conjunto dos monges alemães era autodidata, tendo-se submetido em 1913, portanto antes do início dos cursos, a rápida instrução orientada pelo próprio doutor Hermann, contratado especialmente para esse fim (Almeida, 1998). Segundo Maciel e Fernandes (2007), Hermann Rehaag nasceu em Pressitten, na Prússia, em 4 de março de 1884 e diplomou-se pela Universidade de Giessen em 1911. Em Olinda, além da preparação dos monges para a docência, instalou o primeiro hospital veterinário do Brasil. Depois, no sul do país, tornou-se figura conhecida na área de defesa sanitária animal (sendo um dos pioneiros mundiais na descoberta da raiva dos herbívoros). Em seguida dedicou-se à zootecnia, com reconhecido sucesso. Em 27 de março de 1927 foi admitido na Escola Superior de Agricultura e Veterinária, em Viçosa, como professor catedrático e primeiro chefe do Departamento de Zootecnia. No final de 1928, Rehaag transferiu-se para o Ministério da Agricultura, no Rio de Janeiro (Maciel, Fernandes, 2007).
No contexto educacional, no período compreendido entre o descobrimento do Brasil e a Primeira República (1889-1930), a única ordem religiosa dedicada à formação de profissionais de nível superior stricto sensu foi a beneditina. Alguns historiadores da educação, entretanto, discordam dessa afirmação. Luiz Antônio Cunha (2007), por exemplo, considera de nível superior os studia superiora dos colégios dos jesuítas, no Brasil colônia, um curso fundado pelos franciscanos em 1776 e que funcionou até 1805, e o curso do Seminário de Olinda, reformado pelo bispo iluminista José Joaquim de Azeredo Coutinho, que se inspirou na reforma pombalina da Universidade de Coimbra. Os três cursos eram destinados à formação de sacerdotes.
A principal novidade da reforma do Seminário de Olinda, levada a efeito por Azeredo Coutinho, consistiu na introdução do ensino de filosofia natural, entendida como tudo o que pertence à natureza. Os futuros 'párocos filósofos' deveriam estudar tópicos de física, química e história natural, ciências que deveriam ser ensinadas numa perspectiva de aplicação utilitária, em beneficio do império colonial português. Independentemente de ser ou não curso superior, a experiência vivida pelo Seminário de Olinda entre 1800 e 1817, por seus aspectos inovadores, representa acontecimento marcante da história da educação em ciências no Brasil (Almeida et al., 2008).
A Escola de Medicina Veterinária São Bento de Olinda apresentava evidências da relevância que tinha o cavalo, não só na estrutura curricular mas também na simbologia utilizada: o selo e o carimbo da Academia de Veterinária de São Bento ostentavam dois cavalos, um em plano maior, parado, e outro, menor, a galope.
Das poucas fotografias da Escola, construída em 1913, destaca-se a da fachada de um prédio, com três portas centrais em arcadas ogivais, e a inscrição Infirmi sanos docent (os enfermos ensinam os sãos). A foto mostra também, no frontispício da Clínica, um cavalo rodeado por cinco pessoas vestidas com longas batas. Esse prédio, que já não existe, localizava-se provavelmente onde hoje se situa o estacionamento do Colégio São Bento, pois o Primeiro Relatório (1916) afirma: "Clinica Veterinária, pequena construção que demora no declive do grande horto abbacial". Segundo a publicação Setenta anos de medicina veterinária em Pernambuco (1982), contíguo à Clínica foi instalado um estábulo para servir de posto de isolamento. Maciel e Fernandes (2007) indicam que esse prédio abrigou o primeiro hospital veterinário do Brasil.
No Primeiro Relatório (1916) também consta a descrição da visita à Escola de Medicina Veterinária São Bento, em 26 de julho de 1915, do então ministro da Agricultura José Rufino Bezerra Cavalcanti, que ao passar pelas salas de anatomia e histologia teria demonstrado interesse pela preparação anatômica de uma pata de cavalo, ao indagar se na Escola sabiam curar as várias doenças de cascos: "O respectivo lente tomou a palavra e fez uma ligeira preleção acerca do metodo moderno dessa cura". O ministro, então, passou a examinar um "modelo equino, que se pode desarmar a vontade para os estudos de Osteologia, Artrologia, Miologia, Nevrologia, Estesiologia e Esplanologia, sobre o qual pediu a demonstração da circulação do sangue na veia jugular e vasos sanguíneos da boca, ponte, onde era acostumado já fazer sangrias. Pediu que lhe dissessem algo dos processos modernos de sangrar e terminou rindo da frequência com que os matutos soem sangrar". Na Clínica, o ministro interessou-se pelo exame dos métodos e instrumentos que serviam para o tratamento do espravão.3 3 O mesmo que esparavão, esparvão, gravancelo ou esparavão-boiúno. Exostose do curvejão (curvilhão; jarrete) de equídeos; esparavão menos consistente que afeta a espécie bovina. Os tipos são: espravão-caloso, o mesmo que esparavão ósseo (sobreosso no curvejão de cavalo, resultante de osteoperiosteíte e predisposição hereditária, causando claudicação); e espravão-gravanzudo, o mesmo que esparavão-seco (que se manifesta apenas pela claudicação, sem exostose visível).
Além dos exames por disciplina, exigia-se outro denominado tentamem philosophicum, que versava sobre a filosofia natural aristotélica. Com o rápido desenvolvimento das ciências naturais, a partir dos anos 1870, o exame em ciências naturais, tentamem physicum, substituiu o tentamem philosophicum (Kaiser, Volker, 1983). Depois de dois anos de estudo, os estudantes de medicina deveriam responder questões orais sobre fisiologia, anatomia, física, química, química fisiológica, botânica e mineralogia. Sem o exame physicum não podiam ser admitidos nos estudos clínicos (Becker, 1897).
As instituições de ensino de medicina veterinária na Alemanha parecem ter adotado também essa modalidade de exame em seus currículos, e os beneditinos, possivelmente por orientação do doutor Hermann Rehaag e ao escolherem o modelo alemão para a Escola de Veterinária que fundaram em Olinda, a incluíram em seu regulamento.
Os acadêmicos que terminavam o segundo ano letivo eram submetidos a esse exame. Em 1917 a congregação divulgou a seguinte resolução: "o segundo anista de Veterinaria que não comparecer ao exame Physicum perde o ano" (Livro de Atas..., 1917). O exame não representava grau acadêmico, embora fosse condição sine qua non para a continuidade dos estudos visando à formação do futuro médico-veterinário. Versava sobre as disciplinas científicas cursadas nos dois primeiros anos de estudos: física, química analítica, química orgânica, botânica, anatomia, embriologia, farmacognose, fisiologia, histologia, toxicologia e zoologia.
A primeira banca examinadora da prova em questão foi composta por dom João Kehrle, dom Dunstano Saupp, dom Plácido de Oliveira, dom Tito Dobbert e dom Bento Pickel, sob a presidência de dom Pedro Roeser, abade e diretor da Escola. Como convidados estavam presentes os "snrs. Inspectores Federais de Medicina Veterinária e Agricultura, Snrs. Drs. Plínio Cavalcanti de Araújo e João Pires Filho, Dr. Luiz Corrêa de Brito, Presidente do Sindicato Agrícola de Pernambuco e o agrônomo Fernandes e Silva, Secretário da Inspetoria Agrícola" (Livro de Atas..., 1915). A presença de convidados que não faziam parte da congregação da Escola sugere que o exame physicum, além de seu caráter público, compunha-se de arguições orais sobre o conteúdo das ciências naturais que compunham o currículo.
No final de 1915 os primeiros acadêmicos aprovados e que receberam, na solenidade anual de colação de grau, o diploma de physicum foram Francisco Xavier Pedroza, Manoel de Barros Bezerra, Armando Maia e Silva, Benjamim de Mello e Antonio Barros Leite. Na ocasião colou grau o farmacêutico Dionysio Meilli, tornando-se o primeiro médico-veterinário diplomado do Brasil (Foerster, 2004).
Em 29 de janeiro de 1926, a Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda foi fechada por falta de alunos e determinação do abade dom Pedro Roeser, seu fundador que, em 14 de novembro de 1929, "desgostoso com o insucesso, se transferiu inesperadamente, sem uma palavra de despedida ... para o Mosteiro de São Bento de Sorocaba em São Paulo" (Plaquete..., 1962). Ressalte-se que o Livro de Atas da Congregação da Escola Agrícola e Veterinária do Mosteiro de São Bento não registra sequer uma linha sobre o fechamento da Escola e a partida de seu fundador. Informa apenas que a última sessão, presidida por dom Pedro Roeser, ocorreu em 19 de abril de 1926, e nela ele anuncia seu substituto, como diretor-geral, dom Amaro van Emelen (1863-1943), monge beneditino de origem belga que havia sido diretor do Colégio de São Bento do Rio de Janeiro entre 1905-1906 e 1909-1910. Dom Amaro introduzira, em 1895, a abelha italiana (Apis mellifera ligustica) em Pernambuco e foi autor de várias obras sobre apicultura, entre as quais a célebre Cartilha do apicultor brasileiro, de 1934.
Não existe, na literatura e demais fontes consultadas, explicação para o fechamento da Escola; a alegação de falta de alunos talvez possa ser interpretada à luz do pouco prestígio social que a profissão tinha, em tempos de supervalorização da formação jurídica 'bacharelesca' (Holanda, 1979). Na Universidade Federal Rural de Pernambuco e em outras universidades brasileiras, esse desprestígio pode ser exemplificado pelo apodo 'capa-gatos', com o qual os estudantes de agronomia ridicularizavam os estudantes de veterinária durante os anos 1950 e 1970.
Ao encerrar suas atividades, a Escola de Medicina Veterinária São Bento tinha formado 24 médicos-veterinários, distribuídos nas seguintes turmas:
- 1917: Armando Maia e Silva, Benjamim Cavalcanti de Melo, Francisco Xavier Pedrosa e Manuel de Barros Bezerra;
- 1918: Artur Lopes Pereira, Álvaro Jorge de Farias Sales e Antonio Augusto Brandão;
- 1919: Anatólio Djalma Caldas, Guilherme Álvares de Carvalho e José Alfredo Vaz de Oliveira;
- 1920: João Paulo Nunes de Melo;
- 1921: Antônio Emigdio de Barros Leite e José Wanderley Braga;
- 1922: Almir Pires Ferreira, Abdon Gomes Fernandes, Antônio Magno de Miranda e Carlos Cavalcanti Paes;
- 1923: Augusto José Seixas;
- 1924: Humberto Pontes de Lyra e Humberto Telmo da Rocha Barros;
- 1925: Arlindo Rosas, Eloy Hardman, Epaminondas Bandeira de Melo e Dyonisio Meilli (que colou grau no início do curso no final de 1915) (Plaquete..., 1962, p.40).
Segundo o Livro de Atas da Congregação (1926) a última turma de formandos de medicina veterinária era composta por Eloy Hardman Cavalcanti, Epaminondas Bandeira de Mello e Arlindo Barbosa de Lima Rosas, sendo a data da colação de grau 15 de novembro de 1926 e não 1925, como consta da Plaquete comemorativa do cinquentenário da escola (1962).
Considerações finais
A medicina veterinária representa uma ruptura epistemológica com as antigas práticas de alveitaria, com base nos princípios de racionalidade introduzidos na formação dos saberes médico-veterinários. Entretanto essa ruptura, ocorrida no Século das Luzes, não autoriza o historiador da ciência a considerar que as práticas curativas da medicina animal começaram a ser implementadas a partir da fundação dos cursos superiores de medicina veterinária. Como se pode constatar pela história da química4 4 O trabalho de depuração da nova ciência completou-se com a redução do campo de ação da alquimia à transmutação dos metais. Nesse particular, as sucessivas edições do Cours de chimie, de Nicolas Lemery (1645-1715), desempenharam papel fundamental. Sua aceitação como membro da Académie Royale des Sciences representa a oficialização de suas posições (Powers, 1998). Esse trabalho de depuração do passado da profissão de químico completou-se com a publicação, em 1789, do Traité élémentaire de chimie de Lavoisier, em cujo "Discours préliminaire" o químico francês, invocando a autoridade do filósofo abade de Condillac, sugere o uso do esquecimento como único meio de superação dos erros do passado: "Quando os erros são assim acumuladas, não existe meio de restaurar a ordem na faculdade de pensar: é esquecer tudo o que aprendemos" (Lavoisier, 1864). e pelas práticas médicas humanas no Brasil colonial5 5 Ribeiro (1997) observa que, apesar de significativa a função exercida pelos chamados empíricos, a repressão contra suas atividades foi implementada através de policiamento médico (marcado por certa flexibilidade e tolerância) exercido pelo Protomedicato - criado em 1782 e cujos objetivos eram a legalização da prática médica e a perseguição ao curandeirismo -, quando tentou em vão estender suas redes de poder para todo o Brasil. A junta do Protomedicato ordenava a prisão daqueles que não possuíssem diplomas legais para o exercício da prática médica, a qual, do ponto de vista de seu ordenamento, continuou a ser exercida com essas características até a instituição das escolas médico-cirúrgicas da Bahia e do Rio de Janeiro, quando o saber médico erudito tendeu a afastar-se da medicina popular. Ao longo dos anos, muitas práticas de cura popular desapareceram, mas outras se transformaram, fornecendo subsídios para a criação de terapêuticas do que hoje conhecemos por etnomedicina. , toda uma história é esquecida em nome da racionalidade científica de uma nova formação.
No Brasil colonial existe uma história das práticas médicas animais. Em Pernambuco, por exemplo, muito antes da organização do curso de medicina veterinária, ocorrem registros de práticas alveitares, que a Escola de São Bento, de certa forma, incorporou em seu currículo, marcado pela existência de avaliação única no Brasil, o exame physicum, originário das escolas alemãs. Por si esse exame marca a originalidade histórica da formação dessa instituição; inexplicavelmente, porém, ele nunca foi levado em consideração pela história oficial da veterinária em Pernambuco.
Por fim, cabe uma breve reflexão sobre a escassez da historiografia relativa à medicina animal, em contraste com a abundância daquela que se refere à medicina humana. O trabalho dos alveitares e dos médicos-veterinários era essencialmente manual, carregando, por isso, toda a carga de preconceitos historicamente associados a atividades dessa natureza. Em contrapartida, os médicos da tradição hipocrático-galenista não 'sujavam' as mãos: o trabalho sujo, como cuidar de feridas, fazer sangrias, aplicar sanguessugas, ficava a cargo de barbeiros e cirurgiões, e a manipulação de medicamentos era feita por boticários. Ademais, cuidar da saúde de seres humanos (racionais) seria tarefa mais nobre do que tratar seres irracionais - o cavalo pode ter sido exceção, por causa do status de seus proprietários: militares, cavaleiros e membros da nobreza.
NOTAS
Recebido para publicação em fevereiro de 2007.
Aprovado para publicação em setembro de 2009.
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De alveitares a veterinários: notas históricas sobre a medicina animal e a Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda, Pernambuco (1912-1926)
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Abr 2010 -
Data do Fascículo
Mar 2010
Histórico
-
Aceito
Set 2009 -
Recebido
Fev 2007