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A fadiga e seus transtornos: condições de possibilidade, ascensão e queda da neurastenia novecentista

Resumos

Analisa alguns dos elementos sociohistóricos que configuraram condições de possibilidade para a emergência da neurastenia como categoria nosológica, na segunda metade do século XIX, bem como os aspectos que influenciaram seu declínio em meios médicos e leigos. Propõe breve apresentação dessa categoria médica e discussão mais detalhada sobre alguns debates em que ela encontra sustentação, tais como a ideia do desgaste do suprimento nervoso, os estudos e as preocupações novecentistas sobre a fadiga e a pressuposição da somatogênese da doença. Analisa, por fim, o processo de declínio da categoria ressaltando alguns elementos que alteraram seu estatuto e sua utilidade como diagnóstico.

neurastenia; condições de possibilidade; declínio


The article first analyzes some of the social and historical components underlying the conditions of possibility that allowed neurasthenia to emerge as a nosological category in the latter half of the nineteenth century and then explores the elements that influenced its demise in medical and lay circles. It offers a brief introduction to this medical category and a more detailed discussion of some supporting debates, including the idea of nervous exhaustion, twentieth-century studies and concerns on fatigue, and the malady's presumed somatogenesis. The concluding analysis of how the category met its demise highlights elements that altered its status and its diagnostic usefulness.

neurasthenia; conditions of possibility; demise


ANÁLISE

Pós-doutoranda do Instituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua Correa Dutra, 39/408 - 22210-050 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. rtzorzanelli@yahoo.com.br

RESUMO

Analisa alguns dos elementos sociohistóricos que configuraram condições de possibilidade para a emergência da neurastenia como categoria nosológica, na segunda metade do século XIX, bem como os aspectos que influenciaram seu declínio em meios médicos e leigos. Propõe breve apresentação dessa categoria médica e discussão mais detalhada sobre alguns debates em que ela encontra sustentação, tais como a ideia do desgaste do suprimento nervoso, os estudos e as preocupações novecentistas sobre a fadiga e a pressuposição da somatogênese da doença. Analisa, por fim, o processo de declínio da categoria ressaltando alguns elementos que alteraram seu estatuto e sua utilidade como diagnóstico.

Palavras-chave: neurastenia; condições de possibilidade; declínio.

A trivialidade do sintoma da fadiga - o fato de ser queixa cotidiana, a respeito da qual cada um de nós poderia discorrer, e de ser frequente nos ambientes de cuidado à saúde, públicos e privados - não nos permite eludir o nível de complexidade que essa experiência traz em si. Um sinal disso é a presença intermitente, desde o século XIX, de quadros patológicos na história médica, cuja queixa central inclui a exaustão por mínimo esforço e a fadiga sem causa orgânica detectável. No ambiente novecentista, esse quadro foi a neurastenia. Nos tempos atuais, seu exemplo mais emblemático é a síndrome da fadiga crônica, embora existam outros quadros funcionais que apresentam a fadiga como sintoma associado, tais como a fibromialgia. Se ampliarmos o espectro, podemos incluir a síndrome do burn out, que, embora não seja considerada quadro funcional, está entre os transtornos contemporâneos ligados à exaustão e tem sido encontrada nas páginas de revisas semanais e nas preocupações da psicologia e da medicina do trabalho. Nosso objetivo, neste artigo, é abordar especificamente a versão novecentista dos transtornos ligados à fadiga, ou seja, a neurastenia, explorando suas condições de emergência no final do século XIX, bem como os elementos que favoreceram seu declínio na primeira metade do século seguinte.

A neurastenia surgiu como categoria em meados de 1869, a partir das primeiras publicações do neurologista nova-iorquino George Miller Beard (1838-1883), até então profundo estu-dioso de métodos de eletrização, tendo publicado obras de referência para o uso médico desses métodos. A Beard confere-se o mérito de desembaraçar, de outras queixas nervosas dispersas, a neurastenia como entidade clínica. Tal categoria teve seu período áureo principalmente a partir da década de 1880, quando o referido autor publicou A practical treatise on nervous exhaustion (neurasthenia), em 1880 e, em seguida, American nervousness: its causes and consequences, em 1881. O declínio da categoria, por sua vez, ocorreu a partir de 1920, e às variáveis que contribuíram para esse processo também nos dedicaremos neste artigo. É importante destacar ainda que em meados do século XX houve uma revivescência desse diagnóstico na China, ainda que sob outra roupagem, conforme análise de Kleinman (1986).

Grosso modo, os sintomas da neurastenia eram apresentados de forma bastante variada e incluíam exaustão geral, sensibilidade da coluna (irritação espinhal) e do corpo (hiperestesia geral), dormência localizada e periférica, dores vagas e neuralgias, paralisia temporária, perturbações gástricas (dispepsia, disfagia), cefaleias, transtornos do sono, pressão na cabeça, controle mental deficiente, dificuldade de concentração, irritabilidade mental, medos mórbidos (fobias, em geral), transtornos sexuais (no caso masculino, emissão involuntária de sêmen, impotência parcial ou completa, irritabilidade da uretra e, no caso feminino, deslocamentos dos órgãos, inflamações, irritabilidade uterina e ovariana). Os neurastênicos demonstravam rápida fatigabilidade e demorada recuperação, não sendo a fadiga aliviada por sono ou descanso. Apesar dessa riqueza sintomatológica - que nem sempre aparecia inteiramente em um só paciente -, os neurastênicos gozavam de boa saúde, eram tipicamente bem nutridos e muscularmente desenvolvidos.

Segundo relata Wessely (1990), Beard e seus companheiros justificavam a ausência de sinais físicos na doença pela pressuposição de lesão funcional1 1 Jean Martin Charcot (1888a) também usa a ideia de lesão funcional ou dinâmica, inicialmente em casos de paralisia histerotraumática. O autor detecta diferenças entre as lesões corticais e as da histeria: as primeiras possuiriam focos limitados e se distribuiriam ao acaso sobre as regiões motoras e sensitivas do córtex, sendo distintas e distantes umas das outras; as lesões dinâmicas da histeria, além de difusas, afetariam simultânea e sistematicamente as regiões motoras e sensitivas fisiologicamente implicadas na execução do movimento de uma dada articulação - havia portanto, nos pacientes analisados, uma lesão cortical que não era estrutural. no cérebro - supostamente, uma alteração patológica submicroscópica relativa à nutrição das células cerebrais. Sendo condição cuja base orgânica não estava clara, era frequentemente atribuída a uma combinação de sobrecarga cerebral e diátese nervosa, e o peso de cada um desses polos oscilava nos diferentes autores, embora o desgaste que as demandas da civilização causavam no funcionamento do cérebro fosse o ponto mais enfatizado. Apesar de assinalar o papel da diátese nervosa, Beard não deixava dúvidas quanto à etiologia da condição: a causa da nervosidade americana era a civilização e seus coadjuvantes, ainda que, por si só, ela não a provocasse. Contudo, Beard e seus contemporâneos nunca duvidaram que a neurastenia é uma doença orgânica e que a ausência de características macroscópicas apenas refletia as limitações das técnicas investigativas daquele momento, como também assinala Rosenberg (1962).

De forma geral, essa entidade concatenava uma ideia de objetividade médico-científica demonstrada pelo pressuposto da organicidade, o que lhe permitia ser aceita como diagnóstico legítimo por médicos e pacientes. Além disso, foi acatada pelas ideias médicas em voga, como o evolucionismo social e a teoria da degenerescência, o que se demonstrou pelo gesto inicial de Beard - sustentado por seus seguidores - de afirmar a doença como decorrência das sociedades altamente desenvolvidas (como os Estados Unidos), a atingir pessoas das altas camadas urbanas. A teoria da degenerescência, por sua vez, era a condição de base para a pressuposição da tara transmissível a que se atribuía a diátese nervosa dos neurastênicos.

Tal categoria era sustentada nos paradigmas médicos e morais da época e em seus padrões de objetividade, a ponto de seu declínio ter-se relacionado à mudança em suas condições de possibilidade. Houve uma 'democratização' do diagnóstico, que passou a ser conferido aos pacientes da classe proletária, deixando de ser exclusividade e signo de distinção dos mais refinados. Concomitantemente, com a voga do paradigma psicogenético a partir do início do século XX, sobretudo depois da 1ª Guerra Mundial, a neurastenia 'explodiu' em outros diagnósticos herdeiros da categoria de neurose e das psiconeuroses então emergentes, tornando pouco úteis seus pressupostos de organicidade. Quando os elementos que lhe permitiram existência perderam a importância, o diagnóstico entrou em franco declínio. Analisaremos a seguir algumas condições de possibilidade dessa categoria médica.

Algumas bases de sustentação da neurastenia

O desgaste do suprimento nervoso

É interessante notar que até 1800, como Gay (1990) apontou, a palavra 'nervoso' tinha conotações de vigor, força e libertação da debilidade. Um cavalo de corrida nervoso era aquele com suprimento extra de força. O velho significado do termo coexistiu com a conotação de falta de suprimento nos cem anos seguintes. Beard e outros médicos assumiram que a excitabilidade e a letargia nervosa, a atividade excessiva e a falta de atividade, ótima saúde e doença debilitante eram primariamente atribuíveis à economia nervosa do paciente, pressupondo até que seria possível deduzir, a partir de sua condição nervosa e de seu testemunho, a natureza de seus gastos morais. A força nervosa passava, então, a ser compreendida a partir da metáfora de um reservatório que deveria ser guardado para investimento futuro e, por isso, gasto com prudência.

As hipóteses de Beard e seus companheiros têm lugar em contexto no qual os médicos discutiam as patologias sob a lógica do calor e da energia. Segundo Lutz (1989, 1991), a teoria médica foi precedida por e baseada em teorias populares prevalentes sobre a energia corporal que eram claramente econômicas. Supunha-se que as pessoas tinham certa quantidade de força nervosa a ser gasta, reinvestida ou desperdiçada. Trabalho e procriação eram considerados exemplos de gasto nervoso. Masturbação e formas ilícitas de sexo constituíam dispêndio de força nervosa sem nenhum reinvestimento paralelo. O medo da dissipação baseava-se na possibilidade de dispersão da energia nervosa e do gasto sem retorno, capaz de levar à decadência, deterioração dos centros nervosos no indivíduo e, no limite, à decrepitude da civilização. O resultado final do processo de dissipação ou de qualquer investimento nervoso imprudente podia ser a neurastenia.

De forma análoga, se os pacientes fossem sensíveis e refinados, poderiam desenvolver a doença apesar de sua probidade moral, pela simples exposição à agitação e ao excesso de estímulos da vida moderna, e pela diátese nervosa. A vida no final do século XIX, transformada pela tecnologia, urbanizada e industrializada, talvez não tivesse nenhum efeito discernível nos proletários, mas era suficiente para exaurir completamente a parcela dita mais civilizada da população. A doença era sinal de sensibilidade. A consequência das teorias baseadas na ideia de desgaste nervoso era advogar tratamento por descanso e inatividade forçada, a fim de ordenar o limitado suprimento de energia.

Porter (2001) relembra que a segunda lei da termodinâmica, articulada por volta da metade do século XIX, atesta que a quantidade de energia disponível no universo está diminuindo gradual e inexoravelmente. Essa formulação foi incorporada e tornou-se bastante visível na conceituação da neurastenia, bem como nas concepções freudianas sobre o aparelho psíquico e as psiconeuroses. No caso específico da neurastenia, a sobrecarga mental ou física podia retirar o suprimento nervoso dos indivíduos, deixando seu sistema em deficiência. A doença era, portanto, o preço a ser pago pelo gasto de energia em alguma área do corpo que, no limite, era o cérebro. A aumentada demanda de força consumia energia cerebral e a retirava da periferia, causando fadiga e outros sintomas.

Somando-se a isso, Roelke (2001) afirma que os trabalhos de fisiologistas e clínicos como Emil Du Bois-Reymond (1818-1896) e Guillaume Duchenne (1806-1875), os estudos com estimulação elétrica do cérebro realizados por Eduard Hitzig (1838-1907) e Gustav Fritsch (1837-1927), as colaborações de Schmiedebach (2001) e Gosling (1987), as teorias do arco reflexo de Marshall Hall (1858-1927) e os estudos de Brown-Séquard (1817-1894) sobre a herança de características adquiridas deram os sustentáculos para a construção de um modelo mecanicista de explicação das patologias da exaustão nervosa e favoreceram o consenso em torno da importância da eletricidade para o funcionamento do sistema nervoso. Mais tardiamente, ao longo do século XIX, as teorias do desgaste nervoso foram integradas às teorias da hereditariedade e da degenerescência.

Cabe notar que a eletricidade era o principal meio de energia industrial e urbano, sendo a propulsora de todos os tipos de processos associados à vida moderna de então. Parecia plausível, portanto, que, nas últimas décadas do século, o sistema nervoso fosse pensado como um amontoado de fibras e células ativadas por impulsos elétricos e fluxos energéticos do centro (cérebro) para a periferia (nervos e órgãos) e vice-versa. O conceito de conservação de energia em um sistema fechado, legitimado pela física e pela fisiologia, apresentava considerável poder explicativo das experiências cotidianas e das doenças.

Os estudos sobre a fadiga

Os estudos sobre a neurastenia inserem-se em contexto mais abrangente de trabalhos a respeito da fadiga. Segundo Rabinbach (1990), o interesse na fadiga invadiu as décadas finais do século XIX e só faziam confirmar a ansiedade novecentista relativa à possibilidade de a sociedade não conseguir suportar as demandas da modernização crescente. Para os médicos, fisiologistas e reformadores do século XIX, a fadiga não existia isolada de questões como vontade e moralidade e do conjunto de forças sociais. Extenuadas, as nações desenvolvidas estavam entregues às vicissitudes da vontade desregulada, às emoções e aos inimigos da ordem produtiva. A fadiga, portanto, além de expressar a entropia que acompanhava a conservação de energia, era também uma ameaça à modernização. Por isso, afirma o autor, nada era mais preocupante do que a fadiga entre os jovens. No verão de 1887, a Academia Francesa de Medicina foi tomada pelo problema da exaustão em meio aos estudantes do liceu. A crise era atribuída à exagerada expansão do conhecimento requerido das pessoas jovens, tais como exames admissionais altamente competitivos, aulas de grego e latim, inúmeras atividades para realizar em casa e acréscimos recentes ao currículo - aulas de história natural, por exemplo.

Também a Alemanha padecia desses problemas. O estudo de Schmiedebach (2001) analisou revistas publicadas entre 1880 e 1919 com assuntos relacionados à neurastenia e observou que a questão da Schulnervosität e do excesso de carga intelectual das crianças tornou-se tópico de destaque de 1870 em diante. Essa preocupação culminou em uma série de sugestões para a reforma do currículo e no estabelecimento de tempos regulares para jogos e treinamentos físicos, visando evitar a sobrecarga. Segundo Bakker (2001), a neurastenia tornou-se bastante atraente como diagnóstico para crianças que apresentavam problemas de indisciplina e falta de atenção na sala de aula, sendo útil para especialistas em educação e para os pais e servindo para promover uma série de medidas pedagógicas profiláticas.

Foi nesse contexto que emergiram trabalhos cujo tema central era a fadiga, fosse em sua abordagem puramente fisiológica, como La fatica (1891)2 2 Não consultei esse trabalho para a elaboração deste artigo, mas havendo interesse, ver Mosso, 1891. , de Angelo Mosso (1846-1910), ou não, como 'La fatigue intellectuelle', de Binet e Henri (1898), que discutem as influências produzidas pelo desgaste intelectual sobre o organismo e sobre as diferentes funções psíquicas, tomando por base o problema da sobrecarga escolar. A década de 1890 foi, portanto, a de emergência de pesquisas sobre a exaustão - a intelectual inclusive, já que a saúde da juventude americana e europeia se encontrava em mau momento, decorrente das novas demandas feitas ora pelo sistema educacional, ora pelo mundo do trabalho. A neurastenia aparecia, então, como entidade clínica para contemplar os casos de fadiga patológica.

Gosling (1987) refere-se aos neurastênicos como o grupo situado entre uma maioria de indivíduos mentalmente saudáveis que abraçaram com rapidez os valores de moderação, racionalidade e ambição, impregnados nas classes urbanas emergentes nos EUA do final do século XIX, e outro grupo de sofredores dos tormentos da insanidade. Os neurastênicos aspiravam a um lugar útil na sociedade, mas por conta de um defeito supostamente invisível, não atingiam a harmonia mental nem a adaptação social. Faltava-lhes "a misteriosa substância que dá vitalidade ao organismo" (p.X), cuja ausência enfraquecia o sistema nervoso central e a vontade como um todo.

No início de sua carreira como diagnóstico, a fadiga só era problema para aqueles que mais se destacavam socialmente. Adepto do evolucionismo social, Beard (1881), principalmente em American nervousness, tinha sua visão embebida na terminologia e no olhar evolucionista. Não é sem motivo que tal doença era considerada o preço que, a princípio, os americanos - e mais tarde todas as sociedades desenvolvidas - teriam de pagar pelo progresso. Ela atingia, preferencialmente, os brain-workers, cujo estoque de força nervosa era destruído pelas imposições da vida urbana industrializada, e as moças de classe alta, com seus sistemas nervosos delicados e inaptos para as demandas da vida nascente nas grandes cidades. Afligia os grupos étnicos ditos mais avançados, como judeus, eslavos e anglo-saxões, conforme apontam Blocq (1891) e Laurent (1897), mas não os imigrantes negros e asiáticos.3 3 Alguns grupos não anglo-saxões e não protestantes eram considerados moderadamente nervosos e eram situados entre a força dos bárbaros e a sensibilidade dos altamente civilizados, de acordo com Beard (1881).

López-Piñero (1983) concorda com a ideia de que, a partir dessas origens, a neurastenia oferecia a prontidão conceitual e a climatização social que tornaram A practical treatise on nervous exhaustion (neurasthenia), de 1880, sucesso imediato. Seguiram-se obras de Mitchell, em 1878 e 1881 (Mitchell, 2004, 1881), descrevendo a forma feminina de neurastenia e sugerindo programa terapêutico. A partir de então a neurastenia passou a ser uma das doenças da moda, recebendo a adesão e atenção dos neurologistas da época. O sucesso do termo fez esquecer que ele fora criado para referir doença particular dos Estados Unidos que, cruzando o Atlântico, alcançou a Europa.4 4 Segundo Gijswijt-Hofstra e Porter (2001), foram diversas as recepções da neurastenia quando atravessou o oceano e instalou-se na Alemanha, França, Inglaterra e Holanda, o que fez com que a categoria adquirisse traços e abordagens próprias. Para discussões mais detalhadas sobre a recepção dessa cate-goria nas diferentes nações europeias, ver a minuciosa obra de Gijswijt-Hofstra e Porter (2001).

Rabinbach (1990) também sintoniza com esses pontos de vista, sustentando que a elaboração médica da neurastenia como entidade ofereceu base científica e léxico para as ideias socialmente disponíveis sobre a relação dos corpos com a vontade, da vontade com o valor e dos valores com o progresso da civilização ou as ameaças a ela. O autor lembra detalhe importante, que é o fato de a exaustão neurastênica ser propriamente intelectual ou, em outras palavras, representar o desgaste do cérebro e não do corpo. Nesse âmbito, não é sem propósito reiterar que o trabalho cerebral era e é associado à cultura e ao trabalho das altas classes.

Esse contexto colaborou para a colocação da neurastenia em um campo de legitimidade científica, porque ela se situava em consonância com a teoria da degenerescência, com as mudanças na sociedade do final do século XIX, com os conceitos aliados ao evolucionismo social e com as teorias médicas que requisitavam organicidade para as doenças nervosas: "assim, a neurastenia adquiriu popularidade porque reforçava as atitudes de classe e de gênero; em contrapartida, a neurastenia e suas várias causas ajudavam a 'provar' a validade das teorias sociais dominantes" (Gosling, 1987, p.XI). Tornou-se, então, um diagnóstico guarda-chuva, aplicado a uma síndrome com sintomas vagos e variados, e a uma variedade de queixas físicas não verificáveis.

A somatização especulativa

De acordo com Wessely (1990), pouca relação pôde ser encontrada, na história da neurastenia, entre os sintomas físicos e os achados orgânicos ou entre a recuperação do paciente e a solução de quaisquer anormalidades físicas. Ainda assim, considerava-se tal doença orgânica, bem como as alterações patológicas ainda não demonstráveis, suas causas.

Cabe-nos compreender melhor essa vontade de organicidade. Um elemento que contribui para ela é o fato de a segunda metade do século XIX, como demonstra Rosenberg (1989), ter sido crucial na articulação entre hipóteses etiológicas e pressuposições morais ou entre emoções e seus resultados aparentemente patológicos. Tal período é considerado, pelo autor, um momento de expansão das categorias de distúrbios que mesclavam características emocionais, estados alterados de humor e desvios de comportamento, legitimados como doenças supostamente orgânicas. Diversas foram as condições que aspiravam ser conside-radas doenças emergentes, a partir de 1860, a exemplo do alcoolismo, da doença de Erichsen ou railroad spine5 5 A descoberta doença de Erichsen é atribuída ao médico John Eric Erichsen e diz respeito à concussão da medula. Foi moléstia frequente a partir da metade do século XIX e caracterizada pela inquietude perante viagens rodoviárias e possíveis acidentes no trajeto. Os sintomas apontados eram irritabilidade, incapacidade de descanso, mal-estar, dores pelo corpo e, às vezes, paralisia (Hodgkiss, 2000). (concussão da medula) e do coração irritável (síndrome de Da Costa).

Categorias de doenças, portanto, começaram a ser usadas para explicar uma variedade de comportamentos socialmente estigmatizados ou considerados autodestrutivos, sendo justificadas por mecanismos materiais - achados fisiológicos que respondessem como causa dessas condições e lhes oferecessem alguma legitimidade -, o que demonstra a disseminação do somático como sua explicação preferencial. De acordo com Rosenberg (2006), essas categorias performatizam normas e definem desvios, racionalizam idiossincrasias e explicam o sofrimento humano por meio de estratégias determinísticas e mecânicas. Comportamentos moralmente condenáveis tornados patologias, passam, então, a ter tratamento e manejo médico. Para o autor, Beard (1869) racionalizou sua descoberta em termos materiais porque não tinha escolha, se quisesse ser levado a sério por seus pares: legitimidade social e científica presumia identidade somática, ou seja, algum princípio ou mecanismo fisiológico que justificasse o quadro sintomático. "Estou certo de que ela [a neurastenia] vai ser subs-tancialmente confirmada ao longo do tempo por exames microscópicos químicos dos pacientes que morreram numa condição neurastênica" (p.218). Essa somatização especu-lativa, conforme define Rosemberg (2006), era, no entanto, muito mais velha do que o tempo de Beard.

São muitos os exemplos possíveis dos mecanismos somáticos a encontrar para as doenças, como Rosenberg (1989) detalha. A simpatia e a irritabilidade, a voga novecentista da hereditariedade e o evolucionismo social - todos constituíam fatores significantes que ligavam biologia e comportamento. A anatomia patológica, com sua ênfase nas lesões localizadas, e os estudos sobre a fisiologia normal e anormal apontavam para a articulação de entidades estáveis de doença, que foram incorporadas em indivíduos particulares e explicadas em termos de mecanismos causais no corpo dos sofredores.

As doenças foram, então, equacionadas à ideia de especificidade, expressa por mecanismo fisiopatológico e, a rigor, entendidas como existentes fora do corpo, como entidades abstratas. O processo de diagnóstico passou a assentar-se sobre a pressuposição dessa especificidade, sendo construído por meio de testes de laboratório, limiares definidores, fatores de risco estatisticamente determinados e outros artefatos aparentemente livres de valor. Ainda que de modo especulativo, a somaticidade das doenças passou a ser exigência para que fossem consideradas reais.

O crescente prestígio das ciências biomédicas então emergentes (histologia, bioquímica, fisiologia, farmacologia) contribuiu diretamente para o acirramento desse processo, que culminaria, já no século XX, nos procedimentos citológicos e de imageamento, os quais trazem consigo a pretensão de produzir garantias cada vez mais precisas para a construção de diagnósticos. O processo descrito não é exclusividade da neurastenia, mas certamente é uma das condições de sua possibilidade. Segundo Rosenberg (1989), essa somatização especulativa é um dos preços retóricos a ser pago, no intuito de tornar possível a abordagem médica das doenças nervosas naquele momento, processo no qual a entidade que estamos abordando se inclui.

A partir de então, explicações para emoções e comportamentos problemáticos tomam forma em diversas entidades nosológicas, sendo a neurastenia uma delas. A novidade trazida por Beard, conforme destaca Rosenberg (2006), foi a de construir uma entidade nosológica própria considerando as diversas preocupações da época, nomeando-a a partir de conceitos científicos aceitáveis naquele momento e reunindo as numerosas queixas em um modelo explanatório para a doença.

É preciso destacar o papel crucial do conceito de lesão funcional nesse processo, por ter ele permitido a abordagem de doença sem causa orgânica conhecida, sem que se alterasse a soberania dos mecanismos somáticos em sua justificação. Esse é, de fato, um ponto de base para adentrar o campo dos estudos sobre a neurastenia, pois comum a seus diversos propagadores é o fato de considerá-la proveniente de alguma lesão funcional do sistema nervoso, como em Beard (1869, 1880, 1881), Blocq (1891), Charcot (1888b), Beevor (1898), Laurent (1897), Levillain (1891), Mitchell (1881, 2004,), Bouveret (1891), Proust e Ballet (1897) e Savill (1906).

Uma distinção se faz necessária. A lesão estrutural seria aquela detectável no exame clínico, demonstrável na avaliação laboratorial ou por meio de outras tecnologias médicas. As lesões funcionais, mais incertas, tinham seu processo patológico implícito e sua existência seria especulativa porque elas não apresentam alterações na estrutura dos tecidos e órgãos. Era o caso da neurastenia, considerada doença orgânica, embora não relacionada a alteração da estrutura dos tecidos ou órgãos, mas apenas de seu funcionamento. Atribuía-se à doença funcionamento deficitário, embora impalpável, do sistema nervoso. As alterações patológicas seriam supostamente submicroscópicas e relativas à nutrição das células do cérebro, portanto invisíveis, ainda que reais: "O que o microscópio pode ver nós chamamos estrutural, o que ele não pode ver nós chamamos funcional" (Beard, 1880, p.95).

Ehrenberg (1998) traz à tona alguns temas que merecem ser debatidos com minúcia. Para o autor, a neurastenia é o ponto de partida de uma atenção aos fatores sociais como causas de doenças. Tal categoria teria tornado insuficiente a referência à hereditariedade, e, por meio da noção de lesão funcional, houve um deslocamento do modelo da doença como lesão anatômica para o da doença como reação patológica ao ambiente, sem necessariamente a presença de lesão estrutural. A degenerescência, apesar de presente nas hipóteses etiológicas, não era explicação suficiente e, por isso, afirma o autor, o fator social estava no primeiro plano da etiologia.

A noção de lesão funcional, para Ehrenberg (1998), promove a permeabilidade do mental nas explicações médicas, atraindo nova forma de socialização da mente. O mental começa a ser cogitado pela suposição da influência do que está fora dele, do que não lhe é intrínseco - nesse caso, as características da modernidade, potencialmente hostis. Abre-se, então, a possibilidade de pensar que a sociedade pode adoecer seus partícipes e, sobretudo, que não apenas a natureza pode gerar doenças, mas também a cultura.

O interessante é compreender que uma primeira leitura dessas afirmações de Ehrenberg nos levaria a associar a neurastenia a explicações e hipóteses etiológicas preponderantemente psicogênicas ou psicossociais. Posto que as causas da doença são sociais, ela não resultaria apenas de uma hereditariedade inelutável, mas também do exercício da ação e da vontade. A leitura das fontes primárias demonstra, curiosamente, que essa abertura para o campo da vontade se baseia sobretudo em uma visão da hereditariedade como algo que a educação moral pode modificar. Não se observa, no entanto, apelo menor ao solo orgânico como ponto de edificação da doença; ao contrário, a hereditariedade6 6 Schmiedebach (2001) e Slijkhuis (2001) chamam a atenção para outro ponto: o caráter lamarckista da hereditariedade sobre a qual se assentava a condição neurastênica. A maioria dos autores aceitava a existência de uma disposição individual nervosa, o que não era considerado argumento pessimista; ao contrário, sobre a hereditariedade incidia a necessidade de aumentar os esforços da vontade para superar os efeitos particulares da natureza do indivíduo. Os neurastênicos, por herdarem fraca constituição dos nervos, não poderiam ser curados e, por isso, deviam ser educados para viver de acordo com suas insuficiências, otimizando-as. As explicações para a neurastenia eram, portanto, uma combinação da fraqueza herdada com esforço próprio, o que implicitamente sustentava um tema importante, nos EUA de então: a moderação era o único caminho para a saúde e alegria. Rabinbach (1990) chega a dizer que a neurastenia, compreendida como choque com a modernidade, é mais amplamente defendida pelos teóricos americanos e que a ênfase nos fatores hereditários como causa principal se concentra, sobretudo, nos autores europeus, especialmente, os franceses. Além disso, conforme Roelke (1997, 2001), o valor da hereditariedade como componente da neurastenia oscila à medida que o diagnóstico se desenvolve, principalmente diante da influência da nosologia germânica. e a somatogênese tomadas como princípio são esse ponto, justificando cuidados biomédicos. Talvez a ênfase na cul-tura como produtora de doença só tenha sido aceita como explicação pela inquestionável somaticidade sobre a qual a neurastenia estava assentada.

O conceito de lesão funcional, portanto, não é tema menor. É ele quem opera a partilha do que é voluntário e involuntário, intencional ou não. De todo modo, a maneira como as causas sociais exerciam sua ação sobre o sistema nervoso permanecia vaga e obscura, e faltavam bases patogênicas para estabelecer a relação entre o cérebro, a mente e a sociedade, e os limites entre endógeno e exógeno. Dada a inexistência da lesão anatômica, qual poderia ser o mecanismo produtor do sintoma? Como agir sobre ele? O conceito de lesão funcional respondia essas perguntas. Nota-se, então, que doença aparentemente sem base anatômica não seria sinônimo de doença sem causa. No caso da neurastenia, a causalidade somática não é abandonada, mas sim substituída pela pressuposição da somatogênese, em que o agente físico não pode ser encontrado pelos meios disponíveis.

Afirmar que o choque com a modernidade era a explicação mais plausível para o diag-nóstico da neurastenia em seu momento áureo não deve implicar, a nosso ver, o menosprezo do solo orgânico sobre o qual a doença se assentava, e os trabalhos de Rosenberg (1989, 2006) lembram essa onipresença do somático como explicação preferencial, no momento em que tal categoria vigora. O principal operador dessa somatização especulativa é o conceito de lesão funcional, que oscila entre dois polos: durante quase toda a vigência da categoria, a expressão serviu de eufemismo para orgânico sem alteração na estrutura. À medida que o paradigma psicogênico se aproximou, a ideia de 'funcional' passou a compreender a psicogênese dos sintomas físicos, abrindo espaço para a emergência da leitura psicanalítica das doenças sine materia e para o declínio do quadro neurastênico. Só no final da carreira do diagnóstico da neurastenia, já sob o foco do paradigma psicogênico, começou a ser possível pensar também desse modo quanto à noção de lesão funcional. Inicialmente, porém, e durante sua vigência, 'funcional' era simplesmente outro modo de se referir ao orgânico sem causa conhecida.7 7 Ainda na busca de compreender os diversos eixos somáticos da neurastenia, Wessely (1990) chama a atenção para o fato de as descrições originais da doença não sugerirem para ela uma origem infecciosa. Só em van Deusen (1869), em Blocq (1891) e em Savill (1906) encontramos menção às infecções como possíveis disparadores da neurastenia.

O desenvolvimento da neurastenia como doença, aos poucos, contraria ou, no mínimo, coloca em xeque seus pressupostos de emergência: classe, hereditariedade e organicismo. Conforme Wessely (1994) informa, embora inicialmente tivesse sido considerada doença da moda nos segmentos mais abastados, a neurastenia espalhou-se pelas demais classes sociais. É possível, no entanto, que enquanto os médicos sustentavam que os sintomas da neurastenia eram restritos às classes altas, eles também pudessem ser encontrados nas classes baixas. Mas os pacientes de Beard, por exemplo, sendo exclusivamente de alta classe social, ofereciam amostra bastante restrita dos doentes. O que se observa é que a democratização da neurastenia, associada a outros fatores, contribuiu para seu declínio, como veremos a seguir.

Declínio da neurastenia

Quanto ao declínio da neurastenia como diagnóstico, são diversos os elementos a destacar como fatores que contribuíram para esse processo. Seu desaparecimento tem relação direta com a mudança das condições que a tornaram um diagnóstico útil e aceito socialmente. A emergência do paradigma psicogenético no início do século XX alterou seu status e sua utilidade como diagnóstico, produzindo outras categorias mais adaptadas aos novos pressupostos - as psiconeuroses. Ocorreu ainda a 'democratização' do diagnóstico, que passou a ser conferido também aos pacientes da classe proletária, deixando de ser signo de distinção das altas classes. Quando os elementos que lhe permitiram a existência dissolveram-se no ritmo das mudanças sociomédicas, o diagnóstico entrou em decadência.

Diante desse quadro, Wessely (1990) aponta que o ceticismo médico relacionado a essa categoria cresceu e que a sofisticação da nosologia psiquiátrica tornou insustentável a generalidade do diagnóstico. Pierre Janet (1859-1947) definiu as características da psicastenia a partir da neurastenia, como também o fez Sigmund Freud com a neurose de angústia.8 8 Utilizo aqui a expressão neurose de angústia ( Angstneurose) seguindo a tradução do texto "Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada 'neurose de angústia'" (Freud, 1996), embora não se deva ignorar o relevante debate em torno da tradução do termo Angst e seus derivados na obra de Freud para a língua portuguesa. A esse respeito, uma referência introdutória é Hanns, 1996.

Para compreender esse processo, é útil recorrer à análise minuciosa de Taylor (2001) dos dados coletados a partir de registros históricos do National Hospital Queen Square, em Londres. Inicialmente denominado The National Hospital for the Relief and Cure of the Paralysed and Epilectic, a instituição iniciou suas atividades em 1860 com dez leitos, voltada para a caridade. Tinha por objetivo oferecer cuidados médicos aos pobres, e foi o primeiro hospital londrino a especializar-se em transtornos do sistema nervoso. Em quarenta anos, a instituição cresceu significativamente, alcançando duzentos leitos na virada do século XX, quando já se tornara um centro de excelência em formação, tratamento e pesquisa dos transtornos funcionais e atraía pacientes de toda a Inglaterra e mesmo de outros países.

Taylor teve acesso aos relatórios anuais do hospital - que cobrem o período de 1860 a 1947 - e, a partir do número de altas dos pacientes neurastênicos, construiu dados relativos a diagnóstico, gênero e resultados obtidos no tratamento. Embora a pesquisa de Taylor contemple unicamente os registros desse hospital - e não a situação mais ampla do diagnóstico em outras capitais da Europa ou em outros hospitais de Londres -, ela ganha relevância por ter sido a instituição um centro proeminente de estudo e tratamento de doenças nervosas, e nos serve como pequena amostra ilustrativa da situação do diagnóstico no período tratado.

Sobre a ascensão e queda da neurastenia, Taylor (2001) afirma que o diagnóstico apareceu pela primeira vez em 1886, seguindo depois um crescimento linear, com pico, em 1906, de 11% de altas; em 1908 a média decresceu para 7,4% de altas; e em 1928 ocorreu outro pico, de 10%. A esse quadro segue um abrupto declínio até os 3% de altas, em 1930, e 1%, em 1935, depois do que o diagnóstico praticamente desapareceu. Em seu momento áureo, a prevalência da neurastenia era equivalente à de outros diagnósticos orgânicos importantes, tais como tumor cerebral, que apresentavam entre 5% e 10% de altas por ano.9 9 Na mesma direção dos dados de Taylor (2001) apontam as pesquisas de Wessely (1990), para quem houve aparente diminuição da prevalência da neurastenia até o ponto de seu desaparecimento. Esse foi o período de sua primeira aparição como categoria separada, até seu evanescimento, quando se tornou subcategoria das psiconeuroses. De 1932 a 1944 a prevalência de novas categorias ligadas às psiconeuroses atingiu a média de 7%, caindo para 3% entre 1945 e 1957, quando acaba o relatório do Queen Square.

Os dados dessa amostra contradizem o mito delineado e sustentado por inúmeros doutores da neurastenia, de que tal doença era uma marca das classes abastadas, já que o Queen Square oferecia cuidado e tratamento aos pobres. No entanto, há notável lapso entre a descrição original que Beard faz da doença, em 1869, e a primeira aparição desse diagnóstico nas altas do Hospital Queen Square, que se supõe ter sido o tempo necessário para difusão do diagnóstico a outros continentes.

Em consonância com Taylor, Savill (1906), já na virada do século XX, chamou a atenção para a frequência de pacientes pobres no hospital Padington Workhouse, também de caridade. O autor comparou dados das práticas privada e pública, e afirmou não haver tendência de classe na neurastenia. É possível que tal diagnóstico tenha aparecido e se tornado prevalente também nas classes populares ao mesmo tempo que aparecia nas classes altas, embora Beard, Mitchell e alguns de seus principais difusores tenham suas amostras de pacientes bastante restritas às classes altas, omitindo-se quanto a sua existência nos demais extratos populacionais.

De acordo com o referido relatório, quando o diagnóstico apareceu, a proporção entre os sexos era de 50%/50%. A proporção de homens acometidos caiu entre 1891 e 1905, mas nunca esteve abaixo de 1/3. A prevalência masculina aumentou, então, gradativamente até haver ligeira preponderância de homens, entre 1911 e 1915, e assim permaneceu até 1920, quando passou a ocorrer discreta preponderância feminina. Cabe observar que o aumento da neurastenia masculina ocorreu durante a 1ª Guerra Mundial e esteve relacionado ao retorno dos combatentes. Entre 1914 e 1918, 1/3 dos leitos disponíveis no Hospital Queen Square era usado por militares. Em 1918 a instituição abriu uma casa especial para tratamento de oficiais neurastênicos, e muitos outros homens nela também foram admitidos. Contudo, conforme enfatiza o autor, a Guerra não explica inteiramente a prevalência da neurastenia masculina.

As explicações sociológicas também estavam mudando. Duvidava-se que a neurastenia realmente fosse doença da vida moderna, sob a justificativa de que as pessoas é que se estavam tornando mais sensíveis em seus adoecimentos. Outras etiologias eram sugeridas, tais como moradias ruins ou má higiene dental decorrente da moda de tomar sorvete, prevalente entre crianças das classes baixas, conforme demonstrado em Savill (1906). Aos poucos, a doença perdia sua característica de destaque social e de signo de sofisticação.

Outro ponto a contribuir para o declínio da neurastenia é a ideia defendida por Shorter (1992) de que a pressuposição de organicidade, que sempre sustentou indiretamente o diagnóstico, passou a ser questionada pela atribuição da origem psíquica dos sintomas. Foi por volta de 1920 que tal categoria perdeu popularidade, sob a emergência de um novo paradigma que, entre outros aspectos, afirmava que a origem dos sintomas estava em pro-cessos mentais, e não em algum transtorno do sistema nervoso central. Estavam em xeque as bases do modelo somaticista.

Para Will (1998), a proposta da terapia pelo descanso10 10 O tratamento da neurastenia, bem detalhado por Mitchell (2004, 1881), baseava-se sobretudo na cura pelo descanso, no uso de hidroterapia, massagens, dieta e estimulação por eletricidade. , utilizada na neurastenia, foi consequentemente questionada - se não havia base celular da exaustão e se as hipóteses psicogênicas começavam a emergir, qual seria o propósito do descanso? A crescente tomada de consciência de que, no processo da cura, dieta, massagem e eletricidade eram apenas formas de encorajamento do paciente tornou esses aspectos lentamente dispensáveis. Mesmo a aparente eficácia dos tratamentos elétricos passou a ser atribuída mais a razões psicológicas do que a possíveis modificações orgânicas dos centros nervosos. Houve declínio da cura pelo descanso, que deu lugar às novas terapias pela fala e ocupacionais.

O modelo orgânico da neurastenia tornava-se enfraquecido em favor do status cada vez maior das novas escolas de pensamento, e o manejo do paciente neurastênico passou, aos poucos, do neurologista para o psiquiatra. Se a neurastenia não era claramente orgânica, tampouco era psicológica o suficiente para continuar a ser sustentada como diagnóstico.

Na passagem gradual para o paradigma psicogênico, manteve-se inicialmente a neurastenia como diagnóstico, porém considerando-a mais psicológica do que física. Os sintomas psicológicos, considerados então consequência da doença, foram adquirindo importância, embora sem supremacia, até finalmente ser vistos como sua causa. Depois disso, a categoria foi desmembrada e substituída por novos diagnósticos psiquiátricos, e o espaço a ela destinado, nos textos sobre neurologia, reduziu-se e finalmente desapareceu, ou a doença passou a receber breve abordagem psiquiátrica. Gosling (1987) também confirma esse processo de transformação das concepções etiológicas da neurastenia, de doença somática com uma variedade de manifestações físicas e mentais a transtorno basicamente mental.

O desenvolvimento de teorias sobre mecanismos psicogênicos das doenças começou, segundo Shorter (1992), com uma dívida com a neurastenia. Freud (1996), por exemplo, distingue a neurose de angústia da neurastenia e de sua caracterização abrangente. À primeira atribui sintomas como irritabilidade geral, expectativa angustiada, perturbações respiratórias, crises de sudorese, tremores e calafrios, entre outros. A mudança mais relevante, entretanto, é quanto ao fator etiológico, já que, para Freud, estava em jogo um conjunto de perturbações e de influências da vida sexual do sofredor. Pierre Janet, por sua vez, introduz o termo psicastenia em 1903, em Les obsessions et la psychasténie.11 11 Não consultei essa obra para a elaboração deste artigo, mas havendo interesse, ver Janet, 1903. Para Shorter (1992), a psicastenia de Janet continha muitas características das neuroses obsessivas e fóbicas, que seriam mais bem definidas posteriormente. A queda na prevalência da neurastenia, entre 1920 e 1930, coincide, portanto, com o estabelecimento das subcategorias de psiconeurose. O diagnóstico desapareceu, mas não os sintomas, que foram realocados nas novas categorias surgidas.

É possível que a neurastenia, como um aglomerado de sintomas complexos, nunca tenha efetivamente desaparecido, mas venha sendo modificada de acordo com a nosologia vigente. Esse argumento é sustentado por Shorter (1992), que enfatiza a flutuação diagnóstica de certas categorias, tal como acontece com a histeria. É possível também que o quadro equivalente ao transtorno aqui tratado estivesse, de fato, menos prevalente nesse período, em vez de apenas distribuído em outros rótulos. Quando a neurastenia aparentemente desaparece, os médicos continuam a ver casos com sintomas similares, mas não fazem diagnósticos.

Antes da emergência do paradigma psicogênico, a neurastenia servia a um propósito, esclarecido por Sicherman (1977): em um tempo no qual os médicos só se sentiam à vontade com transtornos claramente orgânicos, um diagnóstico como esse permitia que o quadro fosse medicamente tangível, oferecendo terapia essencialmente psicológica, sob rótulo somático. Com a ascensão da escola psicogênica, essa função do diagnóstico foi perdida.

O termo foi reavivado nas culturas não ocidentais, particularmente na China, onde era chamado de shenjing shuairuo (fraqueza neurológica), no decorrer das décadas de 1970 e 1980 - como indicou a célebre análise de Kleinman (1986). Mas por que um diagnóstico morto nas terras ocidentais e europeias viria a renascer na China, tornando-se o mais utilizado nos meios médico-psiquiátricos e leigos daquele país? Para responder a essa questão, Kleinman tentou compreender o modo como o sofrimento ganhava significado e era interpretado no contexto cultural chinês, e como esse processo contrastava com os do Ocidente, onde, ao mesmo tempo, o diagnóstico de depressão e somatização aumentava de forma significativa.

Kleinmann investigou as relações entre a neurastenia, na China, e a depressão e a somatização, sobretudo nos EUA, no intuito de compreender como a cultura contribui para a interpretação e negociação da experiência da doença. Seu interesse era situar cada uma dessas entidades em relação a suas consequências, desmoralizantes ou não, e os modos pelos quais ganham legitimidade ou são rechaçadas em determinado grupo e seus sistemas de poder. Um dos pontos enfatizados no estudo é o fato de a neurastenia ser entendida, no contexto chinês, como transtorno cerebral que envolvia a fraqueza cortical. Já os sintomas psicológicos eram compreendidos a partir de origens somáticas, o que dava aos pacientes, para usar as palavras de Gosling e Ray (1986), o direito de adoecer sem o estigma da doença mental.

Os estudos de Ware e Kleinman (1992) apontaram que os desdobramentos políticos e sociais da revolução cultural da China, no final da década de 1960, alteraram a percepção de inúmeras pessoas sobre as perspectivas de futuro. Muitos tiveram suas casas, empregos e posição social perdidos. Famílias foram separadas, e vários de seus membros tinham que migrar para áreas rurais, diante de índices de violência aumentados. O legado desse processo foi vivido ao longo das décadas de 1970 e 1980, em que pais faziam luto por seus filhos e vice-versa; os profissionais urbanos, que agora moravam no campo, permaneciam insatisfeitos e ressentidos com sua condição; os jovens adultos lutavam por recuperar anos de educação que não tiveram enquanto estavam engajados em lutas políticas. Os neurastênicos na China padeciam da descrença na liberdade política e na melhora das chances de vida. Os sintomas da doença, no contexto chinês, eram uma metáfora da experiência social pela qual passavam seus sofredores.

Nas culturas ocidentais, os signos da revivescência da neurastenia, a partir dos anos 1980, transparecem na ascensão da síndrome da fadiga crônica como entidade nosológica. Um ponto comum à neurastenia e à síndrome da fadiga crônica é que, a despeito de suas causas se relacionarem a pressões e exigências do ambiente, é na fisiologia do corpo que sua busca está preponderantemente assentada. São a depleção das células cerebrais - no caso da neurastenia - e os vírus, a deficiência imunitária e as anormalidades cerebrais - no caso da síndrome da fadiga crônica - que, em tese, produzem cada um dos quadros. O que está em jogo nos argumentos quanto à neurastenia e à síndrome da fadiga crônica é o que se deve considerar doença legítima e, por consequência, sofrimento legítimo, merecedor de apoio, empatia, cuidados médicos e, no limite, seguridade social. São as respostas de cada momento sociomédico a essas perguntas que permitem a sobrevivência ou não da neurastenia e de suas derivações no presente.

NOTAS

Recebido para publicação em janeiro de 2008.

Aprovado para publicação em novembro de 2008.

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  • A fadiga e seus transtornos: condições de possibilidade, ascensão e queda da neurastenia novecentista

    Rafaela Teixeira Zorzanelli
  • 1
    Jean Martin Charcot (1888a) também usa a ideia de lesão funcional ou dinâmica, inicialmente em casos de paralisia histerotraumática. O autor detecta diferenças entre as lesões corticais e as da histeria: as primeiras possuiriam focos limitados e se distribuiriam ao acaso sobre as regiões motoras e sensitivas do córtex, sendo distintas e distantes umas das outras; as lesões dinâmicas da histeria, além de difusas, afetariam simultânea e sistematicamente as regiões motoras e sensitivas fisiologicamente implicadas na execução do movimento de uma dada articulação - havia portanto, nos pacientes analisados, uma lesão cortical que não era estrutural.
  • 2
    Não consultei esse trabalho para a elaboração deste artigo, mas havendo interesse, ver Mosso, 1891.
  • 3
    Alguns grupos não anglo-saxões e não protestantes eram considerados moderadamente nervosos e eram situados entre a força dos bárbaros e a sensibilidade dos altamente civilizados, de acordo com Beard (1881).
  • 4
    Segundo Gijswijt-Hofstra e Porter (2001), foram diversas as recepções da neurastenia quando atravessou o oceano e instalou-se na Alemanha, França, Inglaterra e Holanda, o que fez com que a categoria adquirisse traços e abordagens próprias. Para discussões mais detalhadas sobre a recepção dessa cate-goria nas diferentes nações europeias, ver a minuciosa obra de Gijswijt-Hofstra e Porter (2001).
  • 5
    A descoberta doença de Erichsen é atribuída ao médico John Eric Erichsen e diz respeito à concussão da medula. Foi moléstia frequente a partir da metade do século XIX e caracterizada pela inquietude perante viagens rodoviárias e possíveis acidentes no trajeto. Os sintomas apontados eram irritabilidade, incapacidade de descanso, mal-estar, dores pelo corpo e, às vezes, paralisia (Hodgkiss, 2000).
  • 6
    Schmiedebach (2001) e Slijkhuis (2001) chamam a atenção para outro ponto: o caráter lamarckista da hereditariedade sobre a qual se assentava a condição neurastênica. A maioria dos autores aceitava a existência de uma disposição individual nervosa, o que não era considerado argumento pessimista; ao contrário, sobre a hereditariedade incidia a necessidade de aumentar os esforços da vontade para superar os efeitos particulares da natureza do indivíduo. Os neurastênicos, por herdarem fraca constituição dos nervos, não poderiam ser curados e, por isso, deviam ser educados para viver de acordo com suas insuficiências, otimizando-as. As explicações para a neurastenia eram, portanto, uma combinação da fraqueza herdada com esforço próprio, o que implicitamente sustentava um tema importante, nos EUA de então: a moderação era o único caminho para a saúde e alegria. Rabinbach (1990) chega a dizer que a neurastenia, compreendida como choque com a modernidade, é mais amplamente defendida pelos teóricos americanos e que a ênfase nos fatores hereditários como causa principal se concentra, sobretudo, nos autores europeus, especialmente, os franceses. Além disso, conforme Roelke (1997, 2001), o valor da hereditariedade como componente da neurastenia oscila à medida que o diagnóstico se desenvolve, principalmente diante da influência da nosologia germânica.
  • 7
    Ainda na busca de compreender os diversos eixos somáticos da neurastenia, Wessely (1990) chama a atenção para o fato de as descrições originais da doença não sugerirem para ela uma origem infecciosa. Só em van Deusen (1869), em Blocq (1891) e em Savill (1906) encontramos menção às infecções como possíveis disparadores da neurastenia.
  • 8
    Utilizo aqui a expressão neurose de angústia (
    Angstneurose) seguindo a tradução do texto "Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada 'neurose de angústia'" (Freud, 1996), embora não se deva ignorar o relevante debate em torno da tradução do termo
    Angst e seus derivados na obra de Freud para a língua portuguesa. A esse respeito, uma referência introdutória é Hanns, 1996.
  • 9
    Na mesma direção dos dados de Taylor (2001) apontam as pesquisas de Wessely (1990), para quem houve aparente diminuição da prevalência da neurastenia até o ponto de seu desaparecimento.
  • 10
    O tratamento da neurastenia, bem detalhado por Mitchell (2004, 1881), baseava-se sobretudo na cura pelo descanso, no uso de hidroterapia, massagens, dieta e estimulação por eletricidade.
  • 11
    Não consultei essa obra para a elaboração deste artigo, mas havendo interesse, ver Janet, 1903.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2008
    • Recebido
      Jan 2008
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