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Olhar múltiplo percorre a linha do tempo: higienismo e eugenismo no Brasil

A multi-faceted look across time: hygienism and eugenics in Brazil

LIVROS E REDES

Olhar múltiplo percorre a linha do tempo: higienismo e eugenismo no Brasil

A multi-faceted look across time: hygienism and eugenics in Brazil

Bernardo Andrade Marçolla

Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Psicólogo, Mestre em Psicologia Social (UFMG), Doutorando em Letras (PUC Minas) bernardo@pucminas.br

Higienismo e eugenismo, apesar de, habitualmente, não fazerem parte dos conceitos mais abordados pelas teorias 'psi', fazem parte da inextrincável teia de complexas e polêmicas discussões que hoje permeiam os mais diversos temas ligados à bioética. Muitas discussões sobre os dois temas estão na ordem do dia, suscitadas pelo avanço das ciências e das biotecnologias. Mas um outro olhar, de cunho histórico-crítico, também tem se voltado para eles, no sentido de assinalar suas marcas e raízes, em nosso país. Trata-se, na verdade, de um olhar múltiplo e complexo, que percorre a linha do tempo, através da produção de pesquisadores de áreas diversas das ciências humanas e sociais, como a psicologia, a psicanálise, a história, a filosofia e a educação. Esse é o tom da coletânea organizada pela professora Maria Lúcia Boarini, intitulada Higiene e raça como projetos: higienismo e eugenismo no Brasil.

No primeiro capítulo "Higienismo, eugenia e a naturalização do social", de autoria da própria organizadora da obra, a história das idéias eugenistas e higienistas é retomada, por meio de argumentos que mostram como tais idéias serviram para escamotear as contradições impostas pela organização social do trabalho, revelando-se como equipamentos a serviço da desigualdade social, revestidos por uma ideologia biologista do ser humano.

A obra prossegue com uma discussão sobre esses mesmos temas, já situados no contexto brasileiro. Trata-se do texto "Difusão dos ideários higienista e eugenista no Brasil", de Lílian Denise Mai. Esse capítulo aborda os processos que permitiram a tais ideários ocupar um lugar de importante influência em nosso próprio projeto de nação.

No capítulo seguinte, "A criança brasileira nas primeiras décadas do século XX: a ação da higiene mental na psiquiatria, na psicologia e na educação", de Paulo Rennes Marçal Ribeiro, discute-se a gênese das ações desenvolvidas junto à infância no Brasil, no contexto de construção da ideologia médico-higiênica, ajudada pela consolidação da psiquiatria como especialidade médica. O autor aborda, numa perspectiva histórica, a força da idéia de higiene mental e a consolidação do saber psicanalítico como fruto desse contexto, na especificidade de uma abordagem dirigida à criança.

Ocimar Aparecido Dacome, em "Higienismo e psicanálise", nos permite compreender e aguçar a visão crítica sobre as relações entre as duas perspectivas citadas. É assim que ele explora as conexões entre uma concepção que se pauta pela aceitação do inconsciente e outra que se define pela busca da ordem.

No capítulo seguinte, "Contribuição da higiene mental para o desenvolvimento da psicologia no Brasil", Lucia Cecília da Silva discute, também numa perspectiva histórica, os processos que aproximam e às vezes quase confundem o desenvolvimento da psicologia e do higie-nismo no Brasil, especialmente em momentos marcados por arraigados mecanismos de controle social.

O sexto capítulo, "Antropologia e segregação eugênica: uma leitura das lições de eugenia de Renato Kehl", escrito por Marcos Alexandre Gomes Nalli, traz uma contribuição específica da antropologia. O autor aborda criticamente a epistemologia do médico Renato Kehl, eugenista convicto e 'publicista' das práticas eugenistas no Brasil.

"Degenerando em barbárie: a hora e a vez do eugenismo radical", de José Roberto Franco Reis, é o capítulo que finaliza a obra. Abordando o apoio buscado nas ciências naturais e na biologia para justificar a intolerância ao desvio em relação às normas instituídas, o autor mostra como tal apoio funciona como um álibi, no sentido de mascarar as contradições que marcam nossa organização social – e que só um olhar crítico pode desvelar.

Apesar das perspectivas e enfoques diversos apresentados ao longo da coletânea, o leitor caminha através de um eixo fundamental que une todos os trabalhos: trata-se do olhar crítico, do resgate dos meandros históricos, da necessidade de problematização de práticas higienistas e eugenistas fundadas em ideologias que, ainda hoje, fundamentam certas políticas públicas que orientam a medicina social, a psiquiatria, a educação, a assistência social etc. O convite é para que se possa 'desnaturalizar' o próprio olhar, a fim de que sejamos capazes de reconhecer, no tempo atual, a maneira como velhas posições ideológicas, sob a égide de justificativas supostamente 'científicas', se inscrevem em práticas também supostamente neutras. Uma perspectiva completamente distinta se apresenta quando, ao contrário, vemos a forma como tais práticas se revelam como mantenedoras de contradições que, há tempos, vêm constituindo a base de nossas relações em sociedade, eivadas de toda a sorte (ou azar?) de preconceitos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2005
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