Resumo
Este texto tem como objetivo desenvolver um diálogo com a histórica da Pedagogia Musical brasileira, tanto na perspectiva da recuperação de momentos históricos determinantes, quanto na perspectiva interpretativa que se faz possível ao lançarmos mão da materialidade histórica da educação que, dentre outras possibilidades, pode ser encontrada nos manuais didáticos. Tomaremos como objeto de investigação o livro Aulas de canto orfeônico para as quatro séries do curso ginasial (1951) de Judith Morisson Almeida, buscando destacar sua proposta pedagógica no que diz respeito ao trabalho com o canto orfeônico, bem como a relação que a mesma manteve com a tendência pedagógica escolanovista e o contexto sociopolítico da época.
Palavras-chave:
pedagogia musical; canto orfeônico; música na escola
Abstract
This article aims at developing a dialogue with the history of the Brazilian Musical Pedagogy, either from the perspective of the recovery of the determining historic moments as well as from the interpretative perspective that becomes feasible as we give up the historic materiality, which, among other possibilities, can be found in didactic manuals. The book Aula de canto orfeônico para as quatro séries do curso ginasial (1951), by Judith Morisson Almeida, will be taken as an investigation subject, seeking its pedagogical proposal in the choral singing, as well as its relation with the pedagogical trend in the 'novista' school and the socio-political context from that time.
Key-words:
musical pedagogy; choral singing; music in the school
Resumen
El artículo tiene como objetivo desarrollar un diálogo con la historia de la Pedagogía Musical brasileña, en la perspectiva de recuperación de momentos históricos importantes, y también en la perspectiva interpretativa, que es posible si hacemos uso de la materialidad histórica de la educación que puede ser encontrada, entre otras posibilidades, en los manuales didácticos. Tomaremos como objeto de investigación el libro Aulas de canto orfeônico para quatro série do curso ginasial (1951) de Judith Morisson Almeida, intentando poner en evidencia su propuesta pedagógica en el trabajo con el canto orfeónico, así como la relación que la autora mantenía con la tendencia pedagógica de la Educación nueva y el contexto sociopolítico de la época.
Palabras-clave:
pedagogía musical; canto orfeónico; música en la escuela
Résumé
L'article a pour but d'établir un dialogue avec l'histoire de la Pédagogie Musicale brésilienne, dans la perspective de rappeler des moments historiques déterminants, ainsi que dans la perspective d'interpréter des documents, qui est possible si l'on se sert de la matérialité historique de l'éducation que, entre autres possibilités, peut se trouver dans les manuels didactiques. On prend comme objet de recherche le livre Aulas de canto orfeônico para quatro séries do curso ginasial (1951) de Judith Morisson Almeida, en essayant de mettre en évidence sa proposition pédagogique par rapport au travail avec le chant orphéonique, ainsi que la relation que l'autrice établit avec la tendance pédagogique de l'Éducation nouvelle et le contexte sociopolitique de l'époque.
Mots-clé:
pédagogie musicale; chant orphéonique; musique à l'école
O contexto de concepção da obra
Nas décadas iniciais do século 20 a música não encontrou espaço nas decisões oficiais do governo em relação ao ensino secundário. Foi somente na década de 1930, com o decreto n. 19.890, de 18 de abril de 1931, que a mesma, por meio do Canto Orfeônico, foi incorporada ao programa oficial do curso ginasial: a Reforma de Francisco Campos foi a responsável por tal iniciativa. Após esse momento, o Canto Orfeônico viria a passar novamente por uma reforma referente ao programa da disciplina somente em 1946. A Reforma de Francisco Campos previu o trabalho com o Canto Orfeônico numa perspectiva marcadamente nacionalista, a qual se caracterizou como exigência própria do contexto histórico-político. Nesse contexto, a organização dos orfeões nas diversas escolas, por meio de recitais e festas escolares, pôs em destaque hinos e canções patrióticas. O espírito patriótico perpassou de forma significativa o projeto político-educativo de Campos e o papel da música na escola foi interpretado e determinado a partir das diretrizes mais amplas que caracterizaram o projeto.
Foi a partir destes pressupostos que Francisco Campos formulou a Exposição de motivos para explicitar o decreto da reforma. A produtividade pedagógica das canções patrióticas liga-se às necessidades de inspiração, amor e orgulho pátrios, os quais devem enaltecer a imagem de um Brasil forte e pacífico: há uma enérgica e constante busca do engrandecimento nacional (Brasil, 1931). O sentimento nacionalista de enaltecimento pátrio, que perpassou a reforma educacional de 1931, apresentou como exigência à pedagogia musical da época, em específico ao Canto Orfeônico, a tarefa em buscar disciplina, respeito e trato conteudístico a partir dos hinos pátrios. Do ponto de vista histórico foi a preocupação política e educacional que veio a determinar a organização das matérias por série, as respectivas cargas horárias e outras orientações daí decorrentes. Neste sentido, interessa-me a visualização da posição da música na organização prevista para o ensino secundário composto pelo curso fundamental. A Reforma de Francisco Campos previu o processo da seguinte maneira:
Art. 3º. Constituirão o curso fundamental as matérias abaixo indicadas, distribuídas em cinco anos, de acordo com a seguinte seriação:
1ª série: Português - Francês - História da civilização - Geografia - Matemática - Ciências físicas e naturais - Desenho - Música (canto orfeônico).
2ª série: Português - Francês - Inglês - História da civilização - Geografia - Matemática - Ciências físicas e naturais - Desenho - Música (canto orfeônico).
3ª série: Português - Francês - Inglês - História da civilização - Geografia - Matemática - Física - Química - História natural - Desenho - Música (canto orfeônico).
4ª série: Português - Francês - Inglês - Latim - Alemão (facultativo) - História da civilização - Geografia - Matemática - Física - Química - História Natural - Desenho.
5ª série: Português - Latim - Alemão (facultativo) - História da civilização - Geografia - Matemática - Física - Química - História natural - Desenho. (Brasil, 1931)
O pano de fundo histórico que subjaz a perspectiva curricular de Campos sustenta-se na ideia de ampliação do sentido sobre a finalidade do ensino secundário, o qual, para o ministro, deveria superar a perspectiva instrumental encerrada na ideia de preparação de candidatos ao ensino superior. Na Exposição de motivos que acompanha o decreto, Campos apresenta tal preocupação partir da ideia de que a forma como havia sido concebido o ensino secundário de sua época tolhia-lhe o que é essencial em sua função. O conjunto de entendimentos e iniciativas da política educacional seguia
desprezando [...] sua função eminentemente educativa que consiste, precisamente, no desenvolvimento das faculdades de apreciação, de juízo, de critério, essenciais a todos os ramos da atividade humana, e, particularmente, no treino da inteligência em colocar os problemas nos seus termos exatos e procurar as suas soluções adequadas. (Brasil, 1931)
A citação acima permite compreender as condições e objetivos que justificaram pedagogicamente o papel da música na escola. A reforma de Campos representou para a história da pedagogia musical um marco burocrático ao reservar para a música uma determinação na própria legislação. Embora de forma tímida, o currículo de Campos previu para Música - Canto Orfeônico -, o total de cinco horas aula semanais: duas horas para a 1ª série, duas horas para a 2ª série, e uma hora para a 3ª série (Peixoto, 1937PEIXOTO, Afrânio. Um grande problema nacional: estudos sobre o ensino secundário. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1937.). Em sentido lato, tal iniciativa, além de contemplar discussões sobre a música na escola, nascidas na década anterior ao decreto, demarcou o espaço necessário para ampliação da posição do Canto Orfeônico tanto na escola, quanto na política nacional.
A reforma proposta por Campos poderia despertar ainda um interesse por seus limites de concepção política e educacional, ou por paradoxos daí resultantes. Embora não seja este o foco de nosso trabalho, cabe considerar que as iniciativas posteriores à década de 1930 podem ser entendidas como resultado de um percurso histórico marcado por grandes mudanças nacionais e internacionais.1 1 Ver Romanelli (1999) e Palma Filho (2005). Uma interpretação, que nos ajuda a compreender tais questões, pode ser encontrada em Palma Filho (2005PALMA FILHO, João Cardoso (org.). Pedagogia cidadã: cadernos de formação. São Paulo: Unesp, 2005.). Para o autor, a perspectiva elitista que perpassa a reforma, e mesmo a forte ligação de Campos com setores conservadores da sociedade, tem como consequência o distanciamento das novas exigências educacionais provocadas pelo processo de industrialização que Vargas pretendia para o Brasil. Por outro lado, embora paradoxal do ponto de vista sócio-politico-educacional, é possível afirmar que a reforma introduziu uma nova compreensão a respeito do papel e organização do ensino secundário ao estabelecer, de forma fixa, um currículo seriado, freqüência obrigatória, ciclos de duração, sistemática de inspeção federal e normas e registros da atividade docente junto ao Ministério da Educação (Romanelli, 1999ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.).
De modo geral, toda a década de 1930 no Brasil, principalmente no que diz respeito à política educacional, manteve vivo os conflitos ideológicos profundos que resultaram em iniciativas históricas determinantes para a história da educação brasileira. Dentre os principais marcos podemos citar a IV Conferência Nacional de Educação de dezembro de 1931; o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932; a Constituição Federal de 1934; a Constituição Federal de 1937 e a criação do Estado Novo. Temos nesse itinerário o diálogo da IV Conferência a respeito do ensino leigo e da escola pública, a passagem ao Manifesto dos Pioneiros e sua proposta de um sistema completo e orgânico para educação brasileira, a dedicação de um capítulo a questões educacionais por parte da Constituição de 1934 afinado com ideal dos pioneiros e a chegada ao Estado Novo, marcado por significativo atenuamento no que diz respeito à obrigação do Estado em relação à educação (Romanelli, 1999ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.).
Esse processo resultou na posição do ministro da Educação Gustavo Capanema que, a partir de 1942, iniciou a publicação de vários decretos-lei. A pedagogia musical acompanhou esse percurso e as iniciativas relativas à função da música na escola estiveram ligadas aos resultados das reflexões e determinações que perpassaram as políticas educacionais. São exemplos a criação, em 1933, da Superintendência de Educação Musical e Artística e sua transformação, no ano de 1939, em Serviço de Educação Musical e Artística, bem como a fundação, por parte de Villa-Lobos, do Conservatório Nacional do Canto Orfeônico em 1943. Entende-se, a partir daqui, a posição de Lemos Jr (2005), para quem, a reforma, no início dos anos 1930, corresponde ao atendimento de parte dos discursos sobre o Canto Orfeônico ocorrida nos anos 1920, embora tenha sido somente com Gustavo Capanema, em parceria com Villa-Lobos, que o Canto Orfeônico ampliou seu espaço, posto que nas reformas de Capanema o Canto Orfeônico assumiu um importante objetivo para os ideais do novo ministro da educação e do presidente da República, Getúlio Vargas, uma vez que contemplava questões como nacionalidade e civismo.
Decorre daí que as práticas com o Canto Orfeônico, no contexto escolar, coadunaram-se com objetivos mais amplos com o intuito de reforçar os ideais políticos da época, os quais, dentre outras preocupações, destacavam a necessidade do progresso e desenvolvimento econômico-social, bem como a necessidade de uma educação que valorizasse o engajamento pátrio dos cidadãos brasileiros. Formar cidadãos tornou-se o grande objetivo da educação brasileira da época, e, consequentemente, o ensino de música e as práticas com o Canto Orfeônico passaram a cumprir papel determinante no contexto político em sentido lato.
Ganhou validade, portanto, a consideração de Lemos Jr (2005), para quem o apoio de Villa-Lobos a Vargas demonstrou isso: se por um lado o maestro notou um importante espaço nas escolas para divulgar a boa música, por outro Vargas percebeu um poderoso meio de divulgação do Estado Novo. As palavras de Villa-Lobos (1946) são as que melhor definem esse processo: aos interventores e diretores de instrução de todos os Estados do Brasil foi enviado, em 1933, um apelo no sentido de que se interessassem pela propagação do ensino da música nas escolas e pela organização de orfeões escolares, apresentando-se, ao mesmo tempo, uma exposição das necessidades e vantagens que poderiam advir para a unidade nacional, da prática coletiva do canto orfeônico, calcada numa orientação didática uniforme. Foi esse apelo acolhido com interesse e simpatia em muitos Estados que, desde então, se preocuparam em torná-lo uma realidade.
Cabe ressaltar que o período posterior ao Estado Novo, em específico o ano de 1946, tornou-se um marco para a história da pedagogia musical. Tratou-se do momento em que se desencadeou a reforma do Canto Orfeônico promovida por Raul Leitão Filho2 2 Ministro Raul Leitão da Cunha (30/10/45-31/01/46). Nascido na cidade do Rio de Janeiro, em 2 de janeiro de 1881. Bacharel pelo Instituto H. Kopke e doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Professor em várias áreas médicas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e diretor da mesma. Exerceu vários cargos técnicos e administrativos no Estado do Rio e no governo federal. . Foram revistas questões conteudísticas, bem como a obrigatoriedade da avaliação para os alunos do ensino ginasial. A distribuição do Canto Orfeônico para o curso ginasial sofreu alterações. As aulas foram redistribuídas em todas as séries, contudo, contava-se agora com uma aula para cada série: registra-se, portanto, uma redução em horas em relação às iniciativas anteriores. Todo esse processo relacionado à música comunica-nos ideais pedagógicos e políticos de uma determinada época. Ao pretender expandir em âmbito nacional o ensino do Canto Orfeônico, o governo teve que contar com o apoio de muitos representantes da Escola Nova. Basta retomarmos o significativo espaço que a música ocupou nos currículos escolares na reforma de ensino de 1932 desencadeada por Anísio Teixeira. Nutrida desse impulso, a Universidade do Distrito Federal dispunha do curso de Formação de Professores Secundários de Música e Canto Orfeônico. Na mesma universidade Villa-Lobos atuava como professor nas cadeiras de conteúdos musicais.
Nosso interesse de análise do livro Aula de canto orfeônico para as quatro séries do curso ginasial, de Judith Morisson Almeida, justifica-se a partir da importância que todo esse momento histórico, político e educacional representou para a história da pedagogia musical. Em sentido objetivo, ao lançar mão da materialidade histórica registrada nos manuais didáticos, pomo-nos em contato com questões e elementos fundamentais, não só no sentido de uma retomada histórica, mas sobre tudo, no sentido de atualização dos desafios atuais e exigência políticas apresentados atualmente à pedagogia musical.
A partir da obra de Judith Morisson, temos em mãos um material que nos comunica, a partir de sua organização estrutural e conteudística, um contexto histórico, político, pedagógico e musical rico em iniciativas que valorizaram o ensino de música nas escolas.
Entrando em contato com a obra
O livro Aula de canto orfeônico para as quatro séries do curso ginasial foi publicado pela Companhia Editora Nacional de São Paulo em 1951. Já em 1958 contava com sua 31ª edição. A autora do livro é Judith Morisson Almeida. Não são muitas as informações sobre a referida autora. Seu nome consta na seção n. 1 do Diário Oficial de outubro de 1955, no qual a Superintendência do Ensino Agrícola e Veterinário, por meio da portaria n. 244, de 20 de setembro de 1955, a nomeia na condição de servidora, "professora de Canto Orfeônico com o salário mensal de Cr$ 2.500.00 (dois mil e quinhentos cruzeiros)" (Brasil, 1955). Para este artigo tomaremos como objeto de análise e reflexão a 31ª edição, exemplar n. 11367, do livro acima citado.
Com fins didáticos, as aulas de Canto Orfeônico oferecidas no manual destinavam-se a professores e alunos, na procura por sistematizar a prática com o canto orfeônico em sala de aula, cujo fundamento encontrava-se no decreto lei n. 9.494, de 22 de julho de 1946, que tinha como finalidade "I - Formar professores de canto orfeônico; II - Proporcionar aos estudiosos os meios de aquisição de cultura musical, especializada, de canto orfeônico; III - Incentivar a mentalidade cívico-musical dos educadores" (Brasil, 1946).
Ao apresentar o livro a autora deixar claro "seguir bem de perto, o programa e a orientação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico [e vincula-se à política nacional ao declarar que] por um Brasil melhor, desejamos que nossos alunos trabalhem cantando" (Almeida, 1958, p. 8). Fundado em 1943 por Villa-Lobos, o Conservatório Nacional do Canto Orfeônico constituiu-se na primeira iniciativa de Villa-Lobos3 3 Ver Bomeny (2003). ao deixar a superintendência do Distrito Federal. Com abrangência nacional, seu principal objetivo foi formar professores e orientar o ensino de música em todo o país. Mais tarde o decreto n. 41.926, de 30 de julho de 1957, asseguraria a aprovação do "Regimento do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, do Departamento Nacional de Educação, do Ministério de Educação e Cultura" (Brasil, 1957). Assim, ao comungar com as diretrizes do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, o trabalho de Judith M. Almeida encontrava-se orientado pelos seguintes princípios:
-
I - formar professores de canto orfeônico para os Cursos pré-primário, primário, de grau secundário e todos aqueles cujo currículo compreender o ensino dessa disciplina;
-
II - formar músicos-artífices, nas condições previstas no parágrafo único do art. 7º, da Lei Orgânica do Ensino de Canto Orfeônico (Decreto-lei n.º 9.494, de 22 de julho de 1946);
-
III - estudar e elaborar as diretrizes técnicas gerais que devem presidir ao ensino do canto orfeônico em todo o país;
-
IV - inspecionar e orientar o ensino do canto orfeônico no país, na forma prevista no art. 40 da respectiva Lei Orgânica;
-
V - realizar pesquisas, visando, tanto à restauração ou revivescência das obras de música patrióticas que hajam sido, no passado, expressões legítimas da arte brasileira, como ao recolhimento das formas puras e expressivas de cantos populares do país, no passado e no presente;
-
VI - promover, com a cooperação técnica do Instituto Nacional de Cinema Educativo, a gravação de canto orfeônico, em discos, dos hinos e demais músicas patrióticas e populares que devam ser cantadas nos estabelecimentos de ensino do país. (Brasil, 1957)
Tomando como pano de fundo as iniciativas decisivas para a pedagogia musical, e, nesse caso específico, o contexto escolanovista, que representou um momento fecundo e agitado no que diz respeito ao ensino de música no Brasil, teremos as condições de desenvolver uma análise do livro Aulas de canto orfeônico para as quatro séries do curso ginasial, concebendo-o como um documento que comunica à nossa época uma sabedoria musical, uma tendência pedagógica, uma ideologia, um processo didático do ensino de música.
O programa de conteúdos
A Lei Orgânica do Ensino de Canto Orfeônico, sancionada pelo decreto-lei n. 9.494, de 22 de julho de 1946, previu o seguinte programa para o ensino de Canto Orfeônico4 4 O programa apresentado é bem completo no âmbito de uma formação erudita, principalmente nos estudos teóricos de música como elementos da partitura, apreciação e história da música. No entanto, ao contrário do modelo apresentado por Francisco Campos em 1931, havia uma gama de conteúdos para as turmas do curso ginasial. Além disso houve, na legislação de 1946, uma redução no número de aulas de Canto Orfeônico de cinco, proposto na Reforma de Francisco Campos, para quatro. Com isso, os conhecimentos a serem contemplados tornavam-se inviáveis para a realidade escolar, pois, além do fato do professor atender a um grande número de turmas heterogêneas, havia o nível avançado dos conteúdos relacionados. Constava do currículo de todas as séries a apreciação musical, teoria, solfejos, preparação dos orfeões, além de aprofundamentos sobre cada tópico. (Lemos Jr, 2005). :
XI - O programa adotado para o ensino de canto orfeônico no curso ginasial terá as seguintes unidades temáticas:
-
a) Elementos gráficos
-
b) Elementos rítmicos
-
c) Elementos melódicos
-
d) Elementos harmônicos
-
e) Pratica orfeônica
-
f) História e Apreciação Musical.
As unidades didáticas a, b, c e d deverão ser aplicadas de preferência após o exercício dos solfejos adotados.
O programa do ensino do canto orfeônico obedecerá à seguinte seriação:
1ª série
Elementos gráficos: Pauta, linhas suplementares, claves, valores, pausas, ponto de aumento e de diminuição, ligaduras, acidentes, armadura e cópias de hinos e canções a serem estudados.
Elementos rítmicos: Unidades de movimento, compasso simples, leitura métrica, ditados rítmicos fáceis, declamações rítmicas, quiálteras e anacruse.
Elementos melódicos: Intervalos, graus, escalas maiores e suas relativas, (teórica e praticamente), solfejo e ditado cantado de pequenos trechos.
Elementos harmônicos: Intervalos, harmônicos.
Prática orfeônica: Afinação orfeônica, manossolfa simples e desenvolvimento a uma e duas vozes, canções de diversos estilos, hinos e marchas, especialmente de autores brasileiros a uma e duas vozes, efeitos de timbres diversos.
História e Apreciação musical: Finalidade do Canto orfeônico: os orfeões e suas organizações no Brasil e no estrangeiro; palestra sobre a música e os músicos no Brasil. Audições de discos comentados. Discernimento dos diferentes gêneros musicais.
2ª série
Elementos gráficos: Sinais de expressão, cópias de canções e hinos a serem estudados, sinais de repetição.
Elementos rítmicos: Leitura métrica, ditado rítmico, compassos compostos, síncope, declamação rítmica.
Elementos melódicos: Escalas maiores e menores (teórica e praticamente) solfejos a uma e duas vozes, ditado cantado, intervalos e suas inversões.
Elementos harmônicos: Tonalidade (teórica e praticamente) arpejos e acordes de três sons.
Prática orfeônica: Exercícios de entoação de notas cromáticas, longas, sustentadas de um pianíssimo a um fortíssimo e vice-versa; entoação da escala harmonizada por meio de processos teóricos e práticos; hinos, marchas e canções de diversos estilos, a uma, duas e três vozes.
História e Apreciação Musical: A música ameríndia, africana, portuguesa, espanhola e outras que influíram na música brasileira.
Alguns instrumentos de que se serviram os indígenas. Palestras sobre audições e concertos.
Conhecimentos dos instrumentos de Banda e Orquestra. Audições de discos. Discernimento dos diferentes gêneros musicais.
3ª série
Elementos gráficos: Cópia de canções a três e quatro vozes.
Elementos rítmicos: Leitura métrica, ditados de ritmos variados, declamação rítmica, correlação entre compassos simples e compostos, contratempo, andamento.
Elementos melódicos: Conhecimento mais completo das escalas maiores e menores (teórica e praticamente), ditados cantados, construções de frases curtas, solfejos fáceis à primeira vista a uma voz, solfejos na clave de fá na 4ª linha, intervalos cromáticos e enarmônicos, ornamentos.
Elementos harmônicos: Acordes perfeitos maiores e menores e suas inversões (teórica e praticamente), noções de tons vizinhos.
Prática orfeônica: Hinos e canções de diversos estilos a uma, duas, três e quatro vozes, manossolfa desenvolvido a duas, três e quatro vozes (diatônico e cromático).
História e Apreciação Musical: Palestra sobre a origem e a evolução da música. Folclore nacional: sua utilidade ligada à música e a história das artes. Discernimento das tonalidades maiores e menores. Audições de discos comentadas.
4ª série
Elementos Gráficos: Cópia de canções a três e quatro vozes.
Elementos rítmicos: Leitura métrica, andamentos, metrônomo (teórico e prático), ditados rítmicos mais desenvolvidos, compassos mistos, alternados e fracionários.
Elementos melódicos: Escalas cromáticas (teórica e praticamente), ornamentos; prosódia: aplicação das palavras, nas melodias, escala geral, escalas enarmônicas, ameríndias, ditados cantados a uma e duas vozes, solfejos à 1ª vista, a uma e duas vozes.
Elementos harmônicos: Acordes de quatro sons, tons vizinhos, série harmônica.
Prática orfeônica: Manossolfa desenvolvido a duas, três e quatro vozes (diatônico e cromático) hinos e canções de diversos estilos a uma, duas, três e quatro vozes.
História e Apreciação Musical: Continuação das palestras sobre a evolução da música. Folclore nacional. Palestras sobre a formação da Música no Brasil. Orquestra antiga, clássica e moderna. Banda e conjuntos típicos. Audições de discos comentadas (Brasil, 1946). 5 5 Ver Lemos Jr (2005).
O programa citado acima merece nossa atenção pelo fato de o mesmo ter sido citado literalmente por Judith M. Almeida após a apresentação de seu livro o que, dentre outras questões, nos apresenta a decidida posição da autora em firmar sua adesão à perspectiva político-pedagógico-musical da época. Foi a partir das diretrizes gerais indicadas no programa oficial que foram desdobrados os conteúdos para o Canto Orfeônico de acordo com Judith M. Almeida, ao dividir seu trabalho em três grandes áreas: Teoria Musical, Cultura Geral, Biografias e Práticas. O livro dialoga com as obras de compositores eruditos brasileiros e europeus, reforça o nacionalismo característico da época, por meio das canções folclóricas, e põe em destaque o patriotismo expresso nos hinos pátrios6 6 Conforme Lemos Jr. (2005) tais questões foram discutidas pelos defensores do ensino de Música na escola. Villa-Lobos, Mário de Andrade e outros artistas do movimento Modernista buscavam por em destaque a cultura brasileira, por meio das manifestações folclóricas brasileiras. No entanto, todo o processo de catalogação dos elementos do folclore feitos por estes artistas trouxeram consigo uma erudição desta música popular. . Dediquemo-nos por um instante em examinar o programa conteudístico apresentado pela autora.
PRIMEIRA PARTE
TEORIA MUSICAL
Pauta. Nota. Clave. Valores. Figuras. Elementos essenciais da música. Compasso. Quadro de compassos. Origem dos indicadores do compasso. Pausas. Ponto. Quiálteras. Acidentes. Escalas. Mano-solfa. Síncope. Diapasão. Metrônomo.
SEGUNDA PARTE
CULTURA GERAL
Finalidades do canto orfeônico. Califasia, Califonia, Declamação rítmica. Hino Nacional (histórico). Origem dos valores das notas. Valor educativo do canto coral. Influência da música ameríndia. Influência do africano. Folclore. Instrumentos musicais primitivos. Instrumentos de orquestra e banda. Conjuntos orquestrais. Algumas formas musicais. Instrumentos que fazem parte da orquestra sinfônica moderna. A Música (o que é a sua influência). Pequena História da Música.
TERCEIRA PARTE
BIOGRAFIAS
Palestrina. Bach (João Sebastião). Haendel. Haydn. Mozart. Beethoven. Chopin. Lizst. Debussy. Ravel. Tschaykowsky. Rimsky-Korsakof. Os "Cinco Russos". Brasileiros: Francisco Manuel da Silva. Francisco Braga. Leopoldo Miguez. D. Pedro I. Padre José Maurício. Carlos Gomes. Alberto Nepomuceno. Barroso Netto. Henrique Oswald. João Gomes Júnior. Vila Lobos. Oscar Lorenzo Fernandes. Luciano Gallet. Algumas danças. Apêndice: Classificação das vozes.
QUARTA PARTE
PRÁTICAS (Exercícios. Hinos. Canções)
Exercícios aplicados graduados. Solfejos graduados para todas as séries. Hinos: Hino Nacional Brasileiro. Hino à Bandeira Nacional. Hino à Independência. Hino da Proclamação da República. Hino 7 de Setembro. Hino à Vitória. Hino Acadêmico. Canções Cívicas: Canção do Marinheiro. Brasil Unido. Bandeira do Brasil. Trabalhar, Progredir e Vencer. Canção do Brasil. Desfile aos heróis do Brasil. Cânones. Canções a uma e duas vozes: Luar do Sertão. Anoitecer. O reloginho/ O tamborzinho. As árvores e as aves. Ave Maria. Terra Natal. Barcarola. Sinais de expressão.
O programa acima, nos oferece condições para encaminharmos inúmeros desdobramentos e apresenta problemas para inúmeras pesquisas. Entres as principais temáticas de pesquisa envolvidas aqui, estão: a crítica epistêmica em educação musical às abordagens conteudistas; a crítica à supervalorização do conteúdo cívico em detrimento das experiências de aprendizagens por faixas de idade; a perspectiva da pedagogia tradicional que transparece na amplitude e superficialidade do conteúdo; o método pedagógico racional-tradicional, que parte da abstração dos conteúdos para justificar a experiência musical; o conceito de folclore, raça, etnia e história da música brasileira que perpassa a obra. Não será nosso objetivo desdobrar todos esses aspectos. Essa preocupação norteará as investigações em uma etapa posterior do trabalho, a qual requer de início a análise da materialidade obra, o que demarca nosso objetivo no momento. Contudo, vale dizer, que o movimento em defesa da música na escola, cuja base pedagógica fundamental encontrou-se no contexto da Escola Nova, seguindo os projetos posteriores ao Estado Novo, marcou profundamente a Educação Musical e muito do previsto se fez viver de forma efetiva nas escolas brasileira da época perdurando por muito tempo.
Demais aspectos materiais
A obra é constituída por um total de 109 páginas. As sete páginas iniciais são dedicadas aos elementos pré-textuais. Da página 8 a 14 encontramos a apresentação; o programa oficial do governo, já apresentando acima, e um esboço histórico conceituando e contextualizando o Orfeão. Desde a apresentação há um cuidado em vincular os objetivos do manual didático à macro política brasileira. Como já vimos anteriormente, o ápice de tal desejo está na reprodução ipsis litteris do programa oficial do Conservatório Nacional. Todavia, outros aspectos surgem como interessantes. A organização da obra surge como "o fruto de longos anos de prática (Almeida, 1958, p. 8). Entre outras coisas esse aspecto revela o trabalho com o Canto Orfeônico como prática historicamente estruturada que pretende estender-se por todo o país. Isso também está bem marcado na ideia da autora em fomentar a "espontaneidade e [...] liberdade [de] professores e [...] alunos dos [...] colégios [...], pois sempre sentimos a necessidade de recorrer a uma adaptação [...] ás diferentes circunstâncias" (Almeida, 1958, p. 8). Nessa perspectiva, a autora propõe uma abertura, que supõe criatividade a partir das necessidades de abordagem de assuntos necessários. A primazia em que se encontra o enunciado "oferecer uma adaptação viável do programa focalizando sempre os assuntos mais necessários (Almeida, 1958, p. 8), parece nos apresentar uma preocupação formativa que pode se referir, ora ao conteúdo pedagógico musical, ora às temáticas cívicas nacionalistas exigidas pelo Estado Novo. Essa última preocupação ganha proeminência quando a autora expressa, ao final do texto, o compromisso do manual com um Brasil melhor erguido com trabalho e música (Almeida, 1958).
O esboço histórico apresentado no manual comunica-nos o conceito de Canto Orfeônico que perpassa a obra. A autora apresenta o sentido etimológico da palavra Orfeão e remonta à personagem mitológica de Orfeu, o deus grego. A definição é: "dá-se o nome de Orfeão [...] aos conjuntos de cantores que se propõem a execução de música coral. Esses conjuntos são organizados para cultivar a arte com finalidades culturais, artísticas ou recreativas" (Almeida, 1958, p. 11). Não se encaixam aqui grupos que apenas se reúnem para cantar em solenidades cívicas, populares ou religiosas. O motivo é o fato de a autora entender não se tratar de uma iniciativa artística, atividades sem objetivos claros e definidos. Essa perspectiva é o que diferencia o orfeão de qualquer outra prática coral. Para a autora, "de fato, a diferença é notável, porque o Orfeão se destina à vulgarização da arte musical, pela esmerada interpretação e execução das melhores composições, visando ao desenvolvimento do gosto musical entre as diversas classes da população" (Almeida, 1958, p. 11).
Essa conceituação dicotômica é, de fato, uma forte marca das perspectivas conteudistas em educação musical. No âmbito da crítica epistemológica nas perspectivas contemporâneas, esse foi sempre um limite que precisou ser desconstruído para a possível fundamentação de uma pedagogia musical que levasse em conta a diversidade e superasse os diversos limites conceituais do trabalho educativo com a música. Outro aspecto diz respeito à retomada histórica da prática coral, a qual parte da antiguidade judaica de matriz bíblica, passa pela cultura grega e o papel cívico da música para os mesmos, chega à tradição cristã do século 4 e ao papa Gregório, com o estabelecimento das normas para o canto eclesiástico. Segue-se ao Renascimento, ao citar Palestina, passa pelo classicismo e romantismo, ao citar músicos e associações, e chega ao Brasil. Nas palavras da autora,
no Brasil, ao que sabemos, a primeira tentativa nessa matéria deve ao Maestro João Gomes Junior, de São Paulo, que, em 1910, como iniciativa particular, organizava o Canto Orfeônico no seu Estado, conseguindo torná-lo oficial em todas as escolas. Outras iniciativas, também particulares foram aparecendo, cá e lá, preparando assim o ambiente para uma ação mais vasta. E foi o grande Maestro Villa-Lobos que, no ano de 1931, em São Paulo, fez uma corajosa demonstração das possibilidades do Canto Orfeônico, reunindo, em festa cívica, um conjunto de 12 mil vozes. Passando ao Rio de Janeiro, em 1932, instalou um Curso de Pedagogia da Música e Canto Orfeônico, no Distrito Federal. Surgiu assim, o Orfeão dos Professores que, além de mostrar o que era o Canto Orfeônico, preparou, outrossim, professores para as escolas primárias do Distrito Federal. Hoje possuímos o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico que prepara professores para todas as escolas secundárias do país. Em muitas ocasiões pudemos admirar o grande sucesso do Maestro Villa-Lobos nas maravilhosas concentrações escolares participando de comemorações cívicas, executando as mais variadas composições musicais, com efeitos surpreendentes. À tenacidade, ao arrojo, à arte indiscutível do grande Maestro devemos a definitiva implantação do Canto Orfeônico, no Brasil, cujas finalidades, artísticas, educativas e patrióticas estudaremos a seguir. (Almeida, 1958, p. 13)
Todos os aspectos históricos apresentados na obra ocupam um total de quatro páginas, especificamente da página 11 a 14. É de fato um pequeno espaço para as pretensões da autora. Tais condições talvez justifiquem a forma genérica que o conteúdo é apresentado, contudo, parece-nos ainda considerar algumas questões. A concepção de história que a obra apresenta está estreitamente ligada à noção de história da música universal. Nesse sentido, Almeida (1958) parte dos grandes ícones da história para, por fim, chegar ao Brasil de sua época e destacar o papel educativo e social que a música passava a ocupar.
É importe considerar que a forma como a autora reconstrói rapidamente seu momento histórico e a posição que Villa-Lobos ocupa no mesmo corrobora o esforço de contextualização política feito na primeira parte deste trabalho. A autora serve-se de um recurso oratório e busca conectar seu momento histórico com a história da música europeia, e, ao fazer isso, põe em primeiro plano sua vinculação, e da obra em análise, com o espírito histórico, musical, político e educacional de sua época. Como ela mesma afirma ao final dessa sessão, "todo brasileiro deseja, sem dúvida, a grandeza de sua Pátria. Todos devem trabalhar para isso. Trabalhar cantando, é facilitar essa árdua tarefa, ao mesmo tempo que demonstra união de todos para o ideal comum (Almeida, 1958, p. 14).
A vinculação do material didático ao ideário político da época, o qual perpassa desde os ideais de desenvolvimento social e econômico ao objetivo de promoção de uma identidade nacional, é o que justifica, por exemplo, a ampla aceitação do material. De 1951 a 1958 a obra foi editada 31 vezes. Isso corresponde a uma média de quase cinco edições anuais no intervalo de sete anos. Os esforços da pedagogia musical na organização de materiais didáticos também contribuíram, de forma decisiva, para a permanência de diversos manuais didáticos no mercado editorial. Isso revela, além da necessidade de sistematização, a importância de uma política de publicação de materiais didáticos que viessem a contribuir com a formação do professor de música no Brasil e demarcar o espaço da música na escola.
Desde a década de 1920 várias obras demarcaram espaços na condição de manual didático para o ensino de música na escola.7 7 Temos como exemplo: Aulas de Música (1925), de Gomes Junior; Alegria nas escolas (1926), de Lozano, que contava com a 132º edição no ano de 1955; Elementos de canto orfeônico, na 33ª edição em 1960, de Yolanda de Quadros Arruda. E ainda: Côro orfeão (1938) de Ceição de Barros Barreto; Noções de música e canto orfeônico (1941) de Freitas e Teitel; Manual de canto orfeônico: 2ª série ginasial (1958) de Rêgo. Há, nesta época, tanto em iniciativas de criação, quanto em reprodução e distribuição dos manuais didáticos, um expressivo fomento. Esse movimento e seu diálogo com a macropolítica, revelam a importante posição que a música conquistou, tanto dentro das previsões oficiais do governo para a educação do país, quanto no âmbito de sua expressão social.
A distribuição de páginas da obra por unidade organiza-se da seguinte maneira: da página 15 a 32, com um total de 18 páginas, encontram-se os elementos de teoria musical. Da página 33 a 50, com um total também de 18 páginas, encontram-se elementos definidos como cultura geral. Da página 51 a 71, somando-se 20 páginas, o foco central é apresentar a biografia de compositores europeus e brasileiros. Da página 73 a 106, totalizando 34 páginas, encontra-se a denominada parte prática, que apresenta uma breve indicação de exercícios e, em seguida, desdobra-se em partituras de hinos e canções. Embora a unidade dedicada à parte prática ocupe o maior número de páginas, isso não significa que a mesma seja preponderante: é natural que as grades de partituras ocupem mais espaço. Na verdade, a característica fundamental da obra é conteudista. A forma como os problemas são abordados, a necessidade de definição de um conceito de música e seus elementos, o foco generalizante e superficial com o qual são abordadas as biografias e momentos históricos revelam a primazia pedagógica pelo conteúdo em educação musical. Um exemplo do que estamos tentando mostrar agora, pode ser identificado na unidade prática da obra. O exercício didático proposto exige
-
Fazer a clave de sol em diversas pautas, tendo o cuidado, para que todas sejam do mesmo tamanho, guardando a mesma distância;
-
Escutar e decorar as notas;
-
Escrever os nomes das seguintes notas. (Almeida, 1958, p. 75)
Seguem ainda outras orientações, contudo as três primeiras são suficientes para corroborar a ideia de que a forma como o manual didático é pensado pela autora integra um movimento mais amplo da história da Pedagogia, o qual demarcou significativo espaço também no campo da Pedagogia Musical. O resultado de tal perspectiva é primar pela memorização e a tendência pedagógica que perpassa a estrutura da obra liga-se aos objetivos escolanovista nos quais, dito de forma geral, prima-se pela preparação do estudante para o desempenho de funções sociais, dando significativa ênfase a valores e normas sociais vigentes. Em outras palavras, o ponto de partida que justifica, mesmo a perspectiva prática da obra, opera com um movimento epistemológico dedutivo racionalizante, uma vez que parte do geral para o particular. Neste sentido pedagógico-musical, porta em si não só o material a ser trabalho em sala de aula, mas, sobretudo, noções gerais sobre o que é música boa e verdadeira.
Considerações finais
Ao olharmos para a obra Aulas de canto orfeônico para as quatro séries do curso ginasial, de Judith Morisson Almeida, operamos em sentido hermenêutico, com uma distância temporal que precisa ser levada em conta para que as interpretações daqui decorrentes alcancem possibilidades positivas. O que se estabeleceu com esse trabalho foi uma tentativa de diálogo, que em sentido objetivo investiu não em decifrar o que está apresentado no material didático, mas, sobretudo, em identificar problemas e questionamentos que motivaram a autora na produção de sua obra. Essa perspectiva também foi a que justificou a estrutura deste trabalho, a qual exigiu o aprofundamento e retomada histórica do momento político e educacional no qual a obra foi pensada, para em seguida explorar o próprio manual. O esforço dedicado à análise compreendeu de forma subjacente as revoluções paradigmáticas no campo da pedagógica musical brasileira, bem como os diversos cenários pedagógico-musicais que se estabeleceram a partir dos estudos e pesquisas na área da epistemologia genética, da antropologia social e filosófica.
A partir da análise foi possível, ao aprofundar questões políticas e educacionais que exerceram influências decisivas a partir da década de 1930, culminando com a criação do Estado Novo, seu desfecho e o curso histórico que perpassou toda a década de cinquenta. Todas as iniciativas políticas implicadas aqui, dialogavam ainda com a macropolítica europeia, o que não foi interesse desse trabalho desenvolver, mas que, como um rápido lembrete, é importante para percebemos a fecundidade de tal momento histórico. Em larga medida, tanto do ponto de vista político, como educacional, vivemos, ou continuidades ou rompimentos com tendências, ideologias, pedagogias e políticas de tais momentos históricos.
Recai aqui a importância da investigação histórica desenvolvida com esse trabalho, uma vez que a produtividade de tal iniciativa reside em compreender a história da pedagogia musical como integrante de macrotendências históricas delineadas por política e projetos nacionais. Outro aspecto importante é o entendimento do papel político, social e formativo que a música pode ocupar no contexto de uma nação. Isso se fez bem claro ao percebermos a posição que a música ocupou nas decisões oficiais do governo, bem como na necessidade dos manuais didáticos em, ao sistematizar uma prática musical para o contexto escolar, o fazer a partir de um afinado diálogo com as decisões políticas e culturais do período.
Do ponto de vista das exigências atuais apresentadas à pedagogia musical, o manual de Judith Morisson de Almeida apresenta aspectos do percurso histórico de concepções que marcaram o trato pedagógico oferecido à música na escola brasileira. Orienta, portanto, a novas concepções de música, cultura, aprendizagem e ensino que demarcaram espaço na pedagógica musical a partir epistemologia genética e de avanços da pesquisa na área da cultura escolar e estudos culturais em sentido geral. Do ponto de vista sócio-educacional é possível, ainda, a consideração de que as Aulas de canto orfeônico de Almeida circunscreveram-se no âmbito de uma pedagogia musical na qual o papel da música na escola associou-se ao objetivo geral da educação em favorecer ao máximo o desempenho do educando, tendo em vista um papel social a ser representado. A dimensão conteudista da obra e o conceito de educação musical que a perpassa legitimou, no contexto escolar, a noção de aptidão musical individual associada ao cultivo de valores e normas sociais. Tudo isso está expresso na noção de cultura geral, definição conceitual de gêneros, elementos e parâmetros musicais, bem como no recurso didático feito, por parte da autora, à exploração expressiva de hinos pátrios.
Com vistas a desenvolvimentos futuros desta análise e outros manuais da época, deve-se se manter viva a pergunta sobre em que medida os fundamentos da pedagogia musical contemporânea, com todo seu objetivo de superação da pedagogia tradicional, conseguiu atingir o âmbito da prática musical educativa no contexto escolar, desde os aspectos didáticos à relação professor e aluno na sala de aula. Essa preocupação pode, ainda, criar as condições para a pedagogia musical rever seus fundamentos a partir da retomada histórica guardado na materialidade da tradição.
Referências
- ARRUDA, Yolanda de Quadros. Elementos de canto orfeônico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1960.
- BOMENY, Helena. Os intelectuais da educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
- BRASIL. Decreto n. 19.890 - de 18 de abril de 1931/ Exposição de motivos. Disponível em <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/5_Gov_Vargas/decreto %2019. 890-% 201931%20reforma%20francisco%20campos.htm>. Acesso em 12 nov. 2011.
» http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/5_Gov_Vargas/decreto %2019. 890-% 201931%20reforma%20francisco%20campos.htm - BRASIL. Decreto n. 41.926, de 30 de julho de 1957. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-41926-30-julho-1957-380671-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em 12 nov. 2011.
» http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-41926-30-julho-1957-380671-publicacaooriginal-1-pe.html - BRASIL. Decreto-lei n. 9.494, de 22 de julho de 1946. Disponível em <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-9494-22-julho-1946-417580-norma-pe.html>. Acesso em 12 nov. 2011.
» http://www2.camara.gov.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-9494-22-julho-1946-417580-norma-pe.html - BRASIL. Portaria n. 178, de 22 de julho de 1955. Diário Oficial da União. Brasília, Outubro, 1955.
- DICIONÁRIO GROVE DE MÚSICA. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1994.
- FREITAS, Maria Elisa Leite; TEITEL, Samuel. Noções de música e canto orfeônico: 1ª série. Porto Alegre: Papelaria, 1941.
- GOMES JR, João. Aulas de música. São Paulo: Companhia Graphico/Monteiro Lobato, 1925.
- LEMOS JR, Wilson. Canto orfeônico: uma investigação acerca do ensino de música na Escola Secundária Pública de Curitiba (1931-1956). Curitiba: UFPR, 2005. 111f. Tese (doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná.
- LOZANO, Fabiano R. Alegria das escolas: primeiros passos ao ensino natural de música. São Paulo: Ricordi, 1955.
- LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1990.
- MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Galeria de ministros. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13517>. Acesso em 12 nov. 2011.
» http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13517 - PALMA FILHO, João Cardoso (org.). Pedagogia cidadã: cadernos de formação. São Paulo: Unesp, 2005.
- PALMA FILHO, João Cardoso. A educação brasileira no período de 1930 a 1960: a Era Vargas. Disponível em <http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/107/3/01d06t05.pdf>. Acesso em 30 maio 2015.
» http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/107/3/01d06t05.pdf - PEIXOTO, Afrânio. Um grande problema nacional: estudos sobre o ensino secundário. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1937.
- RAZZINI, Marcia. A cidade dos livros didáticos: a expansão das edições escolares em São Paulo. Disponível em <http://www.uff.br/lihed/segundoseminario/index.php/resumos/ ii-seminario/96-de-j-a-m?lang=pt>. Acesso em 12 nov. 2011.
» http://www.uff.br/lihed/segundoseminario/index.php/resumos/ ii-seminario/96-de-j-a-m?lang=pt - RAZZINI, Marcia. Monteiro Lobato e a produção de livros escolares em São Paulo nos Anos 20. CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC, 12, 2011. Anais ... Curitiba: Abralic, 2012. Disponível em <http://www.abralic.org.br/anais/cong2011/AnaisOnline/ resumos/TC1008-1.pdf>. Acesso 12 nov. 2011.
» http://www.abralic.org.br/anais/cong2011/AnaisOnline/ resumos/TC1008-1.pdf - ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.
- VILLA-LOBOS, Heitor Educação musical. Boletim Latino Americano de Música, Rio de Janeiro, v. I/6, 1946, p. 515-588.
-
1
Ver Romanelli (1999) e Palma Filho (2005).
-
2
Ministro Raul Leitão da Cunha (30/10/45-31/01/46). Nascido na cidade do Rio de Janeiro, em 2 de janeiro de 1881. Bacharel pelo Instituto H. Kopke e doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Professor em várias áreas médicas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e diretor da mesma. Exerceu vários cargos técnicos e administrativos no Estado do Rio e no governo federal.
-
3
Ver Bomeny (2003).
-
4
O programa apresentado é bem completo no âmbito de uma formação erudita, principalmente nos estudos teóricos de música como elementos da partitura, apreciação e história da música. No entanto, ao contrário do modelo apresentado por Francisco Campos em 1931, havia uma gama de conteúdos para as turmas do curso ginasial. Além disso houve, na legislação de 1946, uma redução no número de aulas de Canto Orfeônico de cinco, proposto na Reforma de Francisco Campos, para quatro. Com isso, os conhecimentos a serem contemplados tornavam-se inviáveis para a realidade escolar, pois, além do fato do professor atender a um grande número de turmas heterogêneas, havia o nível avançado dos conteúdos relacionados. Constava do currículo de todas as séries a apreciação musical, teoria, solfejos, preparação dos orfeões, além de aprofundamentos sobre cada tópico. (Lemos Jr, 2005).
-
5
Ver Lemos Jr (2005).
-
6
Conforme Lemos Jr. (2005) tais questões foram discutidas pelos defensores do ensino de Música na escola. Villa-Lobos, Mário de Andrade e outros artistas do movimento Modernista buscavam por em destaque a cultura brasileira, por meio das manifestações folclóricas brasileiras. No entanto, todo o processo de catalogação dos elementos do folclore feitos por estes artistas trouxeram consigo uma erudição desta música popular.
-
7
Temos como exemplo: Aulas de Música (1925), de Gomes Junior; Alegria nas escolas (1926), de Lozano, que contava com a 132º edição no ano de 1955; Elementos de canto orfeônico, na 33ª edição em 1960, de Yolanda de Quadros Arruda. E ainda: Côro orfeão (1938) de Ceição de Barros Barreto; Noções de música e canto orfeônico (1941) de Freitas e Teitel; Manual de canto orfeônico: 2ª série ginasial (1958) de Rêgo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Ago 2016
Histórico
-
Recebido
12 Jun 2015 -
Aceito
06 Fev 2016