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Meritocracia e os usos da repetência na escola primária pública francesa de 1850 ao início do século 20

Meritocracy and the uses of school failure in french public elementary school from 1850 to the early twentieth century

Meritocracia y la utilización de la repetición en la escuela primaria pública francesa de 1850 a comienzos del siglo 20

Resumos

O estudo dos usos da repetência no ensino primário francês no século 19 revela até que ponto esta era utilizada para facilitar a aprendizagem dos melhores alunos. Permitindo distinguir a elite escolar destinada ao êxito nos exames que certificavam os estudos primários, a seleção em cada etapa do percurso leva a relegar as crianças com dificuldades às series iniciais, onde é maior o número de alunos inscritos, junto aos jovens ingressantes. Esta situação não ocorre sem efeitos sobre as desigualdades educacionais, mesmo se estas são atenuadas pelo esforço de modernização empreendido pelos republicanos a partir dos anos 1880. Persistem, contudo, sob diferentes formas na história do sistema escolar francês.

repetência escolar; França; desigualdade


The study of the uses of the school failure in French primary education in the nineteenth century reveals the extent to which this was used to facilitate the learning of the best students. It differentiates school elite destined for success in exams certifying that the primary studies, the selection at each stage of the journey leads to relegate children with difficulties to the initial series, where a greater number of students enrolled among the youth entrants. This situation is not without effects on educational inequalities, even if they are attenuated by the modernization efforts undertaken by Republicans from the 1880s. It remains, however, in different forms in the history of the French school system.

school failure; France; inequality


El estudio de los usos de la repetición en la escuela primaria francesa en el siglo 19 muestra el grado en que ésta es utilizada para facilitar el aprendizaje de los mejores estudiantes. Permitiendo diferenciar la élite escolar destinada al éxito en los exámenes que certifican los estudios primarios, la selección en cada una de las etapas del curso lleva a relegar a los niños con dificultades en la primera serie, donde hay el mayor número de estudiantes matriculados, junto con los jóvenes estudiantes. Esta situación no se produce sin efectos sobre las desigualdades educativas, incluso si estas se ven atenuadas por los esfuerzos de modernización emprendidos por los republicanos a partir del año 1880. Sin embargo, siguen existiendo en diversas formas en la historia del sistema escolar francés.

tasas de fracaso escolar; Francia; desigualdad


L'étude de l'usage du redoublement dans l'enseignement primaire français au 19e siècle révèle à quel point il est alors employé pour faciliter les apprentissages des meilleurs élèves. En permettant de distinguer l'élite scolaire destinée à réussir les examens du certificat d'études primaires, la sélection à chaque étape du cursus conduit à la relégation des enfants en difficulté dans des petites classes aux effectifs plus chargés et les accueillants ensemble avec de très jeunes débutants. Cette situation n'est pas sans avoir d'effets sur les inégalités scolaires, même si ceux-ci sont atténués par l'effort de modernisation entrepris par les républicains à partir des années 1880. Ils perdurent néanmoins sous différentes formes dans l'histoire du système scolaire français.

enseignement; France; inégalité


O estudo histórico do percurso escolar e sua articulação com a história das transformações do sistema de ensino constituem uma abordagem que permite compreender, ao mesmo tempo, as consequências da organização pedagógica sobre o destino dos alunos e as modalidades de apropriação da escola pela sociedade. O percurso escolar dos alunos é o reflexo das funções atribuídas à escola pelo Estado, cuja ação torna-se predominante no século 19. Estas funções constituem sempre a contribuição do sistema escolar para um projeto de sociedade mais amplo, moldam o funcionamento institucional da escola e não são sem consequência sobre a apropriação, ou não, desse projeto da sociedade pelas famílias.

A instituição escolar propõe ou impõe a repetência no final do ano letivo. As famílias demandam ou se submetem a isso esperando assegurar o sucesso escolar de seus filhos ou, então, recusam quando a instituição escolar permite, correndo o risco de promover um futuro abandono dos estudos. Em última análise, o uso da repetência ilustra as relações complexas que são forjadas entre o projeto de sociedade veiculado pela escola e as famílias que, de acordo com lógicas socialmente distintas, dele se apropriam, a ele se submetem e, às vezes, o rejeitam. A instituição escolar pode facilitar a passagem à série superior dos alunos cujas primeiras aprendizagens estão ainda superficiais ou, pelo contrário, recusá-la, considerando que a repetência vai permitir consolidá-las. No entanto, hoje em dia, a repetência é particularmente depreciada, sua eficácia em termos de correção pedagógica tem sido largamente desacreditada por todos os estudos realizados sobre este assunto. Igualmente, além de seu impacto sobre o sucesso escolar dos alunos implicados, é preciso interrogar sobre as demais motivações para o uso da repetência, em especial sobre as finalidades explícitas e implícitas de sua utilização pela instituição escolar, cujas decisões estiveram amplamente incontestáveis até recentemente.

A repetência tem por consequência impor ao aluno um atraso em relação ao percurso previsto pela instituição escolar. Este fato passa amplamente desapercebido no final do século 19, época na qual a correspondência entre as classes e as idades não é evidente como atualmente. Apenas nos anos 1930 é que se começa a ter consciência dos problemas acarretados pelo atraso escolar e será necessário esperar os anos 1960 para que a questão da repetência se torne objeto de estudo e de debate (Chapoulie, 2010CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.). Assim, é pertinente interessar-se pelas origens históricas do uso da repetência, particularmente no século 19, que assistiu o papel do Estado se impor no desenvolvimento da escolarização de massas (Prost, 2013CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.), notadamente na França a partir da Lei Guizot, de 28 de junho de 1833, que generalizou a criação de uma escola primária pública para meninos em todos os municípios1 1 Nosso propósito exclui o ensino secundário do campo de estudos. Nesta época, o ensino primário e o ensino secundário constituíam duas ordens estritamente separadas na escolaridade de seus alunos, tanto pela cultura escolar que veiculavam, a do secundário assentando-se amplamente nas humanidades clássicas, quanto pelo recrutamento dos alunos segundo critérios sociais. .

Convém, portanto, a aparição da noção de repetência antes do estabelecimento progressivo da 3ª República nos anos 1870. Este processo secular de desenvolvimento da escolarização elementar é, contudo, aperfeiçoado pela aplicação da legislação escolar republicana dos anos 1880, que instaura a gratuidade da escola primária pública, pela lei de 16 de junho de 1881, depois a laicização do ensino e a obrigatoriedade escolar dos 6 aos 13 anos, pela lei de 28 de março de 1882. Este período inaugura o ensino primário como serviço público, subsistindo na memória coletiva como um dos maiores legados da 3ª República. De fato, a organização pedagógica da escola republicana, definida pela regulamentação de 27 de julho de 1882 e acrescida das instruções de 18 de julho de 1887, repousa na concentricidade dos programas, idênticos de um curso a outro com um progressivo aprofundamento. Estes restam praticamente intocados durante meio século, até a reforma dos programas escolares feita por Paul Lapie, em 1923, que atenua a concentricidade. No entanto, o modelo escolar dos anos 1880 influencia o funcionamento das escolas públicas e o percurso escolar dos alunos ao menos até o final dos anos 1960.

Assim, nosso propósito se apoia na observação dos usos da repetência nas escolas primárias públicas do Departamento do Sena, que são o berço do modelo escolar da 3ª República. De fato, este se assenta amplamente sobre a generalização da organização pedagógica em vigor neste Departamento desde a reforma realizada por Octave Gréard, diretor da Inspeção Escolar, que dirigiu o ensino primário do Sena de 1865 a 1879. Embora sendo nesta época ainda parcialmente rural, o território deste Departamento corresponde geograficamente a Paris e seus arredores. Neste espaço bastante urbanizado, as escolas rurais de uma única classe, nas quais o professor ensina a um grupo heterogêneo de crianças de 6 a 13 anos, são muito mais raras. Trata-se, então, de estudar o funcionamento de estabelecimentos escolares que acolhem frequentemente algumas centenas de alunos distribuídos em classes hierarquizadas, sendo que a passagem de uma a outra implica a possibilidade para o diretor da escola e os professores adjuntos de decidirem por uma repetência. Nosso estudo baseia-se na análise de estatísticas escolares produzidas pela administração escolar em múltiplos relatórios publicados nos anos 1870 (Gréard, 1872CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010., 1875CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010. e 1878CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.), depois compiladas por ocasião das Exposições Universais de 1889 e 1900 (Duplan, 1889CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.; Lavergne, 1900CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.).

Além disso, recorremos aos dados quantitativos e qualitativos coletados durante a realização da pesquisa que resultou na tese de doutorado, defendida na Universidade de Sorbonne em dezembro 2012. O estudo dos processos profissionais dos professores e professoras do Sena contratados entre 1870 e 1886, que representam o essencial do corpo docente em exercício de 1870 a 19142 2 Uma amostra representativa de 600 processos foi objeto de um exame exaustivo. Representa 15% dos docentes contratados no Sena entre 1870 e 1889 dos quais os processos foram conservados no fundo D1T1 dos Arquivos de Paris. , permitiu acesso às correspondências trocadas entre os professores e a administração escolar que, por vezes, permitem conhecer as modalidades de tomada de decisão sobre a repetência e revelam as reclamações de alguns pais no que concerne, entre outras coisas, ao percurso escolar de seus filhos. Por fim, os mais de 1.500 relatórios de inspeção localizados, nos quais estão indicados, a partir de 1905, o número de crianças matriculadas e dos alunos presentes no dia da inspeção, nos deram dados bastante confiáveis sobre a distribuição dos alunos nas classes.

Após ter descrito as origens do modelo escolar republicano e do estabelecimento de sua organização escolar, que se assenta em uma ideologia meritocrática, veremos que as modalidades muito rigorosas de passagem dos alunos de uma classe a outra conduziram a escola republicana a fazer um uso massivo da repetência, em particular na época da implantação da legislação de 1880. Isto contribuiu para uma apropriação muito desigual da escola republicana pela sociedade urbana em uma época na qual, contudo, a fé nas virtudes da instrução foi predominante.

Projeto meritocrático e criação do modelo escolar republicano

Para compreender o modelo escolar republicano, que consiste em mobilizar a sociedade em torno da escola pública recompensando a assiduidade escolar e favorecendo a promoção social dos seus melhores alunos, é necessário observar a emergência desta ideologia meritocrática sob o Segundo Império3 3 NT: o Segundo Império é o regime político constitucional que se instalou na França, em 1852, quando Louis-Napoléon Bonaparte, então presidente da República, tornou-se Napoleão III, imperador da França. Este período se encerrou em 1870, com a derrota na guerra contra a Prússia. . No início dos anos 1850, as escolas públicas laicas eram, em Paris, estabelecimentos onde se utilizava o ensino mútuo, que apareceu na França durante a Restauração4 4 NT: entre 1814 e 1830, a França assistiu ao retorno da dinastia Bourbon no governo do país. , período ao longo do qual tinha sido objeto de um verdadeiro entusiasmo. Este processo de ensino baseia-se na distribuição dos alunos em pequenos grupos de nível homogêneo em cada disciplina escolar. Estes alunos são organizados em círculos para receber o ensino de um monitor, ou seja, de um aluno mais avançado na aprendizagem, não necessariamente mais velho, mesmo que esse seja comumente o caso. O monitor passa aos outros a lição previamente recebida do professor, que multiplica, assim, o ensino transmitido aos seus melhores alunos.

O ensino mútuo permite, então, a um professor apenas acolher em sua escola uma multidão de crianças, às vezes muitas centenas, de idades diferentes e de níveis escolares heterogêneos, o que será impossível no ensino simultâneo, no qual o professor expõe ao mesmo tempo a lição a um conjunto de alunos. No ensino mútuo a noção de repetência é inexistente na medida em que o aluno não está, necessariamente, no mesmo nível de hierarquia de aprendizagens escolares em todas as disciplinas. No entanto, embora o ensino mútuo atenda à necessidade de escolarizar no meio urbano um número excessivo de indivíduos com recursos limitados, este é, na ocasião, muito combatido em razão da dificuldade do professor em garantir aprendizado para todos os alunos, pela falta de um número suficiente de monitores qualificados que, muitas vezes, deixam a escola rapidamente se não se destinam à carreira no magistério. Além disso, as escolas públicas sofrem a concorrência das escolas privadas confessionais, porque estas utilizam o ensino simultâneo, que contava com a preferência das famílias mais exigentes em termos de resultados escolares.

Para responder a esta situação a administração escolar decidiu, durante os anos 1850, introduzir o ensino simultâneo nas escolas públicas, ao mesmo tempo em que continuou a responder, bem ou mal, à demanda crescente de escolarização da população parisiense. Assim, organizou-se o modo de ensino misto, que divide o efetivo da escola em duas classes, cada uma com um professor. A primeira aplica o ensino mútuo para uma quantidade elevada de alunos iniciantes ou que não conseguiram ainda o domínio necessário dos rudimentos da leitura, da escrita e do cálculo. Na segunda classe, de nível escolar mais elevado, o professor usa o ensino simultâneo dando de frente a lição a todos os alunos que foram selecionados para constituí-la. Esta classe, denominada de curso superior, acolhe os melhores alunos escolhidos entre aqueles da classe de nível inferior, chamada de curso elementar. Ora, esta seleção conduz a um desequilíbrio da quantidade de alunos em cada classe.

Em 1853, para as escolas de mais de 150 alunos, foi decidido que o curso superior teria ao menos 60 alunos. Mas os outros, que continuam na classe elementar, são mais numerosos e recebem um ensino baseado em um método pedagógico intermediário entre o ensino mútuo e o ensino simultâneo, consistindo em lições diretas feitas pelo professor a toda a classe e em exercícios sob a orientação dos monitores (Drouard, 1911CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.). Como nem todos os alunos passam ao curso superior, aqueles que penam nas primeiras aprendizagens mantém-se na classe elementar e, mesmo se o termo ainda não existe, eles são efetivamente objeto de uma ação de repetência, que é de fato a relegação ao curso elementar, provisória ou definitiva segundo a evolução das aquisições escolares destes alunos.

Em 1868 Octave Gréard estabeleceu uma nova organização pedagógica destinada a generalizar o ensino simultâneo em todas as classes. Ele elaborou um programa escolar baseado no princípio da concentricidade, pelo aprofundamento de um mesmo conjunto coerente de conhecimentos, garantindo a assimilação de uma sólida instrução utilitária aos alunos que fazem todo o curso. Em princípio, o curso elementar, o curso médio e o curso superior duram cada um dois anos, antes que um curso preparatório seja introduzido nesse conjunto no fim dos anos 1880 para que a duração coincida com a da escolarização obrigatória. O objetivo de Octave Gréard é de graduar melhor o ensino e suscitar uma forte emulação entre os alunos com vistas a aceder ao curso superior, cujo foco é preparar estes aos exames de certificado de estudos primários, organizados desde 1866 em Paris.

Este diploma confirma o êxito escolar dos melhores alunos e atesta a qualidade da instrução adquirida no ensino primário, embora ela seja, culturalmente e socialmente, dominada pelas humanidades clássicas que legitimam a existência do ensino secundário. O certificado de estudos permite igualmente prolongar a escolaridade de seus detentores em cursos complementares ou em escolas primárias superiores, para além da escolaridade obrigatória. O direito de se apresentar aos exames do certificado de estudos representa, então, o que há de mais avançado em termos de distinção escolar antes da obtenção do diploma. Nestas circunstâncias os candidatos são selecionados pelo diretor da escola em função da sua seriedade e dos seus resultados.

Ao longo de todo o percurso de escolaridade obrigatória na escola primária a passagem de um nível ao outro é determinada pelo grau de aprofundamento nas aprendizagens dos alunos, medida pelas notas obtidas em certa quantidade de deveres escritos realizados em aula e julgados decisivos para a aprovação. Estes exames levam, portanto, a manter um número elevado de alunos no curso elementar e também no curso médio. Assim, desde o final dos anos 1860, a organização pedagógica do ensino primário do Sena, que será generalizada em escala nacional pela legislação dos anos 1880, se assenta sobre a possibilidade de impor a repetência a um número elevado de alunos, cujos resultados são julgados insuficientes.

Um funcionamento elitista que privilegia a escolaridade dos melhores alunos

O modelo meritocrático de organização pedagógica posto em funcionamento no Sena, a partir do final dos anos 1860, conduz a uma divisão muito desigual dos matriculados pelas classes em consequência da seleção dos alunos no fim do ano, que se tornou necessária aos olhos da administração escolar pela desigual aprendizagem entre os alunos e pela pregnância de representações segundo as quais certos alunos não são capazes de aproveitar a escolarização. O caráter elitista da primeira implantação da reforma de 1868 é, aliás, confirmado pela decisão de Octave Gréard de excluir das escolas públicas, porque prejudicam o progresso de toda a classe quando eles estão presentes, os alunos cujas numerosas ausências não lhes permitem aproveitar o ensino oferecido (Drouard, 1911CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.).

Em 1870 apenas 8% dos alunos estavam matriculados nos cursos superiores, enquanto 24% dentre eles seguiam o curso médio e 68% dos matriculados mantinham-se concentrados nos cursos elementares. O progresso, no sentido de uma repartição mais harmoniosa dos alunos pelas classes, continua condicionado à disseminação da cultura escolar na população escolarizada. Em 1877 Octave Gréard congratula-se dos progressos realizados quando 13,3% dos alunos das escolas do Sena frequentam um curso superior, 32,3% um curso médio e 54,3% um curso elementar. Ele espera que no futuro a divisão dos alunos seja em função de suas idades, mais de acordo ao desenvolvimento natural das capacidades das crianças - 7-9 anos no curso elementar, 9-11 anos no curso médio e 12-14 anos no curso superior -, enquanto a maioria dos alunos segue ainda no curso elementar (Gréard, 1878CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.).

Em 1888 Edmond Duplan produz a estatística da distribuição dos matriculados entre os três cursos: mais de 52% dos alunos estariam inscritos no curso elementar, ou seja, uma proporção pouco menor do que aquela de uma década antes, e ele considera que extrapolando ao conjunto dos alunos, cerca de 40% dentre eles não chegariam ao curso médio e apenas um pouco mais de 28% chegaria ao curso superior durante sua escolaridade. Assim, no final dos anos 1880, menos de um terço dos alunos das escolas públicas do Sena efetuam um percurso escolar conforme o plano de estudos em vigor, do curso elementar até o curso superior (Duplan, 1889CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.).

Resulta que a relegação dos alunos ao curso elementar tem por consequência a superlotação das classes que acolhem, ao mesmo tempo, as crianças que começam sua escolaridade obrigatória e aquelas que não puderam passar ao curso médio e superior. A partir das estatísticas produzidas pela administração escolar, durante o ano 1874-1875, tem-se que os cursos elementares agrupavam, em média, quase 83 alunos por classe, enquanto que os matriculados nos cursos médios eram 59 alunos e nos cursos superiores pouco ultrapassava 42 alunos (Gréard, 1875CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.). Em 1888 cerca de 30% dos alunos dos cursos elementares tinham nove anos ou mais e já tinham sido reprovados ao menos uma vez.

A maioria dos alunos não chegava ao curso superior nos anos 1870. No entanto, a situação melhora sob efeito da difusão da cultura primária na sociedade urbana, facilitada pelo programa de construção da escola elaborado por Octave Gréard, que permitiu uma redução progressiva da média de matriculados por classe. Assim, enquanto que as turmas do curso elementar de mais de cem alunos eram uma realidade corrente nas escolas dos bairros populares da periferia de Paris e dos bairros de operários no início dos anos 1870, as médias de matriculados diminuem nos anos 1880 e 1890.

No entanto, apesar dessa melhoria geral das condições de escolarização, mais de vinte anos depois da aprovação da legislação escolar republicana, as médias de matriculados em cada curso atestam que o uso frequente da repetência acarreta uma distribuição dos alunos muito desigual. Segundo dados dos relatórios de inspeção, a partir de 1905, a média de matriculados mais elevada é dos cursos preparatórios, com 43 alunos presentes por turma, quantidade que diminui a 41 alunos no curso elementar e 39 no curso médio, caindo a 35 no curso superior.

Assim, em Paris, a média de matriculados presentes nos cursos preparatório e elementar e aquela do curso superior apresenta uma diferença de 6 a 8 alunos, o que, inevitavelmente, tem um impacto sobre as práticas pedagógicas e sua eficácia nas turmas pequenas. Além disso, os professores consideram os cursos preparatório e elementar como mais difíceis de ensinar pela maior quantidade de matriculados, mas também porque esses cursos acolhem os alunos com dificuldades e, às vezes, pouco dedicados à sua escolaridade.

Uma apropriação desigual do projeto escolar republicano

O sucesso da modernização do ensino primário nas primeiras décadas da 3ª República5 5 NT: regime republicano em vigor na França entre 1870 e 1940. se explica pela mobilização escolar da população, suscitada por uma forte crença nas virtudes emancipatórias da instrução, socialmente atestadas pelo acesso, graças à obtenção do certificado de estudos primários, a empregos que permitem escapar do esforço físico do trabalho manual. Este diploma legitima a instituição escolar pública e abre a possibilidade do prolongamento da escolaridade além da idade de obrigatoriedade escolar nos cursos complementares e nas escolas primárias superiores. De fato, ele se torna, desde então, um título escolar procurado, exigido em Paris a partir de 1869 para todos os candidatos às bolsas municipais do Colégio Chaptal, pelas escolas primárias superiores de Turgot e Colbert e pela escola superior feminina. Igualmente, para ser admitido no curso complementar criado nos anos 1880, era necessário possuir esse certificado de estudos e fazer um exame que, quando o número de alunos elegíveis ultrapassava o total de vagas, transformava-se em concurso. Enfim, frequentemente exigido para ser admitido como funcionário em um estabelecimento comercial ou como aprendiz junto a um artesão, este diploma conferia uma forte visibilidade à eficácia social de um importante investimento escolar dos alunos e de suas famílias.

A análise dos arquivos diretamente produzidos pelos professores e inspetores primários, testemunhos da vida cotidiana das escolas, mostra que a adesão aos objetivos culturais e sociais do projeto escolar é, contudo, desigual. Assim, contrariamente às representações dominantes da escola da 3ª República na memória coletiva, os professores dos estabelecimentos escolares dos bairros populares são confrontados a fenômenos de indisciplina de alguns alunos mais velhos, de 11 ou 12 anos, por vezes ainda isolados nos cursos elementares ou que finalmente passaram ao curso médio sem esperança de poder acompanhar as aulas.

Como não esperavam mais nada da conclusão de sua escolaridade obrigatória, alguns deles tendiam a perturbar a vida escolar. Contudo, a atitude mais comum das crianças, que não puderam aproveitar plenamente o ensino oferecido, consiste em, com uma incidência variável, matar aulas. Segundo os relatórios de inspeção que, a partir de 1905, indicam a quantidade de alunos matriculados e a quantidade de presentes, o absenteísmo médio é de 9% no início do ano escolar, aumentando progressivamente até atingir 16% em maio e 20% em junho6 6 NT: vale lembrar que o calendário escolar na França inicia-se em setembro e se encerra em junho. . Torna-se, particularmente, elevado nos cursos elementares - 14% em média, contra apenas 6% nos cursos superiores -, onde estão concentradas as crianças consideradas como inaptas a seguir uma escolaridade normal, mesmo depois da aprovação da lei de 15 de abril de 1909, que criou as classes de aperfeiçoamento anexas às escolas elementares públicas.

Enfim, uma parte dos alunos abandonava a escola antes da idade de conclusão da escolaridade obrigatória. Em 1901, em Paris, 10% das crianças de 6 a 13 anos não estavam inscritas em nenhum estabelecimento escolar, público ou privado. Trata-se, frequentementem das crianças de mais de 10 anos, que passaram o essencial de sua escolaridade nos cursos elementares e médios em razão de múltiplas repetências. Elas integram o mundo do trabalho ou, algumas entre elas, a economia informal, entre o comércio de rua e pequenos roubos. Para uma grande quantidade de empregos não é exigido o nível de instrução do certificado de estudos, o que permite a plena integração social das crianças que não foram bem sucedidas na escola. Assim, estas escolaridades incompletas são um fenômeno tolerado e correspondem, evidentemente, para parte das famílias, à escolha de por fim a uma situação escolar desencorajadora.

No entanto, testemunham igualmente certa reticência a aderir ao projeto da 3ª República. Isto aparece notadamente nas cartas recebidas dos pais pela administração escolar por ocasião de diversos incidentes que ocorrem na vida cotidiana das escolas. Nos primeiros anos do século 20 estas reclamações tornam-se mais frequentes e alguns pais acusam uma tendência dos professores de dedicar o essencial das atividades em classe aos melhores alunos. Aparentemente eles não percebem que isto pode ser a consequência de uma organização pedagógica assentada na quantidade de êxito dos alunos dos cursos superiores autorizados a se apresentarem aos exames de certificado de estudos, que são aqueles que não foram, ou foram muito pouco, submetidos à repetência durante sua escolaridade.

O estudo do modelo escolar republicano revela a amplitude do uso da repetência cujas origens se situam na necessidade sentida pela administração escolar de conter nos cursos elementares os alunos com dificuldades, permitindo a constituição de classes de curso superior com menor quantidade de alunos que se beneficiam de um ensino simultâneo. Quando a legislação dos anos 1880 perpetua o elitismo escolar instituído pela reforma de Octave Gréard em 1868, os alunos que penam em suas primeiras aprendizagens escolares são colocados juntos com aqueles refratários à escolarização. Estas são, em uma larga medida, provavelmente as mesmas crianças, exceto pelo fato de que os alunos considerados perturbadores são mais velhos. Entre os iniciantes mais jovens e destinados a passar para a classe superior, uma minoria entre eles aguarda, com maior ou menor impaciência, o final da escolaridade obrigatória e cede, por vezes, às sirenes do mundo do trabalho ou da rua. No entanto, a meritocracia republicana é objeto de uma larga apropriação pela sociedade francesa, de modo que o certificado de estudos distingue uma elite ao atestar o êxito na escola primária, apesar de sua posição dominada em relação ao ensino secundário7 7 Será necessário esperar os anos 1930 para que a metade de um grupo etário obtenha o certificado de estudos primários. .

Mas o uso massivo da repetência faz com que os alunos iniciantes comecem sua escolaridade nas classes consideradas mais difíceis e que acumulam problemas pedagógicos, mesmo se a heterogeneidade do público escolarizado é pedagogicamente gerada pela instauração de uma autoridade muito firme pelos professores. As crianças que têm êxito em suas primeiras aprendizagens escolares passam rapidamente ao curso médio, e depois ao superior, beneficiando-se a cada etapa de melhores condições de ensino em turmas menos lotadas e onde não estão mais as crianças inadaptadas à pedagogia da escola primária republicana.

Desde o entre guerras e, sobretudo, durante as décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, o sistema escolar francês sofreu grandes transformações. Após 1945 a noção de democratização escolar se generalizou no debate público e, a partir dos anos 1960, a sociologia pôs em evidência as ambiguidades do funcionamento da escola. O prolongamento da escolaridade obrigatória até os 16 anos, decidida em 1959, concretizou-se e a escolarização até os 18 anos, ou ainda mais adiante, é francamente majoritária atualmente. Sobretudo, a criação da escola e do colégio único8 8 A escola primária, obrigatória até 14 anos, foi substituída pelo ensino primário até os 11 anos de idade e o colégio obrigatório até os 16 anos. O ensino tornou-se único e comum em todas as escolas e colégios do país. que acolhe, indistintamente, todas as crianças até os 15 anos deveria conduzir a uma democratização escolar que colocasse fim à forte segregação do ensino primário e secundário.

Talvez seja possível perceber se a eficácia da repetência como dispositivo de solução das dificuldades de aprendizagem, ainda que muito contestável, pôde ser mais importante em um contexto de ampliação geral do nível de qualificação da população ativa e da forte mobilização social ascendente durante o período de acentuado crescimento e de modernização econômica dos anos 1950 até a metade dos anos 1970, ou ainda nos anos 1980. Apesar dos problemas de fonte que se apresentam ao historiador seria, nesse sentido, necessário realizar um estudo acerca dos percursos escolares durante o período de transição que leva à aprovação da lei Haby, em 1975, que criou o colégio único e o pôs, progressivamente, em funcionamento durante os anos 1980. A repetência é, então, amplamente empregada para tornar mais seletivo, ao final do colégio, o acesso ao segundo ciclo do secundário9 9 NT: corresponde, no Brasil, ao ensino médio. . Assim, em 1983, 16,4% dos alunos da troisième10 10 NT: corresponde, no Brasil, ao 9º ano do Ensino Fundamental. repetiram enquanto que apenas 3,1% o desejavam. Estes são duas vezes mais numerosos que em 1975 (Prost, 2013CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.).

Segue que o elitismo republicano e sua ideologia, que contribuíram para mobilizar a sociedade francesa em torno da escola tiveram, por consequência, um uso massivo da repetência que ainda caracteriza o sistema escolar. Assim, mesmo se a eficácia pedagógica da repetência é amplamente contestada pelos atores do sistema escolar, mesmo se o número de alunos implicados diminuiu significativamente, este uso continua muito frequente na França, com 28% dos alunos de 15 anos tendo indicado ter repetido um ano ao menos uma vez, contra 12%, em média, nos países da OCDE11 11 Resultados do Pisa 2012, notas por país, França, OCDE, dezembro de 2013, p. 2. .

Contudo, mesmo hoje em dia, embora reconhecendo a frágil eficácia da repetência, na falta de dispositivo individual de recuperação, uma parte do corpo docente do primário, e talvez mais ainda do secundário, critica a passagem para a classe superior de alunos que manifestamente não assimilaram o ensino e dos quais é possível duvidar do êxito no ano seguinte. Mais do que uma nostalgia de um sistema escolar socialmente segregado, minoritário mesmo que o colégio único pareça inadequado a uma parte do público que ele acolhe, esta atitude revela, por vezes, um sentimento de que o sistema escolar nega, do modo como funciona, sua ética profissional baseada na esperança de poder contribuir para reduzir as desigualdades escolares. Além disso, todos os estudos mostram que estas aumentam desde o final dos anos 1990.

Em um sistema escolar liberal, no qual o indivíduo é responsável por seu destino escolar, a repetência, que apesar de sua ineficácia pôde ser por vezes considerada como uma resposta da instituição escolar às dificuldades de aprendizagem, não se justifica mais e o fluxo dos alunos em direção ao final do colégio, onde se situa o primeiro degrau seletivo, não deve mais ser contrariado pela instituição escolar. Voltando às origens de uma repetência então concebida na escola primária do final do século 19 como um dispositivo que permitia valorizar as primeiras aprendizagens dos melhores alunos, percebe-se melhor a amplitude do desafio que representa a elaboração de reformas pedagógicas que permitem reduzir, atualmente, o caráter socialmente desigual do sistema escolar francês em uma sociedade fragmentada.

Referências

  • CHAPOULIE, Jean-Michel. L'école d'état conquiert la France: deux siècles de politique scolaire. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.
  • DROUARD, Charles. Histoire de l'enseignement primaire et populaire à Paris et dans le département de la Seine. Paris: Librairie Bricon et Lesot, 1911.
  • DUPLAN, Edmond. L'enseignement primaire public à Paris 1877-1888. Tome 1, Les écoles maternelles. Les écoles primaires élémentaires. Paris: Chaix, 1889.
  • GRÉARD, Octave. L'instruction primaire à Paris et dans le département de la Seine (1871-1872). Paris: Imp. Charles de Mourgues frères, 1872.
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  • KROP, Jérôme. Les fondateurs de l'école du peuple. Corps enseignant, institution scolaire et société urbaine (1870-1920). Tese (doutorado em História Contemporânea). Université Paris IV, 2012.
  • LAVERGNE, F. Les écoles et les œuvres municipales d'enseignement 1871-1900. Paris: P. Mouillot, 1900.
  • PROST, Antoine. Du changement dans l'école: les réformes de l'éducation de 1936 à nos jours. Paris: Éditions du Seuil, 2013.
  • 1 Nosso propósito exclui o ensino secundário do campo de estudos. Nesta época, o ensino primário e o ensino secundário constituíam duas ordens estritamente separadas na escolaridade de seus alunos, tanto pela cultura escolar que veiculavam, a do secundário assentando-se amplamente nas humanidades clássicas, quanto pelo recrutamento dos alunos segundo critérios sociais.
  • 2 Uma amostra representativa de 600 processos foi objeto de um exame exaustivo. Representa 15% dos docentes contratados no Sena entre 1870 e 1889 dos quais os processos foram conservados no fundo D1T1 dos Arquivos de Paris.
  • 3 NT: o Segundo Império é o regime político constitucional que se instalou na França, em 1852, quando Louis-Napoléon Bonaparte, então presidente da República, tornou-se Napoleão III, imperador da França. Este período se encerrou em 1870, com a derrota na guerra contra a Prússia.
  • 4 NT: entre 1814 e 1830, a França assistiu ao retorno da dinastia Bourbon no governo do país.
  • 5 NT: regime republicano em vigor na França entre 1870 e 1940.
  • 6 NT: vale lembrar que o calendário escolar na França inicia-se em setembro e se encerra em junho.
  • 7 Será necessário esperar os anos 1930 para que a metade de um grupo etário obtenha o certificado de estudos primários.
  • 8 A escola primária, obrigatória até 14 anos, foi substituída pelo ensino primário até os 11 anos de idade e o colégio obrigatório até os 16 anos. O ensino tornou-se único e comum em todas as escolas e colégios do país.
  • 9 NT: corresponde, no Brasil, ao ensino médio.
  • 10 NT: corresponde, no Brasil, ao 9º ano do Ensino Fundamental.
  • 11 Resultados do Pisa 2012, notas por país, França, OCDE, dezembro de 2013, p. 2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2014
  • Aceito
    31 Jan 2015
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