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Paisagem agrária no entorno da capital de São Paulo: estruturas produtiva e fundiária em Bragança, Mogi das Cruzes e Jacareí, 1803-1829/30

Agricultural Overview of Sao Paulo’s Capital Surroundings: Production and Land Structures in Bragança, Mogi da Cruzes and Jacareí, 1803-1829/30

RESUMO

Nosso foco recai no processo de ocupação agrícola e no evolver econômico das localidades paulistas de Bragança, Mogi das Cruzes e Jacareí nas três primeiras décadas do século XIX. Através do recurso a documentação primária diversa, em especial de caráter censitário, nosso objetivo é traçar um perfil das atividades produtivas/econômicas e dos gêneros cultivados, ligando-os às possibilidades de comércio, de forma a caracterizar a estrutura produtiva local e seu evolver, e descrever a estrutura fundiária, ou seja, a forma como a terra se dividia em faixas de tamanho de propriedades, de acordo com o processo histórico de ocupação da área analisada, observado a partir das formas de aquisição das propriedades. A estrutura fundiária encontrada apresenta duas características marcantes: de um lado, identificamos a fragmentação da propriedade agrária com a disseminação de pequenas propriedades a partir de processos sucessórios entre gerações, levando à concentração da propriedade da terra; de outro, nos deparamos com a existência de um marcante mercado de terras, enquanto a estrutura produtiva aponta para o caráter primordialmente agrícola das localidades, com percentual marcante de fogos ligados ao setor agricultura e produzindo gêneros de abastecimento interno para autoconsumo, além de se beneficiaram do comércio com outras áreas, importante na geração de renda e que se dava a partir de alguma especialização e diferenciação na produção entre as localidades.

Palavras-chave:
Produção e comércio; Posse de terras; São Paulo no século XIX

ABSTRACT

Our focus is on the agricultural occupation process and the economic development of São Paulo localities of Bragança, Mogi das Cruzes and Jacareí, in the first three decades of the 19th century. Using primary documentation, especially manuscript censuses, the text emphasizes the economic activities and the produced goods, linking them to the possibilities of trade, to characterize the local productive structure and its development, and describes land structure, that is to say: the way land was divided in size ranges according to occupation historical process, observed from the ways of acquiring properties. The land structure found has two main characteristics: on the one side, there were mostly small properties, formed by the succession process from one generation to the next, leading to the concentration of land ownership; on the other side, there was an important land trade. The localities studied were mainly agricultural, producing subsistence goods for self-consumption, and benefiting from trade with other areas, important for income generation and based on some specialization and differences in production between localities.

Keywords:
Production and trade; Land ownership; São Paulo in the 19th century

Ao longo desse trabalho nosso foco recai no processo de ocupação agrícola e no evolver econômico das localidades paulistas de Bragança, Mogi das Cruzes e Jacareí nas três primeiras décadas do século XIX, observados a partir de suas estruturas produtivas e fundiárias.

Desde o início as localidades em tela foram agrícolas, produzindo essencialmente produtos típicos de subsistência e abastecimento interno. Havia plantações de feijão, algodão, milho, arroz etc. Desenvolvia-se a criação de porcos, cujo toucinho foi importante na dinâmica econômica desta área. Havia também produção artesanal de tecidos. Além de produzir para consumo próprio, essas localidades beneficiaram-se do comércio com outras regiões e da influência dessas e algumas produziram, em alguma medida, produtos de interesse no mercado internacional, como café.1 1 Entendemos aqui e ao longo de todo o texto o mercado a partir da definição econômica básica do termo: mercado é um grupo de compradores e vendedores de determinado(s) bem(s) ou serviço(s). Assim, ao definir mercados, consideramos o mercado fundiário como aquele em que estão sendo negociadas (compradas e vendidas) terras. Consideramos mercado/comércio local como aquele que envolve uma mesma vila e sua freguesia, o mercado/comércio regional como aquele realizado entre vilas com câmaras próprias e entre capitanias/províncias, e o mercado/comércio externo/internacional como aquele direcionado para fora do Brasil. O mesmo entendimento de local, regional e externo é utilizado para a economia. Note-se que, para além do mercado, a economia engloba todo o processo de produção, consumo e geração de renda.

Bragança, que se tornou vila em 1789, desmembrada de Atibia que a sua vez foi parte do território da capital de São Paulo, foi importante abastecedora das Minas Gerais principalmente no século XVIII) e do Rio de Janeiro, além da capital paulista, em especial no Oitocentos.

Encontramos na periferia do Grande São Paulo uma área típica de economia de subsistência; suas colheitas de feijão, de milho vendiam-se diariamente no mercado paulistano, complementadas com o toucinho, a aguardente, o tecido de algodão feito no recinto doméstico, a farinha de mandioca. Estes produtos constituíam cerca de 95% do valor da exportação global das vilas de Atibaia e Bragança (com sua freguesia de Nazaré), no conjunto do termo, 24,55%. (CANABRAVA, 1972CANABRAVA, Alice Piffer. A Repartição da terra na capitania de São Paulo, 1818. Estudos Econômicos, v. 6, n. 2, p. 77-129. 1972b.b, p. 85)

Mogi das Cruzes, limítrofe a capital e desmembrada desta em 1611, distingue-se pela proximidade com o Vale do Paraíba - sendo, mesmo, considerada parte dele por alguns autores. O Vale do Paraíba caracterizou-se, a partir dos primeiros anos do século XIX, pelo desenvolvimento, em várias de suas vilas, do café, marcado em nosso estudo especialmente em Jacareí.

Jacareí (vila em 1657), não obstante localizada efetivamente no Vale do Paraíba, não chegou a apresentar produção cafeeira em tão larga escala quanto em outras vilas do Vale, ainda que lá a rubiácea tenha sido importante, como se verá.

A produção no Vale do Paraíba era diversificada, com a lavoura cafeeira crescendo com ímpeto - principalmente nas localidades mais próximas ao Rio de Janeiro -, conquistando terras à anterior lavoura de cana-de-açúcar, dominando quase toda a região já na década de 1830. Sendo que anteriormente, em 1818, nas exportações “o café participava nesse ano com 24,80%, o açúcar e os produtos pecuários com o mesmo percentual (32,00%) e os gêneros da lavoura de subsistência com 5,0%)” (CANABRAVA, 1972aCANABRAVA, Alice Piffer. Uma Economia de decadência: os níveis de riqueza na capitania de São Paulo, 1765/67. Revista Brasileira de Economia, v. 26, n. 4, p. 95-123, 1972a., p. 88).

A região constituía a zona paulista mais dinâmica em termos populacionais, com taxa média anual de crescimento de 2,4% nas primeiras décadas do Oitocentos. Foi significativa a expansão do número de livres e, principalmente, dos escravos (3,5% ao ano a partir de 1804), devida à introdução do café em inícios do século XIX, refletindo-se em um aumento da participação dos escravos na população de 22,1% em 1777 para 33,1% em 1829, sendo cerca de 28% o percentual de fogos com escravos. (cf.LUNA, 2009LUNA, Francisco V. São Paulo: população, atividades e posse de escravos em vinte e cinco localidades (1777-1829). In: LUNA, F. V.; COSTA, Iraci del N. da; KLEIN, Herbert. Escravismo em São Paulo e Minas Gerais. São Paulo: Edusp/Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2009, p.335-413. ).

Esse crescimento/movimento populacional verificado para o Vale do Paraíba estendeu-se para as outras regiões estudadas e foi dinamizado pelo evolver econômico “[...] ligado, por um lado, à introdução e aumento da agroexportação no território paulista, gerando uma maior demanda por alimentos, e, por outro lado, à manutenção de um comércio intercolonial, em especial o Rio de Janeiro.” (FRAGOSO, 1998FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998., p. 135)

Para as três localidades, investigamos algumas características econômicas tais como produção e comércio, para as três primeiras décadas do século XIX, pontualmente identificadas com os anos 1803, 1816 e 1829/30 e observamos ainda a estrutura fundiária para as localidades em tela no ano de 1818, temas inter-relacionados e ao mesmo tempo passíveis de análises especificas.

Nosso objetivo é traçar um perfil das atividades produtivas/econômicas e dos gêneros cultivados ligando-os às possibilidades de comércio, de forma a caracterizar a estrutura produtiva local e seu evolver ao longo das primeiras décadas do Oitocentos. Assim como descrever a estrutura fundiária, ou seja, a forma como a terra se dividia em faixas de tamanho de propriedades, de acordo com o processo histórico de ocupação da área analisada, observado a partir das formas de aquisição das propriedades.

Assim, além dessas rápidas notas introdutórias o trabalho é apresentado em duas seções e considerações finais. Na primeira seção apresentamos um perfil dos aspectos econômicos atinentes às atividades produtivas levadas a cabo no entorno paulistano estudado, aos gêneros produzidos e ao comércio em que estavam envolvidas as distintas localidades a partir da sua produção. Para o desenvolvimento da primeira seção apoiamo-nos em um conjunto de Listas Nominativas de Habitantes, arquivadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo sob a rubrica Maços de PopulaçãoAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Maços de população - completos..

Os mapas populacionais são documentos manuscritos, em tese anuais, que contêm a relação nominal dos habitantes de diversos municípios da capitania/província de São Paulo, onde são descritos por fogos (unidades domiciliares/produtivas) e com algumas características relacionadas como estado conjugal, idade entre outras. Aqui, restringimo-nos à observação dos informes atinentes às ocupações econômicas realizadas pelo chefe do fogo (atividade principal do domicílio), incluindo em certos anos dados sobre a produção levada a cabo. Adicionalmente, recorremos aos mapas de produção e comércio que, eventualmente pudessem acompanhar as listas nominativas e apresentam informações econômicas que abrangem compra e venda de distintos produtos, as quantidades produzidas e negociadas e seus destinos/origens.

A amostra com a qual trabalhamos compreende documentos datados em 1803, 1816 e para Mogi das Cruzes e Jacareí 1829 e Bragança 1830; selecionados dessa maneira em razão da qualidade e disponibilidade das listas.

A seção seguinte é dedicada ao acompanhamento da estrutura fundiária através da concentração e dos processos de acesso e de repartição das terras, cujas características são fundamentais para o entendimento dos limites da ocupação e do potencial de dinamismo econômico das vilas em tela.

Esta seção apoia-se na análise dos registros do Cadastramento de terras, único documento a arrolar as propriedades e os proprietários de terras em São Paulo nos primeiros anos do Oitocentos. Arquivados no AESP com o título de TombamentoAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Tombamento de bens rústicos., esses documentos correspondem a um cadastramento dos terrenos rurais encontrado para 40 localidades da Capitania de São Paulo, incluindo as localidades estudadas nesse trabalho, para as quais foi levado a cabo em 1818. Grosso modo, encontramos descritos no tombamento a relação das propriedades existentes nas localidades, seus proprietários e medidas, assim como aparecia também a forma de aquisição do quinhão declarado e suas divisas.

Estrutura produtiva

Os maços de população apresentam, entre outras características, observações que dizem respeito à ocupação ou atividade produtiva em que os chefes dos diferentes domicílios estavam envolvidos e estas refletem, como não poderia ser diferente, a essência agropecuária das economias de Bragança, Mogi das Cruzes (com a freguesia de Santa Isabel) e Jacareí (com a freguesia de Paraibuna). De fato, os maços de população de 1803, 1816 e 1829/30 evidenciam para as localidades consideradas grande contingente populacional ligado ao setor agricultura, como pode ser observado na Tabela 1.

Tabela 1 -
Divisão dos fogos por setores de atividade econômica (BragançaAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Bragança Paulista: 1803 (rolo 22); 1816 (rolo 26); 1830 (rolo 30) ., MogiAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Mogi das Cruzes: 1803 (rolo 127); 1816 (rolo 129); 1829 (rolo131) . e JacareíAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Jacareí: 1803 (rolo 98); 1816 (rolo 100); 1829 (rolo 101).: 1803, 1816, 1829/30)

Mogi, ao lado de seu majoritário setor agrícola (em 1803 eram 80,3% das declarações, 75,8,1% em 1816 e 79,1% em 1829), apresentou importante setor artesanal com destaque para indivíduos ligados à fiação e tecelagem (que responderam por mais de 90% do setor em 1803 e 1816, sendo de 87,9% em 1829). O setor artesanato, composto por costureiras, carpinteiros, fiadeiras, tecedeiras e tecelões, entre outros, foi identificado como principal em 14,2% dos domicílios em 1803, 18,4% em 1816 e 12% em 1829. A importância da atividade na localidade justificava até a presença de atividades subsidiárias como, por exemplo, a presença registrada na lista nominativa de Bento José, que aos 41 anos “vive de fazer rodas de fiar”.

Importante setor artesanal encontramos também em Jacareí, onde a sempre majoritária agricultura, teve participação crescente do café dentre seus gêneros. “Esses não agricultores dedicavam-se em tempo integral a atividades especializadas, e apenas alguns deles também se ocupavam da agricultura e outras atividades.” (LUNA; KLEIN, 2006, 2006, p. 225LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia Escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2006.)

Em 1803 e 1829, o setor artesanato respondeu, respectivamente, por 9,3% e 9%; sendo sua maior participação 13,5% em 1816. Neste setor, destacam-se as atividades femininas de fiação e tecelagem: em 1816 foram 110 chefes ligados a estas ocupações que respondiam por 50% dos fogos no setor artesanato e 9,2% do total de fogos registrados, todos situados na vila de Jacareí propriamente.

Como esperado, a maioria dos domicílios jacareienses tinha ligação com atividades do setor agricultura, que teve sua participação aumentada - diferente das demais localidades aqui observadas - de 76,5% dos fogos em 1803 para 85,5% em 1829.

A sua vez, Bragança apresentou os maiores percentuais de participação do setor majoritário (agricultura), mas com valores decrescentes: de 92,8% em 1803 a 83,5% em 1830. A vila apresentou uma ampliação no número e participação artesãos e, principalmente, de vendeiros e negociantes na década de 1820. A parcela dos fogos de Bragança ligada ao artesanato viu sua participação crescer de 2,9% (1803) a 6,1% (1830) dos chefes com ocupação declarada, valor ainda bem inferior ao encontrado para as demais localidades.

De nove vendeiros ou negociantes (1,1%) em 1803, passou-se a 99 (7,1%) em 1830, superando em posição o setor artesanato, até então o segundo mais representativo; indicativo de uma diferenciação nesta vila que aponta para atividades comerciais. Ampliação do comércio, ainda que em menor proporção, foi visível também em Mogi das Cruzes: o comércio que teve apenas onze indivíduos (0,9%) exclusivamente a ele vinculados em 1803, elevou sua participação a 2,8% em 1829, o que correspondia a 53 fogos, uma variação de mais de 380% em pouco menos de 30 anos.

É difícil a identificação do tamanho dos empreendimentos e dos montantes comercializados por estes homens de negócio e acreditamos que esses comerciantes compunham uma camada bastante heterogênea da população, tanto em atividades fixas como itinerantes2 2 Avançar nesse tema foge ao escopo do nosso texto, mas vale notar que são várias as possibilidades de análise e classificação para os comerciantes do passado brasileiro. Ver, entre outros, Zemella (1990), Chaves (1999), Fragoso (1998), Furtado (2006). . Mas, decerto, a ampliação desse grupo na composição dos setores econômicos locais reflete uma maior dinâmica nas transações das localidades, tanto na distribuição de produtos importados pelo interior estudado, quanto na circulação e intermediação na distribuição dos “produtos da terra” e que mais nos interessa aqui. Como bem observou Cláudia Chaves para Minas Gerais é certo que, também na São Paulo estudada, como se verá, “[...] De uma certa maneira, boa parte dos sitiantes e roceiros tinham uma parcela de sua produção desviada para abastecer o mercado das grandes vilas e arraiais como forma de atividade econômica básica.” (CHAVES, 1999CHAVES, Cláudia Maria das G. Perfeitos negociantes: mercadores das minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999., p. 163). E a presença de distintos comerciantes deveria ser importante para essa relação com o mercado, que se dava a partir de uma base produtiva bastante diversificada.

A base produtiva das localidades era assentada na policultura, mas invariavelmente, como produção característica das localidades, em dispersão pelos fogos, identificamos o milho. “De todos os gêneros alimentícios consumidos e produzidos para o mercado local, nenhum foi mais onipresente ou importante que o milho.” (LUNA; KLEIN, 2006, p. 120LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia Escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2006.) O milho foi a principal cultura para toda a área observada, durante os quase de 30 anos considerados. Não à toa Sergio Buarque de Holanda referiu-se a São Paulo como Uma civilização do milho.

De fácil cultivo, a ponto de ter sua cultura descrita como “vulgar” por Taunay em seu Manual do Agricultor Brasileiro, baseado em escritos iniciados por ele na década de 1820, a produção do milho, legado indígena, note-se, estava espraiada por todo o território brasileiro, como apontam, de maneira mais ou menos detalhada, inúmeros autores e ainda viajantes Oitocentistas.

O milho fazia, indubitavelmente, parte do sustento da população, livre e cativa. É inegável a importância desse cereal na alimentação da população brasileira nos séculos anteriores, incluindo-se aí em grande medida São Paulo, seja na forma do grão propriamente dito, seja na forma de seu principal derivado, a farinha, ingrediente principal de diversas receitas daquele tempo. Ademais, era com o milho que se alimentava grande parte dos animais, em especial os porcos.

Junto ao milho aparece primordialmente o feijão, cuja presença foi uma constante, apresentando ora maior, ora menor participação entre os cultivos anotados nas listas nominativas. Juntamente com o milho foi, provavelmente, o feijão o alimento mais consumido em São Paulo desde o início da colonização. “O feijão é por assim dizer, o companheiro obrigado do toucinho e da carne-seca; é alimento de que gostam tanto o senhor como o escravo, e que faz a fartura da casa e da senzala.” (TAUNAY, 2001TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2001. , p. 158) E assim como o milho, a cultura do feijão é bastante simples; sua colheita pode realizar-se em apenas três meses e tem o feijão, ademais, a característica de melhorar as áreas onde é plantado. Milho e feijão caminhavam juntos e indubitavelmente eram traço marcante da produção do entorno paulistano.

E, presente em todas as localidades, mas de forma destacada em Mogi e Jacareí, onde o setor artesanato tinha presença mais marcante, merece consideração entre produtos arrolados o algodão, em especial, conjugado com milho e/ou feijão. “Pode-se com o algodão, plantar milho e feijão, porém, no primeiro ano somente; mais tarde, esses vegetais seriam absorvidos pelos novedios vigorosos dos algodoeiros [...]” (SAINT-HILAIRE, 1976SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: Edusp , 1976.)

A presença dos diferentes gêneros plantados vai anotada Tabela 2, que apresenta o percentual de fogos com cultura descrita, em que os diversos cultivares foram mencionados.

Tabela 2 -
Presença dos diferentes gêneros cultivados nos fogos (BragançaAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Bragança Paulista: anos diversos (rolos 20 a 30)., MogiAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Mogi das Cruzes: anos diversos (rolos 126 a 132). e JacareíAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Jacareí: anos diversos (rolos 97 a 101 - somente resumos) .: 1803, 18016, 1829/30)

Entre os chefes das unidades domiciliares de Mogi foram arrolados pontualmente arroz, fumo, cana, mamona, trigo, mandioca e praticamente a totalidade mencionou o cultivo do milho (mínimo de 99,6% em 1816). O número de fogos a produzir milho variou consideravelmente entre 1803 e 1829, de 765 a 1326 (aumento de 73,3%), superando o aumento do número de unidades domiciliares na localidade no mesmo período (43,4%, de 1350 a 1936 fogos).

O feijão apresentou presença também bastante elevada, entre 83,3% (1829) e 90,4% (1816). E o algodão, matéria prima do artesanato de fiação e tecelagem, foi o terceiro principal produto descrito, “[...] a cultura do algodão era a que mais ocupava os habitantes das redondezas. Com as fibras da Malvácea aí se faziam cobertas bem finas e bonitas redes”. (SAINT-HILAIRE, 1974SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: Edusp , 1974., p. 92) O algodão apresentou presença claramente descrente ao longo dos anos: 52,9% em 1803, 30% em 1816 e 17,1% em 1829.

Em Bragança, em 1803 foram mencionados, em diferentes medidas, o cultivo de milho, feijão, algodão e cana, esta última auferida pela declaração de aguardente, e nos anos 1816 e 1830 apenas milho e feijão foram arrolados. Muito provavelmente os demais gêneros não deixaram de ser produzidos, no entanto não tinham proporções dignas de menção, ao menos na visão dos responsáveis pelos recenseamentos.

Entre os fogos com cultura listada entre 1803 e 1830 praticamente a totalidade deles mencionou a produção de milho (mínimo de 99% em 1830). Neste mesmo período o feijão foi colhido em um número crescente de unidades produtivas, passando de 37,2% em 1803 a 83,5% no último ano considerado. A menção elevada de milho e feijão é devida à presença conjunta desses dois produtos nos fogos. No ano de 1816 e seguinte, maioria absoluta dos cultivos referia-se a milho mais feijão, em percentuais que superam os 75% das declarações.

Também em Jacareí, sem dúvidas a plantação mais espraiada entre os fogos era o milho, encontrado praticamente na totalidade daqueles domicílios em que algum tipo de cultura foi declarado, o mínimo foi de 98% em 1829. Presença marcante também encontramos para o feijão, o arroz e o algodão, sendo que o feijão esteve em 79,4% das declarações em 1816, partindo de 80% nos demais anos. O algodão foi importante nas duas primeiras décadas do Oitocentos, tendo sido sua presença registrada em 37% das declarações em 1803 e 47,8% em 1816. Já o arroz passou de 14,6% em 1816 a 59,5% em 1829.

Para além dessa composição da produção bastante semelhante entre as localidades, importante destacar as diferenciações entre as três economias em tela que se viram acentuadas à medida em que os anos avançavam, transformando-as e reestruturando-as a partir de novas bases produtivas, em que merece destaque a presença do café e da pecuária de suínos.

O café, que se expandia pelo Vale do Paraíba, não apareceu nas listas de Bragança, mais distante, e teve presença pontual em Mogi: estabeleceu-se ali na década de 1820 e aparece na documentação consultada em 1829, possivelmente suplantando parte da plantação de algodão (e seria importante para a localidade nas décadas seguintes).

Já em Jacareí, a presença e o espraiamento do café foram marcantes. Pontualmente encontrado nos anos iniciais observados - em 1816 apenas 4 fogos indicaram a presença da rubiácea, 0,5% daqueles com plantação declarada -, foi encontrado em 12,7% (106) fogos jacareienses com alguma plantação declarada em 1829, respondendo por 10% dos domicílios ligados à agricultura. Foi rápido, então, o avanço do café, que deu-se tanto na área atinente a vila de Jacareí propriamente, como na Freguesia de Paraibuna - a posição no caminho do Rio de Janeiro de onde vinha se expandido a cultura cafeeira e a presença de terras passíveis de ocupação (vide próxima seção), devem ter sido fatores a impulsionar esta expansão.

O café “[...] era uma cultura que podia ser iniciada juntamente com o plantio de gêneros alimentícios usuais, e assim os custos iniciais do ingresso eram muito menores [que o açúcar]. Mas em razão do tempo que os cafeeiros demoravam para começar a produzir, a disponibilidade de fontes de renda alternativas com a venda de gêneros alimentícios foi fundamental para a sobrevivência do novo cultivo.” (LUNA; KLEIN, 2006, p. 250-251LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia Escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2006.) Vide por exemplo, o lavrador João de Souza que “tem 3000 pés de café novos apurou com o feijão 70 000”

Ao penetrar na localidade, paralelamente aos cultivos anteriormente levados a cabo, o café apareceu como importante partícipe da produção da localidade. É provável que o café tenha sido a origem de um importante efeito multiplicador ao movimentar ao seu redor uma vasta gama de atividades, dinamizando a economia e possibilitando a inclusão de novos grupos no processo produtivo jacareisense, indo ao encontro de diferentes trabalhos que apontam para uma dinamização da economia a partir do seu setor exportador, que acabava por estimular a demanda e a produção para o mercado interno (local e regional).

O trabalho de Robert Slenes (1988SLENES, Robert W. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos, v. 18, n. 3, p. 449-495, 1988. ) é ilustrativo desse processo ao indicar, de forma pioneira, que para medir o papel do setor exportador na Minas Oitocentista era preciso reconstituir suas ligações com a produção para o consumo interno, e que essas ligações acabaram por levar ao efeito multiplicador sobre a economia de abastecimento. Ou, entre outros, o trabalho de João Luís Fragoso, onde o autor conclui, a partir do estudo da praça do Rio de Janeiro, que “[...] a própria reiteração da agroexportação gera complexos mercantis ligados ao abastecimento. Desse modo, incrementa-se o desenvolvimento do mercado interno [...].” (FRAGOSO, 1998FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998., p. 109)

Do valor do Produto da localidade em 1816 cerca de 1,5% era devido ao café, percentual alçado a 31,1% em 1829, avançando em detrimento do milho e, principalmente, ao algodão, conforme mostra a Tabela 3. O milho teve sua participação no valor do produto local diminuída de pouco menos de 46% nos dois primeiros anos considerados para 38% no último. A sua vez, o algodão viu sua cultura declarada fortemente reduzida de 15-16% em 1803 a 2,5% em 1829, flutuação que segue o mesmo sentido da flutuação do setor artesanato mencionado anteriormente.

Tabela 3 -
Composição percentual do valor do Produto (JacareíAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Tombamento de bens rústicos.: 1803, 18016, 1829)

Fato é que “Antigamente [...], ninguém se ocupava, nos arredores de Jacareí, senão com a cultura do algodão e da criação de porcos. De algum tempo para cá começou-se a plantar muito café.” (SAINT-HILAIRE, 1974SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: Edusp , 1974., p. 93)

Apesar da menção de Saint-Hilaire (feita na década de 1830) à produção de porcos, estes só apareceram na documentação jacareiense a partir de 1816, descritos em 116 fogos, ano em que respondem por 11,6% do produto da vila. Em 1829 foram declarados em apenas 33 fogos, os únicos a apresentar alguma criação nesse ano.

Não foi esse o caso de Bragança em que a criação esteve muito presente. A descrição da atividade pecuária realizada foi explicitada em ao menos 98,7% fogos com essa atividade e apareceu acompanhada de plantações em todos os seus registros. Os bragantinos declararam a criação de forma bastante acentuada, vide o percentual considerável de indivíduos ligados, dentro do setor agricultura, à lavoura mais criação: cerca de 24-25% em 1830 e respondendo por não menos de 30% de todas as atividades declaradas pelos chefes de fogo nos demais anos.

Assim, paralelamente aos cultivos tradicionais, a pecuária esteve fortemente representada. Com exceções pontuais, a pecuária declarada resumiu-se à criação de porcos, assim explicitada ou auferida através da produção de capados ou de toucinho. Nenhum fogo, em nenhum momento, declarou conjuntamente porcos e toucinho. Os capados foram bastante listados nos anos de 1803 (284 menções a capados, 77,4% dos fogos com porcos/capados) e 1816 (43,2%). Em 1830 a presença do toucinho foi preponderante, 78,8%.

Parcela importante da produção era enviada ao mercado. Em se tratando das listagens populacionais, os percentuais chegaram a 100% em 1830. Difícil crer no não consumo local do toucinho, assim, resta-nos fazer uma observação: é possível que a produção descrita nos fogos seja somente aquela efetivamente levada ao mercado, em não sendo a produção para consumo próprio arrolada a produção total deveria ser ainda superior àquela por nós levantada e analisada.

Os volumes anotados, levados ao mercado, assim como a volume de venda individual por alguns produtores são visivelmente crescentes ao longo do tempo, como pode ser observado na Tabela 4. As pouco mais de 3200 arrobas arroladas em 1803 foram transformadas em 5334 arrobas em 1816 e elevadas a 11477 arrobas em 1830, ano em que registramos o maior número de fogos explicitamente com menção a toucinho, 324 (23,3% do total do fogos da localidade) e a maior produção produção/venda individual, 800 arrobas.

Tabela 4 -
Produção/venda de toucinho (BragançaAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Bragança Paulista: 1818 (C09868 - Relação dos habitantes que possuem seus terrenos na vila Nova de Bragança).: 1803, 18016, 1830)

Característica marcante da produção da Vila Nova de Bragança era, então, a presença nos diversos domicílios de milho mais feijão mais porcos (cujo objetivo final principal era o toucinho): “Bragança, que fica 3 léguas ao nordeste de Tibaia, é ainda pequena; mas seu moradores vivem abastados; criam em grande quantidade porcos; e recolhem abundancia de trigo, milho e legumes.” (CASAL, 1976CASAL, Aires de. Corografia Basílica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 113)

A produção local de milho, apontada anteriormente, estava diretamente ligada à produção de toucinho, ou seja, à criação de porcos posto que, particularmente na alimentação desses animais, o milho teve papel fundamental, era o principal alimento dado a essa criação e, portanto, era insumo utilizado indiretamente na produção do toucinho, base da alimentação no Brasil Oitocentista. Assim, milho e capados ou toucinho aparecem juntos em grande número de domicílios bragantinos, especialmente a partir de 1816, quando foi grande o percentual de fogos em que foram descritos tanto milho quanto porcos ou toucinho, 99,5%. Em 1830 foi de 100% o montante de criadores que também plantavam milho; eis o caso de Francisco Jose de Oliveira que em 1816 possuía 300 destes animais e havia sido, junto a outros quatro indivíduos, o terceiro maior plantador de milho no ano, com 800 alqueires colhidos.

Enfim, no que respeita à produção verificamos que os bragantinos (em sua grande maioria ligados ao setor agricultura) produziam no Oitocentos milho, feijão e porcos. Decerto estas não eram as únicas produções levadas a cabo na localidade no século XIX, mas aquelas que mais provavelmente tinham alguma importância. Esta importância e a “seleção” feita no arrolamento pode estar ligada ao mercado externo à vila.

Os mapas de produção e comércio foram encontrados apenas para 1830, ano em que os três produtos foram enviados exclusivamente à cidade de São Paulo. Neste ano apenas 1,9% do milho foi vendido, corroborando a sua relação com a alimentação local. E o toucinho, como adiantado, foi em sua totalidade levado ao mercado, respondendo por 95,3% do valor das exportações bragantinas (o percentual restante era devido ao milho, 3,3% e ao feijão, 1,4%).

Assim como o toucinho de Mogi, o café de Jacareí era produzido com vistas ao mercado. A produção cafeeira era em parte utilizada para consumo próprio, mas especialmente as maiores plantações foram feitas com vistas ao mercado: o café era vendido especialmente no Rio de Janeiro, para onde foi levado 57,2% do volume produzido cujo destino pudemos identificar em 1829. Essas transações envolvendo o Rio de Janeiro eram 35% das trocas mercantis realizadas, enquanto mais de metade das transações (52,2%) foram realizadas “na terra”, mas envolveram volume menor de café, 34,8% das 5344 arrobas vendidas no referido ano, apontando para as menores quantidades negociadas no própria unidade produtiva “As exportações fazem-se, ou diretamente pela estrada do Rio de Janeiro ou, mais frequentemente, via Santos; e então passam as tropas neste caso por S. Paulo, porque de Nhazinha parte uma estrada que encontra a do Cubatão.” (SAINT-HILAIRE, 1974SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: Edusp , 1974., p. 93)

Ademais do café, não pudemos identificar o comércio de nenhum outro gênero, devido à ausência dos mapas comerciais jacareienses. Mas certamente produtos como o milho eram levados ao mercado.

Ao mercado também foi levada grande quantidade do algodão e seus derivados produzidos em Mogi das Cruzes. Da produção algodoeira declarada nos mapas de 1803, 3411 arrobas, 58,2% era exportada e o destino era exclusivamente a cidade de São Paulo, para onde seguiam também neste mesmo ano o milho, o feijão e algum o arroz e aguardente, como já vinha sendo feito desde anos anteriores.

Em função do clima e da qualidade de solo, desenvolveu o cultivo do algodão como seu principal produto de exportação, paralelamente a produtos de subsistência (milho, feijão, farinha e arroz). Contudo, o cultivo do algodão caracterizou-se por ser uma lavoura implantada em pequenas propriedades, denotando ser uma lavoura comercial de pobres sitiantes.

Ao lado do cultivo do algodão desenvolveu-se a sua manufatura. Dessa forma, as últimas décadas do século XVIII seriam marcadas por profundas modificações na economia da vila mogiana, pois havia não só um produto agrícola de exportação, mas também uma atividade manufatureira, cujo produto igualmente era exportado. (SANTOS, 2018SANTOS, Jonas Rafael dos. Mogi das Cruzes: da formação ao processo de reestruturação econômica entre o final do século XVIII e início do XIX. In: ROIZ, Diogo; ARARAKI, Suzana; ZIMMERMANN, Tânia Regina (Org.) Os bandeirantes e a historiografia brasileira: questões e debates contemporâneos. Serra: Editora Milfontes, 2018, p.51-73., p. 59)

No entanto, diferente do que ocorreu com o café em Jacareí e o toucinho em Bragança que viram sua presença e importância na economia aumentados na década de 1820, o algodão mogiano parece ter passado por um retração de volume, de acordo com a listas nominativas - 5882 arrobas em 1803, 3411 arrobas em 1816 e 1835 arrobas em 1816 -, que não implicou na redução de sua participação no Produto da vila (de acordo com os mapas de produção e comércio utilizados na elaboração da Tabela 5), tendo subido de 10,3% em 1803 a 22,7% em 1816 denotando, possivelmente um maior consumo local sua produção, ligada a um número cada vez menor de fogos.

Tabela 5 -
Composição percentual do valor do Produto - MogiAPESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Mogi das Cruzes: 1818 (C09868 - Mapa das terras que possuem os habitantes da Vila de Mogi das Cruzes). (1803, 1816)

O toucinho e a plantação de milho e feijão, assim como o algodão, além de permitirem o autoconsumo, permitiam o comércio local, onde deveriam ser transacionados nos vários “negócios de vendas” ao que parece, espraiados pelas vilas e seus termos. Possibilitava, ainda, ingressar no mercado regional com produtos facilmente comercializáveis, afinal eram parte importante da subsistência não somente daqueles que os produziam, mas de toda a população, inclusive aquela parcela ligada à prestação de serviços na própria vila ou em centros urbanos mais distantes.

Assim, as localidades em tela estiveram envolvidas no comércio regional de gêneros produzidos localmente. Sem articulação comercial entre si identificada, sendo São Paulo o principal destino da produção de gêneros diversos e, se não destino final, entreposto intermediário de bens destinados a outros locais. São Paulo absorvia uma vasta gama de bens e, na ausência de produtos com valor no mercado externo à colônia, era o principal comprador em valor dos gêneros da terra originários de seu entorno - para Bragança chegou a ser o único destino encontrado, para Mogi das Cruzes apareceu Santos com alguma regularidade -, centro de uma rede de trocas que, certamente, ligava seu interior ao litoral e outras áreas.

De todos os lugares que abrigavam trabalhadores não-agrícolas, era a região da própria capital que apresentava a maior percentagem de não-agricultores na província. Além de seu papel como centro de comércio e comunicações entre o litoral e o interior em desenvolvimento, a capital e sua periferia constituía uma área única em razão de suas funções político-administrativas exclusivas. (LUNA; KLEIN, 2006, p. 236LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia Escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2006.)

Nessa linha de considerações, é possível perceber que o resultado da produção das localidades estudadas poderia, em alguma medida, estar ligado não somente ao comércio com localidades próximas, mas poderia chegar, via intermediação, a mercados mais distantes, entre eles o do Rio de Janeiro. Fragoso (1998FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998., p. 136) aponta que “[...] apesar de 90% do valor das vendas paulistas (1813-1821), pelo Porto de Santos, ser constituído pelo açúcar, em 1812, ao redor de 24% das consignações de produtos paulistas em navios que atracaram no porto carioca eram de alimentos como farinha e feijão, dentre outros.”

Fato é que ao final do século XVIII a economia colonial e, a sua vez, paulista passou por um “renascimento agrícola” com ampliação, mormente, da produção de algodão e de açúcar para outros mercados. Políticas de estímulo à produção foram implementadas pela metrópole e tornando-se, novamente, capitania autônoma (1765) São Paulo passou por sucessivas administrações, até o início do século XIX, que buscaram “modernizar” a agricultura paulista.3 3 Foram promovidas melhorias nas redes de transporte paulistas, com o estabelecimento de uma melhor estrutura portuária e dos caminhos de ligação, preparando uma infraestrutura que facilitaria a venda de diversos produtos, não só para exportação, mas também de circulação no mercado regional. (Cf.PRADO Jr., 1996PRADO Jr., Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 24a. ed. Brasiliense, 1996.)

Ademais, o final do Setecentos e inicio do Oitocentos foi um período de importantes transformações no que tange à administração da colônia: a mudança da capital colonial para o Rio de Janeiro (1763) e a chegada e instalação da corte portuguesa na capital já nos primórdios do século XIX (1808), estimularam atividades ligadas ao abastecimento interno, criando novas demandas por produtos de subsistência.

Com a chegada da corte, o Rio de Janeiro passou a ser o epicentro de um processo de integração do Centro-Sul. “A vinda da Corte com o enraizamento do Estado português no Centro-Sul daria início à transformação da colônia em metrópole interiorizada.”4 4 Esse processo de integração foi proposto originalmente por Maria Odila da Silva Dias, em artigo clássico publicado em 1972. Em “A Interiorização da Metrópole”, a autora apresenta um enfoque abrangente do passado colonial, que de forma inovadora passa a ser inserido na dinâmica político-econômica do império ultramarino português e, dentro do que nos interessa aqui, aponta para a interiorização da metrópole e o enraizamento dos interesses mercantis portugueses no Centro-Sul a partir da praça do Rio, importante entreposto comercial, a “ressaltar traços já bem aparentes na segunda metade do século XVIII e tendiam a acentuar o predomínio do comerciante.” (DIAS, 2005DIAS, Maria Odila L. da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005. , p. 19) A presença física da corte portuguesa no Rio de Janeiro, onde a população cresceu nas primeiras décadas do século XIX não somente pela imigração de portugueses, levou à necessidade de melhoria de estradas e comunicações entre as capitanias, ao favorecimento do povoamento e ao aumento da agricultura, tendo sido o Rio de Janeiro o polo drenador de gêneros de abastecimento do Centro-Sul (cf.DIAS, 2005DIAS, Maria Odila L. da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005. ; LENHARO, 1979LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil, 1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979), o que se estendeu ao longo dos anos.

Nas primeiras décadas do século XIX, São Paulo viu florescer a cultura do café.

Diante do desenvolvimento da produção cafeeira comercial na província vizinha do Rio de Janeiro, do íntimo contato dos paulistas com esta economia e da nova riqueza gerada localmente pelas exportações açucareiras de São Paulo, foi inevitável a penetração do café na província, vindo do Rio de Janeiro no primeiro quartel do século XIX. (LUNA; KLEIN, 2006, p. 250LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia Escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2006.)

Sem abandonar as culturas de autossubsistência e abastecimento interno características de sua economia desde os primeiros tempos, a produção do café foi responsável por incrementar ainda mais os mercados locais e regionais de gêneros de abastecimento.

Enfim, a circulação de bens foi bastante ativa e refletiu o importante mercado para produtos básicos existente a partir do pedaço do entorno paulistano estudado nas primeiras décadas do século XIX. A dinamicidade das atividades econômicas das localidades estudas, influenciadas por questões locais ou mais amplas da economia colonial, realizadas com vistas ao mercado, incentivava o desenvolvimento de atividades complementares. A venda de seus produtos em outras regiões foi, portanto, a força motriz da economia, e os víveres eram bens indispensáveis para o funcionamento da economia regional, mesmo quando combinada com a agricultura de exportação, como foi o caso de Jacareí ao final dos anos 1920.

Estrutura fundiária

Ao todo temos registradas para as localidades estudadas 1742 propriedades que em conjunto, conformam uma área total de 119093 alqueires paulistas, divididas da seguinte maneira: Bragança 73185 alqueires paulistas, Mogi 11325 incluindo 974 de Santa Isabel, Jacareí 34583 alqueires paulistas, sendo a maior parte (17613) no distrito de Paraibuna. Quanto ao número de propriedades, foram anotados os seguintes: Bragança (530), Mogi (636, sendo 30 de Santa Isabel), e Jacareí (576, sendo 75 de Paraibuna).

Em 1818, mostra o cadastramento de bens rústicos, a estrutura fundiária da região estudada era bastante concentrada. O índice de Gini para as propriedades de Bragança e Mogi eram próximos: 0,69 e 0,63, respectivamente; Jacareí apresentou concentração fundiária mais elevada e realmente forte: 0,84, próximo ao que se conhece para a Capitania como um todo:

O índice de Gini de 0,87 evidencia uma estrutura fundiária marcada por uma concentração elevada em São Paulo. É importante ressaltar que, apesar das ligeiras variações, altos níveis de concentração foram observados em regiões com diferenças bastante nítidas, tanto do ponto de vista econômico como da antiguidade do povoamento. Índices abaixo daquele apurado para o conjunto da Capitania foram encontrados na periferia da grande São Paulo (0,70) e nas regiões Açucareira (0,82) e Vale do Paraíba (0,83). (NOZOE, 2008NOZOE, N. A apropriação de terras rurais na Capitania de São Paulo. Tese (Livre Docência). Faculdade de Economia e Adminstração. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008., grifo nosso)

Assim, não fugiu ao modelo concentrador de terras nenhuma das localidades estudadas, independentemente da dinâmica de suas economias e das consequentes possibilidades de acesso ao mercado de terras que estas dinâmicas poderiam gerar, posto ser a aquisição de terrenos via compra aquela predominante, como se verá mais adiante.

À exceção de Mogi das Cruzes/Santa Isabel em que a maior propriedade ocupava uma área de 357 alqueires paulistas, nas demais localidades grandes extensões rurais, acima de 1000 alqueires, representavam, habitualmente, cerca de 1% das propriedades arroladas. Todavia somente em Jacareí com Paraibuna essas gebas ocupavam um percentual alçado a 38,3% do território arrolado, como se pode notar nas Tabelas 6, 7 e 8. Soma-se a isso ser recorrente a existência em quantidade majoritária, em todos os casos, de menores propriedades ocupando uma área realmente diminuta: ocupavam, cada uma delas, uma extensão entre 0,03 e 0,2 alqueires paulistas da área arrolada.5 5 Como adiantado, a concentração fundiária que encontramos não foi exclusiva das localidades estudadas. Entre outros autores que se depararam com concentração fundiária, temos Rangel (1998, p. 359), que considerando especificamente o município de Taubaté no Vale do Paraíba paulista, aponta que “Cerca de 66,3% dos proprietários, que possuíam imóveis de até 48,4 ha, com uma área média de 12,4ha, apropriavam-se de 4,7% da área total. Em contrapartida, os 34 maiores proprietários, com imóveis acima de 500 há, controlavam 72,5% da área total. O índice de concentração de Gini atingia 0,86.” Para o Paraná em 1817, tratando especialmente da região de São José dos Pinhais as observações de Cacilda Machado mostram que: [...] 115 propriedades com até 100 ha compunham 56% do total de 205 propriedades e ocupavam pouco menos de 4% da área total. Já as propriedades com mais de 4.000 ha (não foram registradas propriedades com mais de 5.000 ha) eram apenas quatro (perfazendo cerca de 2% do total das propriedades), ocupando 70% da área total na freguesia. (MACHADO, 2008, p. 64). Para além da Capitania de São Paulo, o modelo concentrador de terras foi encontrado por outros autores para diferentes localidades, e outros períodos que chegam ao final do século XIX. “Ao longo do Cordão Mapendipe-Pinaré [na Comarca de Ilhéus na Bahia - DOMR] foram identificados somente nove indivíduos (4,7%) que se enquadram na faixa dos grandes detentores de terra. Na faixa mediana, encontram-se 24 (12,5%), sendo que destes, somente 11 possuíam mais de 250 hectares. A maior parcela ficava na faixa dos pequenos detentores de terra, que englobava 160 indivíduos (83%), possuidores de datas de até 150 hectares. Cada um nessa faixa detinha em média 70,7 hectares e, em conjunto, controlavam menos da metade (48%) das terras de todo o cordão.” (DIAS, 2007, p. 94) Já em Capivary (RJ), os registros paroquiais realizados entre 1855 e 1857 “apontam para uma impressionante concentração fundiária. Considerando como grandes proprietários os declarantes de extensões de terra de dimensões maiores ou similares à área média de uma fazenda de café no Vale do Paraíba (400 a 800 há), percebemos que os declarantes de mais de 400 ha em Capivary detinham 75% da área total dos registros e que, se acrescermos a esta área as extensões menores declaradas por seus familiares, chegavam a controlar 88% dos terrenos [áreas - DOMR] registrados.” (MATTOS, 2009, p. 19), sendo esses grandes proprietários responsáveis por 15,17% dos registros.

Tabela 6 -
Distribuição das propriedades de acordo com faixas de tamanho - Bragança (1818)
Tabela 7 -
Distribuição das propriedades de acordo com faixas de tamanho - Mogi (1818)
Tabela 8 -
Distribuição das propriedades de acordo com faixas de tamanho - Jacareí (1818)

Entre as 530 propriedades arroladas em Bragança cerca de 45% correspondiam a terras de até 50 alqueires paulistas, com uma área média de 18,1 alqueires e que se apropriavam de tão somente 5,9% da área total declarada. Em contrapartida, as 5 maiores propriedades (0,9%), com áreas acima de 1000 alqueires, média de 2517 alqueires, respondiam por 17,2% das terras bragantinas, ou seja, a uma área de 12585 alqueires. Somadas àquelas as propriedades a partir de 500 alqueires, ao percentual acrescemos 18,2 pontos percentuais. Grande parte das propriedades estava nas faixas intermediárias de tamanho, que respondiam por parcela considerável de área e número, 42958,2 alqueires e 268 terras.

A menor propriedade tinha apenas 0,03 alqueires e a maior 7200 alqueires, ou seja, a maior propriedade era 240 mil vezes maior que a menor extensão de terras registrada. Essas propriedades eram também a menor e a maior propriedades encontradas se consideramos todas as localidades observadas. Essa grande diferença entre as propriedades reflete as distintas realidades de seus proprietários: enquanto os 0,03 alqueires pertenciam a Domingos da Silva, um negro forro de origem Mina que vivia de seus jornais, detinha direitos sobre a maior propriedade Jacinto Rodrigues, capitão-mor da vila.

Em Mogi das Cruzes, ao verificar o peso dos diferentes segmentos de área percebemos o predomínio de uma estrutura fundiária de pequenas propriedades, com o inventário de bens rústicos apontando 91,2% das terras com até 50 alqueires paulistas de extensão e outras 5,9% ocupando áreas entre 50 e 100 alqueires. A média calculada para o total das propriedades foi de 18 alqueires, sendo a mediana 7,5 e o tamanho de propriedade mais comumente encontrado, a moda, de apenas 2 alqueires, correspondente a um total de 49 propriedades (7,8% das 628 declarações com área).

Ainda que representem a maioria absoluta das propriedades, conjuntamente a área ocupada por esses pequenos terrenos de até 50 alqueires correspondia a 52,2% dos mais de 11 mil alqueires paulistas arrolados para a vila. As propriedades com 50 a 100 alqueires ocupavam 21,9% da área enquanto as propriedades acima de 100 alqueires, em número de 18 sendo a maior delas de 338,5 alqueires, consumiam praticamente 26% da extensão de Mogi.

A sua vez, com 83,2% de suas propriedades com tamanhos que não ultrapassavam os 50 alqueires paulistas respondendo conjuntamente por tão somente 15,2% da área total arrolada no município e outras seis grandes propriedades, não mais de 1% daquelas com dimensões encontradas, estendendo-se por mais de 38% de sua área, Jacareí apresenta uma concentração realmente forte no que tange à extensão das várias propriedades no interior de suas fronteiras. Merecem destaque também, corroborando tal concentração, aquelas glebas entre 100 e 500 alqueires paulistas, ocupantes de 36,1% da área jacareiense, ainda que não chegassem a 11% do número total das terras.

Note-se, todavia, que as cinco maiores propriedades de Jacareí, localizavam-se, na realidade, na freguesia de Paraibuna e representavam 6,7% das propriedades com áreas identificadas naquela localidade, restando apenas uma, dentre as 501 propriedades de Jacareí propriamente dita, com extensão acima de 1000 alqueires paulistas.

As menores propriedades encontradas em Jacareí/Paraibuna tinham cerca de 0,08 alqueires, valor abaixo da moda, calculada em apenas 2 alqueires (coincidente com a menor propriedade de Paraibuna) e da mediana que se situou em 8 alqueires. A média, dada a presença de terrenos extensos, alçou-se a 60 alqueires, com desvio padrão de 261,4.

Pertencia ao “reverendo padre” Valério de Alvarenga Ferreira e sua compa Jacinta Maria a maior propriedade, com 4050 alqueires paulistas, 11% da área total descrita em Jacareí, terras estas explicitamente dedicadas à plantação em larga escala do café, tendo aparecido em número de 111 os escravos arrolados no tombamento. O referido padre não apareceu nas listas nominativas de 1816, mas na década de 1820 chegou a ter ainda não ao menos 60 mil pés de café, cuja produção era vendida no Rio de Janeiro.

Senão todas, ao menos algumas propriedades eram realmente maiores em Paraibuna que em Jacareí, e a presença dessas grandes propriedades só era possível na existência de áreas disponíveis. De ocupação efetiva comparativamente recente, somente nas décadas finais do século XVIII buscou-se uma forma de povoar mais intensamente a região, que possuía, ainda, terras devolutas “suficientes para estabelecer uma boa povoação”. Em junho de 1773 o Capitão Geral de São Paulo, Morgado de Mateus, expediu ordem para que se povoasse a área da paragem chamada Santo Antônio da Barra do Paraibuna.

Podemos considerar que um grande número de pequenas propriedades é um estímulo à ampliação da produção de autoconsumo, necessária ao menos para o sustento da unidade familiar, visto que diminui a possibilidade de áreas não cultivadas dentro das propriedades. Por outro lado, consideradas as condições de produção extensivas da época, deveria haver dificuldades no próprio sustento da família (especialmente se mais numerosa) e menos excedentes gerados - excedentes eram necessários ainda que utilizado no escambo, para aquisição de gêneros obtidos necessariamente no mercado, a exemplo do sal.

Warren Dean (1977, apudRANGEL, 1998RANGEL, Armênio de Souza. Dilemas da Historiografia paulista: a repartição da riqueza no município de Taubaté no início do século XIX. Estudos Econômicos, v. 28, n.2, p. 351-368, 1998., p. 359) aponta que para uma família de seis pessoas prover adequadamente a sua subsistência seria necessária uma área de 40 ha, o equivalente a cerca de 16,5 alqueires paulistas.

Se por um lado alguns não detinham terrenos suficientes para realizar cultivos em volume considerável, a concentração das terras permitia a outros possuírem reservas em suas propriedades, ou seja, extensões de terras virgens. Decerto, mesmo na presença de grande contingente de mão-de-obra, as maiores propriedades não eram exploradas em sua totalidade. Em um momento em que a agropecuária, sabidamente, caracterizaav-se por seu caráter extensivo, itinerante e, na mairoria das vezes, destruidor da qualidade solo, essas áreas ainda não exploradas das propriedades eram essenciais para o avanço da produção e ainda poderiam fornecer insumos básicos como pasto ou madeira.

Para além das necessidades características da tecnologia produtiva Oitocentista a concentração do tamanho das propriedades e, especialmente, a presença de glebas relativamente extensas e/ou ocupantes de menores áreas estavam mais diretamente vinculadas ao momento e consequentemente à idade do povoamento e ocupação produtiva das localidades cotejadas e ao seu posicionamento geográfico dentro da direção da expansão territorial paulista do que propriamente ao grau de mercantilização verificado para as economias locais6 6 Ainda que elas não tenham apresentado características extremamente díspares, quando da sua análise no que respeita ao tipo de produção e à parcela dela levada ao mercado (cf. seção anterior, em especial o ano 1816, mais próximo ao tombamento). ; mesmo tendo a historiografia recorrentemente apontado que “Os indicadores de concentração da terra não deixam dúvidas quanto à desigualdade na apropriação, mas ela era diferenciada segunda a atividade econômica principal da vila e dos donos da terra.” (GUTIÉRREZ, 2001GUTIÉRREZ, Horacio. A Estrutura fundiária no Paraná antes da imigração. Estudos de História, Franca, v. 8, n.2, p. 209-231, 2001., p. 209)

As novas fronteiras (ou seja, o avanço da ocupação do território paulista) abririam possibilidades de aquisição de propriedades de tamanhos variados. É dizer, regiões onde a ocupação era recente tinham vastas áreas ainda não ocupadas o que permitia uma ocupação inicial, por sesmaria ou posse, de pequenas a grandes propriedades a depender dos interesses, das possibilidades econômicas e capacidade física para ocupação da terra por parte dos ocupantes.7 7 Apesar da legislação vigente, em que a doação de sesmarias constitui o regime jurídico básico acerca da terra (o regime de sesmarias foi extinto em 1822 até que fosse regulamentada uma nova lei de legitimação de terras no Brasil, o que só ocorreu em 1850), fato é que a posse de partes de terras, independente do seu reconhecimento como sesmaria, tornou-se recorrente. A posse pura e simples passou a aparecer em grande medida e acabou por fugir ao controle das autoridades passando, naturalmente, a ser um caminho presumível de fixação e direito de exploração das novas terras e, mesmo as sesmarias, muitas das vezes, eram requeridas mediante alegação de posse anterior. “Apoderar-se de terras devolutas e cultivá-las tornou-se cousa corrente entre os nossos colonizadores, e tais proporções essa prática atingiu que pôde, com o correr dos anos, vir a ser considerada como modo legítimo de aquisição do domínio, paralelamente a princípio, e, após, em substituição ao nosso tão desvirtuado regime das sesmarias.” (LIMA, 2002, p. 51)

Na prática, o fato é que todo o processo de ocupação do território brasileiro “[...] pressupôs em tese a institucionalização de um documento de propriedade - as sesmarias - sem comprovação alguma em relação à medição e demarcação das terras e da existência do cultivo, exigências basilares da própria lei.” (MOTTA, 2004MOTTA, Márcia M. M. Sesmarias e o mito da primeira ocupação. Justiça e história, v. 4, n. 7, p. 61-83, 2004.) Sesmarias ou posses, as propriedades rurais não tinham demarcações precisas “são novas fronteiras de então, não têm divisas reais, elas existem até onde o poder do dono, ou do que se diz dono, pode alcançar.” (MESSIAS, 2003MESSIAS, Rosane C. M. O cultivo de café nas bocas de sertão paulista: mercado interno e mão-de-obra no período de transição - 1830-1888. São Paulo: Editora da Unesp, 2003. , p. 66)

Assim, a concentração do tamanho dos terrenos, presente em todas as localidades em estudo tende a ser mais acentuada quanto mais recente a ocupação da região considerada, pois a “pouca idade” estava diretamente ligada à existência de terras disponíveis e, por conseguinte, à possibilidade de aquisição de maneira primária de maiores áreas, implicando em possibilidade de um máximo mais elevado na distribuição (claramente o caso do território de Paraibuna, dentro de Jacareí). Assim como estava essa possibilidade ligada ao caminho seguido pelo avanço populacional: a presença de posses e sesmarias deveria indicar a ocupação relativamente recente do solo.8 8 Em estudo sobre o vale do Ribeira, Agnaldo Valentin (2006) verificou a presença de áreas com elevado número de propriedades e predominância de glebas adquiridas por compra e herança, características das quais se utilizou para referência à “antiguidade da ocupação daqueles territórios”. Da mesma maneira, observou a mescla dessa forma de apropriação com posse, e áreas com predomínio dessas últimas. A partir dessas características inferiu o sentido da expansão agrícola na região, centrado na produção do arroz.

Mas, mais do que estabelecer a possibilidade da presença de terras passíveis de serem tomadas por posse ou sesmaria, a antiguidade da ocupação das terras implicava em sucessivas fragmentações dos terrenos por herança ou transações comerciais, sendo esperada, passadas sucessivas gerações desde a ocupação original do território considerado, uma redução nas extensões verificadas para as propriedades, o que, para nosso estudo fundiário pontual, datado em 1818, configura-se na presença majoritária das referidas pequenas propriedades. Observação válida para todas as localidades.

Eram poucas as possibilidades de áreas devolutas sendo ocupadas dentro do território paulista nas décadas finais do Setecentos e primeiras décadas do século subsequente, especialmente daquele território aqui considerado - entre essas possibilidades encontramos a região limítrofe ao sul das Minas Gerais a Serra do Selado em Nazaré e do Morro do Lopo em Bragança - ainda que conhecido desde antigas expedições que por ali transitaram no Seiscentos, seu povoamento efetivo data dos anos finais do século XVIII - onde encontramos algumas das pouquíssimas sesmarias arroladas. E a parte que segue para o litoral norte, situada ao sul da área hoje correspondente aos municípios de Biritiba Mirim e Salesópolis, componentes da nossa vila de Mogi das Cruzes e seu termo, que a sua vez são limítrofes à área onde verificamos a expansão da freguesia de Paraibuna, cujos registros apontam áreas de sertão “na estrada de Caraguatatuba”, onde encontramos quantidade de posses comparativamente elevada e ainda algumas sesmarias.

Assim, Mogi das Cruzes, localidade de ocupação mais antiga, tendo sido erigida vila em 1611, e situada em área circundada por outros importantes núcleos populacionais apresenta elevado número de propriedades, em sua quase totalidade não ultrapassando os 50 alqueires paulistas, e o menor índice de concentração, mesmo tendo parte de seu território ocupado por várias posses. Essas posses estavam em sua maioria na área de Mogi mais próxima ao litoral, ou seja, fora das grandes rotas de comércio dos principais caminhos que cortavam a Capitania e última parte do território da vila a ser ocupada, com povoado efetivamente erigido a partir de 1820.

A sua vez, o maior índice de Gini foi encontrado para Jacareí, onde grande parte do território (correspondente a Paraibuna) havia sido efetivamente ocupado e as primeiras sesmarias doadas nas décadas finais do século XVIII, tendo as posses ocupado lugar de destaque naquele povoamento.

A forma de aquisição de propriedades predominante em todas as localidades foi a compra, sendo terrenos em todas as faixas de extensão comercializados em todas as três localidades e seus termos.

Embora houvesse terras passíveis de serem ocupadas, em alguma medida, variável com o passar do tempo e o local, e o acesso à terra fosse aparentemente fácil, pois a terra em si pouco custava aos que a recebiam em doação de sesmaria ou dela tomavam posse, certo é que, no período colonial, somente uma minoria se beneficiou do sistema de sesmarial. “A propriedade de terras no Brasil escravista não pode ser considerada com latitude indefinida. Cada complexo regional ou local engendrava seu próprio mercado e quase estabelecia regras próprias para seu funcionamento.” (MATTOS, 2009MATTOS, Hebe M. Ao Sul da História. São Paulo: Editora FGV, 2009. , p. 90), como é o caso das localidades de Mogi, Jacareí e Bragança.

E uma das características desses mercados foi o aparecimento de transações de compras e vendas das posses, assim como de partes de sesmarias, ao que parece, multiplicadas ao longo dos anos. Paralelamente às formas tradicionais de acesso à propriedade rural existia um mercado fundiário que independia da legislação corrente e parece ter sido incorporado por ela na medida em que é possível encontrar entre os pedidos de sesmarias para as região estudada alguns com menção à compra da gleba requerida, feita anteriormente pelo requisitante.

Quem possuía poucos recursos comprava uma pequena parte de terras, os detentores de maiores cabedais ou mais fácil acesso ao crédito adquiriam grandes fazendas - certamente a capacidade produtiva e a consequente inserção no mercado de diferentes gêneros eram determinantes das distintas possibilidades enquanto demandantes de terras.9 9 Tratando das freguesias de Boipeba e Cairu na Bahia, menciona Marcelo Dias “[...] que o mercado de terras, movimentava negócios envolvendo, na maior parte, pequenas propriedades, As maiores posses permaneceram à margem do mercado de terras e, nestas condições, a expansão de uma unidade produtiva, nos moldes do sistema agrário extensivo, requeria a compra de pequenas datas contíguas ou, pelo menos, vizinhas umas às outras.” (DIAS, 2007, p. 101)

Como pode ser observado na Tabela 9, em Bragança, nos idos de 1818 a forma primordial de acesso à terra havia sido a compra, sendo 73,8% o percentual daquelas terras possuídas por esse meio, entre as 527 propriedades que apresentaram a forma de aquisição em sua descrição. Enquanto algumas propriedades assim adquiridas chegavam a 1800 alqueires, a menor propriedade era de apenas 0,06 alqueires (pertencia a Escolástica Pinheira que a comprou de Francisco Cardozo), bastante reduzida.

Tabela 9 -
Formas de aquisição das propriedades - Bragança, Mogi, Jacareí (1818)

Pudemos identificar no inventário de bens rústicos 635 propriedades com forma de aquisição explicitada para Mogi das Cruzes com sua freguesia de Santa Isabel; eram 606 glebas na própria vila e 29 na freguesia, sendo que para oito delas a área não foi arrolada. Desconsiderando aquelas propriedades cuja área não pôde ser identificada, pouco menos de 68% das propriedades foram adquiridas com recurso ao mercado fundiário, que abarcou 93,3% da extensão total mogiana. As posses foram a segunda maneira mais considerável de se ascender à condição de senhor de terras rurais tendo sido encontrada em 18,3% das declarações, percentual cinco pontos superior àquele calculado para os terrenos herdados (13,1%). Tiveram representação diminuta as demais maneiras de apropriação: uma gleba apontada como “patrimônio” e duas propriedades doadas, sendo identificada uma como esmola - 0,120 alqueires paulistas no bairro da Capela pertencentes a Jacinto da Silva -, e outra como dádiva - Joaquim Joze de Santana possuía 15 alqueires nessa condição.

Em Jacareí com seu distrito de Paraibuna ainda que houvesse terras a serem ocupadas, com possibilidades de requisição de sesmarias, nota-se de imediato o grande predomínio das compras entre as formas de aquisição das propriedades: foram 79% das propriedades e 84,1% da área total descrita no inventário de bens rústicos. Desconsiderada a freguesia os percentuais alçam-se, respectivamente, a 83,5% e 86,4%; enquanto o número paraibunense de terrenos adquiridos por compra foi de 37 propriedades, 49,3% das terras que conjuntamente conformavam uma área de 14411,500 alqueires paulistas, 81,8% do total arrolado. A sua vez, os 9,9% correspondentes à participação das posses em Jacareí/Paraibuna atinge a cifra de 40% em Paraibuna e de apenas 5,4% em Jacareí propriamente.

Desta maneira, verificamos que em Paraibuna, território com grandes áreas ainda devolutas, parcela bastante elevada das propriedades havia sido adquirida por posse, sendo que essas propriedades de menor extensão comparativamente àquelas negociadas, ocupavam proporcionalmente parcela menor das áreas povoadas na freguesia, enquanto na vila de Jacareí era relativamente pequena a quantidade de terras assim possuídas, sobressaindo-se sobremaneira o mercado fundiário.

Para além de compra e posse, as heranças cobriam 3,5% do território em tela com 10,2% das propriedades, percentual relacionado ao tamanho médio dos imóveis herdados que não ultrapassou os 720 alqueires paulistas, como área média de 20,8. Assim, em Jacareí temos, de maneira quase absoluta a presença de compras seguida por heranças e depois posses como as principais formas de aquisição e em Paraibuna compras, posses (com percentual comparativamente próximo às compras) e heranças, respectivamente.

Fica claro então nenhuma localidade fugiu ao mercado fundiário, como forma preponderante de acesso à terra. Apenas se observamos Paraibuna separadamente encontramos localidade fora desta característica mais marcante para o território considerado, uma vez que 49,3% das 75 propriedades da localidade foram adquiridas com recurso ao mercado fundiário e outros 40% por posse, o que facilmente se entende posto termos discutido anteriormente a questão da idade da ocupação do território. Na realidade, é bem provável que com o passar do tempo “Sua exploração e continuidade de uso acabavam por legalizar, na prática e mesmo em direito, a propriedade particular da mesma” (MARCÍLIO, 2006MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara, terra e população: estudo de demografia histórica e da história social de Ubatuba. São Paulo: Edusp , 2006., p. 77), verificada na forte presença de compras nas demais localidades.

A presença marcante do mercado fundiário pode ser um indicativo de que os próprios donos de terras “[...] construíram seus patrimônios, de forma gradativa, sem grande auxílio de seus pais, já que poucos receberam terras por herança”, (SCOTT, 1987SCOTT, Ana Silvia V. Dinâmica familiar da elite paulista (1765-1836): estudo diferencial de demografia histórica das famílias dos proprietários de grandes escravarias do Vale do Paraíba e região da capital de São Paulo. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1987., p. 229), ainda que teoricamente todos os filhos herdassem as terras dos pais, possivelmente apenas alguns deles nelas permaneciam e exploravam. “Por outro lado, percebe-se que representava um valor cobiçado, pois a compra em si, demonstra que havia mais interessados do que terras disponíveis [...]”. (SCOTT, 1987SCOTT, Ana Silvia V. Dinâmica familiar da elite paulista (1765-1836): estudo diferencial de demografia histórica das famílias dos proprietários de grandes escravarias do Vale do Paraíba e região da capital de São Paulo. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1987., p. 229)

É consenso que, apesar de ter algum valor de mercado, em termos monetários a terra valia pouco - especialmente frente à ausência de uma atividade de veio mercantil ligada ao comércio exterior à colônia, que tendia a valorizá-la, e como sabido presente pontualmente no contexto do entorno paulistano considerado, só vindo a aparecer de forma marcante na Jacareí da década de 1820 -, “[...] numa região de economia camponesa dentro do sistema agrícola da roça itinerante se [sic!] subsistência, a propriedade da terra tem valor intrínseco e contábil relativo.” (MARCÍLIO, 2006MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara, terra e população: estudo de demografia histórica e da história social de Ubatuba. São Paulo: Edusp , 2006., p. 81). A terra, obviamente, não deixa de ser um fator básico em uma economia de alicerce agropecuário.

A identificação do mercado fundiário como principal meio de acesso à terra tem sido recorrente nos trabalhos que tomam por base o tombamento de bens rústicos, considerando-se distintas regiões da capitania paulista (assim como para o Paraná, então a ela submetido). Entre eles, Nozoe (2008NOZOE, N. A apropriação de terras rurais na Capitania de São Paulo. Tese (Livre Docência). Faculdade de Economia e Adminstração. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.) apresenta tabela bastante completa, para as localidades da área paulista da Capitania para as quais existe tal registro, também subdivididas em regiões. Nela podemos observar compras como meio primordial de acesso à propriedade rural para mais de 70% das localidades da Capitania de São Paulo.

Eventualmente, adquirir uma propriedade já constituída poderia ser mais interessante que empenhar-se em desbravar nova área ou a simples ausência de terras devolutas e/ou apropriáveis (em não considerando a possibilidade de aquisição de terras via divisão de espólio) tornava necessário dirigir-se ao mercado fundiário como meio de acesso à terra ou de ampliação das glebas já adquiridas.

Recorrer ao mercado com sucesso implicaria em coincidência de interesses entre compradores e vendedores, o que muitas das vezes não deveria ocorrer, mormente em se tratando de áreas mais específicas, quais sejam, aquelas anexas aos terrenos já possuídos.

O simples fato de ser um indivíduo aquinhoado não implicaria em plena facilidade de acesso a grandes extensões, especialmente em áreas de ocupação mais antiga, onde o território estava mais fracionado. Diversos aspectos poderiam estar envolvidos no interesse e no processo de comercialização dos terrenos rurais por parte de ofertantes e demandantes. Entre eles, possivelmente, alguns ligados ao desejo de manutenção da propriedade ou ausência de expectativa quanto ao apossamento de outra propriedade: a venda poderia não ser assim tão bom negócio, posta a dificuldade em se conseguir bons novos terrenos cultiváveis.

Gutiérrez (2001GUTIÉRREZ, Horacio. A Estrutura fundiária no Paraná antes da imigração. Estudos de História, Franca, v. 8, n.2, p. 209-231, 2001., p. 228), utilizando-se igualmente do inventário de bens rústicos para estudar o Paraná, aponta que o mercado de terras “Foi talvez o canal encontrado por quem não tinha os meios nem o acesso necessário para requerer sesmarias e, de quem tinha os meios, a forma encontrada de angariar um capital loteando a sesmaria recebida graciosamente e solicitando outra em seguida.”

Podemos acrescer a estas proposições, considerações que remetem ao já conhecido fato de que grande parte das sesmarias das localidades em tela foram distribuídas ainda no Seiscentos ou Setecentos, sendo legadas em parte menores a distintos herdeiros que nem sempre mantinham a propriedade desses pedaços de terra vendendo-as, inclusive, a outros herdeiros. A exemplo podemos citar o caso do bragantino Joze Luis de Morais cuja propriedade em parte era possuída por compra que fez aos seus irmãos.

Considerações finais

Desde o início de seu povoamento e de maneira já estruturada no início do Oitocentos, as localidades a compor a região estudada foram agrícolas, produzindo produtos típicos de subsistência, visando ao autoconsumo e/ou o mercado regional. Para além do mercado regional, algumas dessas áreas viram sua economia diversificar-se ao longo do período estudado (1803-1830), com a incorporação de atividades voltadas a mercados mais distantes ou ao mercado externo.

Observamos a manutenção de uma estrutura econômica de base rural fincada na agricultura de gêneros de subsistência, cuja característica mais marcante foi o grande espraiamento do milho, em muito unido ao feijão. Em alguns casos milho e feijão estavam associados a outros diferentes cultivos e/ou criações - em Bragança foi expressiva a conjugação milho mais feijão mais porcos e em Mogi, milho e feijão unidos ao algodão chegaram a ser traço majoritário em alguns momentos.

O montante principal dessa produção era utilizado na satisfação de necessidades próprias dos fogos, com parcela de seu volume respondendo por uma agricultura mercantil de subsistência, com fortes vínculos com a cidade de São Paulo, para onde se direcionava a maior variedade dos cultivares locais e entreposto intermediário de bens destinados a outros locais, inclusive o Rio de Janeiro. E ainda, com destaque de um setor de atividade econômica e/ou outro produto a ele vinculado, levando ao que podemos considerar uma certa especialização, que foi destacada nas ocupações e/ou na identificação dos diversos cultivares a compor as produções locais.

Essa especialização não implica na produção de um único produto, mas em havermos observado a existência de alguma atividade e/ou gênero produzido responsável por ocupar parcela considerável dos domicílios e que, em proporções significativas, ultrapassava o âmbito local ou o autoconsumo. Em sendo padronizada a base produtiva para as localidades, a especialização era responsável por uma diferenciação que se dava, especialmente, em suas relações comerciais, importantes na geração de renda para as localidades.

A circulação de bens foi bastante ativa e refletiu mercado para produtos básicos, existente a partir das localidades estudadas. A dinamicidade das atividades econômicas realizadas com vistas ao mercado era a força motriz da economia e os víveres (feijão e milho) eram bens indispensáveis para o funcionamento da economia regional.

A composição dos fogos por setores de atividade econômica aponta, como esperado, para um sempre majoritário setor agricultura seguido ainda que, a certa distância, pelo artesanato que, a sua vez, estava associado à grande presença de tecelões e afins, justificando a presença de algodoeiros nas três localidades em tela.

O artesanato comercial do algodão foi o elemento diferenciador de Mogi das Cruzes que, dessa atividade introduzida no Setecentos ainda se viu um veio comercial nos primeiros anos do Oitocentos, mas que passou por uma redução na presença nos fogos e, por conseguinte, no volume total produzido, sem implicar na redução de sua participação no Produto da vila, apontando para um maior consumo local de sua produção, assim como deve ter ocorrido com o milho e o feijão.

Assim, Mogi onde somente em momento posterior ao nosso estudo penetraram com alguma significância os cafezais, passou por um momento de relativa calmaria na economia com a retração da venda do algodão e seus derivados, enquanto Bragança e Jacareí apresentavam dinamização da economia por via comercial.

Bragança expandiu o comércio do toucinho e ampliou sua capacidade de venda com o aumento do número de casas comerciais e fogos ligados exclusivamente ao setor comércio, que se multiplicaram ao longo dos anos. Para o toucinho, os volumes totais levados ao mercado, assim como a volume de venda por alguns produtores foram visivelmente crescentes ao longo do tempo.

E, ao final dos anos 1820 já chegavam ao Rio de Janeiro os resultados das plantações de café jacareienses, que se expandiram rapidamente pelos fogos (de 4 plantações em 1816 para 109 plantações em 1829). Ao penetrar na localidade, paralelamente aos cultivos anteriormente levados a cabo, o café apareceu como importante partícipe do valor do Produto local, ampliando seu valor e suprimindo aos poucos a importância anterior do milho e feijão.

A expansão da cafeicultura por Jacareí decerto contou a possibilidade de posse de novas terras, especialmente na freguesia de Paraibuna, área de ocupação efetiva comparativamente recente e que estava em posição privilegiada no caminho do Rio de Janeiro de onde vinha se expandido a cultura cafeeira pelo Vale do Paraíba.

Em Jacareí com sua freguesia de Paraibuna, encontramos os maiores terrenos e, por conseguinte, a maior concentração da propriedade fundiária. A concentração de terras era característica marcante das localidades estudadas, e essa característica em boa medida independia da dinâmica de suas economias e das consequentes possibilidades de acesso ao mercado de terras que estas dinâmicas poderiam gerar.

Mais do que serem determinadas pelas atividades econômicas, o tamanho das terras ligavam-se à antiguidade de ocupação do solo, a concentração era maior quanto mais recente a ocupação territorial: a “pouca idade” apontava para a disponibilidade de apossamento primário de maiores terrenos e a “maior idade” levava a maior fragmentação por sucessivas transações comerciais ou partilhas por inventário ao longo do tempo.

Assim, Mogi das Cruzes, com ocupação efetiva conhecida desde 1611, apresenta elevado número de propriedades e em sua maioria com até 50 alqueires e, apesar de elevado, o menor índice de concentração fundiária entre as vilas em tela.

O padrão foi encontrarmos para as três localidades um grande número de pequenas propriedades, algumas realmente diminutas, cujos proprietários decerto não participavam da dinâmica comercial regional que anteriormente enfatizamos; por outro lado a concentração das terras permitia a outros possuírem reservas em suas propriedades, eventualmente separadas e levadas ao mercado.

O mercado de fundiário era bastante ativo e a compra foi a principal forma de acesso à terra em Bragança, Mogi e Jacareí. Terrenos em todas as faixas de extensão foram adquiridos via mercado. Quem possuía poucos recursos comprava uma pequena parte de terras, os detentores de maiores cabedais adquiriam grandes fazendas - certamente a capacidade produtiva e a consequente inserção no mercado de diferentes gêneros eram determinantes das distintas possibilidades enquanto demandantes de terras.

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  • APESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Bragança Paulista: anos diversos (rolos 20 a 30).
  • APESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Mogi das Cruzes: anos diversos (rolos 126 a 132).
  • APESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Jacareí: anos diversos (rolos 97 a 101 - somente resumos) .
  • APESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Tombamento de bens rústicos.
  • APESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Bragança Paulista: 1818 (C09868 - Relação dos habitantes que possuem seus terrenos na vila Nova de Bragança).
  • APESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Mogi das Cruzes: 1818 (C09868 - Mapa das terras que possuem os habitantes da Vila de Mogi das Cruzes).
  • APESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo: Jacareí: (C09669 - Relação dos habitantes do termo da vila de Jacareí que possuem terras).

Notas

  • 1
    Entendemos aqui e ao longo de todo o texto o mercado a partir da definição econômica básica do termo: mercado é um grupo de compradores e vendedores de determinado(s) bem(s) ou serviço(s). Assim, ao definir mercados, consideramos o mercado fundiário como aquele em que estão sendo negociadas (compradas e vendidas) terras. Consideramos mercado/comércio local como aquele que envolve uma mesma vila e sua freguesia, o mercado/comércio regional como aquele realizado entre vilas com câmaras próprias e entre capitanias/províncias, e o mercado/comércio externo/internacional como aquele direcionado para fora do Brasil. O mesmo entendimento de local, regional e externo é utilizado para a economia. Note-se que, para além do mercado, a economia engloba todo o processo de produção, consumo e geração de renda.
  • 2
    Avançar nesse tema foge ao escopo do nosso texto, mas vale notar que são várias as possibilidades de análise e classificação para os comerciantes do passado brasileiro. Ver, entre outros, Zemella (1990ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2a. ed. São Paulo: Hucitec /Edusp, 1990.), Chaves (1999CHAVES, Cláudia Maria das G. Perfeitos negociantes: mercadores das minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999.), Fragoso (1998FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.), Furtado (2006FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e o comércio das minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006. ).
  • 3
    Foram promovidas melhorias nas redes de transporte paulistas, com o estabelecimento de uma melhor estrutura portuária e dos caminhos de ligação, preparando uma infraestrutura que facilitaria a venda de diversos produtos, não só para exportação, mas também de circulação no mercado regional.
  • 4
    Esse processo de integração foi proposto originalmente por Maria Odila da Silva Dias, em artigo clássico publicado em 1972. Em “A Interiorização da Metrópole”, a autora apresenta um enfoque abrangente do passado colonial, que de forma inovadora passa a ser inserido na dinâmica político-econômica do império ultramarino português e, dentro do que nos interessa aqui, aponta para a interiorização da metrópole e o enraizamento dos interesses mercantis portugueses no Centro-Sul a partir da praça do Rio, importante entreposto comercial, a “ressaltar traços já bem aparentes na segunda metade do século XVIII e tendiam a acentuar o predomínio do comerciante.”
  • 5
    Como adiantado, a concentração fundiária que encontramos não foi exclusiva das localidades estudadas. Entre outros autores que se depararam com concentração fundiária, temos Rangel (1998RANGEL, Armênio de Souza. Dilemas da Historiografia paulista: a repartição da riqueza no município de Taubaté no início do século XIX. Estudos Econômicos, v. 28, n.2, p. 351-368, 1998., p. 359), que considerando especificamente o município de Taubaté no Vale do Paraíba paulista, aponta que “Cerca de 66,3% dos proprietários, que possuíam imóveis de até 48,4 ha, com uma área média de 12,4ha, apropriavam-se de 4,7% da área total. Em contrapartida, os 34 maiores proprietários, com imóveis acima de 500 há, controlavam 72,5% da área total. O índice de concentração de Gini atingia 0,86.” Para o Paraná em 1817, tratando especialmente da região de São José dos Pinhais as observações de Cacilda Machado mostram que: [...] 115 propriedades com até 100 ha compunham 56% do total de 205 propriedades e ocupavam pouco menos de 4% da área total. Já as propriedades com mais de 4.000 ha (não foram registradas propriedades com mais de 5.000 ha) eram apenas quatro (perfazendo cerca de 2% do total das propriedades), ocupando 70% da área total na freguesia. (MACHADO, 2008MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. , p. 64). Para além da Capitania de São Paulo, o modelo concentrador de terras foi encontrado por outros autores para diferentes localidades, e outros períodos que chegam ao final do século XIX. “Ao longo do Cordão Mapendipe-Pinaré [na Comarca de Ilhéus na Bahia - DOMR] foram identificados somente nove indivíduos (4,7%) que se enquadram na faixa dos grandes detentores de terra. Na faixa mediana, encontram-se 24 (12,5%), sendo que destes, somente 11 possuíam mais de 250 hectares. A maior parcela ficava na faixa dos pequenos detentores de terra, que englobava 160 indivíduos (83%), possuidores de datas de até 150 hectares. Cada um nessa faixa detinha em média 70,7 hectares e, em conjunto, controlavam menos da metade (48%) das terras de todo o cordão.” (DIAS, 2007DIAS, Marcelo Henrique. Estruturas fundiárias nas freguesias de Cairu e Boipeba na Comarca de Ilhéus (BA), 1786-1800. In: GUIMARÂES, Elione S.; MOTTA, Márcia M. M. (Orgs.) Campos em disputa: história agrária e companhia. São Paulo: Annablume ; Núcleo de Referência Agrária, 2007, p. 87-112., p. 94) Já em Capivary (RJ), os registros paroquiais realizados entre 1855 e 1857 “apontam para uma impressionante concentração fundiária. Considerando como grandes proprietários os declarantes de extensões de terra de dimensões maiores ou similares à área média de uma fazenda de café no Vale do Paraíba (400 a 800 há), percebemos que os declarantes de mais de 400 ha em Capivary detinham 75% da área total dos registros e que, se acrescermos a esta área as extensões menores declaradas por seus familiares, chegavam a controlar 88% dos terrenos [áreas - DOMR] registrados.” (MATTOS, 2009MATTOS, Hebe M. Ao Sul da História. São Paulo: Editora FGV, 2009. , p. 19), sendo esses grandes proprietários responsáveis por 15,17% dos registros.
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    Ainda que elas não tenham apresentado características extremamente díspares, quando da sua análise no que respeita ao tipo de produção e à parcela dela levada ao mercado (cf. seção anterior, em especial o ano 1816, mais próximo ao tombamento).
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    Apesar da legislação vigente, em que a doação de sesmarias constitui o regime jurídico básico acerca da terra (o regime de sesmarias foi extinto em 1822 até que fosse regulamentada uma nova lei de legitimação de terras no Brasil, o que só ocorreu em 1850), fato é que a posse de partes de terras, independente do seu reconhecimento como sesmaria, tornou-se recorrente. A posse pura e simples passou a aparecer em grande medida e acabou por fugir ao controle das autoridades passando, naturalmente, a ser um caminho presumível de fixação e direito de exploração das novas terras e, mesmo as sesmarias, muitas das vezes, eram requeridas mediante alegação de posse anterior. “Apoderar-se de terras devolutas e cultivá-las tornou-se cousa corrente entre os nossos colonizadores, e tais proporções essa prática atingiu que pôde, com o correr dos anos, vir a ser considerada como modo legítimo de aquisição do domínio, paralelamente a princípio, e, após, em substituição ao nosso tão desvirtuado regime das sesmarias.” (LIMA, 2002LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. Goiânia: UFG, 2002., p. 51)
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    Em estudo sobre o vale do Ribeira, Agnaldo Valentin (2006VALENTIN, Agnaldo. Uma civilização do arroz: agricultura, comércio e subsistência no Vale do Ribeira (1800-1880). Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. ) verificou a presença de áreas com elevado número de propriedades e predominância de glebas adquiridas por compra e herança, características das quais se utilizou para referência à “antiguidade da ocupação daqueles territórios”. Da mesma maneira, observou a mescla dessa forma de apropriação com posse, e áreas com predomínio dessas últimas. A partir dessas características inferiu o sentido da expansão agrícola na região, centrado na produção do arroz.
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    Tratando das freguesias de Boipeba e Cairu na Bahia, menciona Marcelo Dias “[...] que o mercado de terras, movimentava negócios envolvendo, na maior parte, pequenas propriedades, As maiores posses permaneceram à margem do mercado de terras e, nestas condições, a expansão de uma unidade produtiva, nos moldes do sistema agrário extensivo, requeria a compra de pequenas datas contíguas ou, pelo menos, vizinhas umas às outras.” (DIAS, 2007DIAS, Marcelo Henrique. Estruturas fundiárias nas freguesias de Cairu e Boipeba na Comarca de Ilhéus (BA), 1786-1800. In: GUIMARÂES, Elione S.; MOTTA, Márcia M. M. (Orgs.) Campos em disputa: história agrária e companhia. São Paulo: Annablume ; Núcleo de Referência Agrária, 2007, p. 87-112., p. 101)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2019
  • Aceito
    15 Mar 2020
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