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Em nome do pai, mas não do patriarca: ensaio sobre os limites da imparcialidade na obra de Varnhagen

In the name of the father, not in the patriarch’s: essay on the limits of impartiality in the Varnhagen’s works

Resumos

O objetivo deste artigo é o de analisar os limites da imparcialidade na historiografia brasileira do século XIX. O estudo concentra-se na obra do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, particularmente, no modo como ele trata de dois personagens: seu próprio pai e José Bonifácio, considerado por uma determinada produção historiográfica o patriarca da independência do Brasil.

Francisco Adolfo de Varnhagen; historiografia; escrita da história


The purpose of this paper is to analyse the limits of impartiality in Brazilian historiography in the XIXth Century. This study emphasizes the works of historian Francisco Adolfo de Varnhagen, specifically the way he deals with two characters: his own father and José Bonifácio, seen by some historiographic works as the patriarch of Brazil's independence.

Francisco Adolfo de Varnhagen; historiography; history writing


HISTÓRIA-PERSPECTIVAS

Em nome do pai, mas não do patriarca: ensaio sobre os limites da imparcialidade na obra de Varnhagen

In the name of the father, not in the patriarch’s: essay on the limits of impartiality in the Varnhagen’s works

Temístocles Cezar* * Departamento de História –UFRGS CEP 90430-160. e-mail: t.cezar@ufrgs.br

RESUMO

O objetivo deste artigo é o de analisar os limites da imparcialidade na historiografia brasileira do século XIX. O estudo concentra-se na obra do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, particularmente, no modo como ele trata de dois personagens: seu próprio pai e José Bonifácio, considerado por uma determinada produção historiográfica o patriarca da independência do Brasil.

Palavras-chave: Francisco Adolfo de Varnhagen; historiografia; escrita da história.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyse the limits of impartiality in Brazilian historiography in the XIXth Century. This study emphasizes the works of historian Francisco Adolfo de Varnhagen, specifically the way he deals with two characters: his own father and José Bonifácio, seen by some historiographic works as the patriarch of Brazil's independence.

Keywords: Francisco Adolfo de Varnhagen; historiography; history writing.

INTRODUÇÃO

"Não é fácil lidar cientificamente com os

sentimentos".

Sigmund Freud1 1 FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p.10.

Friedrich Ludwig Wilhelm de Varnhagen é o pai. José Bonifácio de Andrade e Silva é o patriarca. Um é o pai do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878). O outro é o patriarca da independência brasileira, pelo menos para uma certa produção historiográfica que se inicia ainda no século XIX. Ambos são personagens em tramas históricas urdidas pela pena de Varnhagen. Nos dois casos estão expressos os limites da imparcialidade de um historiador, questão, segundo Hannah Arendt, decisiva no século XIX para toda historiografia que procurava se afastar da poesia e da lenda, e que, no entanto, era difícil de se reconhecer.2 2 ARENDT, Hannah. The concept of history. Ancien and modern. Between pas and future. Six exercises in political thought, London, Faber and Faber, 1961, p.51.

Este ensaio é uma tentativa de reconhecer e compreender a questão da imparcialidade presente na obra de Varnhagen – por exemplo, suas figurações gêmeas (a idéia de verdade e os argumentos em torno da objetividade e da neutralidade), seus efeitos ao longo de uma narrativa (indivíduos descritos a partir de supostos critérios de plausibilidade), suas representações antagônicas (a parcialidade, a subjetividade) –, e sua recepção por alguns historiadores brasileiros.3 3 Meu objetivo não é o de fazer um estudo de psico-história, mas apenas de observar como certos aspectos da obra de Varnhagen estão marcados pela sua relação com a figura paterna. Sobre as relações entre história e psicanálise, ver GAY, Peter. Freud for historians. Oxford: Oxford University, 1985, especialmente, p.211-212.

EM NOME DO PAI

"I am thy father's spirit.

[ [ Remember me."

Shakespeare, Hamlet, I,5

Em carta remetida de Viena, datada de 1° de março de 1873, a José Carlos Rodrigues, então redator da revista O novo mundo, publicada em Nova York, Francisco Adolfo de Varnhagen comenta:

Me occorreu que talvez não possua V. Sª nessa grande cidade nenhum exemplar da minha Historia Geral do Brazil, em cujo 2° vol. dedico uma secção – a 53ª – aos serviços de meu pai no Ipanema, que talvez V. Sª deseje conhecer. – Lembrei-me, pois, de enviar a V. Sª, por emprestimo, as folhas adjunctas (já preparadas para as addições da 2ª edição) que contém essa secção; [ ]. – Devo aqui accrescentar que em 1858 se gravou por Caquet em Pariz uma medalha de bronze, com a effigie de meu pai e a inscripção – Varnhagen Restaurador do Ipanema – à roda, e no verso – "Ao dia 1° de Novembro de 1818" etc.4 4 VARNHAGEN, F. A. de. Correspondência ativa. coligida e anotada por Clado Ribeiro Lessa. Rio de Janeiro: INL, MEC, 1961, p.395-396.

Eis um dos exemplos, certamente um dos mais tocantes, que ilustra os limites da imparcialidade na obra de Varnhagen. Ele analisa a importância das minas de ferro para a nação, ou sobretudo a atividade de seu pai Friedrich Ludwig Wilhelm de Varnhagen, diretor dessa fábrica, cuja morte, em 1842, o impediu de tomar conhecimento da homenagem do filho. Varnhagen confunde tudo: antes e depois; particular e geral; pai e filho!

Os comentadores de Varnhagen quase não se preocupam com esse episódio e dificilmente vêem nele algo significativo. Normalmente, tal enredo é associado aos defeitos do historiador, e é muito raro se constituir em um objeto de análise. Pedro Calmon é um dos que conferem relevância ao tema. Além disso, nota ainda uma outra característica interessante, comum aos dois Varnhagen, que provém de um traço identitário: enquanto Francisco Adolfo de Varnhagen, que poderia ser português para sempre, optou pela nacionalidade brasileira, seu pai adotou a nacionalidade portuguesa. Duas atitudes opostas, mas que participam de um mesmo movimento: a busca por uma nacionalidade, a identificação com uma nação.5 5 CALMON, Pedro. "Varnhagen". Revista do IHGB, n.338, 1983, p.249-250. Francisco Iglésias afirma que Varnhagen escreveu um "capítulo passional de defesa da obra paterna", porém ele não avança na explicação, ver IGLÉSIAS, F. Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, EUFMG, 2000, p.77.

Friedrich de Varnhagen é introduzido na história geral do Brasil como um personagem que teve um papel importante na construção da nacionalidade brasileira. Varnhagen, o filho, não esconde sua emoção ao se referir ao tema: "satisfações do autor ao tratar do assumpto", escreve no sumário detalhado da Historia geral do Brazil.6 6 VARNHAGEN, F. A. de. Historia Geral do Brazil. Madrid: Imprensa de J. del Rio, 1857, t. II, p.f. O título da seção também é claro e preciso: "Minas de ferro. Varnhagen é o executor dos projectos d’elrei".7 7 Idem, p.357. Em seguida, em uma nota de pé de página, o historiador explica as razões daquilo que chama de audácia:

Apezar da verdade dos factos não houveramos talvez ousado aventar a proposição, se ja desde 1822 não corresse ella impressa, (e sem haver sido contrariada) na Memoria do honrado senador Vergueiro, cujas proprias palavras procuramos seguir: [ ]. ‘Estava reservado (diz) ao conde de Palma fazer executar o grande e constante projecto de S. M. e a F. L. G. Varnhagen a ser o executor delle’. ‘Jean VI (diz o illustre F. Denis), appela quelques mineurs sous la direction du colonel Frédéric Varnhagen. Les travaux de cet homme habile furent couronnés d’un plein succès.8 8 Idem (em francês no original).

A relevância dos acontecimentos envolvendo o pai não seria um exagero do filho, como atestam os testemunhos de um político influente do período e de um sábio estrangeiro respeitado no país. No entanto, na segunda edição da Historia geral do Brazil, publicada em 1877, Varnhagen modifica o título: "Minas de ferro. Primeiras fundições em Ponto Grande". Ele tenta explicar, ainda em nota de rodapé, o porquê da alteração: "Por mais genérico e modesto, preferimos este titulo ao que levou esta secção na 1ª edição".9 9 As referências à segunda edição, de 1877, foram retiradas da 10ªedição, VARNHAGEN, F. A.de. História geral do Brasil. revisão e notas de J. Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. São Paulo: Itatiaia, Edusp, 1981, v.III, t.V, p.185. Na realidade, à exceção da nova denominação do capítulo, o texto dessa versão não é tão diferente daquele da primeira.

Os esclarecimentos feitos por Varnhagen para a aparição de seu pai na história brasileira vão além das afirmações do senador Vergueiro e de Ferdinand Denis. Após uma descrição acerca da exploração dos metais preciosos no Brasil colônia, o historiador considera que é chegada a hora de particularizar a história do ferro: "A historia dos acontecimentos da mineração de ferro no Brazil não deixa de ser digna de estudo e meditação". As justificações são de duas ordens: a primeira está ligada à noção de história do autor e do senador Vergueiro: "pois como diz o illustre senador Vergueiro, ‘Sendo a historia um ensino pratico, em que se apuram as verdades da theoria, e encarando o Brazil no futuro tantos estabelecimentos fabris, não pode deixar de interessar a historia da fundação do que deve fornecer instrumentos a todos".10 10 VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., t.II, p.358. A outra justificativa, que se encontra somente na segunda edição da Historia geral, é de ordem factual e cronológica e tem por objetivo assinalar um começo histórico: a fundição de Ipanema teria sido o primeiro estabelecimento industrial do Brasil, logo precisava ser estudada.11 11 Idem, (1877), 10ª, t.III, v.V, 1981, p.185-186.

Varnhagen aborda o assunto tendo por fontes o trabalho do senador e o "grande número de documentos" que herdara do pai. O historiador poderia, com essa documentação, escrever mais de um volume sobre o tema "se as leis da historia, e de uma historia geral, nos não imposessem a devida brevidade".12 12 Idem, 1857, t.II, p.358. Trata-se de uma precisão importante, que não faz referência apenas aos constrangimentos impostos aos princípios da narrativa – às leis históricas –, mas também a uma questão mais passional: as atividades de seu pai têm a potencialidade de gerar uma grande história.

O HISTORIADOR DIANTE DO JUIZ: O LEITOR

Não obstante as explicações de Varnhagen no início do capítulo, ele se sente coagido a reforçá-las antes de começar a redação dos acontecimentos de uma maneira mais regular:

Os factos singelamente documentados irão provando, a nosso ver sufficientemente, que a glória de ser o executor dos projectos do Sr. D. João. E não é culpa de quem escreve, e sim para elle muita honra, que essa gloria indisputavel reverta em favor proprio. Tributar justiça devida à memória de quem tão bem serviu é dever do historiador, e mal delle se os receios de passar por immodesto superam em tal momento aos nobres sentimentos de piedade filial! – Trate de provar quanto assevera, já que a tarefa é tão melindrosa; e, narrando só a verdade, não se cubra de pejo nem de hypocrisia, quando não fez profissão do voto de humildade. E Deus sabe quão longe estavamos, quando concebemos a idea desta obra, de imaginar que deveriamos nella, e ate em uma secção exclusiva della, ter que consignar taes serviços. Vamos aos assumpto, e o leitor será juiz.13 13 Idem, p.358-359. Na segunda edição da Historia geral, Varnhagen suprimiu o nome pai desta passagem referindo-se a ele como um "engenheiro distinto", Op. cit., (1877), 10ª, v.III, t.V, 1981, p.186.

Certo, é um filho que escreve sobre o pai, redigindo uma história geral de seu país, que não é nem mesmo aquele de seu genitor. Além disso, seu pai não é um político importante, muito menos um erudito reputado.14 14 Contudo Varnhagen tentou várias vezes mudar este perfil atribuindo a seu pai características mais intelectuais. Por exemplo, ele propõe que seu pai torne-se membro do IHGB: "Esqueceu-me dizer que de S. Paulo remetti duas obras de Eschwege para entregar ao Instituto, em ambas as quaes se contêm escriptos e observações de meu Pai. Parece-me que será a sua recepção uma boa occasião para serem ambos propostos socios do nosso Instituto", in Correspondência ativa, p.58-59. Ele é apenas seu pai, nada mais. Porém, Francisco Adolfo de Varnhagen não é simplesmente um filho, ele é um historiador. E os historiadores, em nome de leis científicas, da verdade, da memória, têm o dever de contar a história de homens que contribuíram para a construção da nação, mesmo que se trate de seu pai. Portanto, não é sua culpa! Varnhagen apenas segue uma concepção de história e um método. Apesar de tudo, nesse caso, o historiador é sempre suspeito de ser subjetivo. Em conseqüência, ele não pode mais ser o juiz da história. A tarefa é então transferida ao leitor.

A narração das façanhas paternas começa com a sua chegada ao Brasil, "então cheio d’ardor, de ambição e de esperanças",15 15 VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., 1857, t.II, p.360. qualidades que inspiraram em D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o Conde de Linhares, então Ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, e responsável pelos trabalhos de organização da fundição de Ipanema (localizada em Sorocaba), uma grande "confiança". De onde Varnhagen retirou essa informação? De um documento herdado que tem diante dos olhos. Ele o repassa ao leitor-juiz, que assim pode chegar a mesma conclusão. A carta contém as primeiras orientações recebidas por Friedrich de Varnhagen para que fizesse um exame completo das minas de ferro.16 16 Ver a Instrução do Conde de Linhares a Varnhagen datada de 21 de fevereiro de 1810 de São Paulo, Op. cit., t.II, 1857, p.360-361. Com o propósito de narrar algumas sensações que se fixam no espírito de seu pai durante essa inspeção inicial, Varnhagen se serve de um outro tipo de fonte, a memória: "ainda muitos annos depois não se lhe havia a Varnhagen apagado da idéia a impressão que lhe fez o morro d’Araçoiaba, que conceituava um dos mais ricos depositos de ferro que existe no orbe".17 17 Idem, p.362. O método é recordar o que o pai lembrava. Finalmente, Friedrich de Varnhagen presta conta ao Conde Linhares dos resultados da expedição em uma carta, da qual Varnhagen reproduz alguns fragmentos, pois não possui senão o rascunho da missiva.18 18 "Varnhagen, Inf. ao C. de Linhares, borrão incompleto, em poder do autor", Idem, p.363.

O HISTORIADOR E O PAI OFENDIDO

Após essa carta, o ministro da guerra recebeu de Friedrich de Varnhagen um plano para o estabelecimento de uma nova fábrica. Entretempo, o cônsul do governo brasileiro na Suécia noticia ao Conde de Linhares a contratação de uma colônia completa de operários para as fundições de ferro no Brasil, sob o comando de Carlos Gustavo Hedberg. Friedrich de Varnhagen deveria desenvolver seu projeto com os suecos, o que acabou não funcionando muito bem. Hedberg e Friedrich de Varnhagen não se acertaram quanto aos princípios técnicos que deveriam nortear a organização da fábrica. Todavia, Varnhagen filho adverte seu leitor, aquele que julga: "acerca desse individuo, do que houve de vergonhoso em seu contracto, e de como abusou desde o principio das boas intenções do conde de Linhares, nada diremos". Ele tenta. Inicialmente, é verdade, sobre o indivíduo o historiador nada diz diretamente. São as diferentes maneiras de se escrever a história que lhe confere a ocasião para um acerto de contas. Hedberg, que teria (a suspeição, marcada pelo condicional, é de Varnhagen) o apoio do Conde de Linhares, desdenhou da Junta administrativa do estabelecimento criada para gerir a empresa de exploração de ferro. Dessa Junta fazia parte, além de Friedrich de Varnhagen, "o íntegro Martim Francisco, e o prudente paulista marechal Arouche, ao depois grande apreciador e amigo de Varnhagen, como no-lo evidencia a correspondencia de ambos que possuimos". Nota-se, imediatamente, que ao lado do seu pai encontram-se um indivíduo íntegro e outro prudente. Os adjetivos não foram colocados ao acaso. Eles ocupam um lugar estratégico na economia do texto. Com eles, Varnhagen começa a definir dois campos: o do bem e o do mal.

Neste contexto, torna-se difícil para Varnhagen manter a promessa que ele havia feito ao leitor de nada dizer sobre o caráter de Hedberg. Para tanto, o historiador se serve de um subterfúgio. Ele não fala das características pessoais do sueco, mas de sua competência enquanto expert no domínio para o qual foi contratado: "Hedberg que não era hommem d’estudos, que não estava a par dos progressos da sciencia mettalurgica na Europa, que de minas de ferro não entendia mais que o saber lidar com fornilhos como os que tinha na Suecia, declarou à junta que se propunha construir varios desses fornilhos". O sensato Friedrich de Varnhagen argumenta e mostra à Junta, conforme o filho, os inconvenientes da proposição de Hedberg. Por simples bom senso, diz Varnhagen, os membros da Junta, que não tinham conhecimentos específicos sobre a matéria, decidiram apoiar seu pai. Ele continua em São Paulo, explica o historiador, "a fim de pelo menos obrigar com isso a Hedberg a andar menos torto". O suporte que o governo dá a Varnhagen pai é, entretanto, ambíguo. Ao mesmo tempo que faz seu elogio, solicita-lhe que colabore com Hedberg. Além disso, ressalta o filho, seu pai não podia nem mesmo contradizê-lo e deveria lhe pedir as explicações acerca do seu plano "'com muita moderação'; pois era, 'mui essencial não o desgostar'". Varnhagen abstém-se de refletir sobre aquilo que pensava ser um "estranho aviso".19 19 VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., 1857, t.II, p.363-365.

A partir desse ponto, a trama da história do pai de Varnhagen adquire contornos novelísticos. Quando Hedberg toma consciência de que Friedrich de Varnhagen continuaria em São Paulo, "perde o tino". Ele escreve, imediatamente, uma carta ao Conde de Linhares mostrando os grandes prejuízos para o bem público que a permanência de um "intelligente juiz", precisa Varnhagen filho, poderia produzir. O "ingênuo" Conde acreditou em Hedberg. Ele chega mesmo a declarar "ter 'os olhos abertos' sobre o habil official Varnhagen".20 20 Idem, p.365. O adjetivo ingênuo foi suprimido na segunda edição, ver VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit, (1877), 10ª, t.III, v.V, 1981, p.193. Descontente com a situação, Friedrich de Varnhagen parte para o Rio de Janeiro – "para não excitar rivalidades". O governo lhe oferece "outro emprego a seus talentos", desta vez em Minas Gerais.21 21 VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., t.II, 1857, p.365-366. Essa nova missão não dura muito tempo. Friedrich de Varnhagen é chamado de volta à fundição de Ipanema, pois os membros da Junta não estavam mais satisfeitos com o trabalho de Hedberg. Varnhagen pai constata que suas previsões sobre a gestão do sueco foram confirmadas. Uma comissão é enviada pelo governo ao local, que por sua vez, ratifica a constatação de Friedrich de Varnhagen. A solução encontrada pela Juntafoi a de reconduzir Varnhagen à direção da empresa. Hedberg reage. É então demitido por um decreto real, em 27 de setembro de 1814.

EM MEIO A INTRIGAS O FERRO É FUNDIDO

"'É tempo de recrear o espirito com vistas mais agradeveis: a ordem principia a aparecer'. Eis as lisonjeiras palavras com que encabeça o illustrado senador Vergueiro o capitulo do seu trabalho que intitulou: 'Directoria de Varnhagen'". Dessa forma, Varnhagen abre a parte do capítulo dedicado à exaltação do pai. Para evitar as acusações de parcialidade e de uma análise subjetiva, ele deixa, uma vez mais, que o senador Vergueiro encarregue-se dos elogios: "'Varnhagen principia a desempenhar o conceito que dele fez Sua Alteza Real: as suas obras me parecem feitas com justeza, segurança, pericia e economia'", fala o filho-historiador pela boca de Vergueiro.22 22 Idem, p.367.

Mas as intrigas perseguiam seu progenitor. O colega de Friedrich de Varnhagen, W. L. Eschwege, por inveja, segundo Varnhagen filho, teria participado também dessa rede de injúrias que visavam a desacreditá-lo.23 23 Varnhagen é implacável com a obra de Eschwege. Ele o acusa mesmo de plagiar seu pai. "Um espirito igualmente critico ou antes satyrico se adverte nas obras geologicas de Eschwege (escriptas em allemão) Pluto Brasiliensis e Achegas para o conhecimento montanistico do Brazil. Esse prazer de criticar tem sido castigado com as censuras rasoaveis, que as suas observações fazem outros geologos, que apoz elle vão visitando as comarcas de Minas, onde especialmente residiu Eschwege por alguns annos; adquirindo mais nome pela publicação em Allemanha de seus escriptos, de algumas traducções, e de varios mappas do interior do Brazil (em parte copiados de outros antigos manuscriptos que encontrou) que por legados scientificos ao Brazil, o qual quasi apenas lhe deve a medição barometrica de algumas montanhas, o ensino em Congonhas do methodo de fundir o mineral de ferro em fornilhos suecos, e a publicação na Allemanha, durante os annos que permaneceu no Brazil, de um jornal scientifico, especialmente consagrado ao Brazil, em que foram impressos trabalhos de Varnhagen e Feldner, dos quaes elle às vezes aproveitou nas duas obras mencionadas; não citando senão quando queria ter o gosto de contradizer", Idem, p.347. É necessário esclarecer que os comentários críticos são menos fortes na segunda edição da Historia geral, tendo sido a acusação de plágio suprimida. Friedrich de Varnhagen trabalha duro: durante o dia, dirige os trabalhos na fundição, e à noite escreve e medita sobre novos planos, para contradizer "vozes absurdas" e destruir as tramas contra ele.24 24 Idem, p.368. Este fragmento também foi suprimido na segunda edição. Varnhagen organiza a história de seu pai a partir das mesmas categorias que o auxiliam a criar a sua própria identidade. Ele também trabalha de modo árduo pela nação e, como seu pai, foi, não poucas vezes, em sua auto-análise, vitima de intrigas e da inveja de seus compatriotas ou críticos nacionais e estrangeiros. Um dos problemas que diferenciam os dois Varnhagen, mas que no final das contas, os une, é que o pai tinha medo de não ter tempo de ver o resultado do seu trabalho aparecer, e "temia que em tal caso a sua boa memoria no Brasil, patria de seus filhos, ficasse dubiamente estabelecida".25 25 Idem, p.369. Esse temor revelar-se-á injustificado: o filho estava lá para lembrar, como um Hamlet enquanto durar a memória, os serviços do pai.

Apesar de tudo, em novembro de 1818, a fundição de Ipanema entra em serviço. Uma das fontes de Varnhagen é Auguste de Saint-Hilaire:

On avait assuré que, dans ce pays, il était impossible de faire usage de hauts fourneaux; on objectait la chaleur, la nature de l’atmosphère, et surtout celle de la pierre. Varnhagen soutint que de hauts fourneaux réussiraient à Ipanéma tout aussi bien qu’en Europe, et que la pierre du pays résisterait à la force du feu; il fit le plan des bâtiments [ ] il en érigea toutes les constructions, et l’ouvrage fut achevé au bout de deux ans. On fondit, pour la première fois, dans les hauts fourneaux, le 1er novembre 1818, et le succès couronna l’entreprise. Quand on connaît l’esprit d’intrigue qui règne [ ] l’ignorance des ouvriers [ ] alors seulement on peut se faire une idée des obstacles presque insurmontables que Varnhagen eut à vaincre, et l’on ne saurait s’empêcher de regarder comme une espèce de prodige la promptitude avec laquelle il acheva des travaux aussi importants.26 26 SAINT-HILAIRE, A. de. Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine. Paris: A. Bertrand, 1851, I, p.387, apud VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., t.II, 1857, p.369, nota 2 (em francês no original).

A descrição feita pelo historiador do episódio é marcada pela emoção: "Varnhagen delicadamente sensivel, como todos os que por instinto tem vocação musical, comoveu-se de jubilo, sem lhe passar pela mente a idéia do triumpho; e a todos os empregados, que estavam todos presentes, tratou de ocultar as duas lagrimas que de alegrias dos olhos lhe brotaram".27 27 Idem. A parte em itálico foi suprimida na segunda edição da História geral. A fonte vem ainda do arquivo mnemônico de Varnhagen: "este facto me foi referido por meu pai depois de haver eu em 1841 estado no Ipanema, donde saira de mui pouca idade".28 28 Idem, nota 1, p.370.

Entretanto, Joaquim Feliciano dos Santos, em 1868, ou seja, antes da publicação da segunda edição da Historia geral, contesta fortemente o fato de o pai de Varnhagen ter sido o primeiro a fundir ferro no Brasil. Para ele, o brasileiro Manuel Ferreira da Camara, que era o intendente do Distrito Diamantino, teria sido o primeiro a realizar a façanha. Conforme Feliciano dos Santos, a análise de Varnhagen não é isenta, mas marcada por um "excesso de amor filial". Ele esclarece ainda que não quer "disputar os méritos do oficial Varnhagen, o que faria caso a questão fosse pessoal".29 29 SANTOS, J. F. dos. Memórias do Distrito Diamantino da comarca do Serro Frio (provincia de Minas Gerais) (1868). São Paulo: Itatiaia, Edusp, 1976, p.217 e 219. Essa crítica é importante não somente por identificar claramente a parcialidade de Varnhagen já no século XIX, mas também por mostrar a impossibilidade do debate no campo científico. Seria um duro golpe se Varnhagen levasse em consideração, minimamente que fosse, a contestação de Feliciano dos Santos. No entanto, ele despreza os críticos e as críticas. Tudo não passa de intrigas.30 30 Capistrano de Abreu não perdou Varnhagen por esta desatenção: "Ha um livro publicado entre nós sobre o Districto Diamantino, que reune ao rigor da historia o encanto do romance, e que entre outro qualquer povo já contaria muitas edições. Neste livro reclama-se para Ferreira da Camara, e nega-se documentalmente a Frederico de Varnhagen, pae do historiador, a prioridade na fundição em grande de ferro. Pois Varnhagen finge que não conhece esse livro, e faz do assumpto dos diamantes, que é um dos mais curiosos da nossa historia, uma cousa pífia e que é inferior ao que qualquer calouro poderia tentar. Emfim, é possivel que Varnhagen não conhecesse o livro; mas é tão dificil...", ABREU, J. Capistrano de. Sobre o Visconde de Porto Seguro (1882) apud VARNHAGEN, F. A. História geral do Brasil, 3.ed. e 4.ed. integral. São Paulo: Melhoramentos, 1928, p.442.

UM MONUMENTO PARA MEU PAI

Os instrumentos utilizados para fundir o ferro e os lugares de um tal empreendimento marcam aquilo que Ferdinand Denis, cita Varnhagen, definiu como o atestado de "origem de uma nova indústria. Apesar de sua simplicidade, é ainda hoje um dos monumentos do Brasil a que se ligam recordações preciosíssimas". De acordo com o historiador, é inútil procurar nesses monumentos qualquer registro dos acontecimentos, salvo o ano de inauguração: 1818. "Fato suficiente para caracterizar o grau de modéstia deste oficial" (Friedrich de Varnhagen). O filho, mais uma vez, não se contém e solicita à posteridade uma homenagem a "tanta modéstia". Varnhagen pede a "inauguração do busto do restaurador, no terreiro do estabelecimento", ou, ao menos, "uma medalha de ferro ou de bronze cunhada em memória do dia 1° de novembro de 1818".31 31 Essa última demanda foi suprimida na segunda edição da Historia geral, pois "existe cunhada, desde 1858, uma medalha de bronze com o busto de Varnhagen. A idéia de um monumento aos resultados obtidos em 1818, não é nossa, nem jamais houvéramos ousado apresentá-la. O Investigador Português propôs uma pirâmide de ferro; o Padre Gonçalves dos Santos ( Memórias, 2, p.338), um pedestal de mármore para a cruz de ferro, no qual se esculpissem não só os nomes de el-rei e os dos ministros, 'como também os dos sábios e incansáveis mineralógicos Câmara, Eschwege e Varnhagen'. – Sem querer disputar os méritos de Câmara e Eschwege, estes nada tinham que ver com a cruz de 1818.", VARNHAGEN, F. A. de., Op. cit., 1877, 10ª, v.III, t.V, p.197.

Enfim, Friedrich de Varnhagen foi reconhecido e condecorado pelo rei, porém "fora destas recompensas, nenhuma lucrativa recebeu, nem nenhum dos seus por ele". Por outro lado, os dois outros engenheiros que vieram com ele, Eschwege e Hedberg, foram agraciados com terras e pensões vitalícias. O historiador não comenta o que, para ele, é uma evidente injustiça. Ele deixa, mais uma vez, a tarefa ao seu alter-ego, o senador Vergueiro: "estes rasgos de excessiva liberalidade para quem mais desfez do que fez produziram absoluta impossibilidade de premiar em proporção os serviços que Varnhagen passou a fazer". A Friedrich de Varnhagen restava, consola-se o filho, o prêmio mais importante de todos: "o titulo, o posto, a medalha do meruisse satis, que outorga a propria consciencia".32 32 VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., t.II, 1857, p.370-371. Em 1822, o pai de Varnhagen parte para a Europa. Nove anos mais tarde, foi demitido do serviço imperial brasileiro.

"Se o uso do ferro, posterior ao do cobre, e muito posterior ao das cunhas de pedra, marca na historia dos homens uma idade de maior civilisação, é certo que o seu fabrico, - o saber converter, ( ) é so concedido aos povos já bastantes adiantados na industria". A civilização brasileira progrediu, em parte, sob a direção de Friedrich de Varnhagen. Ele teria desse modo contribuído para o desenvolvimento civilizatório cuja história será contada pelo próprio filho.

Finalmente, o historiador termina o capítulo se desculpando junto ao leitor, que como juiz imparcial saberá lhe perdoar: "basta porém sobre este assumpto. E se nos alargámos demasiado; se a penna não poude conter-se a seguir os impulsos do coração; se dissemos mais do Ipanema e do seu benemerito engenheiro do que desejavam saber os leitores, desculpa merece quem a um e a outro, depois de Deus, deve a glória de ser subdito brazileiro, e por conseguinte a de haver podido offerecer aos mesmos leitores esta historia, ainda que imperfeita, fructo de annos de pesquizas e meditações".33 33 Idem, p.372. Na segunda edição da Historia geral, esse parágrafo é modificado: "desculpa merece quem crê em consciencia que commeteria uma grande injustiça e quase uma impiedade, se tivesse tratado de ser menos extenso neste assunto, que diz respeito ao seu progenitor, e até ao lugar do seu nascimento".34 34 VARNHAGEN, F. A. de., Op. cit., 1877, 10ª, v.III, t.V, p.199. Na primeira versão, o historiador faz uma relação direta entre a história de seu pai e sua própria obra que, em 1857, era ainda, segundo ele, imperfeita. Na segunda, em 1877, a obra não parece ser mais imperfeita, e a conexão imediata com ela cede lugar a um aspecto quase exclusivamente sentimental: é justo que o autor de uma história geral fale de seu pai e do lugar onde nasceu.

Em resumo, o processo de reescrita de sua historia geral, cujo objetivo não era apenas corrigir os erros da primeira edição e adicionar os dados de novas pesquisas, mas também de suprimir marcas de subjetividade mais visíveis no texto, encontra seu limite: o próprio Varnhagen. O mais crítico dos historiadores brasileiros do século XIX, aquele que julga implacavelmente todos os outros, não se contém quando o assunto é seu pai. Ele abusa de expressões sentimentais a seu respeito. Mais de uma vez, a prova de seus argumentos não tem outro fundamento que a memória paterna e a sua. Finalmente, ele exagera a situação. A exploração de ferro somente terá uma real importância econômica no Brasil no século seguinte.35 35 IGLÉSIAS, Francisco. Op. cit., p.78. Contudo, o que me parece mais significativo não é a constatação de Varnhagen ser parcial e subjetivo, mas o fato de ele não se esforçar, talvez como devesse ou se pudesse supor, em negar. Seu discurso não deixa de ser histórico por isso. Simplesmente, ele assimila e apresenta como verdadeiras explicações cuja origem são os sentimentos, alguns provenientes ainda da infância, como veremos a seguir. Pergunto-me se Varnhagen, sob um certo sentido, em momentos específicos da sua trajetória de homem de letras, não parece confirmar o ditado poético de Wordsworth de que "a criança é o pai do adulto".

MAS NÃO EM NOME DO PATRIARCA

O eminente e excêntrico Varnhagen tem toda a dureza de um saxão, que era, e uma inexplicável índole deprimidora de toda a grandeza e de toda a beleza; é, enfim, o homem que, em nossa história, menoscaba de todas as heroicidades.

Eduardo Prado36 36 Apud MAGALHÃES, B. de. "Varnhagen", Revista da Academia Brasileira de Letras, anno XIX, vol. XXVIII, setembro, 1928, p. 102. Citado também por PARANHOS, Haroldo. História do romantismo no Brasil (1830-1850). São Paulo: Cultura Brasileira, 1937, p.142.

Localizada em uma nota quase ao fim da edição de 1857 da Historia geral do Brazil, a primeira apreciação de Varnhagen em relação a José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado por uma certa produção historiográfica o patriarca da independência do Brasil, é marcada pela discrição e ambigüidade.37 37 "A imagem de José Bonifácio 'Patriarca' forjou-se no calor das lutas políticas por ocasião da Independência. A necessidade de defender pontos de vista, de consolidar sua posição à frente do governo levou seus partidários a apresentarem-no ao público como o 'Pai da Pátria', o 'timoneiro da Independência', o 'Patriarca', expressões que começaram a circular já em 1822, quando José Bonifácio ocupava o cargo de ministro de D. Pedro", COSTA, Emília Viotti da. José Bonifácio: homem e mito. In: MOTA, Carlos Guilherme. (org.) 1822: Dimensões, São Paulo: Perspectiva, 1972, p.104. Sobre o papel de José Bonifácio no processo de independência ver ainda: ARARIPE, T. de A. Ideias de José Bonifácio sobre a organização politica do Brasil. Revista do IHGB, n.77, 1888, p.79-85; SOUSA, Octávio Tarquino de. História dos Fundadores do Império do Brasil. José Bonifácio. v.1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, e no v.2, t.1, 1960, p.364-400; CORREA FILHO, V. A presença de José Bonifácio. Revista do IHGB, n.268, 1965, p.43-64; DOLHNIKOFF, M. O projeto nacional de José Bonifácio. Novos Estudos Cebrap, n.46, 1996, p.121-141; MATTOS, Ilmar Rohloff. Construtores e heredeiros: a trama dos interesses na construção da unidade nacional. Almanack Braziliense, 1, maio de 2005, p.08-26. Sobre os projetos políticos o próprio Bonifácio ver DOLHNIKOFF, M. (org). José Bonifácio de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998. O historiador discorria sobre os "escriptores, viajantes e imprensa periodica do reinado", contexto no qual menciona o relato publicado por Bonifácio acerca de suas viagens por sua vila natal, Santos, e pela Paraíba, concluindo que:

José Bonifacio sabia muito e escrevia bem; e neste sentido adquiriu bellissima reputação; não tanto no Brazil, onde em virtude da ausencia de 36 annos (desde 1783 até fins de 1819) quasi que só figurou exclusivamente na politica; mas em Portugal. Apenas ouvimos lá censularal-o, como pouco pratico, e geralmente pouco feliz nas applicações. Longe de o recriminarmos por isso, cremos que parte da culpa tinha o governo, que, só por que elle havia estado muitos annos estudando, principalmente em Allemanha, julgava que em tudo o devia envolver. O resultado foi que José Bonifacio, que de tudo entendia, que nas congregações em Coimbra muito influia, [ ] que nas sessões da academia das sciencias de Lisboa tomava parte nas discussões, ainda dos assumptos em que o julgavam menos versado, como de vaccina, de pathologia e até de partos, porque em geral mais censurava do que creava ou applaudia, - José Bonifacio, dizemos, em proporção, pouco legou à patria litterariamente. No Brazil foi sobretudo na politica que figurou, e na politica o contempla já e o julgará algum dia com toda a imparcialidade a historia.38 38 VARNHAGEN, F. A. de. Historia geral do Brazil, t.II, 1857, nota correspondente às páginas 348 e 349 e 481. A nota foi suprimida na segunda edição da obra de 1877.

José Bonifácio é um sábio, mas não um prático, nem um criador, muito menos alguém que reconhece o valor dos outros. Escreve bem, embora a propósito de sua nação nada de significativo tenha deixado no plano literário. Enfim, se cabe à história julgá-lo, o dia chegou. Varnhagen participa do julgamento desempenhando um dos seus papéis preferidos: o de juiz. Nessa perspectiva, na História da independência do Brasil, o historiador explica a forte presença de José Bonifácio ao lado do príncipe D. Pedro como um efeito de sua vasta experiência em Portugal e de suas características pessoais:

O seu grande saber, o seu genio intrepido, o seu character pertinaz, que quasi chegava a raiar em defeito, contribuiram a fixar a volubilidade do principe. Cegava-o por vezes, como a seus ermãos, o muito orgulho, a falta de prudencia e o excesso da ambição, bem que accompanhada de muita instrucção e natural bonhomia; mas a sua vicavidade e seu genio enthusiasta o levavam a falar demasiado e a ser de ordinario pouco discreto e pouco reservado, como estadista.39 39 VARNHAGEN, F. A. de. Historia da Independencia do Brasil, até ao reconhecimento pela antiga metropole, comprehendendo, separadamente, a dos successos occorridos em algumas provincias até essa data. Revista do IHGB, 1916/1917, n.79, p.5-598 (citação p.139-140).

Varnhagen recorda que foi testemunha da loquacidade de José Bonifácio durante o batismo de sua irmã, Gabriela Varnhagen, em 1821. Nesse dia, o pequeno Francisco deixou-se impressionar por um dos convidados, a quem via pela primeira e única vez em sua vida: José Bonifácio: "eu fui incumbido da ‘derrama dos confeitos’, e ainda tenho nos ouvidos a voz rouquenha do mesmo José Bonifácio, accompanhada de alguns borrifos e perdigotos, que me amedrontaram, e não mais lhe appareci".40 40 Idem, p.140, nota 34. A impressão negativa que ficou retida na memória da criança transitou para a vida adulta do historiador. Além do testemunho sobre as características gerais de José Bonifácio, Varnhagen acrescenta à sua autópsia mnemônica declarações de diplomatas que tiveram contato com o patriarca, quando este era Ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros. Sua antipatia por José Bonifácio foi, provavelmente, reforçada pelo parecer que este fizera da fábrica de São João de Ipanema, onde figuram críticas à competência e à honestidade de seu pai. Varnhagen não cita essa avaliação como fonte histórica, nem contesta a apreciação redigida em 1820, isto é, antes do batismo da irmã.41 41 Ver SILVA, J. B. de A. e. Memoria economica e mettalurgica sobre a fabrica de ferro de Ypanema – Sorocaba – 1820, apud VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., 1981, 10.ed., v.3, t.V, p.202-208, publicada pelo editor do volume Rodolfo Garcia. Para comentários, apoiando a crítica de Bonifácio ver SOUSA, Octávio Tarquino de. História dos Fundadores do Império do Brasil, Op. cit., p.135-137.

Essa rememoração anedótica de Varnhagen não escapou à análise da Commissão nomeada pelo presidente do IHGB para examinar e coordenar a obra manuscripta e inédita do visconde de Porto Seguro, intitulada, ‘Historia da Independência. O relatório exarado, que serve inclusive de introdução à primeira edição do texto, publicado em 1916, destaca os grandes méritos do trabalho, indicando, porém, alguns problemas. Um deles é a postura de Varnhagen em relação a José Bonifácio. Considerada "inconveniente", a posição do historiador não dissimulava sua "má vontade" com os Andradas, sobretudo, com o "glorioso fundador da nacionalidade brasileira". A Comissão posiciona-se claramente ao lado de José Bonifácio e de seus irmãos. Entretanto, os signatários do relatório não se preocupam em tentar explicar as razões que levaram Varnhagen, tão afeito "a narração fiel e fartamente documentada dos factos capitaes", a cometer um descuido metodológico dessa ordem: por que, afinal, não soube ele resguardar sua imparcialidade?42 42 A comissão era formada por: J. Vieira Fazenda, B. F. Ramiz Galvão, Pedro Lessa, Max Fleiuss, Basílio da Gama, Rodolfo Garcia e Pedro Souto Maior. "Relatorio da Commissão nomeada pelo presidente do IHGB para examinar e coordenar a obra manuscripta e inédita do visconde de Porto Seguro, intitulada, 'Historia da Independencia". Revista do IHGB, n.79, 1916, p.8-21.

A IMPARCIALIDADE DE VARNHAGEN EM DEBATE NO SÉCULO XX, OU ANÁLISE DE COMO O HISTORIADOR TENTA DESARTICULAR A FORMAÇÃO DE UM MITO POLÍTICO

Para José Honório Rodrigues, as motivações da postura de Varnhagen em relação a José Bonifácio situam-se em três planos: um político, outro sentimental, e um terceiro, teórico. Politicamente ele seria um dos representantes da opinião "contra-revolucionária" no processo de independência:

Obra de defesa de D. Pedro, em detrimento de José Bonifácio na elaboração da independência, de desvalorização da guerra de independência, para que esta surja como um desenvolvimento momentâneo e não uma ruptura com o regime colonial a que teria sido levado o Brasil, caso Bonifácio não tivesse sido expulso do processo histórico. O autor sente que sua responsabilidade não é só com o Brasil, mas com Portugal.43 43 RODRIGUES, J. H. Varnhagen, mestre da História geral do Brasil. Revista do IHGB, n.275, 1967, p.185.

Em outro trabalho, Rodrigues explica que a atitude intelectual de Varnhagen reflete a concepção dos grupos dominantes do período. Para ele, a imagem do patriarca – de um homem orgulhoso, imprudente, ambicioso e indiscreto – desenhada pelo historiador desencadeou a visão negativa que conspirou contra a obra de José Bonifácio e que dominou por um longo tempo a historiografia brasileira.44 44 RODRIGUES, J. H. "O pensamento político e social de José Bonifácio", SILVA, J. B. de A. Obras científicas, políticas e sociais, coligidas e reproduzidas por E. de C. Falcão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1965, p.13.

A rede historiográfica anti-patriarca comandada por Varnhagen encontrou guarida no curso de Joaquim Manuel de Macedo no Colégio Pedro II, onde seus argumentos se consolidaram e se difundiram. Mais precisamente, o veículo de transmissão das idéias varnhageanas teria sido o manual Lições de Historia do Brasil, o qual, segundo Capistrano de Abreu, ao ser introduzido no ensino primário e secundário criara os quadros de ferro que se tornaria a obra de Varnhagen.45 45 Ver MACEDO, Joaquim M. de. Lições de Historia do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio do Pedro II, (4º anno). Rio de Janeiro: Typographia Imparcial de J H. N. Garcia, 1861, e Lições de Historia do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio do Pedro II, (7º anno). Rio de Janeiro: D. J. Gomes Brandão, 1863, apud MATTOS, Selma R. de. O Brasil em lições. A história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.83-85. A versão escolar da Historia geral de Macedo teria sido a responsável, para Rodrigues, por uma lição discreta e oficial sobre o "patriarca" que pode ser resumida através de uma equação simples: no governo, Bonifácio foi excelente; na oposição péssimo. Rodrigues lembra ainda que mesmo o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) não cultivou a memória de José Bonifácio.46 46 RODRIGUES, J. H. "O pensamento político e social de José Bonifácio". Op. cit. 1965, p.13.

Já no plano sentimental, José Honório Rodrigues destaca o que, para ele, seria uma característica da prática dos historiadores: a impossibilidade de ser isento devido a diferenças de classe, situação social, concepções filosóficas ou religiosas, ou ainda de algo mais simples como um problema de ordem pessoal. Assim, seria normal que Varnhagen não tivesse perdoado o patriarca por este ter censurado seu pai.

Enfim, no plano teórico, o comentador identifica o que seria uma estratégia narrativa de Varnhagen para bloquear a produção mítica em torno da figura de José Bonifácio: a pluralização do título de patriarca de modo a atingir outros "patriotas pensadores" do período. Varnhagen teria, segundo Rodrigues, a crença de que a história era feita pelos grandes homens. Mais precisamente, "Varnhagen jamais aceitaria que a História não fosse fruto apenas de personalidades mais ou menos cultas".47 47 RODRIGUES, J. H. Op. cit., 1967, p.182. Para que a história da independência não fosse concentrada apenas em Bonifácio, sem dúvida um dos mais importantes mentores do movimento, para que Bonifácio não fosse reconhecido internacionalmente como um sábio, Varnhagen povoa o panteão da época com vários personagens. A figura do patriarca perde força, vê-se reduzida, pois ele não seria o único, nem mesmo o mais importante. Seria apenas um entre outros.

Arno Wehling não concorda com a interpretação de José Honório Rodrigues. Para Wehling é preciso distinguir a análise feita por Varnhagen do período joanino do exame da conjuntura dos anos 1821 e 1822.48 48 WEHLING, A. Estado, história e memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.191. Eu sigo os exemplos de Wehling, porém os cito a partir do próprio Varnhagen. Para uma análise abrangente do período, mas plena de relações oportunas e interessantes ver: BARMAN, Roderick J. Brazil. The forging of a nation, 1798-1852. Stanford: Stanford University, 1988, p.97-129 ("A new monarch for a new nation, 1822-1825"). Sobre a primeira fase, Varnhagen faz uma avaliação positiva. Ele atribui a D. João VI e a seus ministros a criação das condições para que o Brasil se tornasse uma nação independente. De acordo com Varnhagen "uma nova era vai abrir-se para o Brazil: em vez de colonia ou de principado honorario vai ser o verdadeiro centro da monarquia regida pela casa de Bragança; e para nos daqui começa a epocha do reinado, embora o decreto de elevação a reino so veio a ser lavrado em fins de 1815". Dessa maneira, para Varnhagen, o governo, nesse caso, agira, no plano político e econômico, com correção. Desde 1808, "seguindo a insinuação de José da Silva Lisboa, franqueou os seus portos ao commercio direto de todas as nações amigas, e com isso emancipou de uma vez da condição de colonia, e o constituiu nação independante de Portugal, que estava alias então sujeita à França".49 49 VARNHAGEN, F. A. de. Historia geral do Brazil, Op. cit., 1857, p.298 e 312. O encorajamento à cultura teria sido para Varnhagen um outro aspecto importante desse balanço do quadro antes da separação definitiva de Portugal. Conforme o historiador, a produção cultural fala em nome desta "memorável época do reinado" que "mais ou menos diretamente protegeu os seus autores, favorecendo-os com cartas de recomendação aos capitães gerais, e declarando até alguns pensionários do Estado".50 50 Essa passagem foi acrescentada na segunda edição. VARNHAGEN, F. A. de. Historia geral do Brazil, Op. cit., 1877, 10ª, v.3, t.V., p.209. Considera também, como fator de integração, a fixação da capital e a sede do governo no Rio de Janeiro.51 51 VARNHAGEN, F. A. de. Historia da independencia do Brasil, op. cit., 1916, p.32.

Todavia, Varnhagen assinala e critica aquilo que considera equívocos do governo. Nesse sentido, ele não poupa o ministro dos negócios do Brasil (fazenda e interior), D. Fernando José de Portugal, logo marquês de Aguiar, que apesar de ter experiência administrativa (fora governador da Bahia e vice-rei do Rio de Janeiro) e supostamente conhecer o país, cometeu equívocos incompatíveis com a sua função. A escolha do marquês, escreve Varnhagen, evidenciava "não so a intenção do regente de ocupar-se principalmente do Brazil, como a sua prudencia em querer mais conhecer o passado, para corrigi-lo e melhora-lo, que impor ao paiz uma subita importação de instituições estranhas a ele, as quais de ordinario radicam mal, se é que ja em tempos anteriores não revele a propria historia colonial que foram improficuamente ensaiadas". O ministro, contudo, não estava à altura da missão. A origem do problema encontrava-se no perfil intelectual do personagem:

Infelizmente, porem, o marques de Aguiar, alias prudente, integro e sensato, com todos os seus anos de mando no Brazil, desconhecia o paiz em geral, era pouco instruido, e sobretudo nada tinha de grande pensador, para ser estadista da fundação do novo império. Minguado de faculdades criadoras, para sacar da propria mente e da meditação fecunda as providencias que as necessidades do paiz fossem dictando, o marques de Aguiar parece ter começado por consultar o almanaque de Lisboa, e a vista dele ter-se proposto a satisfazer a grande commisssão que o principe lhe delegara, transplantando para o Brazil, com seus proprios nomes e empregados (para não falar de vicios e abusos), todas as instituições que la havia, as quais se reduziam a muitas juntas e tribunais, que mais serviam de peias, que de auxilio à administraçã, sem meter em conta o muito que aumentou as depesas publicas, e o ter-se visto obrigado a empregar um sem-numero de nulidades, pelas exigencias da chusma de fidalgos que haviam emigrado da metropole, e que, não recebendo dalli recursos, não tinham que comer.52 52 Idem, 1857, p.315.

O marquês de Aguiar ao transferir ou criar instituições "como se o Brazil fosse do tamanho de Portugal" praticou, em princípio, um grave erro. Não obstante a crítica, Varnhagen reconhece a utilidade de algumas dessas instituições. O que de fato ele censura é o "cômodo plagiato e cópia e tudo que quanto havia na Europa", a ausência da instituição do ensino superior, a falta de uma política pública de distribuição e ocupação da terra e de um ministério que se ocupasse das minas e matas. Lamenta ainda a não unificação dos ministérios da marinha, justiça e administração. Aos juízos seguem-se comentários que, ao destacar certos aspectos positivos, os relativizam. Com efeito, "para que não se diga que só censuramos", Varnhagen saúda a fundação das Academias militares (marinha, artilharia e fortificação), do arquivo militar, da tipografia régia, da fábrica de pólvora, do jardim botânico, da biblioteca nacional, da academia de belas-artes, do banco do Brasil e, evidentemente dos "estabelecimentos ferríficos de Ipanema". Estas seriam "instituições mais que suficientes para que, para todo o sempre, o Brazil bendiga a memoria do governo de D. João".53 53 Idem, p.316-317.

Varnhagen, por último, procura examinar os acontecimentos que compõem o contexto dos anos 1821 e 1822, mapeando as alternativas políticas da época como uma espécie de grade explicativa das circunstâncias nas quais os atores sociais, entre os quais José Bonifácio, agiram: "em uns predominavam os sentimentos em favor da monarchia pura, em outros da constitucional, não faltando já alguns que se inclinavam à democracia e republicanismo. E cada uma destas trez comunhões fracciona-se ainda, inclinando uns à união com Portugal e outros à independencia". Nesse sentido, à principal questão do período – deveria a família real ficar no Brasil ou regressar a Portugal – o historiador identificou diferentes ideologias que orientavam a ação política. Os liberais portugueses recomendavam "calorosamente" à familília real o retorno. Os brasileiros mais exaltados propunham sua permanência. Enquanto isso, os portugueses menos exigentes aceitavam a volta do rei desde que o príncipe ficasse como regente. Já os brasileiros mais conciliadores admitiam o regresso do príncipe com a manutenção do rei.54 54 Idem, 1916, p.45. Essa tipologia mantém certo grau de plausibilidade, como observa Arno Wehling, até as interpretações mais recentes da historiografia.55 55 WEHLING, A. Op. cit., 1999, p.192.

Sobre José Bonifácio, especificamente, Varnhagen admite, ao menos, alguns aspectos construtivos em sua postura político. Reconhece, por exemplo, que Bonifácio agiu corretamente durante o episódio que resultou na independência do Brasil, e que era mesmo capaz de gestos de modéstia, como aquele em que recusa uma insígnia honorífica proposta por D. Pedro I após a cerimônia de aclamação, em primeiro de dezembro de 1822.56 56 VARNHAGEN, F. A. de. Historia da independencia do Brasil, Op. cit., 1916, p.233. Além disso, considera um elemento favorável o fato de o patriarca ser "um zeloso monarchista, muito amigo não só do paiz, como do príncipe". Porém, mesmo na positividade Varnhagen não deixa de ressaltar um traço desfavorável que, embora não dependa exclusivamente de José Bonifácio, tem sua origem em suas características pessoais, ou seja, a sua influência sobre D. Pedro, que o admirava tanto que "foi acusado de o haver imitado em alguns dos seus defeitos, começando pelo da pouca gravidade e falta de decoro e recato nas palavras, que em José Bonifácio chegavam a raiar em desbocamento".57 57 Continua Varnhagen: "e não era muito que, na flor da mocidade, o príncipe, ouvindo-as na boca de um sabio, chegasse a querer até nisto imitá-lo". Idem, p.140. Não se trata de um problema grave, mas não fica bem para um soberano tal descomedimento, insinua o diplomata Varnhagen.

O que Varnhagen critica de fato em José Bonifácio é o papel desempenhado por este após a independência. O patriarca teria se aproveitado do importante cargo que ocupava no governo e de sua influência junto a D. Pedro para se vingar de seus inimigos. O comportamento de Bonifácio é explicado através de um traço psicológico: seria "de indole naturalmente boa, mas a sua longa residencia sob um Govêrno despotico, e o proprio cargo de intendente de policia no Porto, que tinha exercido durante este regime, fizeram que a educação predominasse. Appareceu de novo o antigo intendente da policia portugueza". Bom por natureza e autoritário por experiência, o patriarca tinha, ainda segundo Varnhagen, um "character arrebatado e impaciente", e pretendia "converter todo o paiz politica e literariamente às suas idéas, sem advertir que tudo isso requeria tempo e outra instrucção, e não a fôrça e as ameaças".58 58 Idem, p.213-215.

Para mensurar o autoritarismo dos Andradas – sim, pois seus irmãos também não escapam ao julgamento da História da independência – o historiador apresenta o seguinte exemplo: o projeto de dissolução da Assembléia Constituinte. Tomando por base a História do Brasil do inglês John Armitage, publicado em 1836, afirma que o plano seria executado na hipótese de os irmãos Andradas não tivessem o controle da situação. Já acerca da participação de José Bonifácio, Varnhagen assegura que possuia "provas fundadas em conversações suas, que nos foram transmittidas por pessoas imparciaes e dignas de fé".59 59 Idem, 1916, p.250. Como se trata de uma história do tempo presente, os testemunhos orais estão distribuídos ao longo da narrativa como argumentos de prova.60 60 Não desconheço que a expressão História do Tempo Presente adquiriu legitimidade no campo historiográfico apenas a partir da fundação do Institut d'histoire du temps présent, fundado em Paris em 1978. No entanto, os principais historiadores dessa tendência não ignoram que houve projetos de escrita da história do tempo presente desde Heródoto e Tucídides. Na idade média, por exemplo, segundo Bernard Guénée, a noção já pode ser apreendida. Reinhart Koselleck observa que na língua alemã a expressão aparece e se desenvolve desde o século XVII. Assim, mesmo no século XIX, momento em que certas perspectivas historiográficas procuravam a identidade científica definindo a história como simplesmente conhecimento do passado (onde paradoxalmente Tucídides, historiador por excelência do tempo presente, era tido como mestre e modelo), encontra-se tentativas de se escrever sobre o presente, mesmo no Brasil. Filósofos importantes do início do século XX, como Collingwood e Croce, teorizaram sobre a condição presentista da produção do conhecimento histórico. Para os modelos antigos ver questão ver: HARTOG, F. L'histoire d'Homère à Augustin: préfaces des historiens et textes sur l'histoire. Paris : Éditions du Seuil, 1999. De Guénée ver: GUÉNÉE, B. Temps de l'histoire et temps de la mémoire au Moyen Âge. Annuaire-Bulletin de la Société de l'histoire de France, Paris, Klincksieck, 1978, p.25-35. De Koselleck ver: KOSELLECK, R. Continuidad y cambio en toda historia del tiempo presente. Observaciones histórico-conceptuales. In:_____ Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Buenos Aires: Paidós, 2001, p.119-120. De Croce e Collingwood ver, respectivamente: CROCE, B. Teoria e storia della storiografia (1917). Milano: Adelphi, 1989; COLLINGWOOD, R. G. The idea of history (revised edition), with Lectures 1926-1928, (edited with an introduction by Jan van der Dussen). Oxford: Clerendo, 1993. Para uma perspectiva mais geral sobre a história do tempo presente ver: BÉDARIDA, F. L´historien régisseur du temps? Savoir et responsabilité. Revue Historique, Paris: PUF, 1998. p.3-24; BÉDARIDA, F. La dialectique passé-présent et la pratique historienne. L'histoire et le métier d'historien en France 1945-1995, Paris : MSH, 1995; CHAUVEAU, A.; TÉTART, P. Questions à l'histoire des temps présents. Paris: Complexe, 1992; e a apresentação de ARÓSTEGUI, Júlio. em: "Historia y tiempo presente. Un nuevo horizonte de la historiografía contemporaneista". Cuadernos de Historia Contemporanea, n.20, 1998, p.15-18. Sobre a relação entre presentismo e projetos de história do tempo presente ver no século XIX brasileiro ver: CEZAR, Temístocles. Presentismo, memória e poesia. Noções da escrita da história no Brasil oitocentista. In: PESAVENTO, S. (org.) Escrita, linguagem, objetos. Leituras de história cultural. Bauru: Edusc, 2004, p.43-80. Sobre a relação entre o presentismo contemporâneo e a história do tempo presente ver: HARTOG, François. Temps et histoire. "Comment écrire l'histoire de France?". Annales, novembre-décembre, n.6, p.1219-1236, 1995; e HARTOG, François. Régimes d'historicité, présentisme et expérience du temps. Paris: Seuil, 2003. Entretanto, nesse caso, Varnhagen simplesmente não cita o nome das pessoas imparciais e dignas de fé. Não sabemos quem são. Mesmo o barão de Rio Branco, autor das notas explicativas que se encontram ao longo da obra, e que não se restringe apenas a complementar o texto mas também a corrigi-lo, não teve sua atenção chamada para o problema das fontes do autor. A descrição do acontecimento foi construída a partir de um ouvir-dizer, cuja credibilidade é garantida apenas pela afirmação de Varnhagen de que os testemunhos são credíveis. Ora, em 1916, ano da publicação da História da independência, o IHGB, instituição que respondia, ainda que parcialmente, pela historiografia brasileira, não tomava por um erro teórico ou metodológico o fato de o historiador confiar em uma fonte pela simples razão de acreditar ser ela digna de fé. O presentismodo texto de Varnhagen ou, em outras palavras, os recursos de que dispunha para realizar a pesquisa sobre seu mundo contemporâneo são aceitos quase incondicionalmente. Essa recepção, parece-me, reforça o paradigma que a obra varnhageana representava. Ele é aquele que tem o poder de avaliar uma testemunha histórica, em suma, é aquele que viu, escutou, e que narra fielmente o que se passou. Contudo, pode-se dizer que é o silêncio da crítica historiográfica que autoriza essa maneira de se escrever a história e esse discurso de prova, onde o jogo retórico e o exercício de persuasão são condições necessárias à consolidação do conhecimento.

Varnhagen serve-se também de um outro tipo de fonte para desarticular o mito que se formava em torno da figura de José Bonifácio: a imprensa. Após sua saída do governo, os irmãos Andradas fundaram dois periódicos para representar a oposição. Um dos jornais se chamava Tamoio, o que, do ponto de vista de Varnhagen, já era uma provocação:

o simples nome do primeiro, tomado da tribu indigena habitadora do Rio de Janeiro na epocha da colonização, e grande inimiga dos Portuguezes, e a cujas frechadas succumbira até o fundador do Rio de Janeiro, Estacio de Sá, era já como um grito de guerra contra todos os não-natos, começando pelo chefe do Estado. Guerra, pois, sem piedade, mais ou menos encoberta, contra todos os que não haviam nascido no Brasil, foi declarada, como boa isca para pescar as innocentes massas em cardume.61 61 Idem, p.264.

A etimologia guerreira que o nome do jornal comportava era, assim, uma evidência da mudança política dos Andradas: "de sustentadores da monarchia, que eram, quando no poder, os ministros saidos tornaram-se, fóra delle, democratas, factiosos, demagogos e revolucionarios".62 62 Idem. A fonte neste caso é mais uma vez a obra de J. Armitage e não sua experiência empírica. Como em outras análises varnhageanas marcadas pela subjetividade e apelo sentimental, o historiador demanda ao leitor que se posicione sobre o assunto. "Consignando aqui todos estes factos e o proprio teor das ordens, deixemos que cada qual, em sua consciência, ajuize" o papel dos irmãos Andradas, sobretudo de José Bonifácio: "amor pela ordem" ou "mesquinhos sentimentos de vingança"? Acrescenta ainda que é fundamental que se fixe "desde já um juízo", pois, na sua opinião, para compreender as ações dos Andradas ministros – José Bonifácio e Martim Francisco – nesta conjuntura é necessário saber quais eram os sentimentos que os orientam. Caso o leitor não tome partido, ele arrisca a nada compreender. O partido de Varnhagen é claro: eles se guiavam por um desejo de vingança.63 63 VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., 1916, p.239-240.

Os comentadores de Varnhagen que sustentam que seus julgamentos eram sistematicamente negativos, opinião que Arno Wehling procura demonstrar a inexatidão, tomam por fundamento, geralmente, as críticas que o historiador faz sobre a ruptura do ministro com a maçonaria. Varnhagen atribuiu aos maçons papel importante na proclamação da independência e na fundação do império. Essa interpretação foi criticada pelos positivistas do Apostolado do Rio de Janeiro.64 64 Ver a obra de MONTEIRO, Tobias. A elaboração da independência. Rio de Janeiro: Briguiet, 2.v, 1927. José Honório Rodrigues, por exemplo, que não é um historiador positivista, segue, todavia, a crítica endereçada por aqueles que consideravam que Varnhagen minimizou a participação de José Bonifácio.65 65 RODRIGUES, J. H. Op. cit., 1967, p.180-181. Ver também WEHLING, Arno. Op. cit., 1999, p.195.

Já para Clado Ribeiro Lessa as críticas de Varnhagen ao patriarca não significam que se deva negar-lhe os "louros da imparcialidade". Autor de uma apologética Vida e obra de Varnhagen, Lessa procura mostrar que os comentários do historiador não eram destituídos de sentido. O biógrafo apenas concorda com Varnhagen: "tudo o que acabamos de expor é a expressão da verdade histórica, e não seria possível a um historiador imparcial deixar de concluir, como fez o Visconde de Porto Seguro, e mais recentemente o Sr. Tobias Monteiro, que os Andradas estiveram longe de ser os precursores da idéia de Independência, e que eram insuportavelmente vaidosos e de índole despótica e atrabiliária".66 66 LESSA, C. R. Vida e obra de Varnhagen. Revista do IHGB, n.224, 1954, p.164 e p.167-168.

Lessa considera, portanto, "justíssimas" suas análises, mas observa que "as impressões recebidas na primeira infância são as mais duradouras, e não foram das melhores as que lhe deixou" José Bonifácio. Chama a atenção ainda para a influência que Varnhagen teria recebido de dois desafetos de José Bonifácio que o ajudaram em situações distintas. José da Costa Carvalho, o futuro marquês de Monte Alegre, adversário político do patriarca, forneceu ao historiador carta de recomendação quando da instalação do processo de reconhecimento de sua nacionalidade. Januário da Cunha Barbosa, secretário do IHGB, cujo apoio foi importante para Varnhagen ser admitido na instituição, havia sido perseguido e aprisionado sob as ordens de Bonifácio em 7 de dezembro de 1822. Portanto, era aceitável que Varnhagen, ao escutar as histórias do tempo da independência narrada por homens por quem nutria, segundo o comentador, um "sentimento natural de simpatia e gratidão", se deixasse levar por uma tendência anti-Andradas. Por outro lado, Lessa recorda que o historiador também fora protegido por Antônio Menezes Vasconcelos de Drumond, aliado de Bonifácio. Além disso, Varnhagen fez chegar, via Martin Francisco, ao irmão deste, Antônio Carlos Andrada, então ministro da justiça do gabinete da Maioridade, uma carta em busca do reconhecimento de sua nacionalidade. Essas últimas considerações seriam prova suficiente da imparcialidade do historiador, pois entre as "influências antagônicas ficou com a sua consciência". Assim, criticar quem o ajudou não é uma manifestação de deslealdade, uma aleivosia infantil, mas uma conseqüência do método histórico, cujos fundamentos seriam derivações conscientes dos "documentos".67 67 VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., p.227-228. LESSA, C. R. Op. cit., n.224, 1954, p.169-170.

Como um adepto de Tucídides, Lessa recusa a noção segundo a qual a proximidade com os eventos poderia ser um elemento desestabilizador para a escrita da história. Ao contrário, a quase contigüidade do historiador com os fatos que narra teria fornecido, no caso de Varnhagen, a oportunidade de ele coligir um número abundante de fontes, inclusive de testemunhos orais. Desse modo, as interpretações do tempo presente de Varnhagen são as "mais exatas possíveis". O que ocorreu, na verdade, é que suas análises foram mal entendidas ou foram manipuladas por positivistas, como o Sr. Basílio de Magalhães.

Penso, entretanto, que uma das críticas mais interessantes feitas à tentativa de Varnhagen em desarticular a criação de um mitologia política em torno da figura do patriarca, é justamente a apreciação de Basílio de Magalhães. A despeito do culto à verdade presente na obra varnhageana, Magalhães considera que "a imparcialidade absoluta não passa de um mytho, e o historiador pragmático vae além da exposição dos factos, tecendo sobre estes considerações, em que não póde deixar de intrometer os seus ideaes sociológicos e os seus motivos pessoais". Esse princípio teórico-metodológico, ao negar a possibilidade da neutralidade total durante o processo de escrita da história, acrescenta à questão aspectos até então pouco explorados pelos comentadores de Varnhagen. Dessa maneira, se o historiador, por um lado, não soube controlar os limites de sua parcialidade, por outro, sua concepção de como a história deveria ser escrita não produziu os obstáculos necessários que o teriam impedido de "tentar deprimir", segundo a expressão de Magalhães, de rebaixar um personagem como José Bonifácio:

Varnhagen, applicando conscientemente e constantemente o pragmatismo, de que se achava imbuido, a todos os seus escriptos, via mais os factos do que os homens e procurava sempre reduzir o heroismo e a thaumaturgia à justa proporção das apoucadas forças dos mortais, sem nunca se deter, deslumbrado, ante as maravilhas da nossa luxuriante natureza tropical, como o gongôrico Rocha Pitta, e sem jamais se preocupar com a esthetica das batalhas.68 68 MAGALHÃES, B. Varnhagen. Revista da Academia Brasileira de Letras, 1928, 81, p.101-102.

Para Basílio de Magalhães, Varnhagen é aquele que humaniza os heróis. Paradoxalmente essa humanização é uma maneira de desumanizar a própria história. Ele não está necessariamente ao lado dos grandes. Por princípio, está apenas ao lado dos fatos. O resto, as ações humanas, a cor local, interessam-lhe somente na medida em que fazem parte de uma factualidade possível. Assim, antes de José Honório Rodrigues, Magalhães conclui que Bonifácio é um personagem como outro qualquer. São os fatos que dão sentido à sua ação. O patriarca não está acima da história, ele não é um herói.

A herança étnica e a educação de Varnhagen contribuíram decisivamente, de acordo com Basílio de Magalhães, para a perspectiva da história não apenas parcial, mas também desprovida de grandes homens, diferentemente do que pensa José Honório Rodrigues. Não se trata aqui de uma repreensão: é preciso perdoá-lo de toda a sua "frieza germanica, a qual se deploravelmente atingiu a algumas das nossas heroicidades, ao menos lhe permitiu lobrigar, melhor do que os nossos cálidos e bombásticos escriptores e oradores românticos, tantos vícios a elidir e tantos perigos a conjurar na marcha ascensional da nossa pátria."69 69 Idem, p.103. Mesmo que Varnhagen não tenha sabido preservar o panteão nacional em construção, ele continua sendo mais confiável que os românticos, pois, de certa forma, a frieza germânica funciona como uma espécie de compensação objetiva à parcialidade que caracteriza certas passagens de sua obra. Efetivamente, Varnhagen não estima os irmãos Andradas, sobretudo José Bonifácio. No entanto, para Magalhães, não se trata de um sentimento e de uma parcialidade incontrolável ou insensata. Ele tinha suas razões, algumas históricas, outras psicológicas.

Em uma análise mais específica e crítica sobre o mito José Bonifácio, Emília Viotti da Costa menciona também as relações pessoais como uma das prováveis causas que motivaram os ataques de Varnhagen ao patriarca. Ao fazer um balanço teórico e metodológico da História da independência, a historiadora salienta que "a intenção de imparcialidade e objetividade encontravam seus próprios limites no seu método. Procurando ser mediador e juiz dos testemunhos contraditórios", Varnhagen fez "uma análise subjetiva dos fatos, optando por uma das versões correntes no tempo. Sua história não se eleva acima do nível testemunhal". Particularmente sobre José Bonifácio, Viotti da Costa observa que Varnhagen o apresentava como "vingativo" e "arbitrário", conferindo "grande importância a estes aspectos psicológicos desfavoráveis para explicar fatos da maior importância histórica". Porém, ainda que Varnhagen tenha guardado uma memória negativa, conseqüência das imagens que remontam à sua infância e às críticas desfavoráveis do patriarca à gestão de seu pai na fábrica de ferro Ipanema, sua análise, embora siga o mesmo percurso de outros detratores de José Bonifácio, foi realizada, segundo a historiadora, em um estilo mais sereno que os demais. Talvez por isso a visão varnhageana não tenha impedido, contrariamente ao que pensava José Honório Rodrigues, a produção do mito do patriarca: "a lenda de José Bonifácio, embora submetida à crítica, resistiu".70 70 COSTA, E. V. da. José Bonifácio: mito e história. In:______. Da monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977, p.96-98.

VARNHAGEN, SEU PAI E O PATRIARCA: A IMPARCIALIDADE E A EGO-HISTORIA

"Os fatos históricos são, por essência, fatos psicológicos"

Marc Bloch71 71 BLOCH, Marc. Apologie pour l'historien ou Métier d'historien. Paris: Armand Colin, 1997, p.156.

Em 1987, Pierre Nora reúne e apresenta os Essais d’ego-histoire, escritos por sete importantes historiadores franceses. Trata-se, diz Nora, de um "gênero novo, para uma nova idade da consciência histórica". O autor explica a origem de tal projeto: "ele nasceu do cruzamento de dois grandes movimentos: de um lado, a desestabilização das sinalizações clássicas da objetividade histórica, e de outro o investimento do presente pelo olhar do historiador". Assim, continua Nora

toda uma tradição científica levou os historiadores, depois de um século, a se apagar diante de seu trabalho, a dissimular sua personalidade atrás de seu saber, se entrincheirar na retaguarda de suas fichas, a fugir de si mesmo em uma outra época, a se exprimir somente através dos outros. As aquisições da historiografia colocaram em evidência após vinte anos as falsidades desta impessoalidade e o caráter precário de sua garantia. Também o historiador de hoje está pronto, diferentemente de seus predecessores, a confessar a ligação estreita, íntima e pessoal que entretém com seu trabalho. Ninguém ignora mais que um interesse declarado e elucidado oferece um abrigo mais seguro que os vãos protestos de objetividade.72 72 NORA, P. (org.) Essais d'ego-histoire. Paris: Gallimard, 1987, p.5-6. Os sete historiadores são: Maurice Agulhon, Pierre Chaunu, Georges Duby, Raoul Girardet, Jacques Le Goff, Michelle Perrot, René Raimond.

Segundo Nora, o mesmo corpo de tradições que comanda o historiador a anular sua personalidade durante o processo de escrita da história, "alimenta uma sólida desconfiança a respeito de uma história contemporânea julgada muito próxima por se beneficiar de um tratamento positivo". Para ele, "a conquista de seu próprio século e do próprio presente pelo historiador constituiu um dos avanços da disciplina nos últimos anos".73 73 Idem, p.6.

O ensaio que propus aqui segue, um pouco, esse movimento descrito por Nora. Não, não penso que Varnhagen seja um historiador da terceira geração dos Annales avant la lettre. Também não penso que ele tenha feito uma ego-história stricto sensu. Acredito apenas que essa noção, tal como proposta por Nora, é útil à compreensão da obra do historiador brasileiro.

Assim, podemos perguntar: as críticas de Varnhagen a José Bonifácio caracterizam uma tentativa clara e consciente de desarticular a formação de um mito político? Aparentemente, sim. Mas quais seriam de fato suas motivações? Como estamos falando de um historiador e de uma análise ou de um julgamento histórico, é necessário considerar, primeiramente, os aspectos ligados à sua concepção de história, ou sobretudo à sua noção de pesquisa histórica (neste caso, sobretudo, a questão das fontes) e sua exposição em texto, ou seja, problemas da escrita da história. Contudo, as questões pessoais estão sempre presentes. O historiador que escreve sobre um personagem em vias de ser panteonisado, é também o filho de um pai acusado injustamente por este personagem.

Decididamente, Varnhagen não teve sucesso em separar seus sentimentos pessoais de sua análise. E tanto em um caso como no outro – a história do pai, a história do suposto patriarca – esse procedimento não parece constituir-se em um obstáculo, seja epistemológico, seja psicológico. Ao contrário, ele não sabe, acredito, como muitos outros, talvez como a maior parte dos historiadores, escrever a história sem essa tensão subjetiva. Uma certa memória impedida e uma certa memória manipulada estão aqui em funcionamento.74 74 Paul Ricœur, base deste argumento, é uma referência constante deste ensaio. RICŒUR, P. La mémoire, l'histoire, l'oubli. Paris: Seuil, 2000, p.83-105. Assim, ao escrever sobre o patriarca Varnhagen se livra a um trabalho de rememoração que se não chega a anular os traços da atuação de Bonifácio, procura, ao menos, ao instrumentalizar ideologicamente a memória em torno de sua figura, minimizá-la. Não é possível simplesmente esquecer o patriarca. Este é o lado do historiador.

Varnhagen não somente escreve um texto, mas está no seu interior. Ele nunca se apaga. Não é possível contar a história de seu tempo sem estar nela, seja ele ou o pai. Como historiador do tempo presente, Varnhagen escreve a história a partir dele mesmo, como se fosse o centro da escritura, da história. Foi ele que viu isto e escutou aquilo. Foi ele quem encontrou tal fonte, ou que guardou tal documento. Porém, ao tentar salvar o pai de Lete, aquele rio do submundo que confere esquecimento às almas dos mortos, o Varnhagen historiador deixa-se levar por injunções nem sempre racionais, mas inconscientes. Ele então lembra. Este é lado do filho.75 75 Ver WEINRICH, H. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.24.

NOTAS

Artigo recebido em 06/2006. Aprovado em 07/2006.

  • 1 FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p.10.
  • 2 ARENDT, Hannah. The concept of history. Ancien and modern. Between pas and future. Six exercises in political thought, London, Faber and Faber, 1961, p.51.
  • 3 Meu objetivo não é o de fazer um estudo de psico-história, mas apenas de observar como certos aspectos da obra de Varnhagen estão marcados pela sua relação com a figura paterna. Sobre as relações entre história e psicanálise, ver GAY, Peter. Freud for historians. Oxford: Oxford University, 1985, especialmente, p.211-212.
  • 4 VARNHAGEN, F. A. de. Correspondência ativa. coligida e anotada por Clado Ribeiro Lessa. Rio de Janeiro: INL, MEC, 1961, p.395-396.
  • 5 CALMON, Pedro. "Varnhagen". Revista do IHGB, n.338, 1983, p.249-250.
  • Francisco Iglésias afirma que Varnhagen escreveu um "capítulo passional de defesa da obra paterna", porém ele não avança na explicação, ver IGLÉSIAS, F. Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, EUFMG, 2000, p.77.
  • 6 VARNHAGEN, F. A. de. Historia Geral do Brazil. Madrid: Imprensa de J. del Rio, 1857, t. II, p.f.
  • 9 As referências à segunda edição, de 1877, foram retiradas da 10Şedição, VARNHAGEN, F. A.de. História geral do Brasil. revisão e notas de J. Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. São Paulo: Itatiaia, Edusp, 1981, v.III, t.V, p.185.
  • 26 SAINT-HILAIRE, A. de. Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine. Paris: A. Bertrand, 1851, I, p.387,
  • 29 SANTOS, J. F. dos. Memórias do Distrito Diamantino da comarca do Serro Frio (provincia de Minas Gerais) (1868). São Paulo: Itatiaia, Edusp, 1976, p.217 e 219.
  • 30 Capistrano de Abreu não perdou Varnhagen por esta desatenção: "Ha um livro publicado entre nós sobre o Districto Diamantino, que reune ao rigor da historia o encanto do romance, e que entre outro qualquer povo já contaria muitas edições. Neste livro reclama-se para Ferreira da Camara, e nega-se documentalmente a Frederico de Varnhagen, pae do historiador, a prioridade na fundição em grande de ferro. Pois Varnhagen finge que não conhece esse livro, e faz do assumpto dos diamantes, que é um dos mais curiosos da nossa historia, uma cousa pífia e que é inferior ao que qualquer calouro poderia tentar. Emfim, é possivel que Varnhagen não conhecesse o livro; mas é tão dificil...", ABREU, J. Capistrano de. Sobre o Visconde de Porto Seguro (1882) apud VARNHAGEN, F. A. História geral do Brasil, 3.ed. e 4.ed. integral. São Paulo: Melhoramentos, 1928, p.442.
  • 36Apud MAGALHÃES, B. de. "Varnhagen", Revista da Academia Brasileira de Letras, anno XIX, vol. XXVIII, setembro, 1928, p. 102.
  • Citado também por PARANHOS, Haroldo. História do romantismo no Brasil (1830-1850). São Paulo: Cultura Brasileira, 1937, p.142.
  • 37 "A imagem de José Bonifácio 'Patriarca' forjou-se no calor das lutas políticas por ocasião da Independência. A necessidade de defender pontos de vista, de consolidar sua posição à frente do governo levou seus partidários a apresentarem-no ao público como o 'Pai da Pátria', o 'timoneiro da Independência', o 'Patriarca', expressões que começaram a circular já em 1822, quando José Bonifácio ocupava o cargo de ministro de D. Pedro", COSTA, Emília Viotti da. José Bonifácio: homem e mito. In: MOTA, Carlos Guilherme. (org.) 1822: Dimensões, São Paulo: Perspectiva, 1972, p.104.
  • Sobre o papel de José Bonifácio no processo de independência ver ainda: ARARIPE, T. de A. Ideias de José Bonifácio sobre a organização politica do Brasil. Revista do IHGB, n.77, 1888, p.79-85;
  • SOUSA, Octávio Tarquino de. História dos Fundadores do Império do Brasil José Bonifácio. v.1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, e no v.2, t.1, 1960, p.364-400;
  • CORREA FILHO, V. A presença de José Bonifácio. Revista do IHGB, n.268, 1965, p.43-64;
  • DOLHNIKOFF, M. O projeto nacional de José Bonifácio. Novos Estudos Cebrap, n.46, 1996, p.121-141;
  • MATTOS, Ilmar Rohloff. Construtores e heredeiros: a trama dos interesses na construção da unidade nacional. Almanack Braziliense, 1, maio de 2005, p.08-26.
  • Sobre os projetos políticos o próprio Bonifácio ver DOLHNIKOFF, M. (org). José Bonifácio de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil São Paulo: Cia das Letras, 1998.
  • 38 VARNHAGEN, F. A. de. Historia geral do Brazil, t.II, 1857,
  • 39 VARNHAGEN, F. A. de. Historia da Independencia do Brasil, até ao reconhecimento pela antiga metropole, comprehendendo, separadamente, a dos successos occorridos em algumas provincias até essa data. Revista do IHGB, 1916/1917, n.79, p.5-598 (citação p.139-140).
  • 42 A comissão era formada por: J. Vieira Fazenda, B. F. Ramiz Galvão, Pedro Lessa, Max Fleiuss, Basílio da Gama, Rodolfo Garcia e Pedro Souto Maior. "Relatorio da Commissão nomeada pelo presidente do IHGB para examinar e coordenar a obra manuscripta e inédita do visconde de Porto Seguro, intitulada, 'Historia da Independencia". Revista do IHGB, n.79, 1916, p.8-21.
  • 43 RODRIGUES, J. H. Varnhagen, mestre da História geral do Brasil. Revista do IHGB, n.275, 1967, p.185.
  • 44 RODRIGUES, J. H. "O pensamento político e social de José Bonifácio", SILVA, J. B. de A. Obras científicas, políticas e sociais, coligidas e reproduzidas por E. de C. Falcão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1965, p.13.
  • 45 Ver MACEDO, Joaquim M. de. Lições de Historia do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio do Pedro II, (4ş anno). Rio de Janeiro: Typographia Imparcial de J H. N. Garcia, 1861,
  • e Lições de Historia do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio do Pedro II, (7ş anno). Rio de Janeiro: D. J. Gomes Brandão, 1863, apud MATTOS, Selma R. de. O Brasil em lições. A história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.83-85.
  • 48 WEHLING, A. Estado, história e memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.191.
  • Eu sigo os exemplos de Wehling, porém os cito a partir do próprio Varnhagen. Para uma análise abrangente do período, mas plena de relações oportunas e interessantes ver: BARMAN, Roderick J. Brazil. The forging of a nation, 1798-1852. Stanford: Stanford University, 1988, p.97-129 ("A new monarch for a new nation, 1822-1825").
  • 60 Não desconheço que a expressão História do Tempo Presente adquiriu legitimidade no campo historiográfico apenas a partir da fundação do Institut d'histoire du temps présent, fundado em Paris em 1978. No entanto, os principais historiadores dessa tendência não ignoram que houve projetos de escrita da história do tempo presente desde Heródoto e Tucídides. Na idade média, por exemplo, segundo Bernard Guénée, a noção já pode ser apreendida. Reinhart Koselleck observa que na língua alemã a expressão aparece e se desenvolve desde o século XVII. Assim, mesmo no século XIX, momento em que certas perspectivas historiográficas procuravam a identidade científica definindo a história como simplesmente conhecimento do passado (onde paradoxalmente Tucídides, historiador por excelência do tempo presente, era tido como mestre e modelo), encontra-se tentativas de se escrever sobre o presente, mesmo no Brasil. Filósofos importantes do início do século XX, como Collingwood e Croce, teorizaram sobre a condição presentista da produção do conhecimento histórico. Para os modelos antigos ver questão ver: HARTOG, F. L'histoire d'Homère à Augustin: préfaces des historiens et textes sur l'histoire. Paris : Éditions du Seuil, 1999.
  • De Guénée ver: GUÉNÉE, B. Temps de l'histoire et temps de la mémoire au Moyen Âge. Annuaire-Bulletin de la Société de l'histoire de France, Paris, Klincksieck, 1978, p.25-35.
  • De Koselleck ver: KOSELLECK, R. Continuidad y cambio en toda historia del tiempo presente. Observaciones histórico-conceptuales. In:_____ Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia Buenos Aires: Paidós, 2001, p.119-120.
  • De Croce e Collingwood ver, respectivamente: CROCE, B. Teoria e storia della storiografia (1917). Milano: Adelphi, 1989;
  • COLLINGWOOD, R. G. The idea of history (revised edition), with Lectures 1926-1928, (edited with an introduction by Jan van der Dussen). Oxford: Clerendo, 1993.
  • Para uma perspectiva mais geral sobre a história do tempo presente ver: BÉDARIDA, F. L´historien régisseur du temps? Savoir et responsabilité. Revue Historique, Paris: PUF, 1998. p.3-24;
  • BÉDARIDA, F. La dialectique passé-présent et la pratique historienne. L'histoire et le métier d'historien en France 1945-1995, Paris : MSH, 1995;
  • CHAUVEAU, A.; TÉTART, P. Questions à l'histoire des temps présents Paris: Complexe, 1992;
  • e a apresentação de ARÓSTEGUI, Júlio. em: "Historia y tiempo presente. Un nuevo horizonte de la historiografía contemporaneista". Cuadernos de Historia Contemporanea, n.20, 1998, p.15-18.
  • Sobre a relação entre presentismo e projetos de história do tempo presente ver no século XIX brasileiro ver: CEZAR, Temístocles. Presentismo, memória e poesia. Noções da escrita da história no Brasil oitocentista. In: PESAVENTO, S. (org.) Escrita, linguagem, objetos Leituras de história cultural. Bauru: Edusc, 2004, p.43-80.
  • Sobre a relação entre o presentismo contemporâneo e a história do tempo presente ver: HARTOG, François. Temps et histoire. "Comment écrire l'histoire de France?". Annales, novembre-décembre, n.6, p.1219-1236, 1995;
  • e HARTOG, François. Régimes d'historicité, présentisme et expérience du temps Paris: Seuil, 2003.
  • 64 Ver a obra de MONTEIRO, Tobias. A elaboração da independência. Rio de Janeiro: Briguiet, 2.v, 1927.
  • 66 LESSA, C. R. Vida e obra de Varnhagen. Revista do IHGB, n.224, 1954, p.164 e p.167-168.
  • 68 MAGALHÃES, B. Varnhagen. Revista da Academia Brasileira de Letras, 1928, 81, p.101-102.
  • 70 COSTA, E. V. da. José Bonifácio: mito e história. In:______. Da monarquia à República: momentos decisivos São Paulo: Grijalbo, 1977, p.96-98.
  • 71 BLOCH, Marc. Apologie pour l'historien ou Métier d'historien. Paris: Armand Colin, 1997, p.156.
  • 72 NORA, P. (org.) Essais d'ego-histoire. Paris: Gallimard, 1987, p.5-6.
  • 74 Paul Ricur, base deste argumento, é uma referência constante deste ensaio. RICUR, P. La mémoire, l'histoire, l'oubli. Paris: Seuil, 2000, p.83-105.
  • 75 Ver WEINRICH, H. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.24.
  • *
    Departamento de História –UFRGS CEP 90430-160. e-mail:
  • 1
    FREUD, S.
    O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p.10.
  • 2
    ARENDT, Hannah. The concept of history. Ancien and modern.
    Between pas and future. Six exercises in political thought, London, Faber and Faber, 1961, p.51.
  • 3
    Meu objetivo não é o de fazer um estudo de psico-história, mas apenas de observar como certos aspectos da obra de Varnhagen estão marcados pela sua relação com a figura paterna. Sobre as relações entre história e psicanálise, ver GAY, Peter.
    Freud for historians. Oxford: Oxford University, 1985, especialmente, p.211-212.
  • 4
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Correspondência ativa. coligida e anotada por Clado Ribeiro Lessa. Rio de Janeiro: INL, MEC, 1961, p.395-396.
  • 5
    CALMON, Pedro. "Varnhagen".
    Revista do IHGB, n.338, 1983, p.249-250. Francisco Iglésias afirma que Varnhagen escreveu um "capítulo passional de defesa da obra paterna", porém ele não avança na explicação, ver IGLÉSIAS, F.
    Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, EUFMG, 2000, p.77.
  • 6
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Historia Geral do Brazil. Madrid: Imprensa de J. del Rio, 1857, t. II, p.f.
  • 7
    Idem, p.357.
  • 8
    Idem (em francês no original).
  • 9
    As referências à segunda edição, de 1877, foram retiradas da 10ªedição, VARNHAGEN, F. A.de.
    História geral do Brasil. revisão e notas de J. Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. São Paulo: Itatiaia, Edusp, 1981, v.III, t.V, p.185.
  • 10
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Op. cit., t.II, p.358.
  • 11
    Idem, (1877), 10ª, t.III, v.V, 1981, p.185-186.
  • 12
    Idem, 1857, t.II, p.358.
  • 13
    Idem, p.358-359. Na segunda edição da
    Historia geral, Varnhagen suprimiu o nome pai desta passagem referindo-se a ele como um "engenheiro distinto", Op. cit., (1877), 10ª, v.III, t.V, 1981, p.186.
  • 14
    Contudo Varnhagen tentou várias vezes mudar este perfil atribuindo a seu pai características mais intelectuais. Por exemplo, ele propõe que seu pai torne-se membro do IHGB: "Esqueceu-me dizer que de S. Paulo remetti duas obras de Eschwege para entregar ao Instituto, em ambas as quaes se contêm escriptos e observações de meu Pai. Parece-me que será a sua recepção uma boa occasião para serem ambos propostos socios do nosso Instituto",
    in Correspondência ativa, p.58-59.
  • 15
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Op. cit., 1857, t.II, p.360.
  • 16
    Ver a
    Instrução do Conde de Linhares a Varnhagen datada de 21 de fevereiro de 1810 de São Paulo,
    Op. cit., t.II, 1857, p.360-361.
  • 17
    Idem, p.362.
  • 18
    "Varnhagen, Inf. ao C. de Linhares, borrão incompleto, em poder do autor", Idem, p.363.
  • 19
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Op. cit., 1857, t.II, p.363-365.
  • 20
    Idem, p.365. O adjetivo
    ingênuo foi suprimido na segunda edição, ver VARNHAGEN, F. A. de.
    Op. cit, (1877), 10ª, t.III, v.V, 1981, p.193.
  • 21
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Op. cit., t.II, 1857, p.365-366.
  • 22
    Idem, p.367.
  • 23
    Varnhagen é implacável com a obra de Eschwege. Ele o acusa mesmo de plagiar seu pai. "Um espirito igualmente critico ou antes satyrico se adverte nas obras geologicas de Eschwege (escriptas em allemão)
    Pluto Brasiliensis e Achegas para o conhecimento montanistico do Brazil. Esse prazer de criticar tem sido castigado com as censuras rasoaveis, que as suas observações fazem outros geologos, que apoz elle vão visitando as comarcas de Minas, onde especialmente residiu Eschwege por alguns annos; adquirindo mais nome pela publicação em Allemanha de seus escriptos, de algumas traducções, e de varios mappas do interior do Brazil (em parte copiados de outros antigos manuscriptos que encontrou) que por legados scientificos ao Brazil, o qual quasi apenas lhe deve a medição barometrica de algumas montanhas, o ensino em Congonhas do methodo de fundir o mineral de ferro em fornilhos suecos, e a publicação na Allemanha, durante os annos que permaneceu no Brazil, de um jornal scientifico, especialmente consagrado ao Brazil, em que foram impressos trabalhos de Varnhagen e Feldner, dos quaes elle às vezes aproveitou nas duas obras mencionadas; não citando senão quando queria ter o gosto de contradizer", Idem, p.347. É necessário esclarecer que os comentários críticos são menos fortes na segunda edição da
    Historia geral, tendo sido a acusação de plágio suprimida.
  • 24
    Idem, p.368. Este fragmento também foi suprimido na segunda edição.
  • 25
    Idem, p.369.
  • 26
    SAINT-HILAIRE, A. de.
    Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine. Paris: A. Bertrand, 1851, I, p.387, apud VARNHAGEN, F. A. de.
    Op. cit., t.II, 1857, p.369, nota 2 (em francês no original).
  • 27
    Idem. A parte em itálico foi suprimida na segunda edição da
    História geral.
  • 28
    Idem, nota 1, p.370.
  • 29
    SANTOS, J. F. dos.
    Memórias do Distrito Diamantino da comarca do Serro Frio (provincia de Minas Gerais) (1868). São Paulo: Itatiaia, Edusp, 1976, p.217 e 219.
  • 30
    Capistrano de Abreu não perdou Varnhagen por esta desatenção: "Ha um livro publicado entre nós sobre o Districto Diamantino, que reune ao rigor da historia o encanto do romance, e que entre outro qualquer povo já contaria muitas edições. Neste livro reclama-se para Ferreira da Camara, e nega-se documentalmente a Frederico de Varnhagen, pae do historiador, a prioridade na fundição em grande de ferro. Pois Varnhagen finge que não conhece esse livro, e faz do assumpto dos diamantes, que é um dos mais curiosos da nossa historia, uma cousa pífia e que é inferior ao que qualquer calouro poderia tentar. Emfim, é possivel que Varnhagen não conhecesse o livro; mas é tão dificil...", ABREU, J. Capistrano de. Sobre o Visconde de Porto Seguro (1882) apud VARNHAGEN, F. A.
    História geral do Brasil, 3.ed. e 4.ed. integral. São Paulo: Melhoramentos, 1928, p.442.
  • 31
    Essa última demanda foi suprimida na segunda edição da
    Historia geral, pois "existe cunhada, desde 1858, uma medalha de bronze com o busto de Varnhagen. A idéia de um monumento aos resultados obtidos em 1818, não é nossa, nem jamais houvéramos ousado apresentá-la.
    O Investigador Português propôs uma pirâmide de ferro; o Padre Gonçalves dos Santos (
    Memórias, 2, p.338), um pedestal de mármore para a cruz de ferro, no qual se esculpissem não só os nomes de el-rei e os dos ministros, 'como também os dos sábios e incansáveis mineralógicos Câmara, Eschwege e Varnhagen'. – Sem querer disputar os méritos de Câmara e Eschwege, estes nada tinham que ver com a cruz de 1818.", VARNHAGEN, F. A. de.,
    Op. cit., 1877, 10ª, v.III, t.V, p.197.
  • 32
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Op. cit., t.II, 1857, p.370-371.
  • 33
    Idem, p.372.
  • 34
    VARNHAGEN, F. A. de.,
    Op. cit., 1877, 10ª, v.III, t.V, p.199.
  • 35
    IGLÉSIAS, Francisco.
    Op. cit., p.78.
  • 36
    Apud MAGALHÃES, B. de. "Varnhagen",
    Revista da Academia Brasileira de Letras, anno XIX, vol. XXVIII, setembro, 1928, p. 102. Citado também por PARANHOS, Haroldo.
    História do romantismo no Brasil (1830-1850). São Paulo: Cultura Brasileira, 1937, p.142.
  • 37
    "A imagem de José Bonifácio 'Patriarca' forjou-se no calor das lutas políticas por ocasião da Independência. A necessidade de defender pontos de vista, de consolidar sua posição à frente do governo levou seus partidários a apresentarem-no ao público como o 'Pai da Pátria', o 'timoneiro da Independência', o 'Patriarca', expressões que começaram a circular já em 1822, quando José Bonifácio ocupava o cargo de ministro de D. Pedro", COSTA, Emília Viotti da. José Bonifácio: homem e mito. In: MOTA, Carlos Guilherme. (org.)
    1822: Dimensões, São Paulo: Perspectiva, 1972, p.104. Sobre o papel de José Bonifácio no processo de independência ver ainda: ARARIPE, T. de A. Ideias de José Bonifácio sobre a organização politica do Brasil.
    Revista do IHGB, n.77, 1888, p.79-85; SOUSA, Octávio Tarquino de.
    História dos Fundadores do Império do Brasil. José Bonifácio. v.1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, e no v.2, t.1, 1960, p.364-400; CORREA FILHO, V. A presença de José Bonifácio.
    Revista do IHGB, n.268, 1965, p.43-64; DOLHNIKOFF, M. O projeto nacional de José Bonifácio.
    Novos Estudos Cebrap, n.46, 1996, p.121-141; MATTOS, Ilmar Rohloff. Construtores e heredeiros: a trama dos interesses na construção da unidade nacional.
    Almanack Braziliense, 1, maio de 2005, p.08-26. Sobre os projetos políticos o próprio Bonifácio ver DOLHNIKOFF, M. (org). José Bonifácio de Andrada e Silva.
    Projetos para o Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
  • 38
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Historia geral do Brazil, t.II, 1857, nota correspondente às páginas 348 e 349 e 481. A nota foi suprimida na segunda edição da obra de 1877.
  • 39
    VARNHAGEN, F. A. de. Historia da Independencia do Brasil, até ao reconhecimento pela antiga metropole, comprehendendo, separadamente, a dos successos occorridos em algumas provincias até essa data.
    Revista do IHGB, 1916/1917, n.79, p.5-598 (citação p.139-140).
  • 40
    Idem, p.140, nota 34.
  • 41
    Ver SILVA, J. B. de A. e. Memoria economica e mettalurgica sobre a fabrica de ferro de Ypanema – Sorocaba – 1820, apud VARNHAGEN, F. A. de. Op. cit., 1981, 10.ed., v.3, t.V, p.202-208, publicada pelo editor do volume Rodolfo Garcia. Para comentários, apoiando a crítica de Bonifácio ver SOUSA, Octávio Tarquino de.
    História dos Fundadores do Império do Brasil, Op. cit., p.135-137.
  • 42
    A comissão era formada por: J. Vieira Fazenda, B. F. Ramiz Galvão, Pedro Lessa, Max Fleiuss, Basílio da Gama, Rodolfo Garcia e Pedro Souto Maior. "Relatorio da Commissão nomeada pelo presidente do IHGB para examinar e coordenar a obra manuscripta e inédita do visconde de Porto Seguro, intitulada, 'Historia da Independencia".
    Revista do IHGB, n.79, 1916, p.8-21.
  • 43
    RODRIGUES, J. H. Varnhagen, mestre da História geral do Brasil.
    Revista do IHGB, n.275, 1967, p.185.
  • 44
    RODRIGUES, J. H. "O pensamento político e social de José Bonifácio", SILVA, J. B. de A.
    Obras científicas, políticas e sociais, coligidas e reproduzidas por E. de C. Falcão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1965, p.13.
  • 45
    Ver MACEDO, Joaquim M. de.
    Lições de Historia do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio do Pedro II, (4º anno). Rio de Janeiro: Typographia Imparcial de J H. N. Garcia, 1861, e
    Lições de Historia do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio do Pedro II, (7º anno). Rio de Janeiro: D. J. Gomes Brandão, 1863, apud MATTOS, Selma R. de.
    O Brasil em lições. A história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.83-85.
  • 46
    RODRIGUES, J. H. "O pensamento político e social de José Bonifácio".
    Op. cit. 1965, p.13.
  • 47
    RODRIGUES, J. H.
    Op. cit., 1967, p.182.
  • 48
    WEHLING, A.
    Estado, história e memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.191. Eu sigo os exemplos de Wehling, porém os cito a partir do próprio Varnhagen. Para uma análise abrangente do período, mas plena de relações oportunas e interessantes ver: BARMAN, Roderick J.
    Brazil. The forging of a nation, 1798-1852. Stanford: Stanford University, 1988, p.97-129 ("A new monarch for a new nation, 1822-1825").
  • 49
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Historia geral do Brazil, Op. cit., 1857, p.298 e 312.
  • 50
    Essa passagem foi acrescentada na segunda edição. VARNHAGEN, F. A. de.
    Historia geral do Brazil, Op. cit., 1877, 10ª, v.3, t.V., p.209.
  • 51
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Historia da independencia do Brasil, op. cit., 1916, p.32.
  • 52
    Idem, 1857, p.315.
  • 53
    Idem, p.316-317.
  • 54
    Idem, 1916, p.45.
  • 55
    WEHLING, A.
    Op. cit., 1999, p.192.
  • 56
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Historia da independencia do Brasil, Op. cit., 1916, p.233.
  • 57
    Continua Varnhagen: "e não era muito que, na flor da mocidade, o príncipe, ouvindo-as na boca de um sabio, chegasse a querer até nisto imitá-lo". Idem, p.140.
  • 58
    Idem, p.213-215.
  • 59
    Idem, 1916, p.250.
  • 60
    Não desconheço que a expressão
    História do Tempo Presente adquiriu legitimidade no campo historiográfico apenas a partir da fundação do
    Institut d'histoire du temps présent, fundado em Paris em 1978. No entanto, os principais historiadores dessa tendência não ignoram que houve projetos de escrita da história do tempo presente desde Heródoto e Tucídides. Na idade média, por exemplo, segundo Bernard Guénée, a noção já pode ser apreendida. Reinhart Koselleck observa que na língua alemã a expressão aparece e se desenvolve desde o século XVII. Assim, mesmo no século XIX, momento em que certas perspectivas historiográficas procuravam a identidade científica definindo a história como simplesmente conhecimento do passado (onde paradoxalmente Tucídides, historiador por excelência do tempo presente, era tido como mestre e modelo), encontra-se tentativas de se escrever sobre o presente, mesmo no Brasil. Filósofos importantes do início do século XX, como Collingwood e Croce, teorizaram sobre a condição presentista da produção do conhecimento histórico. Para os modelos antigos ver questão ver: HARTOG, F.
    L'histoire d'Homère à Augustin: préfaces des historiens et textes sur l'histoire. Paris : Éditions du Seuil, 1999. De Guénée ver: GUÉNÉE, B. Temps de l'histoire et temps de la mémoire au Moyen Âge.
    Annuaire-Bulletin de la Société de l'histoire de France, Paris, Klincksieck, 1978, p.25-35. De Koselleck ver: KOSELLECK, R. Continuidad y cambio en toda historia del tiempo presente. Observaciones histórico-conceptuales. In:_____
    Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Buenos Aires: Paidós, 2001, p.119-120. De Croce e Collingwood ver, respectivamente: CROCE, B.
    Teoria e storia della storiografia (1917). Milano: Adelphi, 1989; COLLINGWOOD, R. G.
    The idea of history (revised edition), with Lectures 1926-1928, (edited with an introduction by Jan van der Dussen). Oxford: Clerendo, 1993. Para uma perspectiva mais geral sobre a história do tempo presente ver: BÉDARIDA, F. L´historien régisseur du temps? Savoir et responsabilité.
    Revue Historique, Paris: PUF, 1998. p.3-24; BÉDARIDA, F. La dialectique passé-présent et la pratique historienne.
    L'histoire et le métier d'historien en France 1945-1995, Paris : MSH, 1995; CHAUVEAU, A.; TÉTART, P.
    Questions à l'histoire des temps présents. Paris: Complexe, 1992; e a apresentação de ARÓSTEGUI, Júlio. em: "Historia y tiempo presente. Un nuevo horizonte de la historiografía contemporaneista".
    Cuadernos de Historia Contemporanea, n.20, 1998, p.15-18. Sobre a relação entre presentismo e projetos de história do tempo presente ver no século XIX brasileiro ver: CEZAR, Temístocles. Presentismo, memória e poesia. Noções da escrita da história no Brasil oitocentista. In: PESAVENTO, S. (org.)
    Escrita, linguagem, objetos. Leituras de história cultural. Bauru: Edusc, 2004, p.43-80. Sobre a relação entre o presentismo contemporâneo e a história do tempo presente ver: HARTOG, François. Temps et histoire. "Comment écrire l'histoire de France?".
    Annales, novembre-décembre, n.6, p.1219-1236, 1995; e HARTOG, François.
    Régimes d'historicité, présentisme et expérience du temps. Paris: Seuil, 2003.
  • 61
    Idem, p.264.
  • 62
    Idem. A fonte neste caso é mais uma vez a obra de J. Armitage e não sua experiência empírica.
  • 63
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Op. cit., 1916, p.239-240.
  • 64
    Ver a obra de MONTEIRO, Tobias.
    A elaboração da independência. Rio de Janeiro: Briguiet, 2.v, 1927.
  • 65
    RODRIGUES, J. H.
    Op. cit., 1967, p.180-181. Ver também WEHLING, Arno. Op. cit., 1999, p.195.
  • 66
    LESSA, C. R. Vida e obra de Varnhagen.
    Revista do IHGB, n.224, 1954, p.164 e p.167-168.
  • 67
    VARNHAGEN, F. A. de.
    Op. cit., p.227-228. LESSA, C. R. Op. cit., n.224, 1954, p.169-170.
  • 68
    MAGALHÃES, B. Varnhagen.
    Revista da Academia Brasileira de Letras, 1928, 81, p.101-102.
  • 69
    Idem, p.103.
  • 70
    COSTA, E. V. da. José Bonifácio: mito e história. In:______.
    Da monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977, p.96-98.
  • 71
    BLOCH, Marc.
    Apologie pour l'historien ou Métier d'historien. Paris: Armand Colin, 1997, p.156.
  • 72
    NORA, P. (org.)
    Essais d'ego-histoire. Paris: Gallimard, 1987, p.5-6. Os sete historiadores são: Maurice Agulhon, Pierre Chaunu, Georges Duby, Raoul Girardet, Jacques Le Goff, Michelle Perrot, René Raimond.
  • 73
    Idem, p.6.
  • 74
    Paul Ricœur, base deste argumento, é uma referência constante deste ensaio. RICŒUR, P.
    La mémoire, l'histoire, l'oubli. Paris: Seuil, 2000, p.83-105.
  • 75
    Ver WEINRICH, H.
    Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.24.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Set 2010
    • Data do Fascículo
      2005

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2006
    • Aceito
      Jul 2006
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