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Medo de mim: experiências e vivências de residentes em saúde na pandemia de Covid-19

Miedo de mí: experiencias y vivencias de residentes de salud en la pandemia de Covid-19

Resumos

A pandemia de Covid-19 trouxe impactos aos profissionais de saúde, inclusive aos residentes. O estudo busca analisar os impactos da pandemia na saúde mental de residentes em saúde no contexto da Residência Médica e Multiprofissional e as implicações no processo formativo desses profissionais. Trata-se de pesquisa qualitativa com entrevistas realizadas com residentes médicos e multiprofissionais e análise temática de conteúdo. Os residentes em saúde atuaram na linha de frente no enfrentamento da pandemia, sendo considerados profissionais vulneráveis devido à exposição ao vírus e ao sofrimento psíquico, bem como ao medo do adoecimento. Sofreram os efeitos do distanciamento social, tanto como atitude para evitar a transmissão, como pelos medos de familiares e pessoas de sua convivência, provocando solidão. Surgiram impactos na saúde mental, demonstrando necessário planejamento de ações para acolher e favorecer a formação dos residentes em saúde.

Palavras-chave
Residências em Saúde; Covid-19; Saúde mental; Medo; Formação profissional


La pandemia de Covid-19 causó impactos a los profesionales de salud, incluso a los residentes. El objetivo del estudio fue analizar los impactos de la pandemia en la salud mental de residentes de salud en el contexto de la Residencia Médica y Multiprofesional y las implicaciones en el proceso formativo de esos profesionales. Se trata de una investigación cualitativa con entrevistas realizadas con residentes médicos y multiprofesionales, con realización de análisis temático de contenido. Los residentes de salud actuaron en la primera línea del enfrentamiento de la pandemia, siendo considerados profesionales vulnerables debido a la exposición al virus y al sufrimiento psíquico, como el miedo a enfermarse. Sufrieron los efectos de la distancia social, tanto como actitud para evitar la trasmisión como por los miedos de familiares y personas de su convivencia, causando soledad. Surgieron impactos en la salud mental, demostrando una necesaria planificación de acciones para acoger y favorecer la formación de los residentes de salud.

Palabras clave
Internado y residencia; Covid-19; Salud mental; Miedo; Capacitación profesional


The Covid-19 pandemic has affected health professionals, including residents. This study aims to reflect on the impacts of the pandemic on the mental health of residents in the context of medical and multiprofessional residency and the implications for the training process of these professionals. It is a qualitative research study involving interviews conducted with medical and multiprofessional residents, utilizing thematic content analysis. Health residents were at the forefront of confronting the pandemic and are considered vulnerable professionals due to their exposure to the virus and psychological distress, such as fear of illness. They experienced the effects of social distancing, both as a measure to prevent transmission and due to concerns from family members and cohabitants, resulting in feelings loneliness. The study reveals impacts on mental health, highlighting the importance of planning actions to provide and enhance the training of health residents.

Keywords
Internship and residency; Covid-19; Mental health; Fear; Professional training


Introdução

O primeiro caso de Covid-19 notificado no Brasil foi em 26 de fevereiro de 2020. Segundo dados do Ministério da Saúde11 Brasil. Ministério da Saúde. Painel Coronavírus [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2023 [citado 20 Abr 2023]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/
https://covid.saude.gov.br/...
, o país ultrapassou 700 mil óbitos e mais de 37 milhões de casos confirmados da doença até abril de 2023.

Pandemias como a de Covid-19 testaram a capacidade de organização dos sistemas de saúde do mundo todo, inclusive do Brasil, uma vez que sua rápida transmissão e a gravidade dos casos expuseram as necessidades urgentes de investimentos para o fortalecimento da Saúde Pública. Outra característica da pandemia de Covid-19, principalmente no primeiro ano de sua ocorrência, foi o alto número de casos entre profissionais de saúde, impulsionados pela alta exposição aos doentes e escassez de equipamentos de proteção individual (EPI), o que agravou o enfrentamento nos serviços de saúde22 Vedovato TG, Andrade CB, Santos DL, Bitencourt SM, Almeida LP, Sampaio JFS. Trabalhadores(as) da saúde e a Covid-19: condições de trabalho à deriva? Rev Bras Saude Ocup. 2021; 46:e1..

Os impactos da pandemia foram inumeráveis, inclusive na formação em saúde de profissionais residentes, a exemplo de programas de Residência cirúrgica que tiveram suas atividades remanejadas para o atendimento exclusivo de casos de Covid-19, indicando uma percepção de prejuízo na formação pelos residentes33 Zeni Neto C, Castro GRA, Pires PH, Souza TD, Postiglioni AV, Pereira IRPD. Análise do impacto da pandemia de Covid-19 no ensino em residências médicas de cirurgia geral. BioSCIENCE. 2022; 80(2):32-7..

O ensino na Graduação também foi afetado, como no caso da enfermagem, marcado por contradições quanto a repercussões positivas e negativas do ensino remoto; ausência ou diminuição das atividades práticas para testar habilidades técnicas44 Nascimento AAA, Ribeiro SEA, Marinho ACL, Azevedo VD, Moreira MEM, Azevedo IC. Repercussões da pandemia Covid-19 na formação em enfermagem: scoping review. Rev Latino-Am Enfermagem. 2023; 31:e3913.; ou ainda dos estudantes de medicina que sofreram impactos psicológicos e socioculturais, demonstrando insegurança e incertezas com sua formação acadêmica55 Souza ER, Tonholo C, Kajiyama FM, Leite MPC, Pio DAM, Bettini RV. Estudantes do curso de medicina na pandemia da Covid-19: experiências por meio de narrativas. Rev Bras Educ Med. 2023; 47(1):e022..

A pandemia de Covid-19 provocou a perda de profissionais de saúde por óbito ou por afastamento causados pela infecção do vírus, desencadeando dificuldades na reposição de recursos humanos22 Vedovato TG, Andrade CB, Santos DL, Bitencourt SM, Almeida LP, Sampaio JFS. Trabalhadores(as) da saúde e a Covid-19: condições de trabalho à deriva? Rev Bras Saude Ocup. 2021; 46:e1.. Nesse contexto, os residentes em saúde – profissionais de saúde graduados e que estão em formação em serviços de saúde – tiveram papel de destaque na atuação de linha de frente e enfrentamento da pandemia, mas sofreram com as transformações impostas por ela66 Farias E. O processo formativo de um programa de residência multiprofissional em saúde da família na ótica de egressos [dissertação]. Cascavel: Universidade do Oeste do Paraná; 2023..

Nas residências em saúde – médicas e multiprofissionais –, há dedicação com carga horária semanal de sessenta horas durante o período de dois anos ou mais, dividindo-se entre atividades teóricas e práticas. Essas características já são fatores suficientes para justificar exaustação física e emocional, que se intensificou com as consequências advindas da pandemia77 Dantas ESO, Araújo Filho JD, Silva GWS, Silveira MYM, Dantas MNP, Meira KC. Fatores associados à ansiedade em residentes multiprofissionais em saúde durante a pandemia por Covid-19. Rev Bras Enferm. 2021; 74 Supl 1:e20200961..

Partindo dessa problemática, este artigo analisou os impactos da pandemia na saúde mental de residentes em saúde, no contexto da Residência médica e multiprofissional, e as implicações em seus processos formativos, na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O estudo justificou-se pela necessidade de compreensão desses impactos, contribuindo para o registro histórico do papel exercido pelos residentes durante a pandemia e o planejamento de ações que indiquem estratégias de enfrentamento em situações semelhantes.

Este artigo foca nas vivências e experiências ocorridas durante o primeiro ano da pandemia com residentes em saúde, compondo parte do estudo de mestrado do primeiro autor. O estudo buscou ainda identificar repercussões das informações e recomendações de autoridades do Estado acerca da pandemia de Covid-19, na atuação dos profissionais de saúde; identificar dificuldades no processo de trabalho percebidas pelos residentes em saúde durante a pandemia de Covid-19; e identificar estratégias de sobrevivência e solidariedade em relação à equipe e aos próprios residentes.

Metodologia

Esta foi uma investigação qualitativa, objetivando compreender os fenômenos e processos que correspondem ao mais íntimo das relações humanas, ou seja, suas motivações, crenças, valores e atitudes, aquilo que não é possível quantificar ou mensurar88 Minayo MCS. Pesquisa social: teoria método e criatividade. 17a ed. Petrópolis: Vozes; 2002..

Para a construção de dados, utilizamos entrevistas semiestruturadas com auxílio de um roteiro na intenção de resgatar a vivência do início da pandemia na residência, os impactos percebidos e sua relação com as informações no período pandêmico, bem como uma pergunta narrativa sobre uma situação marcante vivida na pandemia.

A entrevista semiestruturada e a narrativa são técnicas que se complementam e podem ser utilizadas em investigações qualitativas para aprofundar o conhecimento sobre um mesmo objeto.

A narrativa busca compreender com profundidade o fenômeno a ser investigado, pela emersão das histórias de vida ou pelo atravessamento de situações vivenciadas no cotidiano99 Muylaert CJ, Sarubbi V Jr, Gallo PR, Rolim Neto ML, Reis AOA. Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(2 Spec No):193-9..

Larrosa1010 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8. instrumentaliza essa investigação com o conceito de experiência, definido como “aquilo que nos toca, nos acontece”, nos afeta, o que nos é significativo, não um simples passar pelas coisas cotidianas. A experiência não pode ser definida como o mero ato de se informar, uma vez que a informação por si só não possibilita aprender com um acontecimento, ou seja, não basta passar o tempo todo em busca de estar bem-informado, pois nada garante que o sujeito será tocado com a informação.

Assim, os conceitos de narrativa e experiência orientaram teoricamente a análise dessa investigação. As entrevistas foram realizadas via Skype e Google Meet, e todas em encontro único, com duração média de cinquenta minutos, de junho de 2020 a fevereiro de 2021.

A seleção dos participantes foi feita por meio de amostragem não probabilística do tipo bola de neve, utilizando cadeias de referência de informantes-chave identificados como sementes, os quais auxiliaram o pesquisador a potencializar os contatos da pesquisa. As sementes indicam outras pessoas de sua rede que possam vir a participar e sucessivamente a amostragem vai se definindo e aumentando1111 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas. 2014; 22(44):203-20..

As sementes do estudo foram participantes indicados por professores ou trabalhadores dos serviços de saúde em que os residentes realizaram estágios durante o período da pandemia.

Houve seleção intencional dos participantes para garantir diversidade, entrevistando-se profissionais em formação nas Residências em Saúde, em áreas que incluem a Atenção Primária à Saúde (APS) como campo de formação obrigatória, abarcando as Residências de Medicina de Família e Comunidade, Pediatria e os programas em área multiprofissional de Saúde da Família, Saúde Mental e Saúde do Adulto e Idoso. Essa opção ocorreu devido a todos os participantes terem estagiado na APS, em 2020, e terem se envolvido em ações e atividades voltadas ao cuidado individual e/ou coletivo relacionadas à pandemia.

Os participantes foram contactados por aplicativo de mensagem em aparelho telefônico e convidados a participar da pesquisa. Houve cinco convites recusados por indisponibilidade de tempo ou interesse, além de não ter havido retorno de alguns convites. Utilizamos a técnica da saturação para interrupção da construção de dados, pois os obtidos se demonstraram suficientes para responder aos objetivos da pesquisa, além de o acréscimo de informações não se mostrar necessário1212 Nascimento LCN, Souza TV, Oliveira ICS, Moraes JRMM, Aguiar RCB, Silva LF. Saturação teórica em pesquisa qualitativa: relato de experiência na entrevista com escolares. Rev Bras Enferm. 2018; 71(1):228-33..

Quadro 1
Participantes do estudo segundo área de residência, ano de formação, idade e gênero

Os dados coletados foram transcritos manualmente, e o processo de análise seguiu os procedimentos metodológicos propostos por Gomes1313 Gomes R. Análise e Interpretação de dados em Pesquisa Qualitativa. In: Deslandes S, Gomes R, Minayo MCS. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 31a ed. Petrópolis: Vozes; 2019. Cap. 4, p. 79-105. para Análise de Conteúdo Temática.

Houve foco nos temas presentes nas falas dos participantes, podendo ser representados por uma palavra, uma frase ou um resumo, compreendidos como unidades de registro1313 Gomes R. Análise e Interpretação de dados em Pesquisa Qualitativa. In: Deslandes S, Gomes R, Minayo MCS. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 31a ed. Petrópolis: Vozes; 2019. Cap. 4, p. 79-105.. No presente estudo, optamos por manter os registros o mais completos possível para garantir a essência das narrativas e conservar a contextualização dos conteúdos, processo de análise definido como unidades de contexto1313 Gomes R. Análise e Interpretação de dados em Pesquisa Qualitativa. In: Deslandes S, Gomes R, Minayo MCS. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 31a ed. Petrópolis: Vozes; 2019. Cap. 4, p. 79-105..

Iniciou-se pela leitura exaustiva e pela busca de uma compreensão geral, passando a se impregnar por todo o conteúdo. Depois, o material foi decomposto em partes.

Em seguida, passou-se para a exploração e a análise do material, percurso metodológico que auxiliou na definição de categorias por meio dos núcleos de sentido, entendidos como o processo de esquematização e diálogo dos trechos selecionados para compreensão dos temas mais amplos que auxiliarão a elaborar a análise1313 Gomes R. Análise e Interpretação de dados em Pesquisa Qualitativa. In: Deslandes S, Gomes R, Minayo MCS. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 31a ed. Petrópolis: Vozes; 2019. Cap. 4, p. 79-105..

Na última etapa de análise, obteve-se um resultado por meio de uma síntese interpretativa, referente à hipótese levantada na pesquisa acerca do impacto da pandemia na saúde mental de residentes em saúde e no processo formativo, dialogados com estudos que embasaram nossa análise1313 Gomes R. Análise e Interpretação de dados em Pesquisa Qualitativa. In: Deslandes S, Gomes R, Minayo MCS. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 31a ed. Petrópolis: Vozes; 2019. Cap. 4, p. 79-105., autores como Raquel Silva Freire, Felipe Ornell, Carmem Teixeira e colaboradores. Para garantir o sigilo da identidade dos participantes, seus nomes foram alterados. Utilizou-se a letra R para se referir a residente, seguida do ano em que estavam na Residência. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Faculdade de Medicina de Botucatu, conforme parecer consubstanciado n. 3.994.204.

Resultados e discussão

Para analisarmos os impactos da pandemia na saúde mental de residentes e as implicações no processo formativo, os resultados estão apresentados em três categorias: medo do adoecimento; solidão no distanciamento social; saúde mental durante a pandemia.

Categoria 1. Medo do adoecimento

Os residentes vivenciaram os afetos e emoções se entrelaçando em momentos de paralisia diante dos medos provocados pela pandemia. Os medos da morte e de se infectarem e transmitirem para outras pessoas somaram-se à angústia decorrente da necessidade e do dever de ser um profissional de saúde e trabalhar na linha de frente.

O medo refere-se tanto a um objeto específico como a nenhum objeto, ou seja, o medo pode estar relacionado com um estado de disposição e preparação perante um perigo real ou um perigo de ordem subjetiva1414 Klein T, Herzog R. Inibição, sintoma e medo? Algumas notas sobre a Angst na psicanálise. Rev Latinoam Psicopat Fund. 2017; 20(4):686-704.. No caso da pandemia, o perigo mostrava-se real e concreto por meio da infecção e do risco de morte, e os residentes apresentavam intensa insegurança e medo devido à possibilidade de transmitir a doença para familiares e outras pessoas de seu convívio.

A chegada do novo coronavírus ao Brasil coincidiu com o início das novas turmas das residências em saúde, que se dá anualmente em março. Portanto, os residentes foram surpreendidos e tiveram que se preparar para lidar com a gravidade e as consequências de uma pandemia.

Assim que os residentes em saúde foram inseridos nos serviços, passaram a estar expostos ao risco de contaminação com o vírus SARS-COV-2, despertando diferentes formas de medos, angústias e incertezas vivenciadas ao longo da pandemia, deparando-se com a finitude e com o fato de ser um potencial transmissor do vírus.

Todo mundo ficou muito assustado, eu não me lembro de ter ficado assustada, mas me lembro de que era uma coisa importante, que a gente ia passar por um processo de mudança e que ia simplesmente mudar completamente a nossa rotina, enquanto profissional da área da saúde, tanto quanto residente. No começo a gente teve muitas reuniões. Foi bem cansativo até, pra tentar alinhar, pra tentar entender, as pessoas estavam muito angustiadas. Tipo, a cada momento, a cada 20 minutos era uma coisa diferente, a cada meia hora aparecia uma orientação nova, a gente montava uma escala, e não era nada daquilo, muda tudo, a gente vai fazer tal coisa, o Nasf vai se organizar de tal forma, ou não, não é nada disso. Então foi bem assim, no começo, na primeira e segunda semana eu senti muito essa incerteza total, geral. As pessoas muito abatidas mesmo, a coordenação da residência, os gestores do serviço, as pessoas com as quais eu tive contato, bem angustiadas, bem aflitas. Mas eu assim, entendendo a gravidade, mas pessoalmente eu não senti que eu fiquei emocionalmente muito abalada. Tipo, é isso, beleza, é o que tem pra agora, vamos, a gente vai se adaptar e vamos trabalhar nisso.

(Milena, R2, nutricionista em Saúde da Família)

As dificuldades dos residentes para lidar com os riscos no início da pandemia, em meados de março de 2020, misturavam-se com as dificuldades das coordenações das residências e dos serviços de saúde em organizar uma rotina em que pudessem trabalhar com segurança em meio a tanta angústia que os permeava.

A narrativa a seguir demonstra que, apesar de manter as medidas de cuidado, como uso de EPI e distanciamento social, o medo de se infectar e transmitir não ficou sob controle, pois estava constantemente próximo de casos suspeitos, havendo o risco de contaminar familiares que não estavam expostos ao vírus.

Eu acho que eu fui me acostumando, não sei se essa é a palavra, com o dia a dia do uso dos EPIs, do distanciamento, de tomar cuidado, e a neura foi saindo assim, foi se dissipando aos poucos, e hoje, na verdade há duas semanas, teve dois suspeitos na Unidade, dois casos suspeitos e mais duas pessoas foram afastadas, então foram quatro pessoas afastadas. As quatro pessoas colheram o swab e só uma deu positivo, porque a mãe dela também deu positivo, então os outros três deram negativo, mas enquanto o resultado não saía eu entrei de novo naquela de “ai meu deus, a gente tá exposto o tempo todo”, né? E eu morei fora, então eu morava sozinha, mas agora que eu voltei pra cá eu tô morando com os meus pais, então dá um certo medo de trazer isso pra eles. Eles fazendo o distanciamento, e eu continuando trabalhando, então traz um pouco de uma angústia, assim, sabe? Mas isso eu tô conseguindo por enquanto levar. É uma montanha russa. Às vezes você surta, aí você volta ao normal.

(Lavínia, R1, fisioterapeuta em Saúde da Família)

No confinamento provocado pela Covid-19, os pacientes em tratamento psicológico falavam do medo incessantemente, sobretudo do medo da morte, a própria e a de entes queridos. Na pandemia, o medo da infecção pelo vírus, esse enigmático inimigo da vida humana, surge quase indistinguível da angústia, pois há o objeto que se teme, mas onde está ele? A invisibilidade do vírus esvanece o objeto que se teme e ao mesmo tempo o torna onipresente, produzindo o sufocamento característico da angústia. Quando medo e angústia se homogeneízam, prestando-se a uma inédita confusão afetiva, os sujeitos reagem de formas diferentes: com perplexidade, negacionismo ou aturdimento1515 Jorge MA, Mello DM, Nunes MR. Medo, perplexidade, negacionismo, aturdimento e luto: afetos do sujeito da pandemia. Rev Latinoam Psicopat Fund. 2020; 23(3):583-96..

O medo pelo risco de transmissão demonstrava-se tão intenso a ponto de os residentes apresentarem sofrimentos psíquicos, como crises de pânico e ansiedade generalizada, advindos do medo de desenvolver uma condição grave com a Covid-19 e vir a ter um desfecho fatal. Surgiram adoecimentos mentais, que necessitaram em alguns casos de suporte medicamentoso.

Então, isso tudo foi muito frustrante até o momento que eu adoeci. Eu tive um ataque de pânico na Unidade, porque estava com medo de ter o Covid. Isso aconteceu, porque comecei a ler relatos de médicos, jovens hígidos, como é o meu caso, que tinham complicado com coronavírus muito rápido sem a gente ter aquela explicação. Tive taquicardia sustentada, precisou de medicação pra baixar, passei dois dias afastada da residência por isso. Às vezes sinto que a ansiedade sobe especialmente quando me coloco em situações de “risco”, que é quando faço a triagem, quando tô lá na triagem, esse medo de pegar a doença, pra mim tem duas partes: que é o medo de pegar a doença e desenvolver alguma coisa grave, mas isso acho que vem de um aspecto muito mais ansiogênico próprio meu, do que alguma coisa funcional. Claro que é um medo racional, eu imagino ter coronavírus, mas o meu medo, acho que é o medo de muitos médicos que conversei, é que a gente fica ansioso. Então a gente começa do medo normal, que é ter o coronavírus, você começa “ah, vou ter coronavírus e vou morrer”, e coisas que não fazem sentido, da lógica racional, da medicina. Outro medo meu, o medo de todos os médicos, é passar pra algum familiar. Passar pra outras pessoas.

(Carol, R1, médica em Medicina de Família e Comunidade)

O medo da morte é justificado pelo elevado número de mortes no mundo. Em setembro de 2021, a OMS divulgou dados indicando que cerca de 180 mil profissionais de saúde morreram de Covid-19 em todo o mundo e fez uma estimativa de que no Brasil até 13.600 profissionais de saúde podem ter morrido de Covid-191616 World Health Organization. The impact of Covid-19 on health and care workers: a closer look at deaths. Geneva: Working Paper 1; 2021. .

Habitualmente, os residentes em saúde são inseridos nos serviços e passam a acompanhar os entraves e dinâmicas do processo de trabalho dos demais profissionais de saúde, o que não foi diferente durante a pandemia. Os hospitais referências no atendimento a pacientes com Covid-19 apontaram a sobrecarga de tarefas, medo, estresse e insegurança vivenciados nos locais de trabalho1717 Freire RMS, Batista GS, Carvalho TA, Silva DS, Faustino TN, Merces MC. Profissional residente no enfrentamento da Covid-19: relato de experiência no contexto da enfermagem intensiva. Enferm Bras. 2020; 19 Supl 4:S13-20.. Foram descritos o aumento do número de profissionais de saúde infectados com o vírus e, consequentemente, o elevado número de óbitos, assim como os sentimentos de frustração e impotência diante das perdas diárias de pacientes e o medo do desamparo em um possível caso de infecção1717 Freire RMS, Batista GS, Carvalho TA, Silva DS, Faustino TN, Merces MC. Profissional residente no enfrentamento da Covid-19: relato de experiência no contexto da enfermagem intensiva. Enferm Bras. 2020; 19 Supl 4:S13-20..

Houve dificuldades na atuação nos hospitais, com destaque para Unidades de Terapia Intensiva (UTI), uma vez que os profissionais passaram a ser responsáveis por pacientes com quadros muito graves, e o início da formação na Residência pressupõe certa inexperiência, tornando sua atuação mais desafiadora no contexto pandêmico. Exigiu-se rápida adaptação ao processo de trabalho, com busca de novos conhecimentos para auxiliar nas práticas e não sucumbir com as pressões psicológicas causadas pela pandemia1717 Freire RMS, Batista GS, Carvalho TA, Silva DS, Faustino TN, Merces MC. Profissional residente no enfrentamento da Covid-19: relato de experiência no contexto da enfermagem intensiva. Enferm Bras. 2020; 19 Supl 4:S13-20..

Categoria 2. Solidão no distanciamento social

Diante do alto risco de infecção e da gravidade dos casos, da pequena oferta de EPIs, do desconhecimento da evolução natural da doença e da ausência de medidas de prevenção específicas, como vacinas, foi preciso adotar estratégias para conter o avanço da pandemia, principalmente por meio do distanciamento entre as pessoas. Isso aconteceu também no ambiente de trabalho, forçando a reorganização dos serviços de saúde na busca de não causar aglomerações, por meio de escalas e rodízio entre os funcionários locais e residentes.

O distanciamento social ampliado (DSA) é considerado um método eficaz para reduzir os indicadores de morbimortalidade. Foi uma estratégia implementada por grande parte dos países, como pelo Brasil, na busca de minimizar as transmissões pelo coronavírus e, consequentemente, evitar a sobrecarga dos serviços, o que poderia levar ao colapso do sistema de saúde1818 Rocha DM, Silva JS, Abreu IM, Mendes PM, Leite HDCS, Ferreira MCS. Efeitos psicossociais do distanciamento social durante as infecções por coronavírus: revisão integrativa. Acta Paul Enferm. 2021; 34:eAPE01141..

As orientações governamentais para o DAS somando ao risco de transmissão levou ao afastamento dos residentes de seus familiares e pessoas próximas, gerando angústia e solidão. Percebeu-se que o impedimento em encontrar a família acarretou, ainda, dificuldade de obter informações sobre as condições de saúde de familiares infectados com o vírus, acentuando o medo de que eles morressem enquanto distantes. Todavia, esses momentos de dificuldades também possibilitaram algumas aproximações entre os colegas de Residência, pois passavam por situações semelhantes.

Durante a pandemia os meus pais contraíram Covid em maio. Meu pai, minha mãe e minha irmã. Como eu não estava indo pra casa acabei não pegando. Meu pai é do grupo de risco também, tem asma e acabou indo pra hospital, mas isso só fiquei sabendo depois. Soube que eles estavam com Covid, mas as complicações que tiveram, eles não me passaram. Fiquei sabendo quando melhoraram, foi assim, um período muito difícil pra mim, porque em sã consciência eu largaria tudo e iria embora pra casa, dane-se o Covid, tenho que cuidar do meu pai e da minha mãe. Nesse momento eles me colocaram na real, assim: “o que que você vai fazer lá? Você não pode fazer nada por eles, você não tem a cura, pode dar um apoio moral pra eles, dar um apoio, mas pode dar daqui também”. Foi um momento que eles não me deixaram sozinha. A gente [residentes] acabou meio que se fortalecendo, acho que esse apoio entre a gente foi muito importante. Do sentir mesmo que a pessoa não tá bem, de uma conversa. Mas acho que foi isso assim, de um apoiar o outro mesmo, de ir além do coleguismo, de virar uma amizade mesmo, de um sustentar o outro.

(Sofia, R1, enfermeira em Saúde Mental)

Essa nova organização provocou não apenas um distanciamento físico, mas também afetivo, uma vez que cada um passou a atuar sozinho em um programa de Residência, que pressupõe uma atuação interprofissional. Uns passaram a não se ver, enquanto outros a não se reconhecerem durante os serviços de saúde, uma vez que as máscaras e EPIs desconfiguravam os traços físicos, bem como as dores e alegrias de um encontro.

Outra coisa que foi bastante marcante pra mim. É porque as outras residentes passavam em ciclos, teve uma residente da obstetrícia que entrou pra trabalhar comigo, como a gente só usava máscara, nunca tinha visto o rosto, eu não conseguia saber quem era, conversava com elas o dia inteiro, eram amigas próximas de trabalho da residência, tava cinco dias da semana e a gente conversava sobre muita coisa e não sabia o rosto delas. Um dia uma delas me pediu pra seguir na rede social, eu fiquei em choque, porque vi o rosto dela. Eu não reconheci, falei: “quem é essa?”. Era uma moça que trabalhava do meu lado há meses.

(Celina, R2, psicóloga em Saúde Mental)

A rotina dos residentes passou a ser exclusivamente voltada ao trabalho, e a necessidade de evitar interação social e contato físico passou a restringir o círculo social aos colegas de trabalho, que também se encontravam em constante risco pela exposição ao vírus. Os que moravam sozinhos trouxeram ter vivenciado o sentimento de solidão, diferentemente dos que dividiam a moradia com outras pessoas e podiam compartilhar o que estavam vivendo nos serviços de saúde.

Inicialmente todo mundo, acho que não só os residentes, mas as pessoas vivendo na pandemia tendiam a se afastar, evitar os contatos. Nos primeiros meses, era do hospital pra casa, da casa pro hospital, realmente sem contato, evitando ao máximo. Teve um momento que senti que essa exaustão, essa solidão de só se ver no trabalho, só daquele jeito. A gente entra numa sala de prescrição com cinco ou seis médicos, que sempre se veem todos os dias e não se abraçam, totalmente diferente de antes, eu senti que rolou um pouco o oposto. Teve fase em que os residentes, eu ouvia muito isso entre eles: “ah, a gente tá junto todos os dias, não muda nada a gente se ver em casa agora à noite”. Então começaram a tentar se buscar. Particularmente, como não moro sozinha, moro com o meu namorado, não tinha tanto essa questão. Acho que morando sozinho na pandemia deve ter sido muito mais difícil pra algumas pessoas, então eu não era essa pessoa que buscou esses grupos, mas via nos meus colegas uma necessidade muito grande de estarem em conjunto, de estarem juntos em outros momentos fora do trabalho.

(Beatriz, R3, médica em Pediatria)

Aqueles que buscavam seguir de maneira mais rigorosa as orientações do distanciamento social passavam a sentir os impactos na própria saúde mental, pois tinham de lidar com a contradição entre preservar a vida e descumprir o DSA para reunir-se com os amigos, desencadeando reflexões como a seguinte.

Inicialmente, eu falo que não fiquei mal, não fiquei mais ansiosa, mas tinha uns rompantes de crise existencial, sentia que essa questão de estar próxima de morte e de desastre fazia com que me questionasse bastante. Senti que fiquei mais existencialista, mais reflexiva, minha análise girava em torno disso várias vezes, e o que custou muito à minha saúde mental foi que me distanciei muito dos meus amigos durante esse período, justamente porque estava mais focada em fazer esse distanciamento. Acabei ficando mais isolada, isso me afetou um pouco, porque eu sempre tive vontade de fazer as coisas que todo mundo estava fazendo, mas eu ainda prezava pelo distanciamento social.

(Celina, R2, psicóloga em Saúde Mental)

Assim, o distanciamento físico desencadeou também um grande distanciamento afetivo, inclusive com uma percepção muito solitária no enfrentamento da pandemia, em que cada um buscava fazer o que achava melhor para si.

Categoria 3. Saúde Mental durante a pandemia

As residências em saúde possuem a característica de reunir profissionais de saúde com um desejo de aprender, colocando em prática o que estudaram nas graduações e especializando-se em uma determinada área de atuação. Durante a pandemia, esses desejos, motivações e expectativas chocaram-se com a possibilidade de contribuir para o enfrentamento da Covid-19, mas esses profissionais também tiveram de lidar com perdas e riscos constantes de se infectar, desencadeando efeitos na própria saúde mental, dificultando o enfrentamento das adversidades provenientes da pandemia e na atuação como profissionais de saúde residentes.

Aos profissionais de saúde, como ocorreu com os residentes, foi exigida a manutenção ou a ampliação de suas tarefas no cuidado em saúde durante a pandemia, estando suscetíveis ao sofrimento psíquico e transtornos mentais. Essa condição foi ainda mais evidente com os profissionais da linha de frente, com altos índices de adoecimento psíquico1919 Ornell F, Schuch JB, Sordi AO, Kessler FHP. Pandemia de medo e Covid-19: impacto na saúde mental e possíveis estratégias. Debates Psiquiat. 2020; 10(2):12-6..

O papel social do profissional de saúde passou a ser muito destacado pelas mídias, concedendo-lhes uma importância e responsabilidade grandes ao trabalharem no enfrentamento da pandemia. No entanto, é necessário reconhecer suas singularidades como seres humanos, trabalhadores, que também carregam seus anseios, medos e preocupações.

Diante disso, os profissionais de saúde buscaram corresponder a uma expectativa socialmente imposta, refletindo em uma sobrecarga emocional e física, e isso indicava uma dificuldade de entrar em contato com o próprio sofrimento emocional, negando o próprio medo e a angústia.

Fato é que os profissionais de saúde foram formados e treinados para lidar com a doença do outro, e pouco foi abordado sobre o próprio adoecimento e suas fragilidades, limitações e finitudes.

Não foi algo que me abalou, acho que se tivesse que contar algo da minha saúde mental que tenha me abalado nesse tempo de pandemia foi ver alguns colegas doentes, que gera uma angústia, ver professores, amigos de amigos falecendo. Perdendo colegas de trabalho de certa forma, mas de forma indireta, porque não perdi nenhum colega muito próximo. Acho que no início da pandemia algo que foi um pouco forte nesse sentido é a gente se sentir um pouco incapaz de combater o vírus.

(Roberto, R2, médico em Pediatria)

Deve-se considerar que o adoecimento psíquico dos profissionais de saúde se deu também pela sobrecarga no cuidado com pacientes em estados críticos decorrentes das complicações da Covid-19. Os pacientes chegavam em condições diversas nos serviços de saúde, e a evolução dos casos também era muito variável, desde mortes muito precoces até internações por longos períodos, causando desgastes emocionais e físicos nos profissionais.

Para enfrentar uma situação de crise, é necessário que o profissional de saúde tenha condições para cuidar da saúde mental, pois o esgotamento físico e mental dificulta o exercício do cuidado de outra pessoa, podendo gerar condições inseguras tanto para si quanto para quem estiver sob seu cuidado2020 Santos TC, Almendra FS, Ribeiro MI. Help line: relato de experiência sobre um dispositivo de acolhimento aos profissionais de saúde durante a pandemia covid-19. Rev aSEPHallus Orient Lacan. 2020; 15(30):26-40..

Devido ao elevado número de casos de Covid-19 entre profissionais de saúde, houve consequentemente maior número de afastamentos, desencadeando sobrecarga e longas jornadas de trabalho para os que permaneceram em suas tarefas laborais, além da escassez de EPIs e da insegurança em trabalhar com condições precárias de recursos e infraestrutura1919 Ornell F, Schuch JB, Sordi AO, Kessler FHP. Pandemia de medo e Covid-19: impacto na saúde mental e possíveis estratégias. Debates Psiquiat. 2020; 10(2):12-6..

Uma vez que o medo da infecção e da transmissão da doença afeta diretamente os residentes, desenvolver estratégias que visem cuidar precocemente de sua saúde mental é importante para auxiliá-los em suas rotinas de trabalho por meio de medidas preventivas que diminuam o risco de infecção entre profissionais de saúde, disponibilização de EPIs suficientes para se protegerem, controle da jornada de trabalho e capacitação profissional1919 Ornell F, Schuch JB, Sordi AO, Kessler FHP. Pandemia de medo e Covid-19: impacto na saúde mental e possíveis estratégias. Debates Psiquiat. 2020; 10(2):12-6..

O apoio e o cuidado coletivo também são estratégias importantes no cuidar da saúde mental, como indica a narrativa a seguir. A solidariedade entre alguns residentes destaca a importância do acolhimento por outros profissionais da equipe de saúde, demonstrando preocupação e responsabilidade com o próximo, e ressalta a importância do vínculo e da confiança ao ser cuidado nos momentos de fragilidade.

Eu acho interessante que, dentro da Unidade, às vezes um está muito mal, tendo uma crise de ansiedade, tendo uma crise de choro. Hoje um está tendo um dia muito difícil, um familiar que ficou doente, ou outro funcionário ficou doente. Todo profissional de saúde que entro em contato estão fragilizados, em alguns momentos você tá melhor, e sua equipe de enfermagem vai tá fragilizada. Em outros momentos você tá pior, e seus colegas vão tá ali para segurar pra você. Quando tive minha crise, fui muito acolhida pelo resto da equipe, assim como várias outras pessoas tiveram crises e foram acolhidas pela equipe. Então a gente tem essa unidade, mas é interessante que tá todo mundo muito fragilizado.

(Carol, R1, médica em Medicina de Família e Comunidade)

Essa afirmação é reforçada com a narrativa a seguir, em que o residente diz se manter alerta ao buscar informações sobre o estado emocional da equipe de saúde quando se encontravam no local de trabalho, não só com a justificativa da pandemia, mas também pelo risco de adoecimento psíquico do profissional de saúde em um contexto de trabalho insalubre.

Eu não tive nenhuma iniciativa nesse sentido, a não ser a iniciativa de em todo tempo procuro ir perguntando nos corredores, olhando no olho, “E aí, você tá bem? Como é que você tá? Como é que tão as coisas?”, porque paralelo a esses tempos de pandemia nós tivemos casos de suicídio dentro do hospital, então foi algo que me marcou muito. Acredito que não tinha relação com a pandemia, mas tenho tido zelo nesse sentido, de sempre tá olhando no olho, tá perguntando, independente da intimidade que eu tenho com o colega, “E aí, mano, você tá bem? Como que você tá?”, essa preocupação, mas eu vi algumas iniciativas por parte de alguns professores de montar grupos com psicólogos com alguns alunos, pra alguns professores, porque no começo da pandemia houve alguns professores que ficaram muito ansiosos, ficaram com muito medo por já estarem atendendo em outros municípios e verem gravidade de casos, principalmente em criança, têm vindo muitos casos. Então eu vi alguns professores entraram em pânico, então um pouco da iniciativa, dessa conversa.

(Roberto, R2, médico em Pediatria)

Há necessidade de ampliação dessa rede de cuidados para reduzir os impactos decorrentes do enfrentamento da pandemia, com ações individuais e coletivas. Destaca-se a importância de planejar ações de promoção e proteção em saúde mental, buscando minimizar prejuízos e danos psicossociais, em curto e médio prazos2121 Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto ICM, Andrade LR, et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Cienc Saude Colet. 2020; 25(9):3465-74..

O cuidado em saúde mental dos profissionais de saúde, em especial na pandemia, deve ser viabilizado nos serviços de saúde por meio de estratégias de promoção e prevenção de agravos, reunindo profissionais capacitados da área que possam formar equipes de suporte em saúde mental, incluindo a Rede de Atenção Psicossocial2121 Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto ICM, Andrade LR, et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Cienc Saude Colet. 2020; 25(9):3465-74.. Ofertam-se, assim, ações de acolhimento e atendimento à crise, primeiros cuidados psicológicos, seja presencial seja on-line, estruturando uma rede de cuidados visando à saúde dos profissionais de saúde2121 Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto ICM, Andrade LR, et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Cienc Saude Colet. 2020; 25(9):3465-74..

Considerações finais

Medo da multidão, medo da solidão, medo do que foi e do que pode ser, medo de morrer, medo de viver2222 Galeano E. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Pocket; 2009.. (p. 83)

O desgaste provocado pela pandemia trouxe consigo um sentimento relevante de impotência perante os desafios que estavam diante dos residentes, os quais em meio a tantas mudanças precisavam buscar seu espaço como profissionais de saúde. Porém, em muitos momentos, encontraram-se desprovidos de sentido em suas práticas profissionais e, perplexos pelo medo, desejavam não estar ali, precisavam se sentir protegidos do perigo.

Mas como se proteger efetivamente do vírus se havia escassez de EPIs? O mundo estava enfrentando as consequências devastadoras da Covid-19, e todos buscavam se proteger. Quem pudesse deveria ficar em casa, esse era o lema. Recomendava-se: trabalhar em home office, evitar encontros presenciais e aglomerações, cancelar aulas, fechar parte dos comércios e outros serviços. Foi declarado que apenas os serviços considerados essenciais deveriam funcionar, e todos os serviços de saúde foram convocados ao enfrentamento da pandemia.

E os residentes, onde se encontravam diante dessas restrições? Estavam matriculados em programas de Pós-Graduação, então eram estudantes? Já eram profissionais de saúde formados, portanto deveriam trabalhar na linha de frente no enfrentamento da pandemia? Essas são algumas das questões que foram surgindo no início da pandemia e que provocaram dissenso entre os próprios residentes e os serviços de saúde e a coordenação dos programas de residência.

Olhando retrospectivamente, os serviços de saúde e programas de residências poderiam ter se organizado com mais segurança na busca de despertar interesse dos residentes no enfrentamento da pandemia. Outros serviços de apoio a eles poderiam ter sido criados com o intuito de minimizar os impactos na saúde física e mental. Seriam ainda necessárias estratégias para desenvolver habilidades técnicas que suprissem as carências em suas formações e ao mesmo tempo possibilitassem o cuidado com os pacientes. Talvez, naquele momento, os gestores da APS, assim como os coordenadores e preceptores das residências, compreenderam que o momento exigia medidas para a segurança possível de todos – pacientes, trabalhadores, residentes e estudantes – diante do medo, do desconhecido e da necessidade de acolher a população, mesmo que isso causasse frustração aos residentes.

Portanto, reconhecer os residentes em saúde como profissionais que estão em formação e que demandam um olhar diferente dos demais profissionais favorece o reconhecimento dos seus medos, de suas angústias e de suas frustrações, permitindo a construção de um caminho de formação para o exercício qualificado do cuidado em saúde. Trazer essas narrativas e experiências nos permitiu entender que “o narrador sempre tira da experiência aquilo que narra; de sua própria experiência ou daquela que lhe foi contada. E, por sua vez, torna suas histórias uma experiência para quem escuta”2323 Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense; 1985. p. 197-221. (Obras escolhidas; v. 1). (p. 201).

Agradecimentos

Aos profissionais de saúde residentes que contribuíram com suas experiências durante a pandemia, tornando possível a realização deste estudo.

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Editado por

Editora
Simone Mainieri Paulon
Editor associado
Deivisson Vianna Danta dos Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2023
  • Aceito
    06 Jan 2024
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