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Território na pesquisa, território da pesquisa: protagonismo do território na pesquisa-intervenção participativa* * O artigo é resultado de pesquisa financiada por bolsa recebida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Territorio en la investigación, territorio de la investigación: protagonismos del territorio en la investigación-intervención participativa

Resumos

O artigo discute a noção de território nas práticas de cuidado e de pesquisa em saúde com base na experiência de pesquisa-intervenção participativa sobre o trabalho de uma equipe de Consultório na Rua. A prática de cuidado analisada caracteriza-se por um modo de relação específico com os territórios de vida dos usuários. Para isso, analisa-se a produção de saúde na Atenção Básica no Sistema Único de Saúde (SUS) e o que significa acolher o protagonismo do território nesse cenário. A abordagem metodológica adotada, por sua vez, implicou a construção de um dispositivo no qual o território foi protagonista do processo investigativo, levando a uma reflexão sobre a participação do território na pesquisa-intervenção participativa. Ao final desse percurso, analisou-se uma aproximação entre cuidar e pesquisar, ampliando as possibilidades de compreender o papel do território em ambas as práticas.

Território; Consultório na rua; Pesquisa-intervenção participativa; Atenção básica


El artículo discute la noción de territorio en las prácticas de cuidado y de investigación en salud a partir de la experiencia de la investigación-intervención participativa sobre el trabajo de un equipo de Consultorio en la Calle. La práctica de cuidado analizada se caracteriza por un modelo de relación específica con los territorios de vida de los usuarios. Para ello se analiza la producción de salud en la Atención Básica en el Sistema Brasileño de Salud (SUS) y lo que significa acoger el protagonismo del territorio en ese escenario. El abordaje metodológico adoptado, a su vez, implicó en la construcción de un dispositivo en el cual el territorio fue protagonista del proceso investigativo, llevando a una reflexión sobre la participación del territorio en la investigación-intervención participativa. Al final de ese recorrido se analizó una aproximación entre cuidar e investigar, ampliando las posibilidades de comprender el papel del territorio en ambas prácticas.

Territorio; Consultorio en la calle; Investigación-intervención participativa; Atención básica


The article discusses the notion of territory in the practices of health care and research based on the experience of participative research-intervention about the work of a Street Medicine team. The practice of care analyzed is characterized by a specific mode of relationship with the users' life territories. To understand this relationship, it was necessary to broaden the discussion, reflecting the Primary Health Care in the Brazilian National Health System (SUS) and the meaning of embracing the leading role of the territory in this scenario. The methodological approach adopted implied building a research device in which the territory was the protagonist of the investigative process, leading to a reflection of the participation of the territory in participative research-intervention. At the end of this process, an approximation between caring and researching was analyzed, expanding the possibilities of understanding the role of the territory in both practices.

Territory; Street medicine; Participatory research-intervention; Primary health care


Introdução

As metodologias de pesquisa podem ser diferenciadas segundo o tipo de relação que concebem entre sujeito e objeto da pesquisa11. Silva AE, Passos EH, Fernandes CVA, Guia FR, Lima FR, Carvalho JF, et al. Estratégias de pesquisa no estudo da cognição: o caso das falsas lembranças. Psicol Soc. 2010; 22(1):84-94.. Tais relações determinam diversos procedimentos em uma investigação, inclusive o tratamento dispensado ao território. Em abordagens tradicionais de pesquisa, frequentemente o território é igualado à sua localização espaço-temporal, a qual é habitada por sujeitos e objetos que dele se distinguem. Neste texto, desenvolve-se a proposição de que além de uma dimensão circunscrita à sua localização histórica e geográfica, o território delimita um campo no qual uma rede complexa de atores e elementos compartilha experiências. É a essa experiência situada em um espaço-tempo que se faz em uma rede inextrincável de atores e elementos que chamaremos território.

Tal discussão surgiu como fruto do desenvolvimento de uma experiência de pesquisa-intervenção participativa22. Macerata I. Traços de uma clínica de território: Intervenção clínico-política na Atenção Básica com a rua [tese]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2015. (aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense/Plataforma Brasil, processo CAAE: 09987112.0.0000.5243) em uma equipe de Consultório na Rua, também conhecida como POP RUA, a qual será tomada como objeto de análise no decorrer deste artigo.

O Consultório na Rua é um serviço de saúde itinerante que compõe a rede de Atenção Básica à Saúde (AB) no Sistema Único de Saúde (SUS). Esse serviço é direcionado a pessoas em situação de rua, sendo composto por equipes multiprofissionais que visam garantir a integralidade de cuidados dessa população. A pesquisa POP RUA teve como objeto a prática de uma equipe que atua no centro do município do Rio de Janeiro. Um dos seus resultados obtidos foi a formulação de um documento técnico33. Passos E, Equipe Pop Rua 2012/2013, Grupo de Pesquisa “Enativos: conhecimento e cuidado”. Diretrizes, metodologias e dispositivos do Pop Rua [Internet]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense; 2014 [citado 10 Abr 2020]. Disponível em: http://redehumanizasus.net/acervo/diretrizes-metodologias-e-dispositivos-do-cuidado-no-pop-rua/
http://redehumanizasus.net/acervo/diretr...
sobre a prática de cuidado do serviço, de coautoria de pesquisadores e trabalhadores.

A prática de cuidado desenvolvida pelos trabalhadores do POP RUA exige a constituição de uma relação específica com os territórios de vida dos usuários. A fim de compreender esta relação, fez-se necessário ampliar a discussão, refletindo sobre a produção de saúde na AB no SUS e o que significa acolher o protagonismo do território nesse cenário. Na sequência, discutiu-se a participação do território na pesquisa-intervenção participativa. Tomar a prática clínica do POP RUA como objeto de estudo gerou efeitos para a metodologia proposta, tornando necessário entender o protagonismo do território no processo investigativo e não apenas nas práticas de cuidado no SUS. Assim, é preciso compreender de que modo o território participa das práticas de pesquisa e como pode ter seu protagonismo valorizado. Ao final desse percurso, analisou-se uma aproximação entre cuidar e pesquisar, ampliando as possibilidades de compreender o papel do território em ambos.

Apostas territoriais no SUS: o POP RUA e o protagonismo do território

No Brasil, as reformas sanitária e psiquiátrica foram movimentos contemporâneos, que se incluíram entre aqueles ligados à luta pela abertura política e pela redemocratização do país. Apesar de seus atores e histórias distintos, os movimentos de reforma no Brasil guardam raízes comuns e se potencializaram mutuamente. O enfrentamento mais amplo à centralidade e à verticalidade do poder dos movimentos pela redemocratização se traduziu, no campo da saúde, em questionamento à centralidade do poder/saber biomédico e do modelo curativo hospitalocêntrico. Tais questionamentos se conectavam e se alimentavam das discussões que aconteciam no contexto internacional, ligadas à ressignificação do próprio conceito de saúde, não mais definido como ausência de doenças, em que era também afirmada a importância das dimensões social e mental, além da biológica44. Paim JS, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saude Publica. 1998; 32(4):299-316..

Os princípios e diretrizes do SUS, instituído na Constituição de 1988, são herança direta desses movimentos de reforma. Os princípios da integralidade e da participação no SUS induzem o sistema a promover ações construídas em meio às relações de produção de saúde e vida de sujeitos e coletivos, e não mais planejadas segundo critérios exclusivamente biomédicos. Produzir saúde passou a envolver escutar e incluir a experiência daquele de quem se cuida, tomando-o como protagonista de seu próprio processo de cuidado, tal como se expressa na proposta da clínica ampliada55. Campos GW. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005..

Seguindo essa direção, são formuladas as políticas de Saúde Mental (SM) e de Atenção Básica (AB) propondo, cada qual ao seu modo, ações de cuidado orientadas para a concretização de tais princípios. Entre os pontos centrais comuns a ambas as políticas, podemos destacar o enfrentamento à hegemonia das formas hospitalares de cuidado – representadas pelo hospital geral e o manicômio – e a garantia de direitos e cidadania como ações fundamentais. Nesse sentido está a aposta do paradigma da Redução de Danos (RD), que questiona a internação e a abstinência como estratégias a priori de tratamento e desloca o problema com drogas de determinada substância para o modo como o sujeito, em seu contexto, se relaciona com ela66. Lancetti A. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec; 2008.. Há um deslocamento do lugar onde se trata e se produz saber sobre o usuário – seja o louco, o drogado, ou o paciente – do médico e do hospital para o território77. Furtado R, Passos E. Espaço e loucura: uma análise dos espaços de cuidado na reforma psiquiátrica. In: Furtado R, Passos E. Saúde mental coletiva: clínicas e vulnerabilidades. São Paulo: Schoba; 2012. p. 409-30.. Na SM isso se dá por meio da aposta na atenção psicossocial, buscando o tratamento do usuário em sua comunidade, incluindo a participação de familiares e demais redes de relações. Ainda no âmbito da SM, a RD propõe ações no lugar onde os usuários de drogas vivem, incluindo usuários e ex-usuários como membros da equipe. As equipes da AB localizam-se e atuam próximo aos espaços de moradia dos usuários e também incorporam moradores da comunidade às equipes de cuidado (agentes comunitários de saúde/ACS), redirecionando suas ações em direção ao território.

Um dispositivo que é exemplo desse redirecionamento, comum às políticas de AB e SM, são as visitas domiciliares. Como explícito no próprio nome, as visitas consistem na ida de trabalhadores das equipes ao local de moradia dos usuários. Esse dispositivo é considerado importante para o desenvolvimento de ações de promoção e prevenção da saúde, pois por meio dele podem se reforçar os vínculos entre a equipe e os usuários, viabilizando práticas de saúde em sintonia com o espaço onde se desenrola a vida deles. O termo domicílio presente na expressão visita domiciliar produz alguns equívocos, já que a moradia de uma pessoa nem sempre é um domicílio, como no caso da população em situação de rua, que acaba por não receber atenção de muitos serviços por, entre outros fatores, não ser domiciliada. O fundamental do dispositivo da visita é a presença no local onde se desenrola a vida de uma pessoa, o que engloba sua moradia, mas também o entorno, a sua comunidade. Essa saída do serviço para a comunidade tem a função de indução a um determinado funcionamento que visa operar por meio do vínculo, da relação baseada na confiança e na troca mútua, de modo que as práticas de cuidado estejam sintonizadas com a experiência situada de profissionais e usuários, produzindo suas intervenções mediante experiências vividas de forma partilhada22. Macerata I. Traços de uma clínica de território: Intervenção clínico-política na Atenção Básica com a rua [tese]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2015..

Observa-se, assim, uma similaridade operacional entre as lógicas de cuidado que permeiam a AB, a SM e a RD: certa maneira de ver e agir nos territórios que exprimem as apostas que foram feitas na formulação do próprio SUS. As práticas que veiculam esses paradigmas têm por direções metodológicas habitar e acompanhar os territórios de vida dos usuários, e produzir saúde no e pelo território de vida dos usuários, utilizando-o como fonte de recursos para produção de saúde. O trabalho no e pelo território tem o sentido de acessar os modos de viver dos usuários para construir novas possibilidades de cuidado.

É no agenciamento entre AB, SM e RD que o POP RUA foi implementado88. Macerata I. Experiência POP RUA: implementação do saúde em movimento nas ruas. Rev Polis Psique. 2013; 3(2):207-19. no centro da cidade do Rio de Janeiro, em 2010. A lógica territorial dos serviços de AB, SM e RD, embora deem relevância e sustentem suas práticas no território, discursivamente afirmavam a justa necessidade de um protagonismo do usuário – um primeiro movimento diante do autoritarismo do modelo biomédico, expresso na centralidade do médico e do hospital. Identificamos, na prática de cuidado do POP RUA, o surgimento de um relevo para um outro protagonismo, que não exclui o do usuário, mas o ressignifica: o protagonismo do território.

Os modos de vida na rua são extremamente diversos e até incompreensíveis diante dos modos de vida mais usuais em uma sociedade. Um serviço que busca construir cuidado com pessoas que vivem nas ruas deve se abrir a essa alteridade, a esses modos de existir pouco familiares. Na experiência do POP RUA, não era possível cuidar tomando por referência, apenas, valores e conceitos de saúde estritamente ligados aos saberes instituídos nos campos acadêmicos. Há uma diversidade de modos de ser e cuidar que se realiza na/pela rua. Era essencial ao POP RUA construir o cuidado em articulação com os modos de funcionamento do território da rua. Nesse sentido, a aposta territorial já feita pelas políticas de AB, SM e RD se radicaliza nesse serviço, pois o cuidado realizado com base no agenciamento entre práticas de saúde e modos de vida da rua tinha como base de construção a coabitação e o compartilhamento de um território.

O compartilhamento do território não se dava apenas pelo fato de equipes e usuários dividirem o espaço da rua. Cuidar de uma pessoa ou grupo que vive na rua exige acessar as práticas e relações que caracterizam uma situação de rua, em dimensões amplas – dinâmicas políticas, culturais, sociais – , mas também situadas naquele espaço, naquele momento, para aquela pessoa. É no território que essas dinâmicas singulares e coletivas se materializam e se engendram. O que se apreende na prática desse serviço é que o território não se confunde com a localização geográfica, trata-se de um processo de produção localizado em meio ao qual sujeitos e espaços são constituídos.

Para o geógrafo Augustin Berque99. Berque A. Território e pessoa, a identidade humana. Rev Cienc Soc PUC-Rio. 2010; 6(1):11-23.:

pretender que os territórios constituam, de fato, um espaço neutro, e que nossos laços com eles sejam apenas projeções subjetivas, trata-se de uma interpretação que exclui a realidade primeira de qualquer territorialidade. (p. 15)

A compreensão de um sujeito que existe fora de seu meio constituiria uma abstração, que progressivamente reduz o meio a um ambiente objetivável e manipulável. Tal abstração promove uma mutilação da existência humana, pois se apoia na noção de um sujeito individual absoluto, apartado de seu meio. Operação semelhante é promovida com a noção de objeto, também um absoluto abstraído do seu meio. Para Berque a territorialidade é uma relação dinâmica entre objetividade – o espaço e os corpos – e subjetividade – as relações existenciais e experienciais dos viventes em determinado meio. O que o autor chama de mediania: junção dinâmica das duas “metades” que formam o ser humano, o seu corpo individual e seu corpo medial, o meio que ele partilha com outros seres e que lhes é, portanto, comum.

Cada ser, à sua maneira, estabelece laços com certos lugares e as relações de territorialidade ultrapassam o indivíduo, integrando-o a um mundo, onde o mundo interior de cada pessoa está em continuidade, não apenas com o das outras pessoas, mas com o meio. A pessoa para Berque suporia, portanto, o território, o qual, por sua vez, supõe as pessoas. De maneira correlata, o etólogo Von Uexküll1010. Uexküll J. Dos animais e dos homens. Lisboa: Livros do Brasil; 1982. afirma que todo espaço vivido é subjetivo, a tal ponto que cada vivente teria uma versão do mundo, o que ele chama de Umwelt, ou mundo-próprio: mundo de ação e mundo de percepção, que formam uma totalidade integral. Cada ser tem e é tido em seu “mundo-próprio”, pertence a um mundo diferente dos demais, que contém objetos e percepções que têm sentido somente no interior de uma vida específica. Assim, também para Von Uexküll não existe, de modo nenhum, espaço independente do sujeito, não havendo sujeito em si, nem objeto em si. Articulando essas proposições entendemos o território ao mesmo tempo como espaço comum entre os seres, partilhado, mas partilhado em partes singulares – e um comum singular.

Na mesma direção, Guattari1111. Guattari F. Caosmose. Rio de Janeiro: Ed. 34; 1992. define território como um domínio existencial que se produz por meio do agenciamento coletivo e impessoal de componentes heterogêneos, constituindo formas-estados complexos: um sujeito, um grupo, uma comunidade. Mas esses corpos estarão sempre em adjacência ou em relação de delimitação e troca com uma alteridade também subjetiva, também em movimento. O que faz dessas formas-estados complexas estabilizações temporárias. Com essa definição, subjetividade ganha um sentido diferente de uma instância interna ao sujeito, meramente simbólica. Não é que o espaço influencie na subjetividade de um sujeito: o próprio espaço comporta uma dimensão subjetiva, ao conter nele mesmo enunciações, afetos, intensidades pré-pessoais. A subjetividade se dá em um espaço temporalizado, o espaço em pulsação, ritmo temporal, vivo, como emaranhado de trajetos que são compostos pelos componentes dos meios, em uma rede de atores1212. Latour B. How to talk about the body. Body Soc. 2004; 10(2-3):205-29.. O território é uma experiência relacional situada, um mundo para um sujeito.

Muito embora geograficamente possa se considerar que uma determinada rua na qual uma pessoa vive e um trabalhador de saúde atua seja a mesma, do ponto de vista da experiência de cada um deles, tal rua pode ser absolutamente distinta, a tal ponto em que não se pode afirmar que se trata da mesma rua. De fato, a rua só permanece sendo a mesma em uma perspectiva segundo a qual se concebe um mundo instituído previamente, do qual a rua é uma parte, independentemente da experiência que se tenha dela. Sob outro ponto de vista, pode-se considerar que a rua depende daqueles que se relacionam com ela, da mesma maneira que eles são produzidos no encontro com a rua: o dito morador de rua efetivamente assim se torna, no processo de instalar-se nela; o trabalhador de saúde se constitui como agente de cuidado quando esse cuidado se efetiva, nunca antes.

A ação de cuidado realizada pelo POP RUA envolvia a construção de um espaço compartilhado de experiência, a fim de atentar para estratégias que se dão na rua e construir outras em agenciamento com estas. Acessar a experiência de um território significava ser afetado pelo seu processo de produção e se transformar com ele. Para que o cuidado efetivamente acontecesse, fez-se necessária a produção de um novo território, a ser habitado por usuário e trabalhador da saúde, no qual acontecia a construção conjunta do cuidado.

O cuidado verificado no POP RUA, além de centrar-se no sujeito e não na doença55. Campos GW. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005., foi construído por meio do território, acolhendo o sujeito e acessando os processos de produção de seu território existencial. A clínica no e do território é uma clínica de território22. Macerata I. Traços de uma clínica de território: Intervenção clínico-política na Atenção Básica com a rua [tese]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2015.. A preposição de guarda múltiplos sentidos “prepositivos” para a relação entre a clínica e o território: no, com, em, entre, para, per, perante, desde. Na ação clínica do POP RUA, o território mesmo cuida: são ativados agentes de cuidado que fazem parte do território, o qual passa por pessoas (comerciantes, convivas, moradores, agentes institucionais e não institucionais), instituições diversas, animais de estimação e até elementos arquitetônicos e objetos.

Um exemplo dessa diversidade de elementos está na situação em que a equipe, sem conseguir vaga de internação para três usuários diagnosticados com tuberculose, fez uma enfermaria provisória ao lado do serviço, usando das marquises e dos cobertores que as pessoas da rua guardam nos bueiros. Em outra ocasião, observou-se a necessidade de cuidar do cachorro do usuário quando este precisou se internar e não tinha quem cuidasse do animal. A internação não seria subjetivamente possível para o usuário se tivesse que abandonar seu cachorro. Ou, ainda, a participação do jornaleiro em administrar a medicação psiquiátrica para uma usuária. Embora emergenciais e tributárias de uma grande precariedade da rede de saúde, o que se destacou foi a capacidade de ativação de recursos – mesmo que parcos, mas necessários – presentes no próprio território.

A clínica está no território e é modificada por ele, podendo envolver bueiros, cachorros e jornaleiros, por exemplo. Ela também modifica o território, transformando a calçada em enfermaria, o cachorro em familiar e o jornaleiro em cuidador. Por um lado, aciona-se o protagonismo do território, pois ele é o meio por onde se desenvolve a vida, a materialidade concreta das condições de vida. Por outro, o potencial de ação da clínica se amplia, porque é no território que a complexidade de uma vida se apresenta. O cuidado ganha outra conotação: ele não é só o procedimento de um especialista; ele é uma rede de apoio e de tratamento que é ativada, envolvendo os mais diversos atores. O papel do especialista da saúde se transforma: a ele cabe usar seu saber a serviço do cultivo de um potencial de cuidado presente em maior ou menor grau nos territórios. Nesse sentido, aquele que intervém não está fora do território: torna-se mais um elemento dele. A proposição do território como espaço relacional, e, portanto, espaço de gênese de sujeitos, grupos, comunidades e do trabalho das equipes, impõe que se compreenda cuidado e saúde em termos mais abrangentes, incluindo as idiossincrasias dadas em cada situação.

As práticas de pesquisa e o território

Tradicionalmente, a produção do conhecimento adota uma perspectiva representacional que supõe a independência e a separação entre sujeito e objeto de pesquisa11. Silva AE, Passos EH, Fernandes CVA, Guia FR, Lima FR, Carvalho JF, et al. Estratégias de pesquisa no estudo da cognição: o caso das falsas lembranças. Psicol Soc. 2010; 22(1):84-94.. Nesse modo de ver e praticar o pesquisar, o território de vida do campo pesquisado pode ser apreendido de duas maneiras distintas. A primeira é a das pesquisas experimentais, para as quais o setting no qual a investigação se dá (o laboratório) deve ser depurado a fim de que as variáveis que o compõem sejam submetidas a rigoroso controle, que permite estabelecer uma relação causal entre os aspectos que determinam o fenômeno estudado. Para esse tipo de pesquisa, é preciso excluir a multiplicidade de variáveis e componentes que o território oferece. Nessa mesma perspectiva – que chamamos representacional – há também as pesquisas ditas de campo, cuja pretensão é compreender determinados fenômenos tal qual acontecem em determinado ambiente. Nesse caso, observa-se a necessidade de outro tipo de controle, diferente daquele que se faz das variáveis em condições laboratoriais: controle do dispositivo da pesquisa, a fim de que não interfira no fenômeno estudado e possibilite sua apreensão.

O que se observa como comum entre as abordagens de laboratório e de campo, assim descritas, reside no fato de que ambas se apoiam em uma separação entre sujeito e objeto de conhecimento, em que conhecer é desvelar uma realidade já dada, representá-la. Sujeito e objeto existem como tais, anteriores à relação que se estabelece entre eles.

A perspectiva cartográfica aposta na inseparabilidade entre sujeito e objeto, em sua coemergência1313. Passos E, Kastrup V, Escóssia L. Pistas do método cartográfico. Porto Alegre: Sulina; 2009.. Não separa sujeito e/ou objeto do espaço da relação que os constitui e não concebe um espaço como sendo independente do sujeito que o experimenta. Na perspectiva cartográfica, pesquisar implica necessariamente habitar um território existencial1414. Alvarez J, Passos E. Cartografar é habitar um território existencial. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método cartográfico. Porto Alegre: Sulina; 2009.. No âmbito da pesquisa, um espaço não é um dado objetivo que pode ser totalmente controlado pelo pesquisador, nem a prática de pesquisa pode ser controlada a fim de não produzir interferências no espaço onde atua.

O espaço relacional constituído no encontro entre pesquisa e campo chamamos de “território da pesquisa”. Considerar um território da pesquisa é abordar a experiência singular e ao mesmo tempo partilhada e situada dos sujeitos envolvidos no processo de uma pesquisa-intervenção1515. Kastrup V, Passos E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal Rev Psicol. 2013; 25(2):263-80.. Um plano relacional por onde vai se dar o processo de produção de conhecimento e produção de subjetividade. Se a relação é o meio que constitui os termos envolvidos em uma relação de produção de conhecimento – sujeitos e objetos –, o território da pesquisa para a pesquisa-intervenção participativa é o local onde se dão os processos de subjetivação e objetivação que ocorrem na pesquisa. Tais processos só se apresentam de maneira situada, em uma circunscrição espaço-temporal específica.

A pesquisa POP RUA construiu um território em meio ao da equipe. Da mesma maneira como o cuidado implicava frequentar e coabitar o território da rua, o modo como foi construída a metodologia da pesquisa realizada não pôde prescindir de um trabalho de escuta da equipe e coabitação de seu território. O cuidado exercido pelo POP RUA não se orientava apenas em função dos protocolos e procedimentos já conhecidos, em detrimento do saber-fazer que circula pelas ruas. De maneira semelhante a pesquisa não foi a campo aplicar um projeto. O conhecimento gerado na pesquisa contou com o protagonismo de seus participantes e, mais intensamente, com o protagonismo do espaço de relação entre pesquisa e campo. Foi no encontro entre pesquisa e campo que o desenho da pesquisa foi pactuado.

Chegar ao POP RUA envolvia adentrar seu território de atuação na cidade do Rio de Janeiro: passar e frequentar a Praça XV, o Largo da Carioca, a Lapa, a Rua da Relação, a Praça da Cruz Vermelha. Todos os gestos e intensidades ali presentes: passos apressados, negócios, trocas, profecias do final dos tempos, observadores, repressão policial, massas de pessoas, camas improvisadas, comércio informal. Fazer esse percurso criou uma ambientação para os pesquisadores, mostrando a complexidade da paisagem na qual se desenrolava o cuidado: a dinâmica que envolvia aquele território, como se posicionavam os atores na rua, quais espaços eram mais propícios às pessoas em situação de rua, que tipo de trabalho faziam.

A realização da pesquisa implicou a constituição de um dispositivo, chamado Grupo de Intervenção com Trabalhadores (GIT). Esse grupo se formou na sede do POP RUA em intervalos que variaram entre semanal e quinzenal, com encontros de duas horas durante dois anos. Marcar presença na sede do serviço fez com que o GIT se constituísse como um território específico, em meio ao território do POP RUA.

A direção para produzir conhecimento sobre sua prática com a equipe foi entender que cartografar é acessar a experiência1515. Kastrup V, Passos E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal Rev Psicol. 2013; 25(2):263-80.. Fomos entendendo que esse acesso à experiência seria viabilizado, prioritariamente, por meio do habitar um território existencial. A perspectiva daquele que habita é a de que o território não é um objeto acabado sobre o qual se fala e o qual se manipula, mas um meio com o qual se está implicado na construção e que tem por efeito uma autoconstrução. Habitar o território significa estar presente, voltando a atenção para a emergência de outro território que se forma ao habitar, às diferenciações que se produzem no campo e na pesquisa. O território existencial nesse habitar se torna território de experimentação partilhada entre os diversos atores-sujeitos e demais elementos presentes.

Toda experiência é sempre enraizada em um território. Assim, quando nos referimos ao território do POP RUA, nos referimos à experiência situada no tempo e no espaço daqueles trabalhadores, em agenciamento com os mais diversos elementos que compõem seu espaço de trabalho: processos institucionais, sociais, do campo da saúde, da realidade das ruas do centro do Rio de Janeiro, das dinâmicas de exclusão social, etc. Quando nos referimos ao território da pesquisa, nos referimos ao território que emerge entre pesquisa e campo.

No encontro entre pesquisa e POP RUA, foi constituída tanto a metodologia quanto o próprio objeto da pesquisa. A pesquisa, que começou no final do ano de 2012, inicialmente tinha como problema o acesso à experiência da rua por parte do trabalhador. Nas conversas iniciais de pactuação da pesquisa com o coletivo da equipe, houve uma recusa a essa proposta, a qual, fomos entender posteriormente, não se referia diretamente à proposta em si, mas às pesquisas em geral. Segundo os trabalhadores, as pesquisas anteriormente realizadas naquele serviço coletavam as informações e não apresentavam nenhuma contrapartida para a equipe. Para eles, os pesquisadores se apropriavam do que aquela equipe havia criado e enunciavam como descobertas suas. Após alguns anos de intensa invenção de práticas de cuidado para com a população em situação de rua, a equipe manifestava o desejo de ser ela mesma a autora do conhecimento sobre sua prática. Esse processo já havia sido iniciado pela própria equipe: os trabalhadores haviam produzido enunciados norteadores de sua prática. Contudo, não haviam conseguido dar seguimento à empreitada em razão de dificuldades diversas. No espaço de pactuação inicial da pesquisa, o coletivo que reunia trabalhadores e pesquisadores entendeu que a demanda da equipe para a pesquisa era que ela pudesse apoiá-los a formular e enunciar as direções, o método e os arranjos concretos de sua prática de cuidado. Essa demanda dos trabalhadores foi considerada legítima e favorável à realização da própria pesquisa, contribuindo para que os participantes pudessem se tornar trabalhadores-pesquisadores ao lado dos pesquisadores-acadêmicos. A pesquisa intervenção participativa ganhou caráter de apoio institucional55. Campos GW. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005. transformando-se em pesquisa-apoio1616. Macerata I, Soares JGN, Oliveira AM. A pesquisa-intervenção como pesquisa-apoio: o caso do POP RUA. Saude Soc. 2019; 28(4):37-48., constituindo-se como um espaço de produção de conhecimento da equipe sobre sua prática de cuidado, assim como da pesquisa sobre o cuidado no POP RUA. O apoio institucional do campo da saúde foi tomado como uma metodologia de intervenção que não propõe o estabelecimento de uma relação hierárquica entre aquele que intervém e aquele que recebe a intervenção, mas uma relação de lateralidade entre posições institucionais diferentes: o foco do apoiador não são suas concepções, seu conhecimento, mas o território existencial da equipe apoiada1717. Macerata I, Soares JGN, Ramos JFC. Apoio como cuidado de territórios existenciais: Atenção Básica e a rua. Interface (Botucatu). 2014; 18 Suppl 1:919-30.. Uma pesquisa-apoio propõe que a intervenção da pesquisa se posicione com base nos problemas e questões colocados pelo território da pesquisa, e não por problemas e questões anteriores e exteriores ao campo pesquisado.

Nas duas primeiras idas a campo, a reunião do GIT não aconteceu. Na primeira semana a gerente e a psicóloga não puderam participar e os demais trabalhadores presentes não concordaram em iniciar sem a presença delas. Nessa ocasião, ficamos pelos arredores da Praça da Cruz Vermelha aguardando a chegada de uma das duas profissionais. Na semana seguinte, uma usuária estava ameaçando de morte a psicóloga e toda a equipe se mobilizou pelo problema. Nesse dia permanecemos na unidade até o desenlace da situação. Vivemos ali um momento que marcava o cotidiano do POP RUA: a precariedade das condições de trabalho, a dor com que se lida, as violências institucionais.

Nesses encontros em que o GIT não foi realizado, começamos a habitar o POP RUA, observando os desenhos dos usuários nas paredes, as instalações feitas pela própria equipe, fotos, frases, gritos de guerra. A habitação do território primeiramente exigiu entender como ele se apresentava, mas também senti-lo e participar do que acontecia naquele espaço-tempo. Do ponto de vista dos pesquisadores-acadêmicos, foi preciso desfazer todo o conhecimento previamente constituído sobre o POP RUA e aprender a saborear a geografia do novo território que ali se fazia. Habitar não era uma etapa inicial a ser cumprida para começar a pesquisa, pelo contrário, envolveu ver, escutar, conhecer, no decorrer de toda pesquisa. Também consistiu em ser visto, em marcar presença: permanecer com a equipe nos momentos de tensionamento e sustentar o acontecimento do GIT, mesmo quando havia poucas pessoas ou condições desfavoráveis à sua realização.

A pesquisa foi apoio, pois, além de coproduzir dados para sua atividade, também teve a tarefa de criar condições para a contração de um coletivo de trabalhadores capaz de pensar e enunciar sua prática, fazendo a passagem de um saber-fazer para um fazer-saber. Isso significa dizer que o que a equipe sabia fazer não estava dado, nem como um saber, nem como um fazer já pronto. O processo possibilitou condições tanto para que um conhecimento fosse produzido, quanto para a própria recriação da prática em meio ao exercício de expressá-la. Expressar a experiência prática era acessar a experiência do cuidado em sua dimensão coletiva, o comum da experiência do cuidar. Comum que era vivido e significado de maneiras diversas, mas que mantinha como base um mesmo plano. Não raro surgiam sentimentos e reações de surpresa, concordância e estranhamento em relação à perspectiva de um colega de trabalho sobre determinado assunto. As diferenças eram reconhecidas, mas também consideradas legítimas, válidas. A experiência coletiva e singular era validada por meio do dispositivo de acesso a ela. O trabalho da pesquisa era criar condições para que o grupo ali reunido acessasse e partilhasse a experiência de cada um, construindo e sustentando coletivamente o território da pesquisa. Tais condições eram criadas pelo convite à participação e pela escuta, isto é, pelo manejo cogestivo1818. Passos E, Carvalho SV, Maggi PMA. Experiência de autonomia compartilhada na saúde mental: o “manejo cogestivo” na gestão autônoma da medicação. Pesqui Prat Psicossociais. 2012; 7(2):269-78. da discussão.

Contudo, o apoio não teve efeitos somente no trabalho da equipe. O território da pesquisa interferiu também na pesquisa acadêmica: seus pesquisadores, sua metodologia, seus produtos. Esse território formado por trabalhadores e pesquisadores permitiu o constante questionar e deslocar dos vetores institucionais e históricos que tendem a cristalizar as relações de poder entre quem pesquisa e quem é pesquisado. O território da pesquisa fez que o apoio fosse um processo mútuo, desestabilizando a lógica colonizadora na qual a academia seria a protagonista que teria o poder de produzir conhecimento e apoiar.

Compreender a pesquisa como construindo e sendo simultaneamente construída em um território de relações com o campo possibilita outra conotação à noção de objeto. Não se trata mais de um objeto reificado, um dado a ser conhecido. É um objeto-acontecimento1919. Fonseca TMG, Costa LA. As durações do devir: como construir objetos problema com a cartografia. Fractal Rev Psicol. 2013; 25(2):281-99. que coemerge no agenciamento entre pesquisa e prática pesquisada. No ato de dizer e sistematizar enunciados sobre o cuidado no POP RUA, estávamos ao mesmo tempo participando do processo de cuidado e da criação do sentido do cuidado na equipe.

O que era discutido no GIT sobre o cuidado não consistiu em enunciado de uma única voz; o conteúdo do documento técnico não foi enunciado consensualmente. Frequentemente houve posicionamentos contrários e até mesmo conflituosos na discussão de algum tema. A chave para a produção de um território comum da pesquisa era fazer posições dissidentes conviverem, evitando conciliá-las ou resolvê-las de alguma forma. Não buscar a resolução imediata de determinado impasse, mas sustentá-lo, deixá-lo em aberto. Essa postura de cogestão55. Campos GW. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005. criou condições para que o grupo se constituísse como um território de formulação de problemas de todas as ordens: da saúde, da cidade, existenciais.

A construção desse território fez a pesquisa e o cuidado da equipe interferirem mutuamente por meio dos arranjos metodológicos criados. O espaço de produção coletiva foi (re)definindo posições subjetivas com base no próprio espaço da pesquisa. O manejo das discussões, a construção da memória das discussões, a maneira de direcionar o conteúdo da memória em textos eram sempre definidos nos espaços coletivos. Os desenhos e as funções predefinidas pelos pesquisadores-acadêmicos se transformavam ao longo do processo, tendo servido apenas de ponto de partida para um primeiro passo. O território da pesquisa era sustentado por uma metaestabilidade, uma contínua atualização, que não era baseada na coerência, mas na consistência de estar em meio aberto e atento ao processo. Longe de ter sido uma desorientação, tal atitude foi um compromisso da pesquisa com o processo do pesquisar no campo, um compromisso com o território da pesquisa que se formava.

Território na pesquisa-intervenção participativa

Chamamos o encontro entre pesquisa e campo na pesquisa-intervenção participativa de “território da pesquisa” por entendermos que esse é o espaço de gênese do conhecimento produzido, espaço marcado por uma criação sem entidade criadora. O conhecimento produzido não é exclusivamente de autoria dos pesquisadores, nem mesmo exatamente de autoria dos participantes da pesquisa. É na relação, na coabitação que ele emerge. Desse território de experiência compartilhada, também emergem e se reatualizam os sujeitos envolvidos, que saem modificados.

O modo de conceber o território em uma pesquisa sobre o cuidado no campo da saúde promoveu aproximações entre pesquisar e cuidar, trazendo novos sentidos à “participação” na pesquisa-intervenção. No cuidado do POP RUA, o território não poderia ser tratado como mera delimitação espacial. Os sentidos de cuidado presentes no POP RUA implicavam tomar o território como matéria, meio e fim, fazendo que ele próprio fosse o protagonista do cuidado. Para essa equipe, cuidar consistia também em aprender a perceber como o território cuidava. A pesquisa sobre o POP RUA adotou perspectiva semelhante: o modo de investigar cultivou um espaço de relação, no qual trabalhadores e pesquisadores puderam juntos tomar decisões, trocar, aprender e criar.

Ao longo deste texto, objetivamos descrever de que maneira o território pode ter seu protagonismo exercido e valorizado no decorrer da realização de uma pesquisa. Tal protagonismo está intrinsecamente ligado ao sentido de participação que queremos afirmar: uma participação que convida à cogestão e à coautoria da pesquisa, que faz que sujeitos pesquisados participem e intervenham na gênese do conhecimento, e que os pesquisadores participem e intervenham na práticas de saúde. Compreende-se que o território é o domínio relacional e a experiência situada e concreta na qual coemergem sujeitos e objetos2020. Varela F. O reencantamento do concreto. Cad Subj. 2003; 1(1):71-86., e que ele mesmo participa modificando os sujeitos envolvidos na pesquisa e os objetos de investigação. Podemos afirmar que na pesquisa-intervenção participativa o território é parte fundamental do processo de produção de conhecimento.

É o território, como experiência situada e plano relacional, que pode estabelecer um plano de lateralidade e transversalidade2121. Guattari F. Psicanálise e transversalidade. Aparecida: Idéias e Letras; 2004. entre pesquisadores e participantes. Ele constitui um comum heterogêneo, que abriga as singularidades, que pode ampliar as possibilidades de surgimento de novos sentidos, novos conhecimentos, novos posicionamentos subjetivos. Na inclusão e no agenciamento com o território do campo, a pesquisa cria um território da pesquisa, que não é propriedade privada de nenhum sujeito, mas espaço de experiência comum que abriga em lateralidade pesquisadores e pesquisados.

A atitude do pesquisador é, por um lado, de presença e porosidade ao território do campo e, por outro, de engajamento e corresponsabilização com ele, abrindo mão da perspectiva de controle absoluto sobre o processo do pesquisar. O caráter participativo da pesquisa se definiria pelo estabelecimento de uma experiência dialógica2222. Metcalfe A, Game A. ‘In the beginning is relation’: Martin Buber’s alternative to binary oppositions. Sophia. 2012; 51:351-63., em que os pesquisadores possam falar com o campo e escutar a sua “voz”. Dessa forma, pesquisadores e participantes se modificam mutuamente por meio do espaço relacional que se constrói.

Há uma aposta no território que aproxima os modos de produzir conhecimento na pesquisa-intervenção participativa e nas práticas de cuidar do POP RUA. Por um lado, observou-se que o modo de produzir cuidado operado pela equipe de saúde contaminou o modo de produzir conhecimento. Por outro lado, o modo de fazer pesquisa também contaminou os modos de cuidar. A própria enunciação das diretrizes, metodologias e dispositivos do cuidado do POP RUA promoveu transformações na prática, conforme nos foi relatado: “a discussão da semana passada me fez repensar as possibilidades deste caso”, ou “mudei minha postura com o usuário X, com o que pensava que podia a função do ACS”. Não apenas se pesquisou acerca de como o cuidado é realizado por uma determinada equipe, como também efetivamente se produziu um dispositivo que promoveu cuidado entre trabalhadores e pesquisadores. Conhecimento e cuidado se coengendraram nesta pesquisa-intervenção participativa: o cuidado gerou conhecimento, assim como a produção de conhecimento promoveu efeitos de cuidado.

A inclusão e a criação de condições para o protagonismo do território se mostraram estratégias para enfrentar ao mesmo tempo o centripetismo biomédico e hospitalocêntrico no âmbito do cuidado, e a esterilidade da separação entre sujeito e objeto, no âmbito da produção de conhecimento. Pesquisa e cuidado se afirmaram como práticas participativas, de inclusão da experiência do outro, mas, mais que isso, de construção e compartilhamento de uma experiência comum e situada entre quem cuida e quem é cuidado, quem pesquisa e quem é pesquisado. Na pesquisa-intervenção participativa o pesquisador participa do território do campo investigado ao mesmo tempo que o território participa da pesquisa. A participação é uma coparticipação com interferências mútuas.

Referências

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  • *
    O artigo é resultado de pesquisa financiada por bolsa recebida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2019
  • Aceito
    31 Ago 2020
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