Acessibilidade / Reportar erro

Aprendizagem e sofrimento: narrativas

LIVROS

Departamento de Educação e Psicologia. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. UTAD. Apartado 1013 5001-601 Vila Real , Portugal. mazevedo@utad.pt

O livro Aprendizagem e sofrimento: narrativas, produzido no quadro do projeto de investigação "Sofrimento, educação e saúde", e em que participam investigadores portugueses e brasileiros, tem a finalidade de olhar o sofrimento como oportunidade de aprendizagem e crescimento pessoal. Nas palavras de uma das autoras, esta finalidade traduz-se, mais especificamente, no estudo das condições em que "o sofrimento humano se transforma em aprendizagem para quem o vivencia, quer na pessoa que sofre, quer no seu cuidador" (p.23).

A obra, com prefácio de Vítor Pordeus, médico e investigador brasileiro, divide-se em três partes, das quais a segunda (Narrando experiências pessoais de sofrimento), constituída por um conjunto de onze narrativas de sujeitos de doença, deficiência ou luto, ou que passaram pela experiência de sofrimento como profissionais de saúde, é a mais fascinante por trazer, ao leitor, o testemunho vivo, narrado na primeira pessoa, da articulação entre os dois conceitos-chave da obra.

A primeira parte (Pesquisar complexamente a saúde no sofrimento) dá-nos o quadro teórico em que se situam as investigadoras e, em particular, este projecto, bem como a metodologia seguida para a elaboração da obra; a terceira parte (Complexificando a aprendizagem do viver) propõe-nos uma análise das narrativas, extraindo delas elementos para uma educação para o sofrimento, ou uma teoria da educação para o sofrimento, a construir.

O quadro teórico desta obra é fundamentalmente o dos autores do movimento da auto-organização (entre os quais, Bateson, Maturana, Varela, Atlan, Von Foerster), mas inclui outros que, por lhe serem anteriores ou não sendo filiados nesta orientação, fazem propostas que podem harmonizar-se com ela, mantendo a coerência. É o caso de Aaron Antonovsky e do seu modelo salutogénico. Assim, este livro enquadra-se numa abordagem epistemológica que reconhece o valor da experiência vivida por cada sujeito, incluindo o sofrimento, precisamente no que ela tem de individual e único, como ponto de partida e matéria de investigação científica, o que não significa atribuir, aos autores das histórias de vida, colaboradores imprescindíveis do projeto, a função de investigadores.

Coerente com esta perspectiva epistemológica, a metodologia utilizada é explicada nas páginas 40 a 43 e retomada, quanto aos procedimentos de análise, na página 129. Os procedimentos utilizados são adequadamente descritos e constituem garantia de integridade científica, nomeadamente no que se refere aos limites temporais para a recolha das narrativas, ao assegurar as condições para a coerência entre elas, a codificação e análise de conteúdo, assim como o respeito pela dignidade e demais direitos dos colaboradores.

As autoras selecionaram um conjunto de sujeitos em quem reconheciam que a experiência direta ou indireta do sofrimento proporcionara aprendizagens e solicitaram-lhes que redigissem um testemunho escrito sobre essa experiência no qual emergisse a resposta às seguintes perguntas:

"Qual a experiência da situação de sofrimento em questão?"; "O que mudou na sua vida depois dessa experiência que considere aprendizagem?"; "Qual a sua justificativa para essa alteração?" "Quais os acontecimentos em questão?"; "Como reconfigurou sua vida a partir desse sofrimento?"; "Fez alguma diferença, quanto à sua compreensão, dessa experiência na sua vida, tê-la narrado por escrito?" (p.41)

Para quem, quanto ao processo de construção do conhecimento científico, se situa numa perspectiva tradicional - o paradigma da modernidade - , um tal ponto de partida causa desconfiança e, mesmo, a suspeita de erro lógico: a convicção, por parte das investigadoras, de que os colaboradores realizaram aprendizagem em situação de sofrimento enviesaria a sua análise das narrativas por eles produzidas, e seria, por isso, autoconfirmatória. Uma tal crítica deixaria de lado o essencial deste trabalho. O que as autoras pretendem é

perceber o que distingue esse tipo de pessoas, pois, se conseguirmos detectar essa diferença, talvez possamos educar para que consigamos não só resistir ao sofrimento, mas também transformá-lo (olhos nos olhos, sem negação) em fonte de maior sabedoria. (p.24)

Os seus pressupostos podem resumir-se deste modo:

- a aprendizagem é sempre aprendizagem de alguém e enraíza-se na sua experiência vivencial (a sua existência);

- estrutura-se quando a pessoa é capaz de observar-se e narrar essa experiência para si mesma e, eventualmente, para outros.

O objectivo deste livro não era, portanto, verificar (ou confirmar) a existência de aprendizagem no (ou pelo) sofrimento, mas sim, como dissemos, identificar, nos sujeitos que a realizam, um conjunto de características distintivas, fundamentadoras de uma educação para o sofrimento.

A terceira parte do livro, de forma aliás coerente com o exposto na primeira secção, explicita sentidos que o sofrimento pode assumir, indo para além dos significados que, de um ponto de vista estritamente racional ou social, foram identificados por outros investigadores, como Cassell e Le Breton, como as autoras referem. A partir da análise das narrativas produzidas pelos colaboradores, reconhecem que o sentido do sofrimento:

- é "pessoalizado", precisamente por estar imerso na história de vida de cada um;

- resulta de um processo, ou seja,

. é progressivamente descoberto (não dado por outrem, nem encontrado de forma acabada),

. mediante um trabalho de desenvolvimento espiritual que o próprio sofrimento de algum modo induziu, "testemunhando [...] um trabalho interior de flexibilização de seus padrões auto-organizativos, num caminho de espiritualidade crescente, onde o sofrimento não se opõe à vida, mas dela é parte integrante" (p.118).

Do ponto de vista do progresso do conhecimento, este livro é relevante na medida em que evidencia a relação entre o sofrimento (tão pouco estudado pelas dificuldades que acarreta) e o sentido interno de coerência (SOC), definido por Aaron Antonovsky, partindo, precisamente, da perspectiva que sobre a aprendizagem têm Bateson e outros autores do movimento da auto-organização. Esse conjunto de narrativas e a análise que as complementa, poderão, em nossa opinião, ser de grande utilidade na formação dos profissionais de saúde e das profissões de ajuda, bem como na formação de cuidadores não formais.

Se é certo que os capítulos de índole mais teórica usam, sem definição de conceitos, certo jargão próprio da orientação epistemológica das autoras, e não foi feita uma homogeneização de estilo nos capítulos da primeira parte, nem por isso cremos que a leitura saia perturbada.

Esperamos que este grupo de investigação possa alargar o seu trabalho mediante a realização de novos estudos, quer de tipo comparativo, quer de natureza monográfica, aprofundando algum dos temas aqui abordados (doença, deficiência, luto ou sofrimento em contexto profissional) e outros que lhe sejam complementares.

Recebido em 22/11/12

Aprovado em 14/12/12

  • OLIVEIRA, C. et al. Aprendizagem e sofrimento: narrativas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2012

    Maria da Conceição Azevedo
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
    UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
    E-mail: intface@fmb.unesp.br