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Além do discurso de mudança na educação médica: processos e resultados

LIVROS

Sérgio Rego

Pesquisador Adjunto da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz; editor da Revista Brasileira de Educação Médica; diretor da Sociedade de Bioética do Estado do Rio de Janeiro, regional da SBB. <rego@ensp.fiocruz.br>

Feuerwerker, Laura. Além do discurso de mudança na educação médica: processos e resultados. 1.ed. Rio de Janeiro: Hucitec, 2002. 306 p.

Desde o surgimento da então Associação Brasileira de Escolas Médicas (ABEM)

Esta não é, felizmente, a história desse livro, que Laura Feuerwerker e a Editora Hucitec nos oferecem. Laura debruça-se nas experiências de mudança das Faculdades de Medicina de Londrina e de Marília e logra apresentar, com a profundidade e os detalhes característicos não apenas de uma pesquisadora competente mas também de alguém que é profundamente envolvida com estas duas escolas médicas, tanto os relatos, a partir de seu próprio ponto de vista, dos processos de mudança, mas também ouvindo seus atores fundamentais. Seria, entretanto, um relato a mais de experiências, não fosse o seu cuidado de manter um diálogo permanente com seu referencial teórico, que Laura cumpre com habilidade.

Os projetos UNI de uma maneira geral e as experiências específicas das Faculdades de Medicina de Marília e de Londrina têm alcançado um destaque nos fóruns acadêmicos e políticos no campo da educação médica capaz de gerar algumas críticas impertinentes de um lado e, de outro, uma admiração que os eleva quase a uma categoria de farol para as outras escolas. A leitura do livro de Laura nos obriga a refletir sobre essas considerações: se é fato que "em 1991 a Fundação Kellogg lançou as bases de uma nova iniciativa na formação dos profissionais de saúde, o Programa UNI" (Feuerwerker, 2002, p.59), tal fato não implica necessariamente uma incorporação acrítica de modelos alienígenas. Antes, pelo contrário, a autora demonstra, na análise dos processos de mudança em questão, como a permanente avaliação e contextualização das propostas foram indispensáveis para o desenvolvimento dos processos. Por outro lado, da reflexão resultante da leitura do livro, fica também claro que os passos trilhados nas cidades de Marília e de Londrina não são, necessariamente, os passos que serão trilhados em outras cidades, com atores diferentes.

A autora se apóia em referencial teórico basicamente marxiano, mas o faz sem cair no sectarismo intelectual que marcou fortemente a produção acadêmica dos anos de 1970, quando a retórica do discurso ideológico era muitas vezes mais importante que a consistência da análise realizada. Quando a realidade não conjuminava com a teoria, bastava interpretá-la de forma tendenciosa e pouco científica, criando uma realidade virtual em que as teorias se aplicavam perfeitamente.

Juan Cesar Garcia, grande expoente teórico da América Latina, legou-nos, entretanto, um problema teórico que vem sendo repetido através dos tempos mesmo por quem, como Laura em seu livro, contradiz seus pressupostos fundamentais ao recorrer a crítica de Jairnilson Paim e Mario Rovere. Não é mais possível aceitarmos a transposição mecânica da descrição de Marx sobre o processo de produção de um produto para o entendimento do processo educativo. Aceitar que, tal como Garcia enunciou, o processo educativo segue os mesmos e tão somente os mesmos determinantes do processo de produção de um produto qualquer é achar que existem dois professores ou dois alunos iguais. É negar a subjetividade e a individualidade. É negar a própria condição humana dos atores envolvidos no processo educativo.

Embora toda a narrativa de Laura esteja forte e corretamente fundamentada nas concepções do Planejamento Estratégico de Mario Testa, privou-nos a autora de uma reflexão (talvez organizada como uma seção) indispensável no processo de planejamento: o por que mudar alguma coisa na Educação Médica? Esta reflexão diagnóstica, virtualmente consensual entre especialistas em Educação Médica, é indispensável para os profissionais que não estão envolvidos diretamente nestes processos de discussão, os que poderíamos rotular genericamente de médicos e professores tradicionais. Por que determinadas faculdades não estão nem um pouco além do discurso da mudança? Por não saberem como fazer? Ou por não haver um amadurecimento da reflexão sobre o processo educativo que leve os atores representantes do pensamento hegemônico a se convencerem de que algo precisa mudar? Ou talvez a resposta seja mais simples: porque acham que não precisam mudar. A mesma resposta que talvez seja ouvida entre docentes de tantas Universidades tradicionais ou mesmo de outras que, embora com uma história mais curta, não partilham pelo desejo de transformação que parece contaminar cada vez mais o ambiente acadêmico nas escolas médicas. Laura, em diferentes momentos, dá pistas de sua compreensão sobre esta questão, como ao discutir a relação entre a dinâmica do mercado de trabalho e o perfil dos profissionais de saúde formados, ou apresenta os resultados dos diagnósticos realizados pelos atores envolvidos nos processos de mudança. Se o mercado ainda absorve e prefere especialistas, por que devemos formar generalistas? Será possível confiar plenamente no Programa de Saúde da Família como um programa que mudará o perfil assistencial no Brasil enquanto ele ainda é tratado na própria estrutura governamental como um programa paralelo? Se a população quer o atendimento hospitalar, por que centrar a assistência no primeiro nível de assistência? Por que preparar profissionais em cenários de prática diferenciados se a mudança no modelo assistencial brasileiro não ultrapassa ainda os limites das boas iniciativas, não efetivamente estruturadas? Estas questões perpassarão a mente dos leitores do livro de Laura que, obviamente, não poderia, por questões físicas, se propor a respondê-las todas, mas instiga o leitor a pensar sobre isso.

Finalizando, é preciso dizer que o livro de Laura Feuerwerker é uma das mais importantes e consistentes contribuições para a reflexão sobre a Educação Médica em nosso país. Seu mérito maior talvez seja exatamente o de não fechar questões, não impingir ao leitor um ponto de vista como o único possível ou nem mesmo o melhor, mas conduzi-lo num cuidadoso ir e vir entre fundamentação teórica e dados empíricos, permitindo a cada um de nós, a partir de nossa reflexão, tirarmos nossas próprias conclusões. Um livro indispensável para quem não gosta dos projetos UNI (mas que possivelmente não os conhece além da superficialidade) e para aqueles que escolheram Marília e Londrina como a Meca brasileira para a Educação Médica e estão fadados a falharem em seus próprios processos se não lograrem entender os processos em curso naquelas duas faculdades. Um livro indispensável àqueles comprometidos efetivamente com a melhoria do processo de ensino-aprendizagem em nossas faculdades.

Recebido para publicação em 26/11/02

Aprovado para publicação em 13/12/02

  • 3 "Se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim poder possuir certa segurança" (Rilke, R.M. Cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro: Globo, 1976. p.67).
  • 1
    no início da década de sessenta do século passado o discurso sobre a necessidade de implementar mudanças no processo de ensino da Medicina está presente de forma razoavelmente organizada
  • 2
    em nosso país. Alguns assinalarão, apropriadamente, que organizações internacionais como a OPAS são, de fato, no mínimo, os agentes catalisadores dessas discussões. Algumas poucas experiências realmente transformadoras foram iniciadas nos primeiros dez a vinte anos de existência da Abem – a Universidade de Brasília e o Curso Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ambas experiências ajudaram a constituir algo muito característico de nossa evolutiva sociedade de consumo: o Museu de Grandes Novidades, do qual nos falava Cazuza. No campo da Educação, particularmente, poucas experiências têm duração suficiente até para serem avaliadas, pois logo um burocrata de plantão, ou o autoritarismo conservador, encarrega-se de desestruturar o que foi feito, desmobilizar o que está em movimento e volta-se à confortável nesga de luz, da qual nos falou Rilke
  • 3
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Fev 2003
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