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Aconselhamento em contracepção: grupo de capacitação de profissionais médicos do Programa de Saúde da Família

Recomendaciones en contraconcepcíon: grupo de capacitacíon de profesionales médicos del Programa de Salud de la Familia

Resumos

Analisam-se as potencialidades de uma intervenção em grupo com o propósito de capacitar médicos residentes do Programa de Saúde da Família (PSF) para aconselhamento em contracepção. Ancorados no pressuposto da incorporação da sexualidade nessa área, os autores trabalharam com estratégias que se destinam a sensibilizar os profissionais para ouvir as questões sexuais que estão subentendidas na orientação para a contracepção. Foi utilizada metodologia qualitativa. O corpus foi construído com base na técnica de observação participante e consistiu em relatos provenientes da transcrição das notas do diário de campo da coordenadora do grupo. Observou-se que a possibilidade de compartilhar saber, numa relação de horizontalidade, favoreceu a revisão de crenças e valores que sustentam a prática médica, ajudando profissionais a transcenderem uma visão tecnicista da orientação em contracepção.

Anticoncepção; Aconselhamento diretivo; Medicina de família e comunidade; Comportamento reprodutivo; Educação médica


Se analizan las potencialidades de una intervención en grupo con el propósito de capacitar a médicos residentes del Programa de Salud de la Familia (PSF) para recomendaciones en contraconcepción. Ancorados en el presupuesto de la incorporación de la sexualidad en esta área, los autores han trabajado con estrategias que se destinan a sensibilizar a los profesionales para tener en cuenta las cuestiones sexuales que están sobrentendidas en la orientación para la contraconcepción. Se utilizó metodología cualitativa. El corpus se construyó con base en la técnica de observación participante y consistió en relatos provenientes de la transcripción de las notas del diario de campo de la coordinadora del grupo. Se ha observado que la posibilidad, favoreció la revisión de creencias y valores que sustentan la práctica médica, ayudando a los profesionales a trascender una visión tecnicista de la orientación.

Anticoncepción; Consejo dirigido; Medicina familiar y comunitaria; Conducta reproductiva; Educación médica


The potential for a group intervention with the purpose of training medical residents within the family health program for contraception counseling is analyzed. The intervention is based on the assumption that sexuality needs to be incorporated within this field. Strategies aimed at raising health professionals' awareness of the need to listen to the sexual issues that are implicit in contraception counseling are discussed. Qualitative methodology was used, and the corpus was constructed based on the technique of participant observation. It consisted of reports coming from transcription of the group coordinator's field diary notes. It was seen that the opportunity to share knowledge in a horizontal relationship facilitated revision of the beliefs and values that support medical practice. Thus, this helped health professionals to surmount the technical view of contraception guidance.

Contraception; Directive counseling; Family practice; Reproductive Behavior; Sexuality; Medical education


ARTIGOS

Aconselhamento em contracepção: grupo de capacitação de profissionais médicos do Programa de Saúde da Família

Recomendaciones en contraconcepcíon: grupo de capacitacíon de profesionales médicos del Programa de Salud de la Familia

Manoel Antônio dos SantosI; Elisabeth Meloni VieiraII

IPsicólogo. Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Rua Cerqueira César, 974, apto. 91 Centro - Ribeirão Preto, SP - 14.010-130 masantos@ffclrp.usp.br

IIMédica. Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

RESUMO

Analisam-se as potencialidades de uma intervenção em grupo com o propósito de capacitar médicos residentes do Programa de Saúde da Família (PSF) para aconselhamento em contracepção. Ancorados no pressuposto da incorporação da sexualidade nessa área, os autores trabalharam com estratégias que se destinam a sensibilizar os profissionais para ouvir as questões sexuais que estão subentendidas na orientação para a contracepção. Foi utilizada metodologia qualitativa. O corpus foi construído com base na técnica de observação participante e consistiu em relatos provenientes da transcrição das notas do diário de campo da coordenadora do grupo. Observou-se que a possibilidade de compartilhar saber, numa relação de horizontalidade, favoreceu a revisão de crenças e valores que sustentam a prática médica, ajudando profissionais a transcenderem uma visão tecnicista da orientação em contracepção.

Palavras-chave: Anticoncepção. Aconselhamento diretivo. Medicina de família e comunidade. Comportamento reprodutivo. Educação médica.

RESUMEN

Se analizan las potencialidades de una intervención en grupo con el propósito de capacitar a médicos residentes del Programa de Salud de la Familia (PSF) para recomendaciones en contraconcepción. Ancorados en el presupuesto de la incorporación de la sexualidad en esta área, los autores han trabajado con estrategias que se destinan a sensibilizar a los profesionales para tener en cuenta las cuestiones sexuales que están sobrentendidas en la orientación para la contraconcepción. Se utilizó metodología cualitativa. El corpus se construyó con base en la técnica de observación participante y consistió en relatos provenientes de la transcripción de las notas del diario de campo de la coordinadora del grupo. Se ha observado que la posibilidad, favoreció la revisión de creencias y valores que sustentan la práctica médica, ayudando a los profesionales a trascender una visión tecnicista de la orientación.

Palabras clave: Anticoncepción. Consejo dirigido. Medicina familiar y comunitaria. Conducta reproductiva. Educación médica.

Por que aconselhamento em contracepção?

Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo profissional, na prática médica, é lidar com os aspectos afetivos e comportamentais envolvidos na relação com o paciente. Particularmente, quando a tarefa envolve aspectos da conduta sexual, a dificuldade é ainda mais flagrante. No caso do aconselhamento em contracepção, por tratar-se de objeto de intensa medicalização, verifica-se uma tendência à normatização prescritiva e à redução ao corpo biológico, levando a uma naturalização da questão e, muitas vezes, a uma total ignorância sobre as questões de gênero.

Medicalizar o corpo e reduzi-lo ao seu aspecto meramente biológico têm sido estratégias comuns da prática médica, de forma a não lidar com os aspectos afetivos e sociais da vida cotidiana, para os quais os médicos sentem-se despreparados. Além disso, com o uso recorrente dessas estratégias, reforça-se a idéia da necessidade intensa do especialista e da solução medicalizada para questões psicossociais cuja resposta pode estar além desta prática (Vieira, 2002).

No caso do corpo feminino, existem várias análises que apontam para sua "expropriação" pelo saber médico como estratégia de controle social, negando às mulheres autonomia e poder de decisão sobre o próprio corpo (Enrenreich, English, 2003; Vieira, 2002; Illich, 1975). Por outro lado, no caso do Brasil, existe uma necessidade real de contracepção das mulheres que não encontra resposta no sistema de saúde. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde de 1996, cerca de metade das mulheres não queria ter tido o último filho ou queria ter tido essa gravidez em outro momento da vida (BEMFAM/Macro, 1997).

O aconselhamento em contracepção é um procedimento fundamental para permitir o acesso aos meios contraceptivos e seu uso correto, aumentando sua eficácia de ação, sobretudo para a população com baixo poder aquisitivo e pouco acesso à informação científica. Nesse sentido, os profissionais de saúde - médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos - desempenham um papel crucial, pois podem fornecer orientações adequadas, legitimando essa busca.

O Programa de Residência Médica em Saúde Comunitária e Medicina da Família da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo busca capacitar os médicos para uma abordagem integral, colocando como prioritárias as questões de saúde pública e aquelas que envolvem o estabelecimento de uma boa relação médico-paciente. Esse programa baseia-se nas premissas que regulam o Programa de Saúde da Família (PSF).

No contexto hospitalar, as aproximações mecanicistas da doença e da cura são hegemônicas e geram insatisfação tanto nos pacientes como nos profissionais de saúde. Os programas de saúde da família privilegiam outra ótica do cuidar. O cuidado integralizado, humanizado e solidário deve restituir a unidade do ser humano e apreender os problemas humanos em suas múltiplas dimensões: biológicas, sociais, psicológicas e existenciais.

O PSF compreende uma política pública de atenção primária à saúde destinada à operacionalização dos princípios e diretrizes do SUS, organizando o sistema em uma rede articulada com os outros níveis de atenção à saúde (Brasil, 1997).

Nessa rotação de perspectiva operada pela estratégia saúde da família, os PSFs se configuram como um campo fértil para a experimentação de modalidades diferenciadas de intervenção na área da saúde (Camargo-Borges, Cardoso, 2005). Uma das vertentes dessa produção de conhecimentos e de práticas inovadoras ou transformadoras é aquela que se propõe a abordar e repensar a relação médico-paciente.

Relação médico-paciente em tempos de transição social e paradigmática

Atualmente, a formação médica é considerada um componente estratégico da Reforma Sanitária Brasileira (Aguiar, 2005). Da educação médica depende, em grande medida, o aprimoramento do modelo assistencial em direção a uma prática em saúde humanizada e competente, voltada para os interesses coletivos e regulada por eficiente controle social.

Autores como Camargo (1992), Schraiber (1997, 1993), Minayo (1993a) e Machado (1997) colocam em discussão a formação médica e o cotidiano do trabalho em Medicina. Um dos aspectos levantados é a supressão de dimensões importantes da experiência humana com o advento da medicina científica. As múltiplas facetas, social-comunitária, emocional e espiritual, que compõem o existir humano, além da dimensão biológica, encontram-se dissociadas, diluídas ou completamente negligenciadas na produção do saber médico. Clavreul (1983) reconhece aí uma estratégia sutil de destituição da subjetividade do paciente que não pode ser acolhida na prática médica. Para que essa prática pudesse se constituir historicamente, tal como hoje a conhecemos, demandou que se colocasse em suspeição tudo o que escapa à captura do olhar anatomopatológico e que, portanto, não pode ser traduzido em termos exclusivamente racionalistas.

Ao esculpir a profissão médica nesses moldes, o discurso médico tem efeitos diretos na prática clínica. Discutindo a qualidade da assistência médica, alvo de constantes questionamentos e descontentamentos, Schraiber (1993) menciona a falta de compromisso que surge quando o profissional se crê isento de responsabilidade pessoal sobre suas ações, delegando-a às instituições, ao governo ou a qualquer outra instância externa. Esse fenômeno, no qual pessoa e ato se dissociam, está vinculado ao que a autora denomina de "despersonificação dos cuidados e desumanização da assistência" (Schraiber, 1993, p.128). Para combatê-las, é necessário que se incorporem, ao exercício da Medicina, as dimensões perdidas do ser humano e que se proporcione, efetivamente, um cuidado do emocional em saúde (Sá, 2003).

É preciso compreender que as raízes dessa dissociação repousam na própria constituição do objeto de estudo da Medicina como um corpo-máquina, na melhor tradição do pensamento cartesiano. Assim, "o objeto do saber médico é a doença e seu acontecimento num corpo redutível às necessidades biológicas" (Souza, 1998, p.91), tentando apagar a dimensão do corpo erotizado ou, no mínimo, erotizável no campo de uma relação intersubjetiva que se estabelece no ato do cuidado. Para que o corpo erógeno não irrompa sobre o discurso do corpo biológico, perturbando sua inteligibilidade com base em categorias puramente racionais, pensar (saber) e sentir precisam permanecer desconectados. Isso implica inibições, angústias e formação de sintomas, porque há sempre o risco de erotização ou sua negação. Neste caso - com a negação desse risco - recai-se na banalização do corpo, a sustentar a presunção de que se trata de um corpo exclusivamente biológico, o que supostamente garantiria a neutralidade da "postura profissional".

O imaginário social credita à figura do médico um poder simbólico superlativo. As pessoas normalmente transferem para o médico o respeito e a veneração que devotam aos seus pais, de maneira análoga ao que Freud (1996) detectou na relação do aluno com o professor, que se assemelharia à relação do filho com o pai. Se for verdade que o paciente tende a ver no profissional a encarnação de uma figura paterna sábia e protetora, o médico pode se aproveitar de sua posição privilegiada para tentar moldá-lo à sua imagem, reforçando sua dependência infantil em vez de alimentar o seu desejo legítimo de aprender mais sobre si mesmo, de saber o que ainda desconhece de si, valendo-se do discurso sobre sua sexualidade.

Por outro lado, o excesso de expectativas depositadas sobre os ombros do médico leva a uma idealização extraordinária, difícil de ser sustentada na prática, por exemplo, quando o tratamento se mostra incapaz de evitar a morte do paciente, o que suscita enorme decepção. Logo, o médico é percebido sempre com certa ambivalência pelo outro que o coloca como aquele de quem se espera um saber seguro e verdades fundamentais, mas também como alguém que pode falhar e sucumbir ao sentimento de impotência. Assim, poder e impotência permeiam o exercício da Medicina e constituem o discurso médico (Clavreul, 1983).

Educado para encarnar aquele que detém todas as respostas, não é fácil para o médico admitir os limites de seu conhecimento e conviver com incertezas e imprecisões, sobretudo quando se põem em questão os ideais e a ambição de cura. Acontece que esse saber prescritivo, que se quer absoluto, é inevitavelmente confrontado em um campo escorregadio como o da sexualidade, que se esquiva de categorizações cristalizadoras que fixem as atitudes e ações humanas em categorias descritivas. É particularmente desconfortável para o médico admitir que nem ele nem ninguém detém todo o saber, e de que não existe apenas uma verdade.

O desaparecimento da certeza conferida pela posse de um saber positivo, que é o marco que caracteriza a transição para a pós-modernidade, exige que se reconheça o imprevisível e que se tolerem os paradoxos e ambigüidades, a incompletude e a singularidade próprias da condição psíquica de cada indivíduo.

No âmbito da relação médico-paciente, isso significa renunciar ao conforto que uma identificação plena com o lugar do suposto saber assegura ao profissional. Isso implica permitir-se navegar muitas vezes por uma rota desconhecida, exposto ao perigo das intempéries. Por vezes, o inesperado poderá fazer uma surpresa, quando a relação com o paciente revelar algo que diz respeito ao profissional, colocando em causa sua própria subjetividade. O que dá margem para a instigante indagação "quem educa quem?", que inspira as reflexões de Ramos, Cardoso de Melo e Souza Soares (1989) acerca da relação médico-paciente, sugerindo que, vista na perspectiva da intersubjetividade, é sempre uma via de mão dupla.

Vivemos em tempos de transição paradigmática (Grandesso, 2000; Santos, 1989) que incide de maneira peculiar no campo da saúde. Nos últimos anos, em conformidade com os pressupostos da Promoção em Saúde, o processo saúde-doença tem sido compreendido como produção social e cultural, que não pode ser compreendida se a isolarmos do acervo de conhecimentos construídos e partilhados pela comunidade, em contexto local e historicamente situado. Temos assistido à passagem do individual para o grupal na contemporaneidade, isto é, da ênfase excessiva no individualismo para a consideração da dimensão da coletividade. Por conseguinte, do profissional em tempos de interdisciplinaridade exige-se, cada vez mais, uma habilidade peculiar para conviver com a pluralidade das potencialidades humanas e com realidades sociais heterogêneas, locais e historicamente situadas.

Por essas realidades plurais, circula um sujeito que é, a todo momento, fundado e refundado na intersubjetividade e no seu devir histórico (Souza, 1998). Um sujeito que convive com a incerteza e o desamparo que, sobretudo na clínica, fazem sua aparição.

Atualmente, a epidemiologia clínica já reconhece a incerteza no exercício da clínica (Sackett et al., 1994). Como salienta Souza (1998, p.9), "a clínica traz ao médico a tensão subjetividade/objetividade, singularidade/objetividade, singularidade/universalidade, doente/doença, as tensões inevitáveis, dentro das quais o difícil ato médico se produz, considerando-se a oposição inclusiva entre esses pares antinômicos".

Estudos contemporâneos têm abordado a questão da educação médica no contexto das necessidades sociais de formação de recursos humanos para a organização do Sistema Único de Saúde (Amoretti, 2005). O modelo tecnicista, biologicista, voltado para a prática hospitalar, que caracteriza a estratégia de formação hegemônica, não tem dado conta de satisfazer as necessidades básicas de saúde da população. Em decorrência de uma sensibilidade crescente a tais limitações, o processo de formação dos profissionais de saúde vem passando por transformações, como a implementação de currículo integrado que, em sua metodologia de ensino, tem enfatizado a diversificação de cenários de aprendizagem (Ferreira, Silva, Aguer, 2007).

O atual cenário de transição social exige um profissional que seja capaz de operar a identificação das necessidades locais de saúde e que articule saberes provenientes de distintos campos cujos vetores convergem na assistência. É preciso superar a compartimentalização dos saberes e colocá-los em diálogo, para que se possa evoluir da fragmentação à integralidade do cuidado. Esses pressupostos têm de ser levados em consideração nos projetos de aperfeiçoamento da educação médica.

Oficina pedagógica como estratégia de ensino médico

Entre as aplicações da prática grupal na área educacional, em constante expansão, destacam-se os grupos de reflexão e os programas de educação continuada (Osório, 2003 a). Os grupos de reflexão emergiram na década de 1960, com o objetivo de proporcionar aos alunos a oportunidade de participarem de um grupo no qual pudessem elaborar as tensões suscitadas pelo curso e pela relação com professores e colegas. Os programas de educação continuada promovem a troca vivencial dos participantes no que concerne à prática de seus ofícios.

O emprego de grupos na educação médica não constitui uma novidade. O grupo Balint tem uma tradição estabelecida de décadas de aplicabilidade (Kelner, 1999; Balint, 1984), e é definido como um grupo homogêneo, constituído por médicos, que funciona como instrumento de investigação, ensino e aprendizagem da relação médico-paciente, sendo que o coordenador atua como agente catalisador do processo grupal.

Souza (1998) defende a utilização da estratégia grupal como locus privilegiado de aprendizado para discutir a formação clínica do médico. Reuniu em um grupo de reflexão alunos da fase inicial do ciclo clínico e professores. Analisando os relatos transcritos do grupo, organizados em torno do questionamento da prática clínica, a autora aponta as coerções do discurso a que estão submetidos esses sujeitos pela racionalidade anatomoclínica e do poder disciplinar que, segundo vários autores, como Luz (1988), informa e conforma o discurso do saber no sistema institucional da medicina.

Esses trabalhos que buscam explorar as potencialidades da modalidade grupal valorizam as relações interpessoais no âmbito da educação médica, tentando integrar o saber e o sentir na prática clínica. A despeito das diferenças de enfoques, os autores convergem em algumas crenças, como a de que o preparo profissional do aluno requer o convívio com as incertezas produzidas pela incompletude de seu domínio, do cada vez mais vasto conhecimento médico. Outra pauta de consenso em relação ao processo educativo é a necessidade de se abordar a negação da morte e da angústia de desamparo experimentada no exercício de uma profissão sustentada por uma ciência intrinsecamente imperfeita como a Medicina.

Dentre as tendências inovadoras, Souza (1998) destaca o trabalho de Hunter (1996), nos Estados Unidos, com introdução de literatura no curso médico, valorizando a necessidade de desenvolver a competência narrativa do futuro médico. Por competência narrativa entende-se a capacidade de adotar outras perspectivas e de seguir o encadeamento de histórias complexas, freqüentemente caóticas, que o paciente oferece. Também pressupõe, segundo Souza (1998), a capacidade de tolerar frustração e ambigüidades, e de reconhecer os múltiplos e, por vezes, contraditórios significados das experiências vividas pelas pessoas. Além disso, esse trabalho almeja aumentar a tolerância à incerteza da prática clínica e favorecer o estabelecimento de uma relação empática com os pacientes.

A dinâmica grupal permite perceber com maior clareza a continuidade que existe entre o indivíduo e o grupo - os diversos grupos nos quais ele está inserido ao longo do ciclo vital, em todas as dimensões em que a vida ocorre: familiar, social, cultural, profissional, espiritual. Freqüentemente, as pessoas que se dispõem a vivenciar a experiência como integrantes de um grupo se constituem em evidências vivas das potencialidades da grupalidade na conquista de uma maior integração da identidade profissional e de melhor qualidade de vida.

Tendo em vista tais considerações, este artigo tem por objetivo descrever uma intervenção em grupo para capacitar médicos residentes do Programa de Saúde da Família (PSF), em abordagem do aconselhamento em contracepção.

Este estudo destina-se a discutir o grupo como estratégia pedagógica na capacitação de médicos, empreendendo uma revisão teórica de algumas balizas conceituais sobre a temática abordada. Para tanto, relatamos uma experiência-piloto de um grupo de ocorrência única como referência dessa discussão dialogada.

Método

O propósito do estudo é contribuir para repensar a formação e as práticas médicas que dignifiquem o ofício da Medicina, colocando-as em sintonia com os novos paradigmas que emergem na contemporaneidade, em todos os campos do conhecimento humano.

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de natureza qualitativa, considerada uma estratégia apropriada de investigação científica para estudar situações e fenômenos humanos que ocorrem em condições naturalísticas.

A abordagem qualitativa é aqui assumida porque interessa compreender as potencialidades da intervenção em grupo, segundo a perspectiva dos participantes da situação em estudo (Goldemberg, 1997; Haguette, 1992; Trivinos, 1987). A pesquisa qualitativa busca lidar com um nível da realidade que não é passível de quantificação, ou seja, "o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis" (Minayo, 1993b, p.22).

Além disso, o estudo tem um caráter de pesquisa participante (Tedlock, 2000), em que o pesquisador se insere como parte do fenômeno investigado e, portanto, sua presença está longe de ser neutra, e suas ações contribuem para modificar aquilo que é observado.

Marco referencial teórico

A estratégia metodológica escolhida são as oficinas pedagógicas. A perspectiva que fundamenta a análise e a discussão dos dados tem como enfoque teórico a psicanálise, com sua centralidade na postulação de um inconsciente dinâmico, considerando a condição do sujeito do conhecimento/ desconhecimento constituído na linguagem. Assim, é adotada uma leitura que articula o referencial da psicanálise ao grupo (Bezerra Junior, 1994).

Local/contexto e justificativa da opção metodológica

A intervenção em grupo ocorreu em sala apropriada para esse tipo de atividade, com condições de conforto e privacidade adequadas, nas dependências da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Este estudo descreve uma estratégia utilizada em abordagem do aconselhamento em contracepção com a finalidade de sensibilizar os profissionais para a importância de escutar as questões de sexualidade subentendidas na orientação que deve ser fornecida aos usuários.

Ao privilegiar o trabalho em grupo, buscou-se entrar em sintonia com o que preconiza a literatura da área, que aponta a estratégia grupal como uma ferramenta primorosa para a criação de um ambiente de aprendizagem propício para a revisão de crenças, valores e significados, destinado a alcançar possíveis mudanças de atitudes dos indivíduos. Entende-se também que a abordagem grupal é sintonizada com os princípios que regem a estratégia saúde da família, com o redirecionamento do olhar para contextos locais, situados e relacionais, e para a lógica da integralidade.

Participantes

Participaram da pesquisa oito médicos residentes do Programa de Residência Médica em Saúde Comunitária e Medicina da Família da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, sendo cinco homens e três mulheres, todos solteiros, com idades variando entre 24 e 28 anos.

Material e procedimento

O trabalho de campo: a implementação do grupo

A capacitação foi planejada e coordenada por uma médica especialista em saúde reprodutiva, supervisora do referido Programa. Dentro do pressuposto da incorporação da sexualidade em contracepção, trabalhou-se com uma estratégia facilitadora da dinâmica grupal. Essa estratégia consistiu em apresentar um conjunto de "mitos", "realidades" e "desafios", como questões disparadoras para o debate, provocando a livre circulação de idéias no grupo. A coordenadora buscou fomentar a discussão dos participantes, contribuindo para a criação de um clima de confiança e permissividade, de modo a favorecer a exposição dos pontos de vista individuais.

A sessão de grupo durou em torno de uma hora e 15 minutos. Propôs-se um jogo do tipo charada para categorizar 15 afirmações escritas, sorteadas de um recipiente. Cada participante lia em voz alta uma afirmação que poderia ser categorizada como "mito", "realidade" ou "desafio". Ao emitir sua opinião, o médico deveria procurar justificá-la da maneira a mais completa possível, explicitando os argumentos em que se baseava para classificar o enunciado, segundo as três categorias sugeridas.

O rol de afirmativas está apresentado no Quadro 1 em suas categorias "corretas". Todas as afirmações são relativas à sexualidade no contexto da assistência à contracepção. Os enunciados categorizados como mitos são aqueles que exploram questões que se configuram como barreiras que obstaculizam a abordagem da sexualidade na atenção à contracepção. As afirmativas categorizadas como realidade e desafios baseiam-se em resultados de experiências de vários programas de planejamento familiar implementados em diversos países (Population Reports, 1998).


Tendo como pretexto procurar pela categoria correta, após o sorteio e a leitura de cada afirmação, solicitou-se ao grupo que expressasse sua opinião sobre qual categoria corresponderia à afirmação lida, que deveria ser classificada, e o porquê desta classificação.

Além disso, foi indagado aos participantes quem compartilhava a mesma opinião ou se havia alguém com opinião diferente, visando a explorar a adoção de diferentes perspectivas de focalizar a mesma questão, entendendo-se que a multiplicidade de vozes e visões dos integrantes do grupo, a respeito de um determinado tema, reflete as diferentes versões que circulam na coletividade. Esses pontos de vista, uma vez colocados em circulação, constituem ingredientes preciosos para fomentar e enriquecer a discussão, gerando possibilidades de reconstrução de novos significados no coletivo grupal.

Coleta e análise de dados

O corpus foi construído com base na observação participante e consistiu em relatos provenientes da transcrição das notas do diário de campo da coordenadora do grupo.

Para a análise do conteúdo, realizou-se a transcrição do diário de campo e, posteriormente, realizou-se uma leitura flutuante do material transcrito, seguida de uma leitura minuciosa na qual foram sublinhadas e marcadas as idéias principais vinculadas à fundamentação teórica. Os temas emergentes foram mapeados, permitindo pontuar os aspectos mais importantes a serem discutidos.

A análise qualitativa foi fundamentada no enfoque da psicanálise aplicado aos grupos, buscando-se extrair os sentidos que emergiram nas falas dos participantes.

Os membros do grupo formalizaram sua anuência com a realização do estudo mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.

Resultados e discussão

Após a proposição da tarefa, notou-se a participação imediata e entusiasmada dos profissionais, assim que a primeira afirmação foi sorteada.

Várias situações pelas quais os participantes já haviam passado foram relatadas em livre associação com as afirmações enunciadas. Uma jovem médica relatou o caso de um senhor de 73 anos que a procurou com queixa de desinteresse sexual e disfunção erétil. A médica percebeu que esse senhor estava mais aflito com a perda da potência sexual do que com a diminuição da libido, embora essas queixas parecessem associadas. Ela se mostrou preocupada, pois se considerava muito jovem e inexperiente, e não sabia o que responder ao paciente. Além disso, tinha plena consciência de que a escola médica não a preparara suficientemente para este tipo de consulta na qual o paciente, além de buscar uma solução para sua problemática, mostrava interesse em compartilhar suas apreensões em relação ao relacionamento com sua esposa, abalado pela dificuldade de consumar o ato sexual, e suas conseqüências perturbadoras em sua vida conjugal.

Outros participantes aproveitaram o ensejo para comentar que muitas queixas sexuais lhes chegam no cotidiano, sobretudo de mulheres, e eles não sabem como abordá-las. Um dos médicos confidenciou que, na sua experiência, utilizar a interdição sexual como "receita médica" era um artifício que havia lhe rendido bons resultados, já que o máximo que os casais suportavam de restrição das relações sexuais era um mês. Ainda que de forma intuitiva, esse profissional demonstrava fazer uso prescritivo do paradoxo, na medida em que ordenava a abstinência sexual compulsória ao(à) paciente que se queixava de problemas sexuais. Esse médico esclareceu que apostava, em seu íntimo, que as dificuldades sexuais, nesses casos, teriam uma origem psicogênica e que deveriam ser tratadas com instrumento próprio do arsenal psicoterapêutico. Intuitivamente, apreendeu que aquilo que é de natureza eminentemente psíquica solicita uma terapêutica igualmente psíquica que mobilize a dimensão da eficácia simbólica própria do humano.

Percebeu-se que esse profissional, de modo inconsciente, captou o lugar simbólico que ocupa na relação com as pacientes e se valeu do papel transferencial que desempenha para exercer a posição paterna, de autoridade responsável pela função interditora (Freud, 1996). Sua perspicácia está no uso que ele faz dessa função, ao atuar na relação como aquele que enuncia um imperativo que produz uma vivência paradoxal em determinada paciente que se queixava de insatisfação sexual e de não conseguir manter relações sexuais com o marido. O desejo, nesse caso, era colocado inteiramente no outro, não nela. Cabia-lhe apenas dizer sim ou não às investidas do marido que detinha sempre a iniciativa da relação sexual. Ao aconselhá-la a se manter em abstinência sexual por, no mínimo, um mês, como recomendação médica, o profissional, na verdade, a levou a se confrontar com seu próprio desejo e, evidentemente, auxiliou-a a se remeter ao que permanecia velado em seu inconsciente. Assim, diante da voz que lhe "ordenava" que se mantivesse abstinente, a mulher acabou "infringindo" a norma antes do prazo fixado pelo médico, retomando sua vida sexual com muito mais desenvoltura e prazer. Era como se a vivência paradoxal houvesse contribuído para destravar o mecanismo inibitório que a impedia de desfrutar dos prazeres da relação íntima com o parceiro.

A produção do vínculo nas relações é foco da estratégia saúde da família, que ressalta o acolhimento como modalidade de intervenção que oferece apoio contínuo ao usuário no processo de atendimento, não se limitando ao acesso ao serviço (Camargo-Borges, Cardoso, 2005). No encontro em que esse vínculo é produzido, há um processo de identificação e negociação das necessidades de quem busca ajuda. Necessidades que, ao serem nomeadas, possibilitam a transformação da queixa em demanda. Isso foi evidenciado no grupo, quando uma médica comentou que a contracepção é uma responsabilidade que a sociedade designa como exclusivamente da mulher e que esse vício é reproduzido pelos médicos em sua prática profissional, já que não se cogita de incluir, na anamnese, a pergunta, dirigida aos homens, sobre o tipo de contracepção que estão utilizando.

Houve consenso no grupo quanto à necessidade de estar atento para escutar (que é mais do que somente ouvir) o paciente, em sua unidade somatopsíquica, e considerar a sexualidade componente da atenção à contracepção, aprender mais sobre comunicação e incorporar uma visão crítica das desigualdades de gênero. Para tanto, o profissional necessita desapegar-se dos estereótipos que levam à coerção da espontaneidade e à limitação na expressão das emoções.

No decorrer da atividade de capacitação, notou-se um aumento na disponibilidade dos participantes para transcenderem os aspectos meramente tecnológicos da orientação em contracepção.

A estratégia mostrou-se apropriada para o alcance do objetivo de sensibilizar os profissionais para a escuta das questões de sexualidade que subjazem à orientação para a contracepção. O caráter informal e lúdico da atividade encontrou ampla receptividade junto aos médicos residentes, que puderam se sentir respeitados e valorizados em suas opiniões.

O grupo pode ser entendido como uma área de experimentação, no sentido que Oliveira (2003) propõe em sua abordagem da grupalidade. O que assegura que o grupo funcione como tal é a possibilidade de brincar, cujo conceito tem um significado muito diferente daquele em que geralmente é empregado. É uma atividade séria, que se desenvolve muito cedo na vida de cada indivíduo, com base no modelo de relação estabelecido com a mãe, ou seja, de uma experiência satisfatória de maternagem. Brincar é ousar exteriorizar algo sobre o qual não se tem certeza. "É possível pensar nos grupos como um ambiente muito especial no qual o brincar pode ocorrer, talvez mais do que em qualquer outro lugar" (Oliveira, 2003, p.157). Mas, para garantir que os grupos sejam estimulantes e facilitem a emergência dessa área intermediária entre a realidade subjetiva e objetiva que compreende o brincar, "é preciso que se construa um ambiente suficientemente confiável e fidedigno" (Oliveira, 2003, p. 158), adaptando-se ativamente às necessidades de expressão dos seus integrantes. Nesse sentido, a atividade lúdica pode contribuir para colocar o médico em contato com sua própria área intermediária da experiência, valorizando a produção de um saber que emana de suas próprias reflexões, inquietações e questionamentos. Essa proposta de trabalho com grupos de profissionais parece ter uma função vitalizadora, já que busca capacitá-los mediante o desenvolvimento de seus recursos.

Essa função vivificante do grupo deve ser particularmente ressaltada no contexto da profissão médica, pois estamos lidando com quem escolheu fazer do contato contínuo e constante com dor e morte o seu ofício (Pitta, 1991). Assim, esses profissionais se defrontam com situações de sofrimento e dor, como uma espécie de pão de cada dia, que colorem ou tingem de cinza seu cotidiano. Situações que, a todo momento, testam os limites humanos da suportabilidade, nas quais somos interpelados no cerne de nosso ser por inúmeras perdas - da saúde, dos sonhos, das certezas, das crenças que davam garantia aos ideais, da razão de viver e, no limite, da vida. É nesse contexto que se dá a constituição de um olhar clínico, muito calcado no "saber ver" e bem pouco no "saber ouvir". Porém, para desenvolver a habilidade de ouvir o outro, é preciso que o profissional, no decorrer do seu processo de formação, possa ter a experiência de "ser ouvido". Nesse sentido, Bellodi (2007) mostra a necessidade de se oferecer uma retaguarda psicológica para o aluno de medicina. Para tanto, as instituições de ensino superior devem envidar esforços para institucionalizar serviços específicos.

Souza (1998) entende que, para melhor compreender a formação da identidade profissional, é necessário valorizar que "é na linguagem e pela linguagem que o estudante estrutura a experiência e constitui, para além de um olhar anatomoclínico, uma perspectiva com a qual exercerá a prática médica" (p.90). Nesse sentido, entendemos que dar voz ao médico é uma maneira de diminuir a distância entre a experiência narrada pelo paciente e o vivido no cotidiano pelo profissional.

A possibilidade de compartilhar o saber numa relação de horizontalidade pode favorecer a reavaliação de crenças e a revisão de valores nos quais as atitudes e posições assumidas por cada profissional encontram-se alicerçadas. Essa postura crítica é essencial para o exercício da profissão, pois propicia reconceitualizações e redescrições do papel do médico, adotando-se uma escuta mais atenta aos aspectos relacionais, o que informa um olhar clínico despido de preconceitos e prejulgamentos. A estratégia grupal pode fornecer um contexto propício para se respeitar e acolher a diversidade dos seres humanos, percebendo-a como elemento que agrega valores, e não como fator adverso (Osório, 2003b).

A abordagem freudiana possibilita relacionar a sexualidade à linguagem, isto é, ao campo das representações inconscientes que estão vinculadas às experiências vividas no corpo. Essas representações psíquicas inscrevem simbolicamente o corpo na mente e determinam a sexualidade. Desse modo, a diferença sexual não é determinada apenas pela anatomia ou fisiologia, mas pela inscrição simbólica (Dal-Cól, Oliveira, 2005).

A separação entre o biológico e o simbólico se esboça na margem em que a sexualidade se destaca do corpo. O ser humano é marcado pelo desejo, como condição de sua humanidade (Dal-Cól, Oliveira, 2005). Considerar que há uma história do desejo, contada no discurso dos usuários em torno da contracepção, abre espaço para emergir o sujeito do desejo. Sujeito portador de um inconsciente, se focarmos sua dimensão subjetiva. Sujeito portador de direitos, se o olharmos por meio da esfera do social e do político. Esse marco referencial teórico produz um reposicionamento do profissional em relação ao aconselhamento em contracepção. Ele não se sente mais detentor de um saber do qual o outro supostamente se encontra alijado, mas valoriza a escuta que dá contornos ao saber do outro. Ele se mostra sensível e permeável aos saberes produzidos localmente, e não apenas àquilo que é considerado como correto, legítimo e verdadeiro. Só assim, munido desse novo olhar, o médico poderá contribuir para as necessárias transformações, operando como agente de mudança.

Considerações finais

Compartilhar experiências trouxe ao grupo enriquecimento com reflexão e crítica sobre aspectos sociais e individuais que emergem na prática médica que exercem. Os profissionais puderam identificar e discriminar mitos, realidades e desafios que permeiam sua atuação no campo da contracepção. Reconhecer como uma realidade que "as pessoas sentem necessidade de terem oportunidades construtivas para falar de suas experiências sexuais, preocupações e necessidades" auxilia a combater o mito de que "a sexualidade é um assunto estritamente pessoal e que as pessoas não querem falar sobre isso"(mito 1). Assim, ao desconstruírem essa crença errônea, os médicos residentes podem se preparar para enfrentar o desafio de "encontrar formas de tornar os indivíduos mais confortáveis para discutir a sua vida sexual com os profissionais de saúde" (desafio 1).

A intervenção propiciou aos médicos oportunidade de falarem e, ao mesmo tempo, ouvirem uns aos outros e socializarem suas experiências, preocupações e necessidades que surgem durante a consulta. Esse espaço de escuta é um dispositivo potente para sensibilizar o profissional acerca da importância de oferecer uma abertura genuína e empática ao outro, no exercício de um acolhimento gentil que valoriza as narrativas e a experiência relacional. Por essa razão, compreende-se a prática clínica como lugar privilegiado de exercício de convivência com o diverso e de aprendizagem informal sobre a condição humana. Assim como o grupo com finalidade de ensino-aprendizagem é um espaço valioso de construção e partilha.

A formação médica e os programas de capacitação profissional não podem prescindir de espaços que referendem o valor transformador do diálogo e da escuta para operar mudanças estruturais na convivência. O ensino deve incorporá-los aos processos tradicionais de transmissão do conhecimento teórico e técnico que orientam o fazer clínico. Para a inserção nas práticas de saúde, é necessário que se desenvolvam habilidades e competências de relacionamento humano que vão além dos clássicos requisitos de competência técnica normalmente exigidos do médico. É preciso desenvolver valores, habilidades de comunicação e capacidade de apreensão do significado das informações técnicas necessárias para responder às dúvidas dos usuários no campo da sexualidade, resistindo à tentação de medicalizar as questões psicossociais.

Por essa razão é preciso investir nos espaços relacionais, como os grupos de compartilhamento, nos quais os profissionais se reúnem para conversar sobre problemas semelhantes, formando redes de conversação em que a subjetividade de cada um possa ser valorizada como possível instrumento de produção de saber.

Os profissionais, ao final da intervenção, puderam se mostrar mais sensíveis à possibilidade de escutar e acolher as dúvidas e perguntas das pacientes, construindo possibilidades de conversação sobre a temática sexual sem pretensão de juízo moral. Conscientes do enorme desafio que é ultrapassar a visão tecnicista, perderam o medo de ouvir e sair do lugar do especialista, abdicando do poder imaginário que, de forma velada ou explícita, deseja normatizar a sexualidade do outro, sob pretexto de "fazer o bem".

Nesse contexto, o presente trabalho pode ser compreendido como uma contribuição para a produção de referências para a prática do médico, no contexto de um programa de Saúde Coletiva, tendo em vista o desenvolvimento da profissão numa postura crítica, transformadora e interdisciplinar. Atende, desse modo, a um importante anseio de ampliar as possibilidades de criação de propostas que fundamentem a inclusão de práticas que seguem a lógica de trabalho que norteia a estratégia saúde da família. Oferece subsídios, particularmente, para a incorporação da questão da sexualidade em Programas de Planejamento Familiar, reforçando o compromisso social da medicina enquanto profissão de saúde.

Recebido em 26/09/07

Aprovado em 03/03/08

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Set 2008

Histórico

  • Aceito
    03 Mar 2008
  • Recebido
    26 Set 2007
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