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DE EPISTEMICÍDIO, (IN)VISIBILIDADE E NARRATIVA: REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA DE REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA EM CADERNOS NEGROS

ON EPISTEMICIDE, (IN)VISIBILITY AND NARRATIVE: REFLECTIONS ON THE POLITICS OF REPRESENTATION OF BLACK IDENTITY IN CADERNOS NEGROS

Resumos

Este ensaio propõe-se a analisar a política de representação da identidade negra nos Cadernos Negros. Apresentam-se inicialmente reflexões teóricas sobre a noção de representação, o papel das narrativas na constituição de indivíduos e grupos sociais, e os efeitos da adoção de um paradigma globalizante único, uma revisão teórica que é embasada, sobretudo, no pensamento de Stuart Hall, Tomaz Tadeu da Silva e Boaventura de Souza Santos. Pensam-se, após, as estratégias adotadas pelos escritores dos Cadernos Negros ante o processo de marginalização, supressão e subversão dos saberes e da cultura negra, e suas opções para dar visibilidade a sua matriz cultural e produção literária. Ressalta-se o modo como o cotidiano negro, invisibilizado na produção hegemônica, é visibilizado pela asserção, repetição e poetização da vivência negra.

literatura afro-brasileira; Cadernos Negros; epistemicídio; sociologia das ausências; sociologia das emergências.


This essay intends to examine the politics of representation of black identity in Cadernos Negros. Initially, theoretical reflections on the notion of representation, the role of narrative in the constitution of individuals and social groups, and the effects of the adoption of a single holistic paradigm are introduced, a literature review that is grounded primarily on the thought of Stuart Hall, Tomaz Tadeu da Silva and Boaventura de Souza Santos. The strategies adopted by black writers in Cadernos Negros due to the process of marginalization, suppression and subversion of black knowledge and culture are then analyzed, as well as their options to give visibility to their cultural and literary matrix. The findings highlight the way by which black everyday life, made invisible in the hegemonic production, is rendered visible through the assertion, repetition and poeticization of the black experience.

Afro-Brazilian literature; Cadernos Negros; epistemicide; sociology of absences; sociology of emergence


A nossa fala desvela, delata, relata, invade quem ouvi-la oulê-la. Miriam Alves, Cadernos Negros 8.

Este ensaio propõe-se a analisar a política de representação da identidade negra nos Cadernos Negros, publicação organizada pelo coletivo negro Quilombhoje. Por esse motivo, inicialmente refletese sobre a noção de representação, em suas ligações com linguagem e cultura, pensando-se o modo como sistemas representacionais e práticas compartilhadas organizam e regulam a vida social. Enfatiza-se o papel das narrativas na constituição de indivíduos e grupos sociais, e dos efeitos de uma supressão de saberes que equivale a verdadeiro epistemicídio, no dizer de Boaventura Souza dos Santos. Pensam-se, após, as estratégias adotadas pelos coletivos negros, em especial o Quilombhoje, através da publicação dos Cadernos Negros, ante o processo de marginalização, supressão e subversão dos saberes e da cultura negra, e suas opções para dar visibilidade a sua matriz cultural e produção literária, trazendo à luz sua cultura, soterrada e silenciada pela maioria branca.

Representação e hegemonia cultural: do epistemicídio à proposta de uma ecologia de saberes

Dada à longa história do conceito de representação, este apresenta uma pluralidade de significados. Interessa particularmente a este estudo a forma como teóricos ligados sobretudo aos Estudos Culturais, como Tadeu Tomaz da Silva e Stuart Hall, repensam o conceito de representação em conexão com uma teorização sobre identidade e diferença, conceitos que, por sua vez, operam também hierarquizações e classificações do mundo. É por meio da representação que a identidade e a diferença passam a existir, um pensamento que Silva acentua ao afirmar que representar "significa, nesse caso, dizer: 'essa é a identidade', 'identidade é isso'" (2000, p. 91SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In:; SILVA, Tomaz Tadeu; HALL, Stuart WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 73-102.). Esse valor signo da representação acaba por ligar identidade e diferença a sistemas de poder, pois, como o autor ainda relembra, é privilégio dos que detêm o poder de representar assumir o poder de definir e determinar a identidade, de forma que questionar a identidade e a diferença equivale a questionar os sistemas de representação que lhes dão suporte.

Concebendo a cultura como um sistema de significação, os teóricos dos Estudos Culturais rejeitam as conotações mentalistas, enfocando-a, antes, em sua dimensão significante, como um sistema de signos. Stuart Hall (2003______. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Organização Livro Sovik. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: UNESCO, 2003b.a) chama a atenção para o significado de cultura como um conjunto de práticas significantes, e insiste na relação entre sistemas de representação, significado e cultura. Enquanto a cultura é produtora de significados compartilhados, a linguagem é o meio pelo qual o significado é produzido, e funciona através da representação. É exatamente porque a linguagem opera como sistema representacional que esta não só possibilita a existência do diálogo, como habilita a construção de sentidos e visões de mundo compartilhadas. Assim, cultura não se relaciona tanto a um conjunto de coisas, mas a um conjunto de práticas que organizam e regulam a vida social, influenciando a conduta de um grupo, e as narrativas que este faz de si mesmo e dos outros.

É quando se pensa em cultura como prática regulatória, bem como a relação entre a produção de conhecimento e a autoimagem que uma comunidade faz de si, que avulta em importância a forma como, tradicionalmente, têm sido produzidos e valorizados os saberes. Lembra-se, aqui, o pensamento de Boaventura de Souza SantosSANTOS, Boaventura de Souza; NUNE S, João Arriscado; MENESES, Maria Paula. Opening up the Canon of knowledge and recognition of difference. In: SANTOS, Boaventura de Souza (ed.). Another knowledge is possible: beyond Northern epistemologies. London: Verso, 2007. p. XIX - LXII. (Reinventing Social Emancipation: Toward New Manifestos , v. 3)., o qual repetidamente tem denunciado como a dominação ocidental ligada às potências do Norte marginalizou o conhecimento e a sabedoria dos habitantes do Sul, desvalorizando os saberes alternativos produzidos fora do Norte capitalista hegemônico. Nesse contexto, o privilégio epistemológico concedido à ciência moderna a partir do século XVII possibilitou a revolução tecnológica que alavancou a supremacia ocidental e suprimiu outras formas não científicas de conhecimento; no caso dos povos indígenas das Américas e dos escravos africanos, Santos (2007SANTOS, Boaventura de Souza; NUNE S, João Arriscado; MENESES, Maria Paula. Opening up the Canon of knowledge and recognition of difference. In: SANTOS, Boaventura de Souza (ed.). Another knowledge is possible: beyond Northern epistemologies. London: Verso, 2007. p. XIX - LXII. (Reinventing Social Emancipation: Toward New Manifestos , v. 3).) acentua que o epistemicídio constituiu-se na outra face do genocídio.

Santos explora a falha, ou injustiça cognitiva, que consiste em não reconhecer as diferentes formas de saber pelas quais indivíduos constroem significado e sentido para suas existências ao redor do mundo. Argumentando que não há justiça social global na ausência da justiça cognitiva, o sociólogo português confronta os paradigmas hegemônicos com a proposta de uma nova teoria crítica e prática emancipatória que parta da aceitação da enorme diversidade epistemológica e cultural do mundo. Em contraste com a constituição moderna do cânone, que foi, em parte, um processo de marginalização, supressão e subversão de epistemologias, tradições culturais, opções sociais e políticas alternativas, o sociólogo propõe

escavar no lixo cultural produzido pelo cânone da modernidade ocidental para descobrir as tradições e alternativas que dele foram expulsas; escavar no colonialismo e no neocolonialismo para descobrir nos escombros das relações dominantes entre a cultura ocidental e outras culturas outras possíveis relações mais recíprocas e igualitárias. (SANTOS, 2000, p. 18).

É justamente a partir de uma sociologia das ausências e das emergências que Santos concebe uma "ecologia dos saberes" em A gramática do tempo (2006; 2010______. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a. ed. São Paulo: Cortez, 2010.). Escolhe para seu estudo seis países em que o conflito entre a globalização neoliberal hegemônica e a globalização contra-hegemônica são mais intensos, entre os quais figura o Brasil. Constata que uma riqueza social é desperdiçada, o que evidencia uma "indolência da razão" que é caracterizada por modos de produção de não existência. Estes últimos são assinalados pela adoção de cinco lógicas: a monocultura do saber e do rigor do saber; a monocultura do tempo linear (noção de que a história tem sentido e direção únicos), a lógica da classificação social, que repousa sobre a monocultura da naturalização das diferenças; a lógica da escala dominante, que aponta para a irrelevância de qualquer outra lógica que não a hegemônica, e a lógica produtivista, assentada na monocultura dos critérios de produtividade capitalista; tal supressão de saberes corresponde a verdadeiro epistemicídio.

Essas lógicas revelam a manifestação de uma cosmologia de "única narrativa", a qual oblitera multiplicidades e heterogeneidades contemporâneas. Tal lógica supressiva produz cinco formas sociais: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo, as quais são formas de inexistência, pois funcionam como partes desqualificadas de totalidades hegemônicas; delas resulta o desperdiço da experiência.

Santos defende que a teoria crítica deve transformar-se em um novo senso comum emancipatório, já que o objetivo da vida não pode deixar de ser a familiaridade com a vida. Assim, antes que um paradigma sociocultural global ou universal, o crítico valoriza paradigmas locais que se globalizam com êxito, em um localismo globalizado; propõe uma sociologia das ausências, que visa identificar o âmbito dessa subtração, e libertar tais ausências da sociologia de produção, para, assim, tornar viável sua presentificação. Essa nova proposta sociológica opera substituindo monoculturas por ecologias, ou seja, "a prática de agregação da diversidade pela promoção de interações sustentáveis entre entidades parciais e heterogêneas" (2010______. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a. ed. São Paulo: Cortez, 2010., p. 105).

Identifica cinco ecologias: a ecologia dos saberes, que parte do pressuposto de que todas as práticas relacionais entre seres humanos, e entre estes e a natureza, implicam mais do que uma forma de saber e, portanto, de ignorância; a ecologia das temporalidades, segundo a qual o tempo linear é uma entre muitas concepções de tempo; a ecologia dos reconhecimentos, que é a lógica da classificação social, a qual abre espaço para a possibilidade de diferenças iguais, baseadas em reconhecimentos recíprocos; a ecologia das trans-escalas, que é a lógica do universalismo abstrato, confrontada pela sociologia das ausências através da recuperação simultânea de aspirações universais ocultas e de escalas locais/globais alternativas; e a lógica das produtividades, domínio em que a sociologia das ausências quer recuperar e valorizar os sistemas alternativos de produção. As ecologias buscam um sistema aberto de criação e renovação, em que o conhecimento é melhor descrito como interconhecimento, reconhecimento e autoconhecimento.

Do epistemicídio à tentativa de implantação de práticas ecológicas: o movimento negro no Brasil e o surgimento dos Cadernos Negros

Quando se pensa, com Hall (2003______. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Organização Livro Sovik. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: UNESCO, 2003b., p. 346), que "é somente pelo modo no qual representamos e imaginamos a nós mesmos que chegamos a saber como nos constituímos e quem somos", pode-se melhor dimensionar a importância das narrativas que um indivíduo faz de si mesmo, e daquelas que são a ele expostas - e muitas vezes impostas - e que o ajudam a se (con)formar e posicionar no mundo, valorizando-o positiva ou negativamente.

Em que pese a existência de uma proclamada democracia racial em nosso país, não poucas vezes a cultura e saberes negros têm sido ignorados e menosprezados. Em lugar de uma ecologia dos saberes, impõe-se um paradigma de conhecimento e de reconhecimento hegemônico, o qual, via de regra, não privilegia a cultura de minorias. Dimensionado a partir dessa lógica supressiva, o negro e sua cultura passam a ser referidos como parte desqualificada do tecido social, em termos das formas sociais de inexistência antes mencionadas: o negro é visto como ignorante, residual, inferior, improdutivo, indolente.

No entanto, o ativismo social negro no Brasil, articulado no sentido de obter a reversão dessa sociologia da ausência e a valorização do negro e de sua cultura dentro de uma real ecologia de saberes, tem longa história; é em decorrência do ativismo negro que surgem os Cadernos Negros, os quais têm dado vez e voz a sujeitos cujos saberes e vivências marcadamente se diferenciam das que caracterizam a população hegemônica. Dado o relativo desconhecimento dessa história, precede a discussão das estratégias e políticas de representação da identidade e cultura afrodescendentes em Cadernos Negros um breve registro histórico desse movimento.

Como Silva (2013SILVA, Denise Almeida. Entre imposição e proposição: reflexões sobre a literatura marginal brasileira. In: FOSTER, David W.; CALEGARI, Lizando C.; MARTINS, Ricardo A. F. (Org.). Excluídos e marginalizados na literatura: uma estética dos oprimidos. Santa Maria: UFSM, 2013. p. 271 - 306.) resenha, funda-se, na década de 1930, a Frente Negra Brasileira (FNB), a qual, em 1936, transforma-se em partido político; na mesma década a imprensa negra brasileira se instala de maneira mais decisiva no Rio e em São Paulo. Essa é a época, como Abdias dos Santos testifica (DUARTE; FONSECA, 2011DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In:; DUARTE, Eduardo de Assis FONSECA, Maria Nazareth Soares (org.) História, teoria, polêmica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. (Literatura e Afrodescendência no Brasil: Antologia Crítica, v. 4). p. 375- 403., p. 17) em que esforços até então dispersos assumem uma identidade. Muito embora, dos anos da Primeira República ao Estado Novo, a ditadura getulista inviabilize qualquer movimento contestatório (real ou que assim lhe parecesse), são criados dezenas de grêmios, clubes e associações de cunho assistencialista, recreativo e ou cultural, sobretudo no Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, os quais congregam os indivíduos "de cor", como eram chamados os negros à época. Concomitantemente ao aparecimento dessas agremiações, surge a imprensa negra alternativa, que oferece à comunidade negra informações a que esta, de outra forma, não teria acesso.

Silenciada a FNB, com o banimento, por decreto do Estado Novo, de todos partidos políticos, abrese, nos anos 1940, ainda sob a vigência da ditadura getulista, nova agência aglutinadora das atividades da comunidade negra: o Teatro Experimental do Negro, ou TEN, o qual, mais do que "meramente" produzir um autêntico teatro marginal, promove a valorização do negro através da educação, da cultura e da arte. Ainda por iniciativa do TEN organizam-se o I Congresso do Negro Brasileiro, no Rio de Janeiro (1950), o concurso de artes plásticas sobre o tema do Cristo Negro, por ocasião do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional (1955) e, ainda, concursos de beleza planejados para ressaltar e legitimar o fenótipo feminino negro.

A partir dos anos 1950, encerrado o Estado Novo, inicia-se lenta rearticulação dos movimentos sociais negros; a partir dos aos 1960, por quase duas décadas, a ditadura militar brasileira inviabiliza todas as manifestações de cunho racial, que são consideradas impatrióticas, racistas e imitação barata do ativismo negro norte-americano. Uma década depois, ao longo dos anos 1970, iniciativas fragmentadas pipocam no país, surgindo novas agremiações literárias e culturais; a imprensa negra se rearticula e renova. Corresponde a esse período de intensa articulação política o momento em que escritores e intelectuais negros repensam a produção literária em termos de forma, conteúdo, produção, distribuição e recepção.

Organizam-se, nos anos 1970, coletivos de escritores e poetas negros. Conforme os organizadores dos Cadernos Negros v. 8 (1985) relembram em seu texto "Um pouco de história", em encontros de grupos negros a poesia sempre se faz presente, em apresentações dramáticas, ou em simples declamações. Eram autores preferidos, em São Paulo, Solano Trindade e Carlos Assumpção. Esses encontros redundaram em contatos culturais com novos talentos e com escritores da geração anterior; note-se, a propósito, que uma das políticas mais persistentes e produtivas dos Cadernos Negros tem sido a prática de incentivar novos talentos, publicando a cada número, junto ao trabalho de escritores já estabelecidos, contos ou poemas de iniciantes.

Em 1976, o Centro de Estudos Culturais Afro-Brasileiro Zumbi (Santos, SP) publicou a Coletânea de poesia negra (mimeografada); à época, corria de mão em mão o jornal Árvore de palavras, xerografado e apócrifo, que veiculava notícias de revoluções africanas nas então colônias portugueses, objetivando despertar a consciência política da população negra. Em 1977 lança-se em SP o jornal SINBA, órgão de divulgação da Sociedade de intercâmbio Brasil-África.

Foi no CECAN (Centro de Cultura e Arte negra), situado no bairro do Bixiga, em SP, que se reuniam os escritores que viriam a fundar os Cadernos Negros. Inicialmente Cuti (Luiz Silva) e Hugo Ferreira (a quem se deve o nome da publicação) articularam outros poetas para que colaborassem, contando com o apoio, dentre outros, de Jamu Minka, Oswaldo de Camargo, além do fotógrafo Oswaldo Aguiar Filho, autor de algumas das capas e fotos que apareceram nos primeiros números da revista. Finalmente, em 1978, por ocasião do FECONEZU (Festival Comunitário Negro Zumbi), veio a lume o primeiro número dos Cadernos Negros, uma brochura de bolso, com 52 páginas e uma tiragem de 1000 exemplares, contendo trabalhos de oito autores.

Na próxima seção, pensa-se como a literatura negra no Brasil, exemplificada através dos Cadernos Negros, posiciona-se contra o epistemicídio e a produção de formas sociais de não existência, e quais suas opções e estratégias para a asserção da cultura e literatura negras.

Da lógica de produção de ausência a uma ecologia dos reconhecimentos: estratégias e políticas de representação da identidade e cultura afrodescendentes em Cadernos Negros

Os líderes da militância negra sempre estiveram muito conscientes acerca do processo de marginalização, supressão e subversão de suas tradições culturais e opções sociais, bem como acerca da imposição asfixiante dos "saberes do norte", representados pela visão hegemônica eurocêntrica branca que permeia a cultura brasileira.

Já no primeiro volume publicado, declaravam, como propósito da publicação, não apenas a asserção e valorização da cultura negra como a superação da imposição de valores não relacionados à cultura, estética e biótipo africanos. Frente a essa injustiça cognitiva, propunha práticas emancipatórias que constituíam na reversão, subversão e mesmo total erradicação dos padrões culturais a eles impostos:

Estamos no limiar de um novo tempo. Tempo de África, vida nova, mais justa e mais livre e, inspirados por ela, renascemos arrancando as máscaras brancas, pondo fim à imitação. Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos assumindo nossa negrura bela e forte. Estamos limpando nosso espírito das ideias que nos enfraquecem e que só servem aos que querem nos dominar e explorar. (Cadernos Negros 1, apud DUARTE, 2011, p. 272).

Em 1988, passados dez anos da publicação do número inaugural dos Cadernos Negros, o volume 11 apresenta, em sua "orelha", uma rememoração do contexto em que surgiu a publicação. O texto traz, como identificação de autoria, apenas "Quilom-bhoje", remetendo ao coletivo que organiza, publica e distribui a revista: trata-se, pois, da voz de lideranças negras. Exemplarmente, o escrito ressalta a operação de, pelo menos, quatro lógicas de produção de não existência: a lógica da classificação social, a qual subjaz ao elogio à democracia racial brasileira; as lógicas da monocultura do saber, da monocultura do tempo linear e da escala dominante insinuam-se na prática da repetida ridicularização do continente africano. É contra a manutenção dessa monocultura (refiro-me ao sentido atribuído ao termo por Santos) que o movimento negro se organiza em manifestos, asserções públicas e iniciativas, dentre as quais a que culmina com o surgimento da sua publicação literária anual efetuada pelo grupo Quilombhoje:

O marco é 1978, ano politicamente conturbado. Enquanto um grande jornal publicava um artigo de página inteira de Gilberto Freire louvando 'a democracia racial brasileira como modelo de convivência entre as raças', militantes negros organizavam uma manifestação nas escadarias do Teatro Municipal, que, realizada em novembro, daria início a uma série de denúncias e protestos sob o signo do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial. Os jornais procuravam ridicularizar o continente africano, veiculavam estampando manchetes de ironia e desprezo pela controvertida figura de Idi Amin Dada. Ao mesmo tempo, circulavam em artigos de fundo massiva propaganda das belezas e riquezas do Senegal, de Angola, de Cabo Verde, da Costa do Marfim, revelando claramente a intenção do governo brasileiro em manter relações comerciais com esses países, então independentes. [...] em 20 de novembro de 1978 - Dia Nacional da Consciência Negra -, [nós, negros] rearticulamos uma luta secular pela conquista de uma identidade de negros no Brasil, inspirados também pela situação históricocultural daqueles países africanos que se libertavam do neocolonialismo escravocrata, Do útero desta fermentação, nascia o Cadernos Negros (Cadernos Negros 11, 1988, .s p.)

Para os escritores que tomaram a si a tarefa da criação e manutenção dos Cadernos Negros, a assunção da militância na certeza do papel transformador da arte esteve sempre na ordem do dia. Não seria esse um posicionamento superficial, expresso apenas ao nível da linguagem, mas uma práxis comprometida com seu contexto, com o qual e sobre o qual deveria interagir:

De pouco adianta só arrolarmos termos de origem africana, usarmos a palavra negro, se o fazemos com uma arte queixosa e subnutrida de visão crítica. Isso não redime a nossa condição de marginalizados em nossa própria terra pelo suprematismo branco. A situação de dependência em que vivemos permite a atuação eficaz dos mecanismos de coação e cooptação acionados pela ideologia dominante. Criar é ousar, ir além do que pensam e pensamos que somos. A autocensura é a primeira barreira: O poema veio vindo veio vindo veio vindo veio vindo Chegou ali e parou! Porque deu um branco [...] A identidade não é apenas intenção ou simpatia pelas formas de arte negra ou outras manifestações (tradicionais ou modernosas) com traços afros. É sobretudo compromisso com a desalienação. Para o escritor, o texto é ação, interferência na realidade. (Cadernos Negros, 1985, p. 7-8).

A literatura negra em geral e, em particular, os Cadernos Negros têm operado a partir de duas vertentes: uma, que se alia a questões levantadas por sujeitos organizados em coletivos políticos, sociais ou culturais, a qual embasa e dinamiza as ações da militância artística, e leva a uma identificação com as causas e vivências de outras diásporas africanas e/ ou de minorias, estas últimas independentemente da cor; outra, que questiona o caráter do cânone majoritário da literatura brasileira, interrogando sua pretensão representativa hegemônica, a partir tanto do questionamento de sua relevância política, social e epistemológica com relação aos saberes e vivências do negro, como da asserção de sua voz e olhar.

Exemplo da primeira opção é o conto "Di Lixão", de Conceição Evaristo, publicado nos Cadernos Negros 14, que narra os momentos finais de menino de rua; em sua solidão e dor, o menino relembra os primeiros anos de vida, e mistura as dores que agora sente a outras já sentidas, que guarda na memória, dentre as quais a raiva da mãe, que o maltratava, mas que, ambivalentemente, evoca quando transido de dor. Em nenhum momento é descrita característica racial que venha a autorizar a identificação do menino com o negro: importa, antes que a etnia, a denúncia da vida sofredora e sofrida do menor abandonado.

A segunda vertente, que clama por uma ecologia, ao mesmo tempo em que denuncia a prática monocultural corrente, revela a opção, pelos dirigentes e contribuintes dos Cadernos Negros, pela asserção dos saberes e da cultura negras a partir de uma postura de familiaridade com a vida ("escrevivência", no dizer de Conceição Evaristo; a arte como "fruto da árvore da vida [...] frutosemente para a horta da transformação", propôs Jamu Minka (Cadernos Negros 11, 1988, p. 1Cadernos Negros 11. Organização Quilombhoje. São Paulo: Edição dos autores, 1988.)). Dessa forma, não só valorizam o ponto de vista negro, como reinscrevem e exaltam os saberes alternativos que o epistemicídio triunfante ocultou dos olhos da coletividade.

É assim, por exemplo, que entram em diálogo com obras canonizadas, alterando seu ponto de vista. Em seu diálogo intertextual com Clara dos Anjos, de Lima Barreto, Esmeralda Ribeiro, no conto "Guarde segredo", altera o fim da história: a jovem mulata mata Cassi Jones. Interpelada pela mãe de Jones, que a insulta ("Você é a quinta negra que meu filho deflorou e também não vai ficar com ele"- RIBEIRO, 1991, p. 28), e desperta seu ciúme, contando-lhe que o filho, neste momento, está com outra mulher, a moça compra faca, dirige-se ao "hotelzinho", e assassina o rapaz. De volta a casa, encontra a avó conversando com Lima Barreto, ambos extremamente alegres, e já sabedores do fato. "Bravo!", comemora o escritor. "Esse era o outro final que queria para o cafajeste do Cassi Jones"; a avó também celebra: "Nós não devemos aceitar o destino com resignação" (RIBEIRO, 1991, p. 29).

Ainda outro diálogo intertextual se dá no poema "Favelas, quilombos & senzalas", de Carlos Gabriel dos Santos, publicado nos Cadernos Negros 21, o qual dialoga com o Navio negreiro de Castro Alves. Os versos recuperam a história de sofrimento e resistência do negro, roubado de sua África natal, depois aquilombado em sonho de liberdade, e, na contemporaneidade, escravo, mais uma vez, agora da pobreza extrema, favelado. Anima o poema, contudo, a esperança, sempre renovada, de melhores dias, os quais virão através da agência do negro, o qual desafia os entraves que se lhe antepõem, e resiste. Assim, o coro "Epa, tem nego fujão aí" inscreve a voz do senhor de escravos à procura do negro aquilombado, mas, por outro lado, institui-se, no poema, em elogio e incentivo à luta do negro em prol da liberdade.

'Stamos em plena América! Perdidos no Novo Mundo mil negros retintos de olhos no fundo. [...] Cortaram sua língua, ataram seus braços, mataram a esperança. É o sol, é o tronco, é a saudade É a dor, é o amor à liberdade É a sorte, é o cativeiro, é a chibata É o banzo, é a morte, é a senzala Epa! tem nego fujão aí! [...] Molambos sem sorte, mil gentes sem brilho fugindo da morte. Perdidos no tempo, caminham pra longe no sabor do vento. [...] Mas, se, da senzala a dor, ainda, o corpo grita, do quilombo a flor, também, o coração agita e da favela, o sonho um dia ressuscita Epa! tem nego fujão aí! (SANTOS, 1998, p. 24-26).

Ante a sociologia das ausências imposta pela monocultura, os organizadores dos Cadernos Negros sentiram a necessidade de afirmar uma praxis da presença, comprometida com a transformação. Como em todo o processo de comunicação, era necessário estabelecer quem fala, para quem se dirige, como e em que linguagem o faz, e com que finalidade.

Como já ficou evidente nesta exposição, são os negros que assumem a fala, trazendo a público sua voz e ponto de vista. A resposta à segunda consideração, a que tipo de público deve ser dirigida a literatura negra, pode ser deduzida a partir tanto dos elementos paratextuais das revistas, como dos textos que abriga; há, também, depoimentos explícitos acerca disso.

Segundo expressa pelos escritores negros, a resposta à pergunta sobre a opção primeira sobre o público leitor recai invariavelmente sobre a população negra. Para Éle Semog, era ao público infanto-juvenil e às pessoas recém-mobilizadas pelo Movimento Negro que a literatura negra deveria se direcionar; contudo, de olho no futuro, enfatiza com vigor a cooptação dos jovens de 14 a 25 anos. Adverte, porém: "Identificar o público não basta. É preciso introduzir o hábito da leitura. É preciso criar condições para que o livro faça parte do cotidiano desses indivíduos. É preciso que a escola seja um agente eficaz nesse sentido" (Cadernos Negros 8, 1985, p. 9).

Já Esmeralda Ribeiro não se atém a faixas etárias preferenciais, identificando o público como a população negra e aqueles que compartilham suas alegrias, mas também suas dores e histórico sofrimento:

O meu trabalho literário está dirigido a todas as pessoas que: - têm gingado no andar, estão nos guetos da vida e fazem do espelho sua própria realidade: de beiços, ventas, rugas mentais cravadas em episódios seculares impõem-se o enigma da resistência, não só como luta coletiva, mas também individual e sempre lutaram e sabem que o perigo está a cada esquina de boca aberta acuando suas vítimas. Os débeis racistas [...] pensando serem sábios paternalizamme, analisam-me e trazem em suas línguas de porcelana o mapa da minha descoberta. [...] ingenuamente proferem ébrios discursos sobre a minha literatura, deixando zumbi/zumbindo em meu passado. (Cadernos Negros 8, 1985, p. 7-8).

As opções acerca de quem fala e de seu público preferencial influenciam diretamente o modo e posição de onde se fala. Miriam Alves define:

Vamos falar da literatura à maneira praticada por nós os negros. No momento que nós a praticamos, ela assume um compromisso social personificado. À medida que falamos do nosso lugar duma maneira própria, estamos dizendo coisas que muita gente não quer ouvir, ou tem medo de ouvir. E nesse exato instante estamos rompendo a máscara da invisibilidade colocada em nós por aqueles que nos querem negar ou nos ver à sua maneira, maneira esta que basicamente consiste em nos retratar num servilismo que não tem outro objetivo senão o de se curvar à vida alheia, que de preferência deve ser a vida de algum branco. Ou ainda nos mostram como um ser ameaçador que só veio ao mundo dos brancos para ser ladrão, mau caráter. E também nos retratam com um sorriso imbecil, eternamente pintado no rosto, igual a um bobo da corte, para ser admirado, televisionado, distribuído como cartão postal de uma felicidade impostada. (Cadernos Negros 8, 1986, p. 13).

A caracterização racista do negro, e sua tipificação como malfeitor ou imbecil pode ser melhor pensada quando se considera, com Santos (2010______. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3a. ed. São Paulo: Cortez, 2010., p. 110), que, em todas as lógicas de produção de ausência, a desqualificação das práticas acontece a par da desqualificação dos agentes, sobre os quais incide prioritariamente; derivativamente recai sobre a experiência social (práticas e saberes) de que são protagonistas. Talvez não queiram ver ou ouvir o diferente porque a colonialidade ocidental moderna insiste em identificar a diferença com desigualdade e degradação. É, pois, necessária, uma "ecologia dos reconhecimentos" como propõem os escritores negros, embora em outros termos. Santos reconhece, mesmo, que, na América Latina, os movimentos feministas, indígenas e afrodescendentes têm estado à frente da luta por uma ecologia dos reconhecimentos, a qual atua para aumentar a diversidade social e cultural dos sujeitos coletivos que lutam pela emancipação social, e contra uma variedade de formas de opressão e de dominação, em uma multiplicidade das escalas - local, nacional e transacional.

Nesse sentido, é necessário que se faça a asserção do negro não só perante a população branca, mas que se forneçam modelos positivos ao negro, para que este possa libertar-se da baixa autoestima que frequentemente o vitima, como resultado da introjeção das opiniões dos brancos, que lhe insuflam o desejo, impossível, de em tudo se parecer com eles. A esse respeito, é, ainda, Miriam Alves que resume o que parece ser a proposição fundamental da práxis literária negra: "a literatura feita por nós rompe estas imagens [...] quando nos propomos a falar do nosso lugar, de nossa interioridade. A nossa fala desvela, delata, relata, invade quem ouvi-la ou lê-la." (Cadernos Negros 8, 1986, p. 13).

Espaço considerável é dado ao fomento da autoestima do afrodescendente, e uma das maneiras de fortalecê-la é fornecer ao negro elementos para que valorize sua história e cultura ancestral. Nesse sentido, oferecem-se a ele modelos outros que aqueles dos quais as demais etnias se orgulham, heróis negros que os inspirem, entre os quais avulta Zumbi e o ideal de liberdade e resistência quilombola que seu nome evoca. Típica dessa vertente é a poesia "Reais heróis", de Oubi Inaê Kibuko, publicada nos Cadernos Negros 13:

Reais heróis na minha verde-clara infância vestido em fantasia eu imitava batman, capitão américa, superman... hoje, maduro e escurecido trajando realidade sigo Zumbi, Ilha do Desterro nº 67, p. xxx-xxx, Florianópolis, jul/dez 2014 59 Agostinho Neto, Luther King, Mandela ... imortais guerreiros do meu povo (1990, p. 71).

O drama do ser dividido entre a aceitação dos valores predominantes no mundo branco e o cultivo dos valores negros é um dos mais repetidos temas encontrados nos Caderno; exemplos do desenvolvimento dessa temática encontram-se tanto em poemas como contos, e em introduções, posfácios, elementos parataextuais (contracapa, orelhas) ou ainda nos depoimentos que costumavam ser publicados antecedendo os textos em prosa ou verso ao longo do primeiro decênio da publicação.

No volume 11, já a frase inicial da introdução registra a constatação de que o negro experimenta "A Negra dor situada e sitiada em mundos paralelos". Nesse mesmo volume, Márcio Barbosa destaca a importância da imagem de Zumbi no presente, tempo de "cotidiana e amarga perpetuação das dominações e diferenças" (1988Cadernos Negros 11. Organização Quilombhoje. São Paulo: Edição dos autores, 1988., p. 11). Passa, então, a descrever a colossal estátua de Zumbi situada no Parque Memorial Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, a qual apresenta "traços helênicos". Toma, assim, a estátua como símbolo da "pessoa negra, dividida, bipartida pelo atrito entre a força social, que por um lado a nega; e a força interior, que por outro lado a afirma". É a este ser bifronte que se dirige a publicação, com o intuito de conduzi-lo à "unidade do Ser", reconciliado com sua herança cultural, como gigante finalmente desperto e trazido à vida:

Aqui [em nossa literatura], toda mínima conquista significa, para cada homem e mulher, um avanço em direção à unidade do Ser - a estátua mexeu-se, o som do concreto reacomodando-se é assustador - Nossa recusa deve ser a resposta à posição pequeno-burguesa do escritor cantor das aparências e das decadentes classes opressoras. Testemunhares destas classes o aniquilamento. É que nosso ato de escrever não é simples vaidade, e se o alcance estatístico, numérico, da literatura negra ainda é restrito, seu poder não revelado (velado) é muito extenso - Zumbi arrebenta o concreto, os traços helênicos são destruídos. (Cadernos Negros 11, 1988, p. 11-12)

Uma vez que a prática da monocultura do saber, associada à lógica da classificação social, resulta na concepção do negro como ser ignorante e reconhecidamente inferior na escala social, e face, também, à já comentada introjeção, pelo negro, dessa narrativa, a publicação da Quilombhoje trouxe a si a necessidade e urgência de exaltar os saberes negros, e, ao mesmo tempo, denunciar a ignorância branca. Abre, assim, espaço para reconhecimentos de "diferenças iguais", ou seja, a aceitação da diversidade e respeito ao diferente, aquele que, como descreve Pardo, deixa "que o outro seja como eu não sou, [...] que ele seja esse outro que não pode ser eu, que eu não posso ser, que não pode ser um (outro) eu. (1996, p. 156, apud SILVA, 2000SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In:; SILVA, Tomaz Tadeu; HALL, Stuart WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 73-102., p. 101, grifo do autor).

Não raro, esse dilema é enfocado a partir de discriminação que tem como alvo o corpo negro. Na discussão desse tema trata-se de debater, como Miriam Alves comenta, a "autoviolência física perpetrada pelos descendentes conta o próprio corpo para adequar-se às exigências de padrões estéticos eurobrancos visando diminuir as rejeições e segregações sociais, almejando a aceitação e procurando eliminar as barreiras impostas pelos preconceitos aos fenótipos da condição negra" (2010, p. 43).

No volume 32, o conto "As máscaras de Dandara", de Serafina Machado, narra a história de uma jovem que desenvolve complexo de inferioridade devido à discriminação de que é vítima desde que adentra o ambiente escolar. Na infância, as colegas atormentam-na com a marchinha "Nega do cabelo duro, que não gosta de pentear". Mais tarde, não só os cabelos, como todo o fenótipo negro lhe parecem inadequados e feios, e a menina cresce, tornando-se jovem introvertida, que se oculta atrás de sucessivas "máscaras", a ponto de tornar-se uma estranha para si mesma:

Durante os vários anos letivos usou máscaras de todos os tipos: simples, complexas, articuladas ou imóveis, zoomorfas ou híbridas, feitas de folhas, de cascas ou de tecido, de pele ou de couro, de conchas, formadas em ouro, prata ou outros metais, esculpidas em pedras ou cozidas em cerâmica.... Sempre tentando pertencer. Sempre dilacerada. Tornou-se múltipla e vazia; sombras deformadas. Já não se conhecia mais. Já não existia. Era apenas um fantasma. (MACHADO, 2009, p. 108).

Já formada, e profissional brilhante, Dandara alisa os cabelos para uma entrevista de emprego, pois pensa assim tornar-se mais bela, e impressionar o empregador em potencial. Contudo, é clara a decepção do diretor quando percebe que a candidata à vaga é negra. Por outro lado, Dandara, ao compreender que não será contratada, entende que o diretor é

Preconceituoso, um racista nojento, e que ela era brilhante, inteligente, que seu conhecimento não estava na sua pele. Porque se fosse assim, ele era burro demais, pois mais parecia uma página em branco. Ela era um acúmulo de histórias, escritas tão variadas que pigmentaram sua pele. (MACHADO, 2009, p. 111).

Aplicando a mesma lógica que preside o raciocínio do diretor, Dandara inverte o pensamento branco: se é a cor da pele que demonstra inteligência, então a branca, que corresponde à ausência de cor, em cores-pigmento, evidencia a mais crassa ignorância.

Outra forma de denúncia que patenteia a monocultura do saber - a existência tanto de mais de uma forma de saber quanto a de mais de uma forma de ignorância - é a que enfoca a construção de estereótipos, claramente expostos como formas de não-saber e de imposição de pensamento orientalista sobre o outro. Este é o caso, por exemplo, do conto "Entrevista de emprego", de Valdomiro Martins. Pereirinha, jovem e talentoso ator com formação universitária, submete-se à entrevista de emprego em rede de televisão. Chamado para o teste, ao invés de ser testado quanto a suas habilidades cênicas, o jovem é questionado acerca de sua habilidade para o futebol, e seu gosto pelo carnaval, samba e funk, os quais são, evidentemente, tomados como atributos inerentes a todos os negros, já que contam com negros entre seus praticantes máximos. O entrevistador decepciona-se quando Pereirinha nega a habilidade e gosto por quaisquer dessas atividades. "Você tá brincando (risos). Todo negrão sabe." (MARTINS, 2009MARTINS, Valdomiro. Entrevista de emprego. In:; RIBEIRO, Esmeralda. BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos Negros32. Contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2009. p. 129- 132., p. 134), comenta um entrevistador. Os risos, cúmplices, revelam que exprime opinião compartilhada por todos. Mesmo quando, por fim, Pereirinha mostra o que sabe fazer, interpretando um magnífico Otelo, é desclassificado, por não possuir os "dotes naturais da raça". O conto apresenta, assim, um caso clássico de sobredeterminação, em que o indivíduo é julgado a partir de seu exterior, e sobre ele são impostos estereótipos, calcados em uma leitura essencialista, os quais revelam, por outro lado, a ignorância do branco.

A par da tematização da conscientização e aceitação do fenótipo negro, considerado em sua beleza própria, do incentivo à assunção do papel de sujeito agente (como no caso de "Guarde segredo"), e do resgate de episódios e heróis do passado negro há, ainda, nos Cadernos Negros, a recorrente tematização da cultura de matriz africana: religião, costumes, tradições (inclusive como expressas pelo ato de nomear), e a luta contra o racismo e a violência em suas várias formas. Desfilam pelos textos donas de casa, empregadas domésticas, trabalhadores, meninos de rua, prostitutas, mas também músicos, advogados, juízes, empresários, professores - figuras com os quais o público pode se identificar, e através do sucesso das quais podem também aspirar a vir a ser igualmente vitoriosos. São homens e mulheres que, mesmo quando pobres ou expostos a situações dolorosas, como formas variadas de racismo, têm o poder de buscar soluções, vir a entender a natureza das forças que os oprimem e, a partir daí, reconstruir suas vidas. Lugar de destaque é dado à questão dos relacionamentos, especialmente o relacionamento entre mãe e filhos, bem como outros relacionamentos dentro do seio familiar; o exame das relações entre um homem e uma mulher, ou de relações homoafetivas também merece destaque.

Antes que desfamiliarizar ou submeter a estranhamento o quotidiano dos negros, tão longamente silenciado pela literatura brasileira, este é repetidamente tematizado a partir do olhar e da posição subjetiva do próprio negro. Como Florentina da Silva Souza percebe, "a repetição será usada como recurso indispensável para reverter o repetido e repetitivo discurso do estereótipo inferiorizante (2005, p. 107). Ademais, como ainda registra a autora, "a ousadia ou, se quisermos, a inovação, ou, ainda, a diferença desses periódicos reside na discussão de um tema "incômodo" para a sociedade e para a literatura brasileira, qual seja a problematização do perfil das relações raciais e suas consequências no desenho das desigualdades sociais (SOUZA, 2005SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. , p. 114).

Como Alves (2010ALVES, Miriam. BrasilAfro Autorrevelado. Literatura brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Nandyala, 2010., p. 44) avalia, a literatura afro-brasileira funciona como um "catalisador", transformando histórias em registro ficcional e poético, transmitindo-as não só como "anais de fatos, mas, sobretudo, como a grafia de emoções", em um resgate memorial tanto do passado como do presente. Trata-se, acima de tudo, de registrar poeticamente experiências baseadas em uma construção epistemológica forjada a partir de ecologias que diferem profundamente das da cultura dominante, tanto em seus saberes, como temporalidades, reconhecimentos, escalas e produtividades.

Na ontologia africana, o mundo físico e o interior, o sagrado e o secular interagem na construção do conhecimento, ciência arte, história, divertimento e recreação; por outro lado, é dada ao corpo e à linguagem corporal uma relevância que foi desconhecida e domesticada pela cultura eurocêntrica. Nesta, as danças, capoeira e linguagem corporal cotidiana são tomadas como índice de primitivismo, sensualidade e transgressão, fazendo com que os negros sejam estigmatizados como inferiores e selvagens (SOUZA, 2005SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. , p. 63; 102).

Além de falar sobre o negro a partir de uma perspectiva e olhar internos, produzindo textos com os quais o leitor em formação pudesse se identificar, era preciso que a linguagem não traísse tal projeto. E, de fato, não traiu. Como Edna Roland, do Instituto da Mulher Negra, resume na "orelha" dos Cadernos Negros 19, a "produção poética negra recente é oralizada - marcada pela musicalidade da fala - e orilizada (sic)- marcada pela percepção aguda do cotidiano negro". Além de, consoante a tradição cultural negra, valorizar a oralidade, a linguagem ressalta opções vocabulares e semânticas próprias, ao mesmo tempo em que tanto escancara as intenções discriminatórias tão frequentemente associadas ao uso de termos como negro, mulata, crioulo, como os ressignifica. Veja-se, por exemplo, o poema "Ebulição da escravatura", de Luís Carlos de Oliveira, publicado nos Cadernos Negros 25, o qual, além do jogo vocabular abolição/ebulição, expresso já no título, desfamiliariza o léxico associado ao fato da escravidão, associando-o à realidade do pobre marginalizado em nossos dias:

A área de serviço é senzala moderna, Tem preta eclética, que sabe ler "start"; "Playground" era o terreiro a varrer. Navio negreiro assemelha-se ao ônibus cheio, Pelo cheiro vai assim até o fim-de-linha; Não entra no novo quilombo da favela. [...] (2002)

Exemplo do sucesso da comunicação da palavra negramente matizada é o depoimento emocionado do rapper e músico Rappin Hood, ao tomar conhecimento da publicação:

Ao ler Cadernos Negros fiquei certo de que minha luta como militante do hip-hop não é em vão. Os textos que li preenchiam uma lacuna que existia em minha mente: por que não existem publicações específicas para o nosso povo? [...] faltam meios de nos comunicarmos, de nos expressarmos, e os Cadernos Negros atingem em cheio esse objetivo. Julgo que a informação deve chegar ao nosso povo por diversos canais. Eu faço uso da música ( o rap), para isso, e nossos irmãos negros poetas e pensadores fazem uso da palavra que se faz viva nos Cadernos. Salve o rap, salve a música, salve os poetas e pensadores, guerreiros negros do século XXI. (Cadernos Negros 26, 2003, s. p.)

As palavras do rapper testemunham o que pode ser alcançado quando práticas significantes se flexibilizam e ampliam através da aceitação e implantação de uma justiça cognitiva, que valoriza e dá voz aos saberes não hegemônicos, interferindo no processo de marginalização, supressão e subversão de epistemologias outras que a dos poderes capitalistas do norte. Ao dar voz à cultura negra a partir do olhar interior de sujeitos cotidianamente imersos em sua vivência, e ao transpor à exaustão o modo de vida negro ao olhar dos seus, no sentido de sua autoaceitação e asserção, e ao olhar, também, do Outro, retirando da invisibilidade os resultados da própria interferência regulatória e discriminante deste último, os Cadernos Negros rompem com a "indolência da razão" que desperdiça os saberes minoritários, ao mesmo tempo que valorizam e estimulam a continuidade dessas outras epistemologias do sul, representadas aqui pelos saberes negros, diferentes e não menos válidos.

  • ALVES, Miriam. BrasilAfro Autorrevelado. Literatura brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
  • Cadernos Negros 8. Organização Quilombhoje. São Paulo: Edição dos autores, 1985.
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  • Cadernos Negros 21: poemas afro-brasileiros. Organização de; Esmeralda Ribeiro. Márcio Barbosa São Paulo: Quilombhoje, 1998
  • Cadernos Negros 26: contos afro-brasileiros. Organização de; Esmeralda Ribeiro. Márcio Barbosa São Paulo: Quilombhoje, 2003.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2014
  • Aceito
    01 Out 2014
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