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Cardiomiopatia Hipertrófica, Todos os Fenótipos em um

Palavras-chave
Cardiomiopatia Hipertrófica; Insuficiência Cardíaca; Cardiomegalia; Transplante de Coração

Introdução

A cardiomiopatia hipertrófica (CMH) é uma doença intrínseca do miocárdio caracterizada por hipertrofia cardíaca (espessura da parede ≥ 15 mm), não causada por sobrecarga de pressão (p.ex. hipertensão, estenose aórtica grave).11 Task Force Members. Elliott PM, Anastasakis A, Borger MA, Borggrefe M, Cecchi F, Charron P, et al. 2014 ESC Guidelines on diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy: the task force for the diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J. 2014; 35(39): 2733-79. DOI: 10.1093/euheartj./Orgv-Ejehu284.
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A CMH é a cardiomiopatia primária genética mais comum, cuja prevalência está estimada em aproximadamente 1 para cada 500 adultos na população geral.22 Lipshultz SE, Sleeper LA, Towbin JA, lowe AM, Cox GF, Lurie PR, et al. The incidence of pediatric cardiomyopathy in two regions of the United States. N Engl J Med. 2003;348(17):1647-55. DOI: 10.1056/NEJM.oa21715.
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Mais de 450 mutações foram identificadas em 20 genes responsáveis por diferentes fenótipos. Na maioria dos casos, a CMH está associada com mutações nos genes que codificam proteínas do sarcômero e exibe muitas expressões fenotípicas. Apresentamos um caso que combina todos os fenótipos.33 Ho CY, Charron P, Richard P, Garolami F, Van Spaendonck-Zwarts KY, Pinto Y. Genetic advances in sarcomeric cardiomyopathies: state of the art. Cardiovasc Res 2015; 105: 397-408. DOI: 10.1093/cv/cvv025.
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Relato do Caso

Uma mulher de 58 anos, hipertensa, foi admitida à unidade coronária por insuficiência cardíaca aguda. A paciente negou desconforto no peito, uso de drogas ilícitas ou doenças prévias. Percebeu dispneia progressiva, inchaço do abdômen e em ambas as pernas, além de ganho de peso. No exame físico, detectou-se edema bilateral, ascite, distensão da veia jugular, e ritmo de galope com 3 sons. O eletrocardiograma (ECG) mostrou ritmo sinusal, QRS com amplitude diminuída, e padrão de pseudo-infarto (Figura 1). O ecocardograma mostrou hipocinesia grave, com movimentação da parede lateral preservada, e aumento da espessura da parede e do ventrículo esquerdo (VE). Também foi detectada efusão pericárdica moderada. Foi administrado diurético de alça em infusão contínua. Testes de hormônios tireoideanos, ferro e proteínas de cadeia livre leve deram negativos. A angiografia coronária mostrou artérias coronárias normais.

Figura 1
O eletrocardiograma apresentou ritmo sinusal, QRS com amplitude diminuída, e padrão de pseudo-infarto.

A ressonância magnética cardíaca revelou espessura máxima da parede de 15 mm, massa ventricular esquerda de 262 g e índice de massa do VE de 178 g/m22 Lipshultz SE, Sleeper LA, Towbin JA, lowe AM, Cox GF, Lurie PR, et al. The incidence of pediatric cardiomyopathy in two regions of the United States. N Engl J Med. 2003;348(17):1647-55. DOI: 10.1056/NEJM.oa21715.
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, volume diastólico do VE de 194 mL, volume sistólico do VE de 167mL e fração de ejeção de 14%. Também foi marcante a presença de realce tardio transmural difuso com gadolinium (Figura 2A-F) (Figura 2 A-F)..

Figura 2
A ressonância magnética (RM) cardiovascular apresenta aumento do volume do ventrículo esquerdo e da espessura da parede em imagens de cine-RM adquiridas nos planos de 4 câmaras (A), eixo longo (2 câmaras), (C) e eixo curto medial. O realce tardio difuso e transmural com gadolinium é apresentado em D, E, e F, com segmentos basais preservados. (G) A biópsia endomiocárdica apresentou desorganização dos miócitos.

Diante do quadro de insuficiência cardíaca congestiva e da relação inversa da amplitude do ECG com a espessura da parede, suspeitou-se de cardiomiopatia restritiva (infiltrativa). O cateterismo cardíaco esquerdo mostrou pressão de enchimento aumentado e baixo débito cardíaco, e a biópsia endomiocárdica revelou fibrose difusa, sem alterações específicas. Como a paciente tornou-se resistente ao tratamento médico, foi submetida ao transplante cardíaco ortotópico. A paciente recuperou-se sem intercorrências e a biópsia do coração explantado foi positiva para CMH, com fibrose intersticial grave e focos extensos de desorganização dos miócitos, acometendo o VE (Figura 2.G).

Discussão

A CMH é uma doença heterogênea em termos genéticos e fenotípicos. Por exemplo, a distribuição da hipertrofia pelo gene da troponina T na cardiomiopatia hipertrófica difere-se não só entre famílias como também dentro de uma mesma família.44 Anan R, Shono H, Kisanuki A, Arima S, Nakao S, Tanaka H. et al. Patients with familial hypertrophiccardiomyopathy caused by a Phe110Ile missense mutation in the cardiactroponin T gene have variable cardiac morphologies and a favorableprognosis. Circulation.1998;98(5):391-7. PMID:9714088.

Informações acerca da correlação genotípica-fenotípica são escassas. Às vezes, a CMH apresenta um fenótipo "restritivo", caracterizado por enchimento restritivo e hipertrofia do VE mínima ou ausente, semelhante à cardiomiopatia restritiva idiopática.55 Kubo T, Gimeno JR, Bahl A, Steffenson U, Osman E, Thaman R, et al.Prevalence, Clinical Significance,and Genetic Basis of Hypertrophic Cardiomyopathy With Restrictive Phenotype. J Am Coll Cardiol 2007;49(25):2419-26. DOI: 10.1016/jack.2007.02061.
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Um menor número de pacientes com CMH (5-10%) evoluirá para o estágio terminal da doença, que é caracterizado por dilatação do VE, redução na espessura da parede, e disfunção sistólica.66 Harris JK, Spirito P, Maron MS, zenovich AG, Formisano F, Lesser JR, et al. Prevalence, clinical profile, and significance of left ventricular remodeling in the end-stage phase of hypertrophic cardiomyopathy.Circulation. 2006;114(3):216 -25. DOI: 10.1161./CIRCULATIONAHA.105.583.500.
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Apesar da ausência de doença sistêmica, a presença de espessura da parede aumentada, baixa amplitude no ECG e disfunção diastólica grave é sugestiva de cardiomiopatia restritiva. O realce com gadolinium também foi característico de amiloidose cardíaca. Além disso, não havia história de doença cardíaca familiar. Apesar de a biópsia endomiocárdica haver descartado o diagnóstico de amiloidose cardíaca, também não confirmou o de CMH, provavelmente pelo fato de o ventrículo direito ter sido pouco afetado.

No presente caso, encontramos dimensões aumentadas do VE, função sistólica diminuída, hipertrofia ventricular e fisiologia restritiva, que caracterizam um fenótipo dilatado, restritivo, hipertrófico.

Sabe-se que muitas mutações genéticas podem estar presentes em um mesmo indivíduo, o que pode explicar a combinação de três características diferentes no presente caso.

Não existe relato de caso similar na literatura.

A limitação deste estudo deve-se a não realização de um teste genético, uma vez que esse ainda não está disponível em nossa instituição. Além do diagnóstico de CMH obtida por biópsia, seria de grande valor conhecer a mutação genética específica a fim de se esclarecer tal fenótipo "intrigante".

  • Fontes de Financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação Acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

References

  • 1
    Task Force Members. Elliott PM, Anastasakis A, Borger MA, Borggrefe M, Cecchi F, Charron P, et al. 2014 ESC Guidelines on diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy: the task force for the diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J. 2014; 35(39): 2733-79. DOI: 10.1093/euheartj./Orgv-Ejehu284.
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    » https://doi.org/10.1161./CIRCULATIONAHA.105.583.500

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2017
  • Revisado
    06 Jul 2017
  • Aceito
    07 Jul 2017
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