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Nossa Senhora do Pantanal: da oração à canção

Nossa Senhora do Pantanal: from prayer to song

Nossa Senhora do Pantanal: de la oración al canto

Resumo:

O presente texto tem por objetivo apresentar como a história de Nossa Senhora do Pantanal fez-se ecoar da localidade pantaneira para a música da cantora e compositora Alzira E. Como fundamentos teóricos, calcamo-nos nas pesquisas de Béra e Lamy (2015)BÉRA, M.; LAMY, Y. Sociologia da cultura. Tradução de Fernando Kolleritz. São Paulo: SESC, 2015., Bernardi e Castilho (2016)BERNARDI, C. J.; CASTILHO, M. A. A Religiosidade como elemento do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 745-56, out./dez. 2016., Couto (2009)COUTO, A. M. Q. Tendências estético-políticas nas artes pantaneiras: uma leitura ecocrítica. In: MENEGAZZO, M. A.; BANDUCCI JÚNIOR, Á. Travessias e limites: escritos sobre o regional. Campo Grande, MS:UFMS, 2009., Dal Farra (2014)DAL FARRA, D. Manifestações culturais e reliqiosas em MS. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2014., Espíndola (2017)ESPÍNDOLA, A. cantora transforma prece para Nossa Senhora do Pantanal em música. Folha de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://goo.gl/rjC51E. Acesso em: 10 out. 2019.
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, Lotman (1998LOTMAN, I. La Semiosfera II: semiótica de la cultura, del texto, de la conducta y del espacio. Valência: Ediciones Catedra, 1998.; 2000)LOTMAN, I. La Semiosfera III: semiótica de las artes y de la cultura. Valência: Ediciones Catedra, 2000., Mesquita (2015)MESQUITA, F. A. A veneração aos santos no catolicismo popular brasileiro: uma aproximação histórico-teológica. Revista Eletrônica Espaço Teológico (REVELETEO), São Paulo, v. 9, n. 15, p. 155-74, jan./jul. 2015. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo. Acesso em: 20 mar. 2021.
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, Murgel (2005)MURGEL, A. C. A. T Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola e Ná Ozzetti: produção musical feminina na Vanguarda Paulista. 2005. 262 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2005. Disponível em: https://goo.gl/fiDL9q. Acesso em: 10 jul. 2018.
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, Nogueira (1990NOGUEIRA, A. X. O que é Pantanal. São Paulo: Brasiliense, 1990.; 2002)NOGUEIRA, A. X. Pantanal: homem e cultura. Campo Grande: UFMS, 2002., Pinto (2006)PINTO, M. L. Discurso e cotidiano: histórias de vida em depoimentos de pantaneiros. 2006. 246 f. Tese (Doutorado em Letras – Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2006., Rosa e Duncan (2009)ROSA, M. G. S.; DUNCAN, I. A música em Mato Grosso do Sul: histórias de vida. Campo Grande, MS: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2009., Rosendahl (2005)ROSENDAHL, Z. Território e territorialidade: uma perspectiva geográfica para o estudo da religião. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 10, 2005, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2005, p. 12928-42., entre outros. Como aporte metodológico, apresentaremos uma breve compreensão do aparecimento da santa no contexto pantaneiro e analisaremos, também, a letra da canção composta por Orlando Antunes e musicada por Alzira E. Das discussões e resultados obtidos, encontramos na religiosidade e na cultura pantaneira um objeto singular: o compromisso com a gente e com a terra, presentes no cotidiano dos povos do Pantanal.

Palavras-chave:
Nossa Senhora do Pantanal; música sul-mato-grossense; cultura

Abstract:

This article aims to present how the history of Nossa Senhora do Pantanal echoed from the locality of Pantanal to the music of the singer and songwriter Alzira E. As theoretical foundations, we base ourselves on the research by Béra and Lamy (2015)BÉRA, M.; LAMY, Y. Sociologia da cultura. Tradução de Fernando Kolleritz. São Paulo: SESC, 2015., Bernardi and Castilho (2016)BERNARDI, C. J.; CASTILHO, M. A. A Religiosidade como elemento do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 745-56, out./dez. 2016., Couto (2009)COUTO, A. M. Q. Tendências estético-políticas nas artes pantaneiras: uma leitura ecocrítica. In: MENEGAZZO, M. A.; BANDUCCI JÚNIOR, Á. Travessias e limites: escritos sobre o regional. Campo Grande, MS:UFMS, 2009., Dal Farra (2014)DAL FARRA, D. Manifestações culturais e reliqiosas em MS. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2014., Espíndola (2017)ESPÍNDOLA, A. cantora transforma prece para Nossa Senhora do Pantanal em música. Folha de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://goo.gl/rjC51E. Acesso em: 10 out. 2019.
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, Lotman (1998LOTMAN, I. La Semiosfera II: semiótica de la cultura, del texto, de la conducta y del espacio. Valência: Ediciones Catedra, 1998.; 2000)LOTMAN, I. La Semiosfera III: semiótica de las artes y de la cultura. Valência: Ediciones Catedra, 2000., Mesquita (2015)MESQUITA, F. A. A veneração aos santos no catolicismo popular brasileiro: uma aproximação histórico-teológica. Revista Eletrônica Espaço Teológico (REVELETEO), São Paulo, v. 9, n. 15, p. 155-74, jan./jul. 2015. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo. Acesso em: 20 mar. 2021.
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, Murgel (2005)MURGEL, A. C. A. T Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola e Ná Ozzetti: produção musical feminina na Vanguarda Paulista. 2005. 262 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2005. Disponível em: https://goo.gl/fiDL9q. Acesso em: 10 jul. 2018.
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, Nogueira (1990NOGUEIRA, A. X. O que é Pantanal. São Paulo: Brasiliense, 1990.; 2002)NOGUEIRA, A. X. Pantanal: homem e cultura. Campo Grande: UFMS, 2002., Pinto (2006)PINTO, M. L. Discurso e cotidiano: histórias de vida em depoimentos de pantaneiros. 2006. 246 f. Tese (Doutorado em Letras – Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2006., Rosa and Duncan (2009)ROSA, M. G. S.; DUNCAN, I. A música em Mato Grosso do Sul: histórias de vida. Campo Grande, MS: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2009., Rosendahl (2005)ROSENDAHL, Z. Território e territorialidade: uma perspectiva geográfica para o estudo da religião. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 10, 2005, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2005, p. 12928-42., among others. As a methodological contribution, we will present a brief understanding of the appearance of the saint in the Pantanal context and also analyze the lyrics of the song composed by Orlando Antunes and set to music by Alzira E. From the discussions and results found, we discovered in the Pantanal religion and culture a single object: the commitment to the people and the land, present in the daily life of the Pantanal people.

Keywords:
Nossa Senhora do Pantanal; Mato Grosso do Sul music; culture

Resumen:

Este texto tiene como objetivo presentar cómo la historia de Nossa Senhora do Pantanal se hizo eco desde la región del Pantanal a la música de la cantante y compositora Alzira E. Como fundamentos teóricos, nos apoyamos en la investigación de Béra y Lamy (2015)BÉRA, M.; LAMY, Y. Sociologia da cultura. Tradução de Fernando Kolleritz. São Paulo: SESC, 2015., Bernardi y Castilho (2016)BERNARDI, C. J.; CASTILHO, M. A. A Religiosidade como elemento do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 745-56, out./dez. 2016., Couto (2009)COUTO, A. M. Q. Tendências estético-políticas nas artes pantaneiras: uma leitura ecocrítica. In: MENEGAZZO, M. A.; BANDUCCI JÚNIOR, Á. Travessias e limites: escritos sobre o regional. Campo Grande, MS:UFMS, 2009., Dal Farra (2014)DAL FARRA, D. Manifestações culturais e reliqiosas em MS. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2014., Espíndola (2017)ESPÍNDOLA, A. cantora transforma prece para Nossa Senhora do Pantanal em música. Folha de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://goo.gl/rjC51E. Acesso em: 10 out. 2019.
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, Lotman (1998LOTMAN, I. La Semiosfera II: semiótica de la cultura, del texto, de la conducta y del espacio. Valência: Ediciones Catedra, 1998.; 2000)LOTMAN, I. La Semiosfera III: semiótica de las artes y de la cultura. Valência: Ediciones Catedra, 2000., Mesquita (2015)MESQUITA, F. A. A veneração aos santos no catolicismo popular brasileiro: uma aproximação histórico-teológica. Revista Eletrônica Espaço Teológico (REVELETEO), São Paulo, v. 9, n. 15, p. 155-74, jan./jul. 2015. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo. Acesso em: 20 mar. 2021.
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, Murgel (2005)MURGEL, A. C. A. T Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola e Ná Ozzetti: produção musical feminina na Vanguarda Paulista. 2005. 262 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2005. Disponível em: https://goo.gl/fiDL9q. Acesso em: 10 jul. 2018.
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, Nogueira (1990NOGUEIRA, A. X. O que é Pantanal. São Paulo: Brasiliense, 1990.; 2002)NOGUEIRA, A. X. Pantanal: homem e cultura. Campo Grande: UFMS, 2002., Pinto (2006)PINTO, M. L. Discurso e cotidiano: histórias de vida em depoimentos de pantaneiros. 2006. 246 f. Tese (Doutorado em Letras – Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2006., Rosa y Duncan (2009)ROSA, M. G. S.; DUNCAN, I. A música em Mato Grosso do Sul: histórias de vida. Campo Grande, MS: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2009., Rosendahl (2005)ROSENDAHL, Z. Território e territorialidade: uma perspectiva geográfica para o estudo da religião. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 10, 2005, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2005, p. 12928-42., entre otros. Como aporte metodológico, presentaremos una breve comprensión de la aparición de la santa en el contexto del Pantanal y, adernás, analizaremos la letra de la canción compuesta por Orlando Antunes y musicalizado por Alzira E. De las discusiones y resultados obtenidos, encontramos en la religiosidad y cultura del Pantanal un objeto único: el compromiso con las personas y la tierra, presente en la vida cotidiana de los pueblos del Pantanal.

Palabras clave:
Nossa Senhora do Pantanal; música de Mato Grosso do Sul; cultura

1 INTRODUÇÃO

O Brasil é um país marcado pela força de suas ações culturais e de sua história. A região Centro-Oeste é marcada pela diversidade de encontros multiétnicos que, por sua vez, promoveram uma ascensão cultural muito forte, principalmente nos estados de Mato Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS).

A formação desses dois estados é um grande exemplo dessa diversidade. Entre a Guerra do Paraguai e o movimento divisionista que criou MS, separando-o de MT no final dos anos 1970, há uma diversidade de processos históricos e culturais que “[...] possuem muitos planos e são multifuncionais e, portanto, podem ser descritos de diferentes maneiras, sob diferentes pontos de vista” (LOTMAN, 2000LOTMAN, I. La Semiosfera III: semiótica de las artes y de la cultura. Valência: Ediciones Catedra, 2000., p. 197, tradução própria), que se manifestam no cenário brasileiro da época.

Assim, esta pesquisa, de caráter bibliográfico e qualitativo, tem por foco apresentar a história de uma entidade religiosa cultuada por alguns membros da Igreja Católica, que despontou no final do século XX, na região oeste dos estados irmãos MTe MS. O fenômeno cultural apreendido na história e nas práticas sociais denota traços distintivos de religiosidade, pertinentes à região.

Para Lotman,

[...] o fenômeno da cultura é paradoxal de um certo ponto de vista. Por um lado, para todos os observadores sem preconceitos, é evidente a variabilidade histórica da cultura, sua natureza dinâmica. Por outro, é evidente a diferença na velocidade da dinâmica histórica de seus diferentes componentes. (LOTMAN, 1998LOTMAN, I. La Semiosfera II: semiótica de la cultura, del texto, de la conducta y del espacio. Valência: Ediciones Catedra, 1998., p. 108, tradução própria).3 3 No original: El fenómeno de la cultura es poradójico desde determinado punto de vista. Por una parte, para todo observador sin prejuicios es evidente la voriabilidad histórica de la cultura, el carácter dinámico de ésta. Por otra, es evidente la diferencia en la velocidad de la dinámico histórico de sus diferentes componentes.

Para o autor, “a cultura pode ser considerada em sua dinâmica linear como um retransmissor constante de estruturas antigas por novas, como é feito na ciência histórica tradicional. Essa maneira de ver iluminará a formação ininterrupta de novas formas que aliviam e deixam de lado as antigas” (LOTMAN, 2000LOTMAN, I. La Semiosfera III: semiótica de las artes y de la cultura. Valência: Ediciones Catedra, 2000., p. 212, tradução própria)4 4 No originaI: La culturo puede ser considerado en su dinámico lineal como un constante relevo de los viejas estructuras por nuevas, como se hoce en la ciencia histórico tradicional. Tal modo de ver alumbraro la ininterrumpida formación de nuevas formas que relevan y echan a un lado las viejas. .

Já para Béra e Lamy, a cultura “é, pois, determinada pelo tipo de regime econômico, pelas relações de dominação e de exploração oriundas da divisão social do trabalho. Manifesta-se pelo viés de fenômenos de ‘fetichização’, de ‘reificação’ ou de ‘mercantilização’” (BÉRA; LAMY, 2015BÉRA, M.; LAMY, Y. Sociologia da cultura. Tradução de Fernando Kolleritz. São Paulo: SESC, 2015., p. 249).

Dessa forma, apresentaremos a história de Nossa Senhora do Pantanal por meio das poucas fontes obtidas – uma vez que dados sobre a santa se encontram apenas em jornais de Corumbá – e analisaremos a oração e uma canção escrita em homenagem a ela, pelo poeta Orlando Antunes e pela cantora Alzira E.

2 DO PANTANAL, NASCE UMA SANTA!

Ao longo de sua existência no mundo, o homem sempre objetivou um fim comum: a felicidade. No entanto, ao trilhar um longo caminho para alcançar o desejo pretendido, alguns percalços foram impedindo-o de aproximar-se da sua atividade-fim, provocando nele o sentimento de abandono e solidão. Com essa sensação de inacabamento, é que os grupos sociais organizados se apegam a ações e entidades mitológicas, depositando-lhes uma fé que constitui o que denominamos de religiosidade.

Para Bernardi e Castilho (2016, p. 742)BERNARDI, C. J.; CASTILHO, M. A. A Religiosidade como elemento do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 745-56, out./dez. 2016., “A religiosidade constrói um universo de reflexão todo especial na vida, seja ela individual ou social, por envolver um contrato em que o elemento esperança e sentido da vida são fundamentais para o desenvolvimento do ser humano em sua trajetória terrestre”. O apego ao oculto, ao extraterreno, é marca característica da humanidade, que, desde a origem dos povos primitivos, apega-se a um sistema de signos, dogmas e valores morais, cujo fim é dar sentido à vida.

Relacionar a religiosidade de um povo com o local onde se habita é uma das formas de promover as manifestações artísticas e culturais por que a religião permite conhecer o local onde as pessoas vivem seus valores em uma cultura. Ela é influenciada pela cultura, mas ela também influencia a cultura daqueles que vivem em seu entorno. A religião permite um conhecimento maior dos valores que envolvem uma dada sociedade, principalmente seus valores éticos. (BERNARDI; CASTILHO, 2016BERNARDI, C. J.; CASTILHO, M. A. A Religiosidade como elemento do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 745-56, out./dez. 2016., p. 752).

Assim, localizamos no oeste do país, na fronteira com a Bolívia, pertencente a dois estados irmãos (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), uma área de terra denominada Pantanal. Essa faixa territorial é composta por mananciais de água doce, uma vasta avifauna e um elemento essencial: o pantaneiro, homem que aprendeu a conviver com todas as nuances e vicissitudes que esse território lhe oferta, compartilhando com o outro suas histórias, suas angústias e, principalmente, sua rica e vasta cultura.

Nesse sentido, “o Pantanal apresenta dois aspectos importantes para a sua caracterização: o isolamento em relação às grandes metrópoles do país e a proximidade com dois países latinos, com os quais tem convivido intensamente” (NOGUEIRA, 1990NOGUEIRA, A. X. O que é Pantanal. São Paulo: Brasiliense, 1990., p. 21). E, com essas proximidades, encontramos hoje, na cultura pantaneira, elementos fronteiriços que se incorporam à realidade do homem pantaneiro.

Além da influência dos hermonos da fronteira, o Pantanal recebeu a presença dos bandeirantes, que, em busca de índios e escravos, acabaram por encontrar ricas minas de matérias preciosas e por aqui se instalaram. Pinto (2006)PINTO, M. L. Discurso e cotidiano: histórias de vida em depoimentos de pantaneiros. 2006. 246 f. Tese (Doutorado em Letras – Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2006. relata que, posteriormente, a presença de migrantes de outros estados do país, como São Paulo, por exemplo, trouxe também traços socioculturais que constituíram a cultura do homem pantaneiro.

Ainda de acordo com Pinto:

Estudar o cotidiano e as representações do homem pantaneiro pressupõe perceber esse homem nas suas relações com o espaço em que vive e atua. Isso implica, no nosso entender, conhecer um pouco da história do próprio espaço investigado: o Pantanal. (PINTO, 2006PINTO, M. L. Discurso e cotidiano: histórias de vida em depoimentos de pantaneiros. 2006. 246 f. Tese (Doutorado em Letras – Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2006., p. 18).

Destacar a importância do Pantanal, nesse contexto, faz com que uma potencialidade do país seja evidenciada não somente como um espaço natural apreciado pelo homem: falar da fauna, flora e do povo pantaneiro é um alerta e um resgate às questões ambientais. Para Couto (2009, p. 70)COUTO, A. M. Q. Tendências estético-políticas nas artes pantaneiras: uma leitura ecocrítica. In: MENEGAZZO, M. A.; BANDUCCI JÚNIOR, Á. Travessias e limites: escritos sobre o regional. Campo Grande, MS:UFMS, 2009., “[...] o meio ambiente é tema pertinente em qualquer lugar do planeta e no Pantanal especialmente, pelos seus valores intrínsecos”.

Nesse contexto, encontramos o homem pantaneiro como “Conhecedor da região, [...] sabe os perigos que enfrenta, mas sabe respeitar esse espaço e preservá-lo” (PINTO, 2006PINTO, M. L. Discurso e cotidiano: histórias de vida em depoimentos de pantaneiros. 2006. 246 f. Tese (Doutorado em Letras – Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2006., p. 41). São eles, os povos do Pantanal, os maiores responsáveis pela difusão e preservação das artes, da cultura, da biodiversidade e do patrimônio daquela região.

Junto a essa formação cultural do homem pantaneiro, aliamos o rádio e a televisão como fortes elementos presentes em suas vidas. Para Pinto, eles

[...] trazem as novidades em relação à música, aos filmes, às novelas, mas, mesmo assim, a preferência é pelas músicas e danças que mostram a forte influência paraguaio-guarani, gaúcha e Argentina. O que mais se ouve, se dança e se canta são a polca paraguaia, o xamamé [sic], o vanerão e o rasqueado. (PINTO, 2006PINTO, M. L. Discurso e cotidiano: histórias de vida em depoimentos de pantaneiros. 2006. 246 f. Tese (Doutorado em Letras – Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2006., p. 49).

Mesmo com a modernidade das novas tecnologias e mídias digitais, o Pantanal e o pantaneiro não perderam suas raízes culturais. A cada dia que passa, a região ganha uma diversidade de turistas e pesquisadores interessados em conhecer as riquezas do lugar. Já os moradores preservam ainda, veementemente, seus traços culturais, elemento de diferenciação dos demais povos que habitam os estados de MT e MS.

De acordo com Nogueira (2002, p. 31)NOGUEIRA, A. X. Pantanal: homem e cultura. Campo Grande: UFMS, 2002., o homem pantaneiro aprendeu a ser, em um mesmo indivíduo, “[...] um botânico, um zoólogo, um astrônomo, um geógrafo acostumado à leitura semiótica da natureza, com a qual aprendeu a conviver, no dia a dia”, transmitindo esse legado às gerações futuras, que, por sua vez, assumem o compromisso de manter as tradições de sua gente.

Estudar a composição da cultura do povo pantaneiro permite-nos abrir a discussão ao entendimento de ideologias que se colocam na presença da formação social, política e histórica de Mato Grosso do Sul. Nesse sentido, a construção da cultura por meio da memória faz com que o indivíduo narre “[...] as histórias de vida contadas a outrem tal qual foi experenciada pela pessoa que a viveu, tornando seu ponto de vista como referência fundamental” (CHIZZOTTI, 2006CHIZZOTTI, A. História de vida. In: CHIZZOTTI, A. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006., p. 102) e mostrando, assim, as nuances de sua formação cultural.

Um fato preponderante que marca a constituição dessa cultura passa pelas crenças e virtudes desenvolvidas pelos povos, por meio da religião. O Brasil é um país que, em sua maioria populacional, é dotado da fé católica, religião de matriz cristã, na qual encontramos, entre suas práticas, a presença de virtuosos que intermedeiam a relação homem e Deus: os santos.

Muitos santos da Igreja Católica foram humanos que, ao longo de suas vidas, promoveram ações milagrosas, sendo, após a morte, canonizados pelo Vaticano. O povo católico brasileiro é tipicamente um grupo fiel aos santos, com sua extensão territorial marcada por inúmeras igrejas, festas e outros eventos que homenageiam os santos canonizados pelos papas.

Para Mesquita, a devoção aos santos promove

[...] a solidariedade entre as comunidades e, além disso, é marcada pela ambiguidade de festa e penitência. No festejo há danças, missas e rezas, sendo esta a maneira de agradecer ao santo a proteção, mas também é o momento de pagar a promessa feita, através de alguma penitência. Nessas manifestações, sobretudo no catolicismo rural, o leigo tinha autonomia, dado que havia poucos sacerdotes. (MESQUITA, 2015MESQUITA, F. A. A veneração aos santos no catolicismo popular brasileiro: uma aproximação histórico-teológica. Revista Eletrônica Espaço Teológico (REVELETEO), São Paulo, v. 9, n. 15, p. 155-74, jan./jul. 2015. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo. Acesso em: 20 mar. 2021.
http://revistas.pucsp.br/index.php/revel...
, p. 166).

Dessa forma, as crenças e devoções depositadas nos santos ganharam grandes proporções em todo o território brasileiro, chegando até ao Pantanal sul-mato-grossense, quando, no dia 4 de setembro de 1982, a artesã Ida Sanches Mõnacona confeccionou uma imagem de Nossa Senhora com características diferentes de outras santas como a padroeira do Brasil, Nossa Senhora da Conceição Aparecida. A criação feita por Ida constituía-se em uma santa cujo manto era coberto por folhas e flores de camalotes – planta típica dos rios pantaneiros – com as cores verde e lilás.

Ao tomar ciência da imagem, Gabriel Vandoni de Barros nomeou a imagem de Nossa Senhora do Pantanal, despertando o interesse e a devoção de muitos pela santa que acabara de nascer com o objetivo de proteger o Pantanal, sua avifauna, seus moradores e simpatizantes.

Figura 1
Imagens de Nossa Senhora do Pantanal comercializadas na cidade de Bonito, MS

Sobre o criador do nome da santa, é importante ressaltar sua atuação na cidade de Corumbá,

[...] por ter expressado o sentimento do homem pantaneiro na defesa de sua cultura e pecuária tradicional, assumindo posições de destaque nas decisões da política regional como influente articulista dos jornais que fundou. Personagem marcante na história e luta incessante de Corumbá, Doutor Gabi despertaria, depois de se formar advogado pela Faculdade de Direito de São Paulo, o espírito filantrópico no retorno a sua terra natal. Prestou relevantes serviços nas áreas em que atuou, sobretudo na defesa e difusão da cultura pantaneira e no acesso da comunidade carente a uma educação de qualidade. (PORTAL MATO GROSSO, 2008PORTAL MATO GROSSO. Gabriel Vandoni de Barros, 14 abr. 2008. Disponível em: https://bit.ly/3LgJO8u. Acesso em: 10 out. 2019.
https://bit.ly/3LgJO8u...
, on-line).

Em 21 de setembro de 2001, o bispo Milton Santos oficializou o título à santa, agora nominada Nossa Senhora Imaculada Conceição do Pantanal, ganhando o carisma dos corumbaenses e moradores do entorno da cidade, bem como despertando a devoção de outras pessoas de todo o país.

3 DA ORAÇÃO À CANÇÃO: INTERLOCUÇÕES CULTURAIS

As riquezas culturais de Mato Grosso do Sul ganharam prestígio nacional a partir das artes plásticas e da música – como exemplo, Lídia Baís, Humberto Espíndola, Tetê e o Lírio Selvagem e Almir Sater. Todos eles, de alguma forma, mostram em sua arte a riqueza natural presente na geografia sul-mato-grossense, colocando o estado na rota nacional da cultura. Para Couto (2009, p. 71)COUTO, A. M. Q. Tendências estético-políticas nas artes pantaneiras: uma leitura ecocrítica. In: MENEGAZZO, M. A.; BANDUCCI JÚNIOR, Á. Travessias e limites: escritos sobre o regional. Campo Grande, MS:UFMS, 2009., “[...] o meio ambiente é tematizado pelos artistas regionais, reconhecendo ambiente e regionalismo como duas das parcelas, relevantes e significativas, mas não únicas e nem principais, na caracterização da estética literária ou plástica desenvolvida no centro-oeste brasileiro”.

Com a oficialização da santa, uma oração foi construída e aceita com a Aprovação Eclesiástica do arcebispo metropolitano de Cuiabá dom Milton Santos, em 2001. Vejamos a Oração:

ORAÇÃO DE NOSSA SENHORA DO PANTANAL

Ó Virgem Maria Imaculada, Nossa Senhora do Pantanal, que aparecestes à margem do Rio Paraguai na arte do Massabarro através das mãos de pequenos artesãos – crianças e jovens.

Modelai em nós Jesus Cristo, Vosso Filho e nosso Irmão, para que na docilidade ao Espírito Santo realizemos no novo milênio a vontade de Deus que é o seu plano de amor.

Senhora do Pantanal, Protegei o Vosso povo Pantaneiro e o Brasil que vos elegem como Mãe e Protetora. Senhora do Pantanal, nossa fauna, nossa flora e o minério: – dons da Mãe – natureza em nossas mãos – para fazermos de tudo “um hino de louvor da criação”.

Nossa Senhora do Pantanal, em vosso zelo de Mãe atendei as nossas preces apresentando nossos pedidos junto a Deus-Trindade-Amor.

Nossa Senhora do Pantanal, Mãe de Deus, Rogai por nós, agora e sempre.

Amém. (ARQUIDIOCESE DE CUIABÁ, 2012ARQUIDIOCESE DE CUIABÁ. Nosso Senhora Imaculada Conceição do Pantanal. Cuiabá, 2012. Disponível em: https://bit.ly/2Wl7lNw. Acesso em: 10 out. 2019.
https://bit.ly/2Wl7lNw...
, on-line).

Essa oração evidencia a presença da cultura, do povo pantaneiro, da fauna e flora locais. Nos estudos de Rosendahl (2005)ROSENDAHL, Z. Território e territorialidade: uma perspectiva geográfica para o estudo da religião. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 10, 2005, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2005, p. 12928-42., compreendemos a importância de conhecer os fenômenos religiosos e suas formas de diálogo com o homem e o território, uma vez que este último, na visão dos estudos teológicos, conforme estuda a autora, divide-se nos lugares do cosmo e compromete-se com o sagrado, partindo das marcas dos signos e significados que carrega.

Por meio do diálogo entre homem e território, exemplificamos um fato ocorrido no dia em que a santa fora reconhecida pela Arquidiocese, 21 de setembro de 2001, em que – como um ato de reconhecimento à Nossa Senhora do Pantanal – uma imagem dela foi transladada pelo Rio Paraguai de Ladário (MS) a Corumbá (MS).

Ao chegar à chamada “capital do Pantanal”, a santa foi recebida e aclamada por uma diversidade de fiéis que estavam debaixo de uma forte chuva, o que, nem por isso, fez com que o evento perdesse o brilho. O jornal Gazeta Corumbaense, em edição do dia 25/08/2001, demonstrou essa fé pela chamada e foto da notícia.

Figura 2
Reportagem do Jornal Gazeta Corumbaense

O texto do jornal corumbaense é titulado com uma indagação: teria a santa feito seu primeiro milagre? No dia da cerimônia de reconhecimento de Nossa Senhora do Pantanal, fazia um calor tremendo e o sol estava muito vivaz, mas nada impediu que as pessoas assistissem a uma primeira missa em devoção à santidade pantaneira (GAZETA PANTANEIRA, 2001GAZETA CORUMBAENSE. Nossa Senhora do Pantanal: o primeiro milagre? Corumbá, 25 de setembro de 2001. Disponível em: https://bit.ly/36cAAqp. Acesso em: 15 out. 2019.
https://bit.ly/36cAAqp...
). O milagre, segundo o jornal, ocorreu após a cerimônia, ao fim da missa, quando uma nuvem cobriu a cidade e uma forte chuva caiu, fazendo com que as pessoas não se intimidassem e acompanhassem o cortejo molhadas.

Outro ponto a ser mencionado é que a fama da santa já percorre as cidades fronteiriças da Bolívia (país vizinho ao Brasil), mostrando o sentimento de que “a proximidade entre os dois povos construiu riquezas maiores que a disputa pela dominação. Na música, na comida e nas tradições. As semelhanças com o país vizinho também permeiam a religiosidade” (DAL FARRA, 2014DAL FARRA, D. Manifestações culturais e reliqiosas em MS. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2014., p. 107).

Além da Oração a Nossa Senhora do Pantanal, encontramos, nas fontes de pesquisa on-line, uma canção composta por Alzira E e Orlando Antunes Batista, cujo título leva o nome da santa. De contextos diferentes, cada um dos compositores trilhou seus caminhos pelas letras e pelo som.

Orlando Antunes Batista nasceu em 5 de maio de 1947, em Rancharia, SP. Graduou-se em Letras, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Assis, fez Especialização em Letras, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), e Doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada), na Universidade de São Paulo (USP). Sua trajetória é marcada pela docência na Educação Básica e Superior, tendo atuado durante anos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no Compus de Aquidauana – cidade considerada o portal do Pantanal –, onde conheceu a amiga e parceira de composição Alzira E.

Ocupa a cadeira número 12 da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, tendo publicado mais de 30 obras, das quais destacamos os seguintes títulos: “O Espaço da Esperança”, “Jacaré Porã”, “Madurez no Pantanal” e “Estrela de Pã”, sendo estes livros de cunho literário. Publicou também obras de viés acadêmico como “Modelagens Linguísticas & Adaptações Textuais” e “Teoria da Adaptação Textual”.

Já Alzira E, nascida Alzira Maria Miranda Espíndola, em 8 de setembro de 1957, é a filha caçula do casal Francisco e Alba e, desde cedo, já demonstrava suas habilidades com os instrumentos musicais e com a música: “tudo começou muito cedo. Minhas primeiras lembranças surgem com Humberto e Alba ouvindo rádio, a voz de Rita Pavone invadindo a casa, minha cabeça repleta de sons” (ROSA; DUNCAN, 2009ROSA, M. G. S.; DUNCAN, I. A música em Mato Grosso do Sul: histórias de vida. Campo Grande, MS: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2009., p. 144).

Estimulada pela vida musical dos irmãos, Alzira E aprendeu a tocar violão, a compor e cantar, “mas aos nove já tinha composto a sua primeira canção, em parceria com Tetê. As duas irmãs tinham um dialeto infantil, que trocava todas as vogais das frases pela letra “A” – e a primeira canção foi feita nessa “língua do A”: Ao Voo Como” (MURGEL, 2005MURGEL, A. C. A. T Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola e Ná Ozzetti: produção musical feminina na Vanguarda Paulista. 2005. 262 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2005. Disponível em: https://goo.gl/fiDL9q. Acesso em: 10 jul. 2018.
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, p. 69).

Alzira começou a tocar profissionalmente com Tetê, ainda em 1974, quando formaram o Arco da Lua e, em 1975, o LuzAzul. Nessa época, ela já compunha e tocava violão, mas ainda não cantava. Com o grupo rebatizado de ‘lírio Selvagem”, os irmãos estavam com Tetê na gravação do primeiro LP, Tetê e o Lírio Selvagem. (MURGEL, 2005MURGEL, A. C. A. T Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola e Ná Ozzetti: produção musical feminina na Vanguarda Paulista. 2005. 262 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2005. Disponível em: https://goo.gl/fiDL9q. Acesso em: 10 jul. 2018.
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, p. 72).

A partir de então, ela nunca mais parou. Com sua mudança para São Paulo, conheceu grandes parceiros musicais, como Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Luhli e Lucina. Com Itamar, fez grandes composições e viajou o mundo. Por intermédio dele, conheceu Alice Ruiz, companheira do poeta Paulo Leminski, com quem também se tornou parceira musical.

A carreira de Alzira E, hoje, consolidou-se de forma que sua música atingiu os mais refinados apreciadores e recebe uma gama de elogios formulados pela crítica brasileira. Profissionalmente, divide sua carreira entre os trabalhos solos e em parcerias com o grupo Corte, que lançou um disco em 2017.

Em 2021, um longa-metragem sobre sua vida, intitulado Aquilo que Nunco Perdi, dirigido por Marina Thomé, foi lançado, de forma a demonstrar as potencialidades da cantora que, além de uma ativa profissional, dedica parte do seu tempo à sua família, cujas filhas, Iara e Luz Marina, e o filho, Joy, herdaram da mãe toda influência musical.

A relação entre Alzira E com Nossa Senhora do Pantanal se constitui em uma ligação muito íntima. Com o fim do Grupo Tetê e o Lírio Selvagem, a cantora retornou de São Paulo para Mato Grosso do Sul e passou a viver no interior do estado, quando, em certo momento de sua vida, teve sua primeira experiência de devoção à santa, conforme relata:

Eu vi e vivi o nascer de Nossa Senhora do Pantanal.

Em meados dos anos 1980, em 1983 para ser mais exata, eu estava morando em Anastácio, pequena cidade à beira do rio Aquidauana, vizinha à cidade de mesmo nome. A região é considerada o portão de entrada do Pantanal.

Minha casa ficava um pouco isolada, ali era beira de rio, num bairro da cidadezinha. Por isso, muitas vezes eu ficava sozinha com minhas quatro filhas ainda pequenas.

Alguns acontecimentos geravam medo e preocupações. Não tínhamos telefone em casa, tampouco carro, e às vezes até ficávamos sem luz. (ESPÍNDOLA, 2017ESPÍNDOLA, A. cantora transforma prece para Nossa Senhora do Pantanal em música. Folha de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://goo.gl/rjC51E. Acesso em: 10 out. 2019.
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, on-line).

Certa vez, Orlando Antunes visitou Alzira E, levando consigo um poema feito para a santa, entregou-o a cantora e pediu que o musicasse. O medo e as preocupações em cuidar dos filhos, da casa e do bem-estar de todos não permitiram que Alzira fizesse a canção de forma imediata. Esta afirma que a música passou a surgir a partir dos vários momentos em que fazia do poema sua oração de pedido de proteção a Nossa Senhora do Pantanal.

Em outra ocasião, a cantora e compositora menciona uma situação vivida em que a prece à santa foi seu alento:

Certa noite, fui acordada por barulhos violentos no telhado. As crianças também despertaram, e todos fomos tomados pelo medo. Não sabíamos o que seria aquele ruído: bichos ferozes, animais selvagens, almas paraguaias? Extraterrestres?

Tive que recorrer à fé, e especialmente a essa santa, pois certamente apenas uma santa local poderia entender daqueles rios, daqueles bichos, daquelas almas, daquele céu.

E, assim, comecei a cantar para realmente os males espantar. E foi o que aconteceu. Dali em diante, cantei muito a música em shows que fazia por todo o Estado, e a santa foi ganhando devotos desde então. (ESPÍNDOLA, 2017ESPÍNDOLA, A. cantora transforma prece para Nossa Senhora do Pantanal em música. Folha de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://goo.gl/rjC51E. Acesso em: 10 out. 2019.
https://goo.gl/rjC51E...
, on-line).

A composição finalmente veio. Alzira nunca a gravou em um de seus discos ou CDs. Aos que desejam ouvir a canção, podem encontrá-la na coletânea Pantanal 2000 ou no site de streaming SoundCloud, onde parte das músicas da cantora está disponível para apreciação, no link: https://bit.ly/31C2Te4.

Figura 3
Capa do CD “Pantanal 2000”

A letra escrita por Antunes denota o ufanismo presente na região pantaneira. Os elementos de fauna e flora são evidenciados no poema, que, pela estrutura, dá a impressão de ser uma oração. E o fora, na verdade, por muitas vezes, quando Alzira se via desprotegida e o entoava de maneira devotada, esperando a calmaria como resposta da santa. Vejamos:

NOSSA SENHORA DO PANTANAL

(Orlando Antunes Batista | Alzira Espíndola)

Nossa Senhora do Pantanal

Quero cantar meu Pantanal

A pesca do peixe, o mundo natal

Da seriema livre no quintal

Nossa Senhora do Pantanal

Minha canção vem do coração

Não tem mal, tem o som do sabiá

O mugido do novilho

As manhãs feridas de orvalho

Nossa Senhora do Pantanal

Canto essa canção no portão do Pantanal

Deixando no ar o sinal, o som do violão

Quebrando os males que me matam

Vendo a vida refletida no espelho do corixo

Minha querida santa quero te adornar

Com aguapés que nascem nas águas dos nossos rios

Lambendo meus pés. (ESPÍNDOLA, 2000ESPÍNDOLA, A. Nossa Senhora do Pantanal. In: Pantanal 2000. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2000. 1 CD. Faixa 4 (2min52seg).).

Entende-se, nesse contexto, que “As manifestações religiosas que se formam a partir de uma ou várias matrizes organizam esse universo que é resposta para os temores da vida. Isso transparece em relatos místicos que se faz dos fatos que acontecem” (BERNARDI; CASTILHO, 2016BERNARDI, C. J.; CASTILHO, M. A. A Religiosidade como elemento do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 745-56, out./dez. 2016., p. 753).

Essa afirmação é confirmada nas palavras da própria Alzira:

Muitas vezes, penso que pude constatar na pele a aparição dessa mãe de fé, que me ajudou e, com certeza, a tantos outros, a superar dificuldades e medos. Para mim, foi um verdadeiro milagre, porque obtive logo em seguida uma chance de dar continuidade à minha carreira. Só tenho a agradecer. (ESPÍNDOLA, 2017ESPÍNDOLA, A. cantora transforma prece para Nossa Senhora do Pantanal em música. Folha de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://goo.gl/rjC51E. Acesso em: 10 out. 2019.
https://goo.gl/rjC51E...
, on-line).

Esse agradecimento transcende a vida de Alzira para um novo rumo. O sentimento de gratidão à santa mostra que a cultura humana é polivalente, permeada de novas significações e significados que, de acordo com Lotman, “[...] está ligada à sua essência profunda: a combinação conflitante de sua orientação linear e repetição cíclica. A dupla natureza da cultura humana é a base real das duas abordagens semióticas em sua história”5 5 No original: [...] está ligada a la esencio profunda de la misma: la combinoción conflictual de su orientación lineal y la repetitión cíclica. La doble naturaleza de la cultura humana es la base real de los dos enfoques semióticos de su historia. (LOTMAN, 2000LOTMAN, I. La Semiosfera III: semiótica de las artes y de la cultura. Valência: Ediciones Catedra, 2000., p. 212, tradução própria).

Na segunda estrofe da letra, percebemos também a profundidade sentimental ao processo de comunicação com o interlocutor – Nossa Senhora do Pantanal –, uma vez que a canção provém do coração, não há sinais de maldade e, mais uma vez, é peculiarmente característica do povo pantaneiro: tem som de sabiá, mugido, novilho e orvalho da manhã.

A denotação poética apresentada na estrofe mostra o valor dado à palavra do homem pantaneiro, pois, segundo Nogueira & Isquerdo (2009)NOGUEIRA, A. X.; ISQUERDO, A. N. Língua e ambiente no contexto pantaneiro: a propósito do vocabulário. In: MENEGAZZO, M. A; BANDUCCI JÚNIOR, Á. Travessias e Limites: escritos sobre o regional. Campo Grande: UFMS, 2009., a língua vigorada pelos falantes de determinada região entrelaça-se ao ambiente em que é utilizada e, por si só, é elemento fundamental na construção da cultura do povo que a emprega.

A partir desse pressuposto,

A formação do ser humano está ligada à construção do lugar onde ele habita que envolve desde o ambiente natural (paisagem natural) até as influências que ele recebeu na vida pretérita. Essas influências formam seu caráter individual e social. Ele se constrói em um dado território e busca ser ele mesmo nesse espaço, passando a se conectar com outros indivíduos e com elementos que passam a fazer parte de seu cotidiano. (BERNARDI; CASTILHO, 2016BERNARDI, C. J.; CASTILHO, M. A. A Religiosidade como elemento do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 745-56, out./dez. 2016., p. 742).

O homem pantaneiro é dotado de uma rica cultura e, com isso, produz elementos essenciais para a ampliação de sua sabedoria popular. A temática pantaneira foi muito cantada por uma série de músicos e retratada em letra e imagens por vários artistas plásticos e compositores, porém, somente quem vive no Pantanal sabe compreender a cultura daquele povo.

“A religião é uma manifestação humana, não se percebendo fenômenos religiosos em outros seres, estando presente em todas as sociedades humanas independente de espaço, tempo, situação geográfica” (BERNARDI; CASTILHO, 2016BERNARDI, C. J.; CASTILHO, M. A. A Religiosidade como elemento do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 745-56, out./dez. 2016., p. 754), e o pantaneiro tem uma fé “nata”, porque é na adversidade do dia a dia que necessita da proteção que não é humana, cria orações, apega-se com santos e, com isso, a cada dia, transforma e revigora as fontes da cultura popular.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dos anos, o homem sempre sentiu necessidade em registrar seus feitos heróicos, laborais, simbólicos e culturais. Isso se materializa nas paredes das cavernas, nos registros em papiros, na perpetuação dos grupos sociais, entre outros. Compreender que essas materializações fazem parte dos registros humanos só acontece a partir do momento em que o próprio homem resolve estudar como vivem os seus pares.

Viver em sociedade proporciona ao homem uma nova reflexão do seu paradigma de convívio com o outro e, ao elaborar suas regras, manifestações artístico-culturais, político-econômicas, dentre outras, necessita fazer com que as gerações futuras aprendam esses saberes e os repassem aos seus herdeiros.

Mostrar o contexto cultural de uma região rica e conhecida pela sua fauna e flora é uma necessidade recorrente, pois o Pantanal continua sendo palco para as mais diversas manifestações artísticas, sociais e religiosas que, em seus registros, guardam o carisma e a luta do povo pantaneiro pelo seu reconhecimento e emancipação.

Como exemplo, apresentamos a história e as interlocuções culturais de uma santa que nasceu com a missão de cuidar do povo pantaneiro e – mesmo com feitos pouco conhecidos nacionalmente-atrai novos fiéis a cada dia. Nossa Senhora do Pantanal está presente na vida dos moradores ribeirinhos, representada pela arte esculpida em barro, pela religiosidade presente nos feitos católicos e pela canção saudada e louvada por Orlando Antunes e Alzira E.

Dessa maneira, a história de Nossa Senhora do Pantanal fez-se/faz-se ecoar por meio da música de Alzira E, que vivenciou o nascer da santa, e de Orando Antunes, que, mesmo não sendo da região, poetizou-a. São vozes que dialogam entre si e com a cultura e os saberes pantaneiros, ampliando esse ecoar para além desse contexto singular, com suas crenças, costumes, fé e religiosidade, cantando-os além-fronteiras.

  • 3
    No original: El fenómeno de la cultura es poradójico desde determinado punto de vista. Por una parte, para todo observador sin prejuicios es evidente la voriabilidad histórica de la cultura, el carácter dinámico de ésta. Por otra, es evidente la diferencia en la velocidad de la dinámico histórico de sus diferentes componentes.
  • 4
    No originaI: La culturo puede ser considerado en su dinámico lineal como un constante relevo de los viejas estructuras por nuevas, como se hoce en la ciencia histórico tradicional. Tal modo de ver alumbraro la ininterrumpida formación de nuevas formas que relevan y echan a un lado las viejas.
  • 5
    No original: [...] está ligada a la esencio profunda de la misma: la combinoción conflictual de su orientación lineal y la repetitión cíclica. La doble naturaleza de la cultura humana es la base real de los dos enfoques semióticos de su historia.

REFERÊNCIAS

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    » https://bit.ly/2Wl7lNw
  • BÉRA, M.; LAMY, Y. Sociologia da cultura. Tradução de Fernando Kolleritz. São Paulo: SESC, 2015.
  • BERNARDI, C. J.; CASTILHO, M. A. A Religiosidade como elemento do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 745-56, out./dez. 2016.
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  • DAL FARRA, D. Manifestações culturais e reliqiosas em MS. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2014.
  • ESPÍNDOLA, A. cantora transforma prece para Nossa Senhora do Pantanal em música. Folha de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://goo.gl/rjC51E Acesso em: 10 out. 2019.
    » https://goo.gl/rjC51E
  • ESPÍNDOLA, A. Nossa Senhora do Pantanal. In: Pantanal 2000. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2000. 1 CD. Faixa 4 (2min52seg).
  • GAZETA CORUMBAENSE. Nossa Senhora do Pantanal: o primeiro milagre? Corumbá, 25 de setembro de 2001. Disponível em: https://bit.ly/36cAAqp Acesso em: 15 out. 2019.
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  • LOTMAN, I. La Semiosfera III: semiótica de las artes y de la cultura. Valência: Ediciones Catedra, 2000.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Dez 2020
  • Revisado
    17 Maio 2021
  • Aceito
    31 Maio 2021
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