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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo

Ética Bororo: la supervivencia de un pueblo

Bororo ethics: the survival of a people

Éthique Bororo: la survie d'un peuple

Resumos

O presente trabalho focaliza a ação da Igreja, por meio dos missionários salesianos, junto ao povo Bororo na missão de Meruri, situada no Centro-Oeste brasileiro. Esta abordagem centraliza sua atenção na luta dos índios Bororo pela sua sobrevivência, seja no contato com os primeiros colonizadores, seja no contato com os missionários. Entre 1940 e 1960, por razões pouco exploradas por estudiosos até agora, os Bororo residentes em Meruri decidem morrer. Hoje, contrariando tal decisão, os Bororo de Meruri estão em crescimento demográfico. Diante desses fatos, duas questões brotam espontaneamente: 1ª) O que levou o povo Bororo a optar pela morte? 2ª) O que motivou esta nação indígena, já autodeterminada, a recuperar o entusiasmo pela vida? A partir de uma breve reconstrução histórica da experiência missionária em Meruri - Estado de Mato Grosso, região Centro-Oeste do Brasil, o estudo dimensionará a opção dessa etnia brasileira.

Etnia bororo; Territorialidade; Morte; Sobrevivência


El presente trabajo enfoca la acción de la Iglesia, por medio de los misioneros salesianos, junto al pueblo Bororo en la misión de Meruri, situada en el Centro-Oeste brasileño. Este enfoque centraliza su atención en la lucha de los indios Bororo por su supervivencia, sea en contacto con los primeros colonizadores o con los misioneros. Entre 1940 y 1960, por razones poco exploradas hasta el momento por estudiosos, los Bororo residentes en Meruri deciden morir. Hoy, contrariando tal decisión, los Bororo de Meruri están en crecimiento demográfico. Ante esos hechos, dos cuestiones surgen espontáneamente: 1ª) ¿Qué llevó al pueblo Bororo optar por la muerte? 2ª) ¿Qué motivó esta nación indígena, ya autodeterminada, a recuperar el entusiasmo por la vida? A partir de una breve reconstrucción histórica de la experiencia misionera en Meruri - Estado de Mato Grosso, región Centro-Oeste de Brasil, el estudio dimensionará la opción de esa etnia brasileña.

Etnia bororo; Territorialidad; Muerte; Supervivencia


The study in hand focuses on the action of the Church, by way of Salesian missionaries, together with the Bororo people at the Meruri mission, situated in the Brazilian Centro-Oeste. This approach centralizes its attention on the struggle of the Bororo Indians for their survival, whether in their contact with the first colonizers, or in their contact with missionaries. Between 1940 and 1960, for reasons little sought out by scholars up to now, the Bororo residents in Meruri decided to die. Today, going against this decision, the Bororo in Meruri are growing demographically. Considering these facts, two questions spontaneously present themselves: 1a. What made the Bororo opt for death? 2a. What motivated this indigenous nation, already self-determined, to recuperate enthusiasm for life? Beginning with a brief historical reconstruction of the missionary experience in Meruri - Mato Grosso State, in the Centro-Oeste region of Brazil, the study opens out to include the option of this Brazilian ethnic group.

Bororo ethnic group; Territoriality; Death; Survival


Ce travail montre l'action de l'Église, par les missionnaires salésiens, auprès du peuple Bororo dans la mission de Meruri, située dans le Centro-Oeste brésilien. Cet abordage tire l'attention de la lutte des indiens Bororo pour leur survie, soit par le contact avec les premiers colonisateurs, soit par le contact avec les missionnaires. Entre 1940 et 1960, pour des raisons peu exploitées par les chercheurs jusqu'à présent, les Bororo résidents à Meruri décident mourir. Actuellement, contrariant une telle décision, les Bororo de Meruri ont une croissance démographique. Face à ces faits, deux questions se posent spontanément: 1ère) Qu'est ce qui a mené le peuple Bororo à opter pour la mort? 2ème) Qu'est ce qui a motivé cette nation indigène, déjà autodéterminée, à récupérer l'enthousiasme pour la vie?A partir d'une reconstruction historique rapide de l'expérience missionnaire à Meruri - État du Mato Grosso, région Centro-Oeste du Brésil, l'étude dimensionnera l'option de cette ethnie brésilienne.

Ethnie bororo; Territorialité; Mort; Survie


TEORIA E PRÁTICA

Ética Bororo: a sobrevivência de um povo

Bororo ethics: the survival of a people

Éthique Bororo: la survie d'un peuple

Ética Bororo: la supervivencia de un pueblo

Nelson Gil Tolentino

Doutor em Scientiis Educationis (Pedagogia) - Pontificia Studiorum Universitas Salesiana, UPS, Itália; Mestre em Teologia - Weston Jesuit School of Theology, WJST, Estados Unidos; e atualmente exerce a função de Diretor Administrativo da Faculdade Salesiana de Vitória - ES. E-mail: ngil@salesiano.com.br

RESUMO

O presente trabalho focaliza a ação da Igreja, por meio dos missionários salesianos, junto ao povo Bororo na missão de Meruri, situada no Centro-Oeste brasileiro. Esta abordagem centraliza sua atenção na luta dos índios Bororo pela sua sobrevivência, seja no contato com os primeiros colonizadores, seja no contato com os missionários. Entre 1940 e 1960, por razões pouco exploradas por estudiosos até agora, os Bororo residentes em Meruri decidem morrer. Hoje, contrariando tal decisão, os Bororo de Meruri estão em crescimento demográfico. Diante desses fatos, duas questões brotam espontaneamente: 1ª) O que levou o povo Bororo a optar pela morte? 2ª) O que motivou esta nação indígena, já autodeterminada, a recuperar o entusiasmo pela vida? A partir de uma breve reconstrução histórica da experiência missionária em Meruri - Estado de Mato Grosso, região Centro-Oeste do Brasil, o estudo dimensionará a opção dessa etnia brasileira.

Palavras-chave: Etnia bororo. Territorialidade. Morte. Sobrevivência.

ABSTRACT

The study in hand focuses on the action of the Church, by way of Salesian missionaries, together with the Bororo people at the Meruri mission, situated in the Brazilian Centro-Oeste. This approach centralizes its attention on the struggle of the Bororo Indians for their survival, whether in their contact with the first colonizers, or in their contact with missionaries. Between 1940 and 1960, for reasons little sought out by scholars up to now, the Bororo residents in Meruri decided to die. Today, going against this decision, the Bororo in Meruri are growing demographically. Considering these facts, two questions spontaneously present themselves: 1a. What made the Bororo opt for death? 2a. What motivated this indigenous nation, already self-determined, to recuperate enthusiasm for life? Beginning with a brief historical reconstruction of the missionary experience in Meruri - Mato Grosso State, in the Centro-Oeste region of Brazil, the study opens out to include the option of this Brazilian ethnic group.

Key-words: Bororo ethnic group. Territoriality. Death. Survival.

RÉSUMÉ

Ce travail montre l'action de l'Église, par les missionnaires salésiens, auprès du peuple Bororo dans la mission de Meruri, située dans le Centro-Oeste brésilien. Cet abordage tire l'attention de la lutte des indiens Bororo pour leur survie, soit par le contact avec les premiers colonisateurs, soit par le contact avec les missionnaires. Entre 1940 et 1960, pour des raisons peu exploitées par les chercheurs jusqu'à présent, les Bororo résidents à Meruri décident mourir. Actuellement, contrariant une telle décision, les Bororo de Meruri ont une croissance démographique. Face à ces faits, deux questions se posent spontanément: 1ère) Qu'est ce qui a mené le peuple Bororo à opter pour la mort? 2ème) Qu'est ce qui a motivé cette nation indigène, déjà autodéterminée, à récupérer l'enthousiasme pour la vie?A partir d'une reconstruction historique rapide de l'expérience missionnaire à Meruri - État du Mato Grosso, région Centro-Oeste du Brésil, l'étude dimensionnera l'option de cette ethnie brésilienne.

Mots-clés: Ethnie bororo. Territorialité. Mort. Survie

RESUMEN

El presente trabajo enfoca la acción de la Iglesia, por medio de los misioneros salesianos, junto al pueblo Bororo en la misión de Meruri, situada en el Centro-Oeste brasileño. Este enfoque centraliza su atención en la lucha de los indios Bororo por su supervivencia, sea en contacto con los primeros colonizadores o con los misioneros. Entre 1940 y 1960, por razones poco exploradas hasta el momento por estudiosos, los Bororo residentes en Meruri deciden morir. Hoy, contrariando tal decisión, los Bororo de Meruri están en crecimiento demográfico. Ante esos hechos, dos cuestiones surgen espontáneamente: 1ª) ¿Qué llevó al pueblo Bororo optar por la muerte? 2ª) ¿Qué motivó esta nación indígena, ya autodeterminada, a recuperar el entusiasmo por la vida? A partir de una breve reconstrucción histórica de la experiencia misionera en Meruri - Estado de Mato Grosso, región Centro-Oeste de Brasil, el estudio dimensionará la opción de esa etnia brasileña.

Palabras clave: Etnia bororo. Territorialidad. Muerte. Supervivencia.

Introdução

A pesquisa aborda o ambiente e os protagonistas que interagem no texto, especialmente os Bororo e os missionários salesianos, bem como os aspectos da ação missionária para a sobrevivência dos Bororo. O estudo destaca também alguns fatos que levaram os Bororo a se decidirem pela morte; e o que os motivou a optar pela vida, avaliando o papel da Igreja Católica junto aos Bororo em Meruri.

Visto que o presente trabalho quer ser o relato da experiência missionária salesiana entre os Bororo de Meruri, na medida do possível, apoio-me em escritos e depoimentos orais que testemunham o ponto de vista dos Bororo e dos missionários1 1 Em geral, as traduções de outros idiomas para o Português neste trabalho foram feitas por mim, num estilo muito livre. De modo mais específico, no que se refere a traduções da língua Bororo para a língua Portuguesa, segui a tradução apresentada nos textos bilíngues que tive em mãos. que viveram ou ainda vivem em Meruri.

1 Os protagonistas da ação missionária em Meruri

Toda ação supõe ao menos um agente. De um modo geral, a história de contato com os Bororo envolveu vários agentes e interesses diversificados na fase que precedeu o estabelecimento deste povo em Meruri. Os agentes envolvidos são pessoas concretas. Elas poderiam ser definidas como seres que experienciaram a vida dentro de um grupo humano específico, situadas num espaço físico e num período determinados. Ao mesmo tempo, essas pessoas se expressaram através de uma determinada cultura, movidas por interesses particulares. Seria exaustivo definir e analisar detalhadamente cada grupo envolvido na história de contato com os Bororo. Contudo, para a compreensão da ação missionária de Meruri, faz-se necessário ao menos um breve histórico sobre seus antecedentes.

O próprio governo vigente no Brasil2 2 O imperador Dom Pedro II governou o Brasil por quase 50 anos, de 1840 a 1889. Logo após a proclamação da República, dois militares governaram o Brasil: Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894). Em 1895, quando os salesianos se encontraram com os Bororo pela primeira vez, quem governava o Brasil era o Presidente civil Prudente de Moraes (1894-1898); e quem governava o Estado do Mato Grosso era Manoel José Murtinho (1891-1895). Em seguida o comando do Governo Brasileiro foi exercido pelos seguintes presidentes civis: Manoel Ferraz de Campos Salles (1898-1902), Francisco de Paula Rodrigues Alves (1902-1906), Afonso Augusto Moreira Pena (1906-1909), Nilo Procópio Peçanha (1909-1910). Volta ao governo um militar: Hermes da Fonseca (1910-1914). Logo após, os civis retornam no governo: Wenceslau Brás Pereira Gomes (19141918). No período subsequente, merece uma menção Getúlio Vargas (1930-1945; 1951-1954), porque foi o presidente que permaneceu mais tempo governando o país (18 anos). Merecem ainda destaque os dois presidentes naturais do então Estado de Mato Grosso, onde os Bororo se encontram: o militar Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) e Jânio da Silva Quadros, que esteve apenas sete meses na presidência, pois renunciou em agosto do mesmo ano de sua eleição, 1961. (NOVAES, 1993, p. 243) foi quem, por primeiro, interferiu na vida dos Bororo, tornando público seu projeto de construir uma sociedade burguesa (AZZI, 2000, p. 25). Este novo modelo de sociedade excluía socialmente as etnias indígenas e africanas. Alegava-se contra os negros sua incapacidade intelectual para assumir o trabalho remunerado. Alegava-se contra os povos indígenas o atraso de sua cultura e o uso improdutivo de enormes extensões de terra, sem os devidos títulos de propriedade. Por trás desta política governista escondia-se a intenção de apropriar-se das terras dos Bororo e de fazêlos trabalhadores produtivos na agricultura nacional. A implementação da integração acelerada dos índios na sociedade civilizada previa não só a ocupação de suas terras, mas também a supressão de sua cultura.

O segundo grupo que interferiu na vida Bororo foram os colonizadores portugueses, ou bandeirantes que, embrenhando-se nas matas, tentaram implementar a política governista. Por trás desta fidelidade ao governo, o real interesse dos bandeirantes era o ouro das reservas indígenas. De fato, a descoberta de ouro garantia-lhes como recompensa uma fatia do poder político na Colônia. Além dos portugueses, alguns colonizadores espanhois também transitaram pelo território Bororo, motivados pela notícia do ouro. Assim que os colonizadores portugueses descobriram ouro aluvional na Forquilha, mais tarde arraial de Cuiabá, eles intensificaram a caça sistemática aos índios. Foram muitos os combates. Algumas mulheres Bororo, juntamente com suas crianças, foram levadas como escravas para Cuiabá. Os Bororo, após inúmeras perdas, afastaram-se da região das minas de ouro.

O terceiro grupo que o governo convocou para amansar os Bororo foram os militares que usaram como estratégia para agrupar os índios numa Colônia, o sequestro das crianças Bororo, cujas mães já viviam como escravas em Cuiabá. Enquanto as crianças permaneciam no cativeiro, suas mães deveriam providenciar o seu resgate, que consistia em convencer algum chefe indígena a aderir ao projeto do governo com toda sua aldeia. As mulheres, chefiadas pela Bororo Ana Rosa, voltaram a Cuiabá com um grupo de índios e conseguiram assim libertar seus filhos. Os militares, com este primeiro grupo Bororo, fundaram em 1886 a Colônia Teresa Cristina3 3 A Colônia Teresa Cristina foi fundada por ordem do então governador da Província de Mato Grosso, Joaquim Galdino Pimentel. (AZZI, 2000, p. 25) na margem direita do rio São Lourenço, a 400 km de Cuiabá (BORDIGNON, 2001, p. 34-35). Os militares, no cumprimento das ordens governamentais, visavam como interesse imediato sua promoção nos quadros do exército.

Em 1895, antes do falimento total da operação militar na Colônia Teresa Cristina, o governo pediu a ajuda de um último grupo para tentar a pacificação dos Bororo: a Igreja Católica, através dos salesianos. De um modo geral, a Santa Sé, neste mesmo período, tinha assumido a política da conversão dos povos em terras recém-descobertas. Fiéis às diretrizes da Igreja, os missionários salesianos fizeram a fusão da política da Santa Sé com a política do governo brasileiro, adotando para os povos indígenas o lema: "conversão e civilização". Os missionários, mesmo querendo, não poderiam agir diferentemente, pois a desobediência civil e eclesiástica não teriam a mínima chance de sobreviver nos quadros missionários da época (AZZI, 2000, p. 26-27)4 4 Azzi (2000, p. 41-42) afirma textualmente: "Uma das razões pelas quais retardou-se por alguns anos a implantação da obra salesiana no Brasil foi a fidelidade às diretrizes romanas. A autoridade da Santa Sé era acatada por Dom Bosco com grande respeito". .

Existem informações de que anteriormente, a convite do governo espanhol no século XVII, também os "jesuítas entraram em contato com os Bororo na região do rio Paraguai" (AGUILERA, 2001, p. 44). De um modo geral, por trás da dedicação dos missionários jesuítas e salesianos também havia um interesse: a conversão dos Bororo ao catolicismo.

De um modo específico, a assim chamada pacificação dos Bororos se efetivou realmente com a ação dos missionários salesianos. Historicamente, esta ação iniciou-se de forma mais independente e sistemática nos Tachos e se consolidou de vez em Meruri. Assim, para uma melhor compreensão da ação da Igreja junto ao povo Bororo, torna-se necessária alguma informação mais detalhada sobre os próprios índios Bororo, os missionários salesianos e Meruri, que são respectivamente os protagonistas e o palco da presente reflexão.

1.1 Os índios Bororo

Originalmente, os índios considerados neste trabalho atribuíram a si mesmos e à sua cultura o nome "Bóe". Mais tarde, os primeiros exploradores, antropólogos e missionários deram-lhes o epônimo de Bororo, devido principalmente à repetição frequente desta palavra em seus cantos (ENAWURÉU, 1987, p. 1). Na verdade, o termo "Bororo" significa o pátio comunitário das cerimônias e danças, "interditado às mulheres e crianças" (ALBISETTI; VENTURELLI, 1962, p. 516), que se localiza diante do Baito. O Baito, por sua vez, é uma casa grande central ou uma espécie de centro social, também vetado às mulheres, onde os homens solteiros moram e os homens casados transcorrem a maior parte do dia. Atualmente, apesar da genuinidade clássica da palavra "Bóe" para denominar este povo, até os próprios índios se autodenominam simplesmente Bororo (ALBISETTI;VENTURELLI, 1962, p. 516; ENAWURÉU, 1987, p. 1). Então, para evitar ambiguidades, adotaremos o epônimo Bororo para nos referirmos aos índios; e adotaremos a palavra "não índios" para nos referirmos aos demais habitantes, que já estavam integrados na sociedade brasileira oficial.

Diferentemente da sociedade civiliza da, a sociedade Bororo é matrilinear. A mulher é a chefe da casa e transmite o nome à sua descendência. Os filhos e filhas, mesmo depois de casados, demonstram maior afinidade afetiva com suas mães do que com os próprios cônjuges. Outra figura de grande respeito na cultura Bororo é o ancião, que é membro permanente do "conselho executivo da aldeia" (BORDIGNON, 2001, p. 48-49). As casas dos índios são construídas em círculo, conservando igual espaço entre uma e outra. Além disso, todas as casas são equidistantes do Baito. Uma linha invisível que vai do ponto leste ao oeste, ou vice-versa, separa a aldeia em duas metades. Na metade do norte os moradores são chamados "Ecerae", enquanto os moradores do sul são denominados "Tugarege". De forma idêntica, tanto os "Ecerae" quanto os "Tugarege" estão divididos em quatro clãs; e cada clã se subdivide em vários subclãs. Os moradores do norte estão ligados aos do sul por vínculos de parentesco e de solidariedade. Isto fica muito claro no casamento e nos funerais. Por exemplo, os moradores do norte só podem se casar com moradores do sul; e os funerais de quem mora numa metade são preparados pelos habitantes da outra metade.

A vida ritual na cultura Bororo é intensa e diuturna. Os ritos propiciam um equilíbrio no relacionamento ecológico e no relacionamento humano, tanto com os vivos quanto com os mortos. Todos os que participam de um ritual são, ao mesmo tempo, "performers" e "respondents" (NOVAES, 1993, p. 233-234), pois nele "cada um tem seu lugar marcado, suas obrigações nas cerimônias, seus adornos, seus nomes e seus cantos" (BORDIGNON, 2001, p. 48). Ocupam um lugar de destaque na vida ritual o xamã dos espíritos e o xamã das almas. O xamã dos espíritos é uma espécie de vidente que orienta, cura, abençoa as pessoas e afugenta o mal. O xamã das almas, embora seja mais discreto que o xamã dos espíritos, é o mais querido, evoca os mortos e preside algumas cerimônias. Apesar da matrilinearidade, as mulheres são excluídas da maioria dos ritos Bororo e nos ritos em que são admitidas, se limitam a cantar. As cerimônias Bororo mais conhecidas são o funeral, a imposição do nome às crianças, a perfuração do lábio inferior e das orelhas, a preparação para a caça e a pesca, a festa do matador e do couro da onça, a festa do milho e do gavião real. Dentre todas, o funeral é a cerimônia mais solene, a mais importante e a maislonga. Pode durar até três meses. É um importante momento de expressão artística, de socialização e de integração cultural dos mais jovens, de perpetuação da memória dos antepassados e, paradoxalmente, de reafirmação da vida.

A maioria dos ritos é celebrada no conjunto formado pela casa grande, o Baito, e seu respectivo pátio, Bororo, que são "o centro da vida cultural dos índios" (ENAWURÉU, 1987, p. 41; AGUILERA, 2001, p. 52).

Os Bororo têm uma sensibilidade artística muito grande. São músicos natos e cultivam uma variedade muito grande de cantos e de ritmos. Seus dons artísticos se revelam também através da beleza, da pluralidade de materiais utilizados e da harmonia de cores de seu artesanato. Seus enfeites adornam não só as pessoas, mas também todos os objetos de uso, e estão presentes com maior vistosidade em todos os momentos importantes da vida tribal (BORDIGNON, 2001, p. 54).

Embora os Bororo sejam um dos povos mais estudados por antropólogos de diferentes partes do mundo (HARTMANN, 1976, p. 180-181)5 5 Seria exaustivo enumerar os muitos trabalhos publicados sobre os Bororo. À guisa de amostragem, cf. Albisetti e Venturelli, 1962, p. 1037-1046; Viertler, 1991, p. 219-221; Novaes, 1986, p. 235-242. , sua origem ainda continua desconhecida. Uma das hipóteses mais citadas sugere que os Bororo tenham vindoda Ásia (ENOGUREU, 2002, p. 14) para o norte brasileiro; e foram descendo "pelos vales dos rios Negro, Amazonas, Madeira, Mamoré e Guaporé" (ALBISETTI; VENTURELLI, 1962, p. 281), até se fixarem numa ampla extensão territorial bem no centro do país. Historiadores estimam que, antes da interferência dos não índios, os Bororo ocupavam uma área ao redor de 40 milhões de hectares (BORDIGNON, 2001, p. 45). Suas terras do lado oeste tocavam a divisa com a Bolívia; do lado leste, alcançavam o Estado de Goiás; ao norte, começavam nas cabeceiras dos rios Cuiabá e Rio das Mortes; e se estendiam para o sul até às cabeceirasdos rios Coxim e Negro (ENAWURÉU, 1987, p. 42). Devido à fartura de espaço, a mobilidade dos Bororo era muito grande. Tal mobilidade ajudava a natureza a se recompor rapidamente nos lugares onde eles se estabeleciam, por curtos períodos, caçando, pescando ou extraindo alguma madeira. No levantamento da situação fundiária Bororo, em 2001, os sobreviventes deste povo estavam confinados em uma área de 140.245 hectares, que é 300 vezes menor que aquela que possuiam antes da chegada dos não índios (BORDIGNON, 2001, p. 45-46). Ironicamente, o artigo 231 § 4º da Constituição Brasileira de 1988 continua afirmando que "as terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis" e que lhes cabe, por direito, "a sua posse permanente".

1.2 Os missionários salesianos

Os salesianos chegaram ao Brasil em 1883 por solicitação do bispo do Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria de Lacerda, após aprovação pessoal do imperador Dom Pedro II. Não vieram para cuidar de índios, mas sim para dedicar-se à educação dos filhos dos não índios. Com efeito, suas quatro primeiras fundações em solo brasileiro foram grandes escolas, em regime de internato (CASTILHO, 2000, p. 28)6 6 Em 1883 fundaram o Colégio Santa Rosa, em Niterói. Em 1885 fundaram o Liceu Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo. Em 1890 fundaram o Colégio São Joaquim, em Lorena. Em 1982 fundaram o Lyceu de Artes e Offícios, em Campinas. . Um fato ocorrido em Roma, em 1893, foi determinante para a ida dos salesianos como missionários dos Bororo. Trata-se da sagração do salesiano Luís Lasagna como "bispo dos índios do Brasil e superior das missões salesianas do Uruguai, Paraguai e Brasil" (CASTILHO, 2000, p. 28). Como superior, Dom Luís Lasagna aceitou o pedido do presidente do Estado de Mato Grosso, Manoel José Murtinho, e assumiu, em 19 de abril de 1895, a Colônia Bororo Teresa Cristina (CASTILHO, 2000, p. 35 e 43). Em 1898, o governo de Mato Grosso dispensou "os serviços dos salesianos, porque os índios haviam se retirado para a floresta" (CASTILHO, 2000, p. 48). Em 18 de janeiro de 1902, os salesianos fundaram uma missão autônoma nos Tachos, a 460 km de Cuiabá, para reiniciar a atividade missionária com os Bororo. Em 1923, a Missão dos Tachos foi transferida para Meruri.

Ao traçar o perfil dos missionários salesianos na ótica dos não índios, tentarei realçar sinteticamente apenas alguns aspectos que me parecem relevantes no contato com os Bororo. Dom Bosco fundou os salesianos sacerdotes e irmãos em 1859; e, em 1872, fundou as irmãs Filhas de Maria Auxiliadora. A finalidade de ambas as Congregações era a educação de meninos e meninas pobres, mais expostos aos perigos da sociedade, visando seu crescimento como honestos cidadãos e bons cristãos. De fato, os salesianos sempre foram reconhecidos vocacionalmente dentro da Igreja como evangelizadores dejovens (SOCIEDADE DE SÃO FRANCISCO DE SALES, 1985, Art. 6). O método educativo usado pelos salesianos era contrário a toda ação repressiva e se baseava na razão, na religião e na bondade (CERIA, 1932, p. 919)7 7 De autoria do próprio Dom Bosco, este método educativo é conhecido como Sistema Preventivo. . A experiência educativa e evangelizadora dos primeiros salesianos era com jovens, prevalentemente em regime de internato. Entre as características dos salesianos, distinguiam-se o zelo apostólico, a fidelidade à Igreja e o respeito às autoridades constituídas. Dom Bosco adotou para suas congregações o lema: da mihi animas, coetera tolle, que significa "dá-me almas, fica com o resto". Este lema traduzia muito bem o interesse prioritário da Igreja de salvar almas e iria nortear toda a ação salesiana, também nas missões indígenas.

Mas, qual era o perfil dos missionários salesianos na ótica dos Bororo? Esta é uma questão difícil de ser abordada. Apesar disso, é uma questão relevante, que pode ser respondida, ao menos de modo fragmentário e suscinto, pelos próprios índios. Assim, apoiando-nos em depoimentos de publicações recentes (CAMARGO, 1987; BORDIGNON, 2001, p. 86-161)8 8 O P. Ochoa dividiu seu trabalho com os depoimentos de Frederico Coqueiro em 30 capítulos, e numerou os parágrafos de cada capítulo de modo sequencial. Assim, para facilitar a localização do texto citado na língua Bororo, citaremos primeiro o capítulo ao qual nos referimos usando o algarismo romano, separado por uma vírgula do número cardinal que indica o parágrafo e o número da página correspondente na versão em português. Por exemplo, a citação IX, par. 5, 338: se refere ao capítulo nono do livro, parágrafo quinto deste capítulo, na página trezentos e trinta e oito que já pertence à versão desta obra em português. Os textos que precedem os capítulos, como Comentário, Apresentação e Introdução serão citados apenas com a indicação da página. , verifiquemos como os Bororo a partir de sua cosmovisão cultural descrevem os missionários.

O ancião Bororo Frederico Coqueiro considera que o missionário mais estimado pelos Bororo era o Irmão João Rocco (CAMARGO, 1987, XXVII, par. 1-5, p. 521-522; par. 33, p. 527), que eles carinhosamente chamam de Mestre. O Mestre Rocco os cativara com sua permanente alegria e pela sua presença amiga e constante entre os índios:

Esse Mestre é bom mesmo. Nenhum Bororo nem branco sabe como este Mestre sabe. Só esse que sabe trabalhar com os Bororo. Ele anima os Bororo, ele anima também os ruins. É muito bom mesmo. [...] Quando trabalhava com os Bororo, o suor lhe corria por todo o corpo. Ele ensinava os Bororo a suar como ele. Os Bororo o procuravam frequentemente para trabalharem com ele. Costumavam ir pescar com ele. Iam com ele pegar manga, iam com ele procurar resina, lá pro lado do Boqueirão. Gostavam de ir passear com ele, porque ele sempre os mantinha alegres. (CAMARGO, 1987, XXVII, par. 24, 26 e 27, p. 525-526).

Quando o Mestre João Rocco faleceu, as irmãs insistiram para Coqueiro cantar para ele como nos funerais Bororo. Coqueiro enche-se de medo e até duvida da sinceridade do convite pois, segundo os próprios Bororo, há muito tempo os missionários haviam proibido os índios de falar a sua língua e de celebrar os funerais no ritual Bororo (CAMARGO, 1987, XXVII, par. 134, p. 554-555). Visto que a maioria dos índios se unem ao pedido das irmãs e insistem para ele cantar, o amor ao Mestre venceu o medo e Coqueiro cantou. O Mestre João Rocco foi o primeiro missionário a receber as honras do Funeral Bororo (CAMARGO, 1987, XXVII, par. 119-132, p. 550-554).

Para Jurandir Irureu, a "aldeia Bororo precisaria dos salesianos. Tem gente contra, mas a maior parte é a favor. Nunca se ouve falar que padre ensina coisa ruim, coisa à toa. Padre está esforçando para aprender o ritual nosso né. Isso é bom!" (BORDIGNON, 2001, p. 104). Emília Aroewabo-Baadojebu afirma:

Se eu sou Bororo sou Bororo. [...] O Bororo de Merúri tem medo de se cortar, de tradição. Ali não está acabado porque os padres está favorecendo, porque se fosse por eles já teria acabado. Antenor Kacereu diz que "padres, mestres (irmãos religiosos), irmãs que atende esses nossos irmãos de Meruri, ficam fora de nossa lei [...]. Depois que o Pe. Falco recolheu nós, dessa aldeia para lá, aí que foi começando a amansar os padres (1965). Parece que Deus tocou na cabeça, na consciência dos padres, das irmãs, dos mestres, então viu que a lei Bororo tem valor. (BORDIGNON, 2001, p. 123 e 126).

Raimundo Purúbi-Kiedu relembra que "antigamente padre não deixava falar Bororo. Fala que é pecado cantar, dançar [...]. Agora não, canta na igreja, canta no cemitério. Não tem nada difícil, nada proibido" (BORDIGNON, 2001, p. 133). Benjamim Tugure Etúo-Iwagudu define o missionário como alguém que "animava, incentivava as danças, os assobios" (BORDIGNON, 2001, p. 146). Lourenço Rondon, atual cacique de Meruri, reconhece que: "os primeiros missionários [...] tinham aquele jeito de exigir e o índio era mais ingênuo e praticava com escrúpulo o que diziam. Mas agora os missionários são diferentes. Acompanha, mas não briga para impor as coisas que quer. Tem mais liberdade, de tudo, de religião. Uma coisa boa do missionário hoje é que dá valor às nossas coisas" (BORDIGNON, 2001, p. 150). De um modo geral, estes depoimentos revelam a percepção dos Bororo a respeito dos missionários, em dois períodos distintos. No primeiro período, eles apontam os limites dos missionários que são vistos como autoritários diante de seus costumes e repressores de sua cultura. No período posterior, eles sublinham a conversão dos missionários à sua cultura. Os salesianos respeitam seus costumes, incentivam os Bororo a preservar sua identidade e se esforçam para se integrarem na cultura Bororo.

1.3 Meruri

A mais original descrição escrita de Meruri encontra-se nas memórias do sábio Bororo, Frederico Coqueiro9 9 O missionário salesiano Mário Bordignon, por carta, apontou-me alguns limites das Memórias de Coqueiro. Em síntese, Bordignon diz que Coqueiro "omite umas questões sérias da cultura bororo tais como: o papel do Bari-pagé para agradar ou afastar o bope - espíritos do mal; o infanticídio por sonho agoureiro, os abortos, os contraceptivos; o joruboveneno; o mori - a vingança. O Coqueiro me confessou, em conversa informal, que várias aldeias, especialmente no Pantanal, acabaram porque os bororo se mataram entre si. Com isso, não quero subestimar a cultura bororo, quero dizer que o missionário encontrou uma cultura com seus lados bons e ruins como toda cultura tem." . Estas memórias foram relatadas ao missionário Gonçalo Alberto Camargo Ochoa, em tom coloquial, através da língua e das características genuínas da cultura Bororo (CAMARGO, 1987, p. 19)10 10 O P. Ochoa publicou os depoimentos de Frederico Coqueiro em Bororo e também em português, com a seguinte ressalva: "Achamos que este texto poderia ser interessante também para as pessoas que desconhecem a língua Bororo, pelo que decidimos transcrevê-lo para o português, mesmo sabendo que isso diminuiria muito o encanto do texto original Bororo". . A antropóloga Renate Brigitte Viertler considera essas memórias um "insólito e precioso" documento onde, surpreendentemente, "Coqueiro deixa transparecer os seus sentimentos, o que confere um colorido muito especial à sua narrativa - a alegria, ao receber um bolo de arroz ou um pacu moqueado; a raiva em conviver com os inimigos Xavante em seu território, pelo que se pinta com carvão nos olhos; o medo de cantar na frente dos missionários após a morte de um mestre salesiano muito amado [...]" (CAMARGO, 1987, p. 17). Além disso, Viertler avalia que a estratégia empregada pelo P. Ochoa para organizar estas memórias junto com o Bororo Frederico Coqueiro "supera em qualidade a já consagrada técnica de pesquisa de campo em Ciências Sociais designada como 'história de vida' " (CAMARGO, 1987, p. 17). Coqueiro seleciona os fatos de acordo como eles afloram em sua memória e adota um estilo linguístico rico em sonoridade, em cores e em metáforas próprias de sua cultura. Assim, nas memórias deste ancião Bororo, Meruri emerge através dos fatos que mais marcaram sua vida, no período de 1946 a 1976.

Frederico Coqueiro nunca estivera antes de 1946 em Meruri. Sabia da existência dos missionários apenas através das lembranças de seus pais, que os mencionavam quando se referiam à antiga Colônia Militar Teresa Cristina. Na realidade, Coqueiro só decide conhecer Meruri aos 31 anos de idade, logo depois da morte de seus pais (CAMARGO, 1987, p. 29). O caminho para Meruri é longo, mas a ansiedade de Coqueiro para chegar lá é ainda maior:

Eu disse: Sim! eu quero ver Meruri! O tempo estava bonito para o lado de Meruri. Oh! Todas as manhãs eu estava com desejo de partir para Meruri. Oh! Depois chegou um branco procedente de Meruri, com carro de boi. Olhei e disse: - Oh! se ele aceitasse! Se eu pudesse ir com ele para ver Meruri! [...] Eu disse: - Eu desejo ir com vocês, será que vocês não vão aceitar? Ele disse: - Sim! Nós queremos. Vai procurar a sua bagagem. Fique pronto. [...] Então eu peguei alegre minha bagagem. Por isso sorri. Fiquei muito contente porque finalmente poderia partir para Meruri. Aí parti. Viajamos de carro de boi. Fomos indo com calma. Eu disse: - Oh! que coisa! os bois não andam! se andassem rápido chegaríamos logo a Meruri. (CAMARGO, 1987, VII, par. 2-3, 6, 9-11, p. 320).

Sem perder o humor e a alegria, Coqueiro vai se deliciando com os sons e a exuberância da fauna e da flora, mas, supersticioso como é, também se assusta diante do canto agourento de aves que evocam os temidos índios Xavante (CAMARGO, 1987, VII, p. 32411 11 Segundo nota esclarecedora n. 14 do P. Ochoa, Coqueiro "Pensa nos Xavante que, ainda não contactados, começam a dar sinal de presença nesses lugares". ; par. 15-19, p. 324-325). A sintonia do Bororo com a natureza aparece transparente nas memórias de Coqueiro. Ele, repetidas vezes, dá a entender que existe até certa cumplicidade de algumas aves com os Bororo, pois elas estão sempre atentas para alertá-los sobre algum perigo iminente: "Oh! os macauãs estavam gritando muito: cauã, cauã, cauã, cauã! Os jivijivi gritavam: jivi jivi jivi jivi jivi jivi jivi! Outras (aves) gritavam: churugu churugu churugu, churugu churugu churugu! Por isso eu fiquei muito assustado" (CAMARGO, 1987, VII, par. 36, p. 326). Observador interessado em novos conhecimentos, Coqueiro vai interrogando seus companheiros de viagem. O Bororo Egídio Iroe Kudu, que se casara com sua irmã Cecília Joware Etaga e mora em Meruri (CAMARGO, 1987, VII, par. 6, p. 331), vai lhe apresentando os lugares da região que podem ser vistos do caminho que interliga Sangradouro a Meruri: "Ei, meu cunhado, olhe Meruri. Você estava desejando vê-lo. Sim! Era mesmo como eu imaginava. Sim! Eu fiquei alegre! Meruri estava para cá. Foi pelas três horas da tarde que eu vi Meruri" (CAMARGO, 1987, VII, par. 48-50, 58-60, p. 328-329).

Chegando em Meruri, em 1946, Coqueiro encontra poucos Bororo. Alguns foram morar à beira do rio das Garças, outros foram para a Mata Azul e outros ainda às margens do rio Barreiro, perto dos Tachos, como a família do respeitado Bororo Tiago Marques, que foi o principal colaborador dos autores da Enciclopédia Bororo12 12 A Enciclopédia utiliza o nome original Bororo Akirío Boróro Kejewu, para se referir a Tiago Marques. (ALBISETTI; VENTURELLI, 1962, p. 0.14-0.17).

Quinze anos após sua fundação, Meruri já não ostenta a vitalidade de seus primórdios. Além do número reduzido dos Bororo, já não há mais abundância de alimentos e o desânimo vai tomando conta de todos. O testemunho do Bororo que dá a Coqueiro as boas-vindas é um retrato desse quadro:

Um homem veio ao meu encontro aqui na descida. Ele disse: - Você chegou? Eu disse: - Eu cheguei. Ele me disse: - Não tem pátio, não tem lugar de espera, à-toa você veio. Você não veio antes, você não chegou antes. Por isso, os Bororo se acabaram. Por isso não tem urucum, resina, penas de arara vermelha, penas de arara amarela, nenhum diadema de penas de biguá e nenhum diadema de pêlos de macaco. Você não vai ver nada disso. Acabou, não tem mais. Tudo ficou limpo para o céu e para a terra. (CAMARGO, 1987, VII, par. 62-63, p. 329).

Em seguida, Coqueiro se encontra com o Pe. César Albisetti12 12 A Enciclopédia utiliza o nome original Bororo Akirío Boróro Kejewu, para se referir a Tiago Marques. (CAMARGO, 1987, VIII, nota 15, p. 329), que é o diretor da missão. Este também não lhe esconde o desânimo e confirma as privações pelas quais estão passando. Contudo, a bondade do P. César, que se revela inicialmente na partilha do pouco alimento que tem, conquista Coqueiro desde o primeiro encontro:

Dirigi-me logo a ele dizendo: - Eu cheguei. Ele disse: - Hum! Eu disse: - Eu vim visitar você. Por isso eu cansei. Para ver você. Aí ele disse: - Hum! Filho, foi à-toa que você cansou para vir a mim. Eu não tenho comida, você vai morrer de fome comigo. Também não tenho coisas, mas pode ficar mesmo à-toa aqui comigo. Disse: - Espere, fique aí um pouco. Eu vou procurar alguma coisa. Foi embora e eu fiquei aí. Depois chegou. Chegou com rapadura, um pouquinho de farinha, um litrinho de arroz, e um pouquinho de carne. E disse: - Filho, eis sua comidinha, cozinhe para você e coma este pouquinho. [...] Ele disse: - Sim! vai comer sua comidinha e descansar. Você está muito cansado. (CAMARGO, 1987, VIII, par. 1-5, p. 330-331).

Coqueiro se lembra de muitos outros fatos em Meruri. Todos estes fatos são narrados deixando transparecer sempre sua alegria espontânea e sua natural religiosidade. Ele descreve o seu cotidiano dividido entre os trabalhos ao ar livre, o escutar do sino para buscar a comida ou ir para a capela. Ele valoriza e elogia sempre o alimento que recebe, principalmente a canjica. Trabalha com dedicação. E muito cedo identifica o Deus dos missionários com o seu Deus Pemo. Esta identificação se revela, por exemplo, nas palavras do Bororo João Garimpeiro: "não se esqueçam do sinal da cruz. São as mesmas palavras, os mesmos pensamentos, as mesmas crenças que os nossos pais falaram para nós. Assim ele nos dizia" (CAMARGO, 1987, XII, par. 70, p. 469).

1.4 Postura crítica do Bororo em Meruri

O temperamento alegre, calmo e respeitoso de Coqueiro não o impede de tomar uma postura crítica diante de alguns posicionamentos dos missionários. Isto se manifesta, por exemplo, nos quatro fatos que exporemos brevemente aqui.

O primeiro fato aconteceu quando um branco acusa os Bororo de terem matado, a flechadas, uma de suas vacas. Visto que as flechas pertenciam a Coqueiro, o padre diretor, sem nenhum diálogo, acusa Coqueiro por uma coisa que ele não fez. Devido a esta acusação, ele decide mudar-se de Meruri. Eis, sucintamente, como Coqueiro descreve este momento:

Ele disse: - Ei, de quem são estas flechas? Qual doido é o dono destas flechas? Nada! O povo só falou: - Ei!... Ei!... Wo!... Aí eu fui lá onde ele estava e disse: - Eis, padre, minhas flechas; essas flechas são minhas. [...] Ele disse: - Ah! eu vou dar um jeito com você. Você é muito ruim, você não tem cabeça. [...] Oh! Aí a minha tristeza chegou ao limite. Por isso resolvi ir embora. Eu avisei-lhes. Fiz discurso para eles dizendo: - Sim! Eu comunico para vocês que vou embora! (CAMARGO, 1987, XIV, par. 105-106, p. 405).

Na realidade, o seu casamento com a Bororo Margarida, radicada em Meruri, fez com que ele desistisse de ir-se embora (CAMARGO, 1987, p. 30).

O segundo fato se refere à proibição dos missionários para a realização do Funeral Bororo em Meruri. Coqueiro, porém, não renuncia a este ritual que é o mais importante na vida e na religião Bororo. Correndo o risco de ser excluído de Meruri por tentar conservar esta tradição cultural, ele vai ser o celebrante de funerais na aldeia do Bororo Tiago Marques, à beira do córrego Fundo (CAMARGO, 1987, X, par. 1-120, p. 346-366).

O terceiro fato aconteceu quando o P. César Albisetti convidou um grupo Bororo de Meruri para ir até Santa Terezinha, à beira do rio das Mortes, para ajudar os salesianos construírem ali um centro missionário para os Xavante (CAMARGO, 1987, p. 31). Coqueiro fez parte deste grupo. Santa Terezinha estava muito longe de Meruri. O grupo, viajando de caminhão, gastou uma noite inteira para ir de Meruri a Nova Xavantina. Empregou mais um dia e uma noite, viajando de barco a motor pelo rio das Mortes, para ir de Nova Xavantina a Santa Terezinha14 14 A real distância entre Santa Terezinha e Nova Xavantina é de 130 km, aproximadamente. . Um dia os Bororo decidiram ir tomar cachaça na venda de um branco, ali perto. Voltaram para casa com algumas garrafas e deram para um dos Xavante beber. O Xavante embriagou-se. Diante deste fato novo para a tribo, os demais Xavante colocaram o embriagado no centro da aldeia para matálo. Com muito custo, os missionários conseguiram evitar que matassem o Xavante embriagado. Diante disso, desconsiderando todo o trabalho que os Bororo estavam fazendo ali, o missionário que os dirigia naquela empreitada os manda de volta para Meruri. Os Bororo ficam revoltados com a atitude primária do missionário. Como protesto contra a raiva e o radicalismo demonstrados pelo missionário, Coqueiro organiza com seus companheiros uma greve de fome e de silêncio no longo caminho de volta para Meruri (CAMARGO, 1987, par. 1-11, p. 481-484).

O quarto fato se refere também aos Xavante, quando eles vieram acampar em Meruri. Coqueiro assim descreve a chegada deles:

Os Xavante estão chegando! É para nós estarmos preparados, que eles vão chegar aqui hoje. Ficamos com medo, mas falaram para não ficarmos com medo, que eles estavam chegando era para se entregar aos Bororo. E que, por isso, não era para ficar com medo. Mas, apesar disso, não era para deixar de ter receio deles, porque nem todos eram bons. Alguns eram bravos. Manoel Davi chegou com a notícia. Então os Bororo ficaram falando muito, se iriam aceitá-los ou não, e onde colocá-los. Aí falaram que não iriam colocá-los aqui na aldeia. (CAMARGO, 1987, XXV, par. 1-2, p. 512).

Os Xavante acabaram sendo colocados ali perto, do outro lado do rio, ao pé do Morro de Meruri. Um dia a roça dos Xavante acidentalmente pegou fogo. Os Xavante encontraram Coqueiro na beira da estrada, acharam que ele fosse o culpado, rodearam-no e quase o mataram. Coqueiro chega enraivecido em Meruri e vai tirar satisfação com o P. Bruno Mariano, que era o diretor nesta época: "Eu disse: - Padre, você fez feio para nós. O senhor mandou Xavante nos matar na estrada. [...] Aí eu fui para casa. Eu estava zangado, querendo matar os Xavante. Eu pus resina no meu rosto, passei carvão nos meus olhos e fiquei aí zangado" (CAMARGO, 1987, XXV, par 11, p. 514). Este incidente e a reação de Coqueiro fizeram com que o P. Bruno trasladasse os Xavante das terras de Meruri para a região de São Marcos. Eis como, desta vez, o missionário encaminhou a questão: "Então o padre chamou todos os homens sabidos (as lideranças Bororo) e disse para eles que era porque aí eles queriam me matar, que ele queria colocá-los longe. [...] Então o P. Bruno perguntou para os Bororo onde ele poderia colocá-los. Então os Bororo disseram que ficassem lá (em São Marcos), que assim eles não viriam aqui" (CAMARGO, 1987, XXV, par. 14-15, p. 515-516). Na resolução desta questão é importante ressaltar três aspectos positivos. O primeiro, é que o missionário se coloca abertamente a favor dos Bororo em suas reivindicações. O segundo aspecto é que o missionário não toma mais a decisão sozinho; ele não somente consulta a opinião dos Bororo, mas também a leva em conta. O terceiro aspecto é o interesse e a união dos Bororo para defender suas terras e a integridade física de seu povo.

2 Alguns aspectos da ação missionária entre os Bororo

A atividade missionária dos salesianos junto ao povo Bororo pode ser considerada sob diferentes pontos de vista. Minha consideração se refere a alguns aspectos que, a meu ver, tiveram uma incidência mais determinante a favor da sobrevivência do povo Bororo. Além disso, os fatos apresentados aqui se referem ao primeiro período desta experiência missionária. Dentre os fatos, existe um que é fundamental e incontestável e dispensa comentários: - os salesianos, depois que se encontraram pela primeira vez com os Bororo, nunca mais os abandonaram.

No final do século XIX, as comunicações orais ou escritas, entre os habitantes e transeuntes das selvas com aqueles dos centros urbanos, ainda eram raras e difíceis de serem efetuadas15 15 As dificuldades de comunicação eram também comuns entre centros urbanos da Província de Mato Grosso e outras cidades do Brasil. O Dr. Luís Philipe P. Leite referiu ao P. João Baptista Duroure um episódio que ilustra bem este problema: "proclamada a República a 15 de novembro de 1889, Cuiabá comemorou em pleno regime republicano, no dia 2 de dezembro, o aniversário do Imperador, já destronado." (DUROURE, 1977, p. 39). Apesar disso, três meses antes do primeiro contato com os Bororo, os salesianos já começaram a divulgar seu futuro trabalho missionário. Procuraram envolver toda a sociedade brasileira nesta obra desafiadora, solicitando apoio material e espiritual de todos os não índios. A carta que Dom Luís Lasagna escreveu à nação em janeiro de 1895 é um testemunho desta prática. Eis o objetivo de Dom Lasagna:

Implorar com a presente carta circular o público concurso para uma empresa muito ardua, e que é importantíssima, não só pelo seu caracter religioso, mas também pela sua natureza summamente humanitaria; uma empreza, em fim, que certamente redundará em grande beneficio e honra de toda a nação brazileira. Refiro-me à conversão e civilização dos pobres indígenas que, como filhos desherdados da familia brasileira [...] esperam ha seculos uma mão benefica que chegue até às profundezas de suas miserias, para levantal-os à dignidade de homens e de christãos, e incorporal-os ao resto da nação. (LASAGNA, 1895, p. 1)

Os missionários também se comunicavam frequentemente com seus superiores e com o governo brasileiro, solicitando-lhes ajuda financeira para o trabalho missionário. A maioria destas cartas oficiais, porém, era para prestar contas do que estavam fazendo junto aos Bororo (MALAN, 1906).

As dimensões racional e afetiva do estilo de evangelizar dos salesianos foram determinantes para que o primeiro encontro dos Bororo com os missionários, na região dos Tachos, não terminasse numa tragédia (COLBACCHINI, 1981). Os missionários encontravam-se fisicamente debilitados, pois trabalharam exaustivamente na construção de choupanas para abrigar-se das intempéries do tempo e da floresta. Ao contrário dos outros não índios, os missionários não tinham presentes vistosos para oferecer aos Bororo. A lembrança dos massacres perpetuados recentemente pelos Bororo afligia o coração dos missionários. Os missionários temiam, com razão, que este primeiro encontro terminasse num massacre. De fato, os índios já tinham decidido matar estes brancos recém-chegados (BORDIGNON, 2001). Tudo isso está muito claro no diário e nas cartas do P. João Bálzola, que estava dirigindo a primeira expedição dos missionários na missão dos Tachos16 16 Carta ao Superior Geral dos Salesianos, P. Miguel Rua, em 5 de Junho de 1902. In: Catholic Readings. São Paulo, 1937, p. 108-109. Eis uma síntese do texto do P. Bálzola: "estamos um pouco abatidos e achamos que seja em consequência de privações e da muita humidade que apanhamos nos quatro meses que dormimos, quasi ao ar livre [...]. Quem pensa nos sanguinolentos massacres que se effectuaram no ano passado entre estes índios e alguns não índios, quem sabe quanta sêde de vingança alimenta o coração de um selvagem e reflecte nas condições que nos achamos [...], poderá facilmente comprehender quanta felicidade tenha sido a nossa de não termos tomado contacto ainda com os selvagens. [...] Há dois ou três dias que vemos do lado do norte fogaréos acesos, claro indício que os índios estão se avisinhando; [...] a fumaça chega até nós... Como será o encontro? [...] a poucas horas de distancia de nós, no ponto mais intrincado da floresta, estavam muitos índios fazendo bacururú, isto é: gritavam, cantavam, dançavam, o que quer dizer: uma orgia selvagem. O encontro era portanto imminente". (BALZOLA, 1937). Contrariando as expectativas mais pessimistas, o primeiro encontro transcorreu de uma forma completamente inesperada. Balzola (1937, p. 110) assim o descreveu:

Um dos nossos começou a gritar: Padre, Padre, ahí estão os índios! Corro para o lado de onde tinha vindo a voz e vejo cinco robustíssimos selvagens, que vinham ao meu encontro vociferando: - Borôro bôa! (Somos bons Borôros)! Não sou capaz de descrever o que experimentei naquele instante. Aproximei-me delles, sorrindo; abracei-os ternamente um depois do outro e tratei-os com todo o carinho. [...] Eu estive sempre ao lado daquelles pobres filhos da floresta: falei-lhes do fim da nossa vinda; assegurei-lhes que, ao nosso lado, não podiam temer ninguém.

Na descrição que o P. Balzola fez deste primeiro encontro com os Bororo transparece a importância do uso da razão e da demonstração de afeto no relacionamento humano. Por um lado, na brevidade desta frase "falei-lhes do fim da nossa vinda" encontra-se sucintamente a dimensão racional do sistema preventivo. De acordo com o pensamento salesiano, o destinatário só se compromete com uma causa quando ele entende claramente a sua razão. Tudo indica que os cinco Bororo entenderam que os missionários não vieram para apoderar-se deles e de suas terras, mas para defendê-los. Por outro lado, de acordo com a descrição do P. Balzola, este primeiro encontro iniciou-se profundamente envolvido pela dimensão afetiva. Primeiramente, o missionário tomou a iniciativa de aproximar-se dos Bororo, expressando alegria pela sua chegada. Em seguida, o missionário abraçou os índios ternamente, criando uma atmosfera de familiaridade. Finalmente, o missionário tratou os Bororo com muita bondade durante todo o tempo que eles permaneceram ali. E assim, diante da razão dada pelo missionário para justificar sua presença na terra Bororo; e diante também da cordialidade que experienciaram naquele encontro, os índios perceberam que os missionários eram diferentes dos outros não índios17 17 Cf. o comentário deste encontro em Catholic Readings. São Paulo, 1937, p. 111. . Consequentemente, os Bororo manifestaram o desejo de se unirem aos missionários para estarem mais seguros na luta pela sua sobrevivência (BALDUS, 1937, p. 113). Na conclusão deste primeiro encontro, o missionário registrou: "Antes de partir, prometeram-me que, depois de duas luas, haveriam de voltar com outros homens, para ajudar-nos a construir choupanas e depois iriam buscar as suas famílias" (BALZOLA, 1937, p. 110-111).

Os missionários já encontraram a dimensão religiosa profundamente presente na cultura Bororo. O ancião Frederico Coqueiro, por exemplo, sem nunca ter conhecido os missionários já conhecia e amava Deus. Coqueiro é um homem naturalmente piedoso e sua vida é toda perpassada pela dimensão religiosa. Seu Deus é Pemo, a quem ele ama. Pemo está sempre presente em sua vida. Pemo é Pai. Eis como Coqueiro se expressa a respeito do seu Deus:

De quem eu gostava era de Pemo (Deus). Em Deus estava o meu pensamento e o meu coração (CAMARGO, 1987, VIII, par. 12, p. 332). [...] Hum! Isto é meu! Obrigado! Pss... que bom! Deus é meu pai, por isso ele vai me dar sorte! (CAMARGO, 1987, VIII, par. 47, p. 327)

Enquanto na Bíblia o povo só descobre o rosto paterno de Deus, através da revelação de Jesus Cristo, Coqueiro sem ter sido catequizado dentro do cristianismo (CAMARGO, 1987, VIII, par. 16-18, p. 332) chama Pemo carinhosamente de Pai. No comentário às memórias de Coqueiro, Afonso de Castro sublinha que "seu conceito e vivência de Deus tem a concretude da linguagem Bororo e a amplitude e imagem do Deus de Jesus Cristo" (CAMARGO, 1987, p. 10). Pemo é um Deus que alegra a vida dos Bororo. Pemo está sempre presente no pensamento e na vida de Coqueiro. Pemo se comunica com os Bororo através de inspirações. Pemo ajuda o Bororo enraivecido a recuperar a paz. Coqueiro atribui a uma inspiração divina sua decisão de partir para a terra de Meruri, empreendendo tão cansativa e arriscada viagem. Pemo lhe prometeu que nesta nova terra ele se encontraria com homens e mulheres, que o iriam orientar para perseverar no bem e permanecer sempre unido a Pemo (CAMARGO, 1987, V, par. 12, p. 320). De um modo geral, os atributos deste Deus Bororo coincidem com os atributos do Deus revelado por Jesus Cristo. Além disso, existe uma certa semelhança no significado de alguns ritos Bororo com ritos cristãos. Um exemplo disso é o rito oficial de introdução de uma criança em sua comunidade. Para os cristãos, a apresentação da criança e a acolhida da comunidade se realizam através do "Ritual do Batismo". De maneira muito similar, a comunidade Bororo acolhe oficialmente suas crianças através do "Ritual da Nominação"18 18 O critério adotado para citar este trabalho bilíngue é o mesmo adotado com as "Memórias de Frederico Coqueiro". Quanto ao Ritual da Nominação, cf. também: Albisetti e Venturelli, Enciclopédia Bororo, v. I, 624-627. Cf. ainda: Ochoa, Meruri na Visão de um Ancião Bororo, XIX, par. 1-8, 430-442. (CAMARGO, 2001, I, par. 34-71, p. 19-31). Por um lado, a dimensão religiosa, já presente na cultura Bororo, facilitou a ação evangelizadora dos missionários na apresentação da religião cristã. Por outro lado, a variedade dos ritos da liturgia católica atraiu a atenção dos Bororo, desde o primeiro contato com os missionários (BALZOLA, 1937, p. 110).

A presença da mulher entre os primeiros missionários salesianos foi de fundamental importância para despertar a confiança dos Bororo. Dom Lasagna ressaltou

[...] a immensa vantagem que resulta de terem os missionários salesianos nessa difficil empreza o apoio e a incomparavel dedicação das irmans de Maria Auxiliadora: Ellas pouparão aos sacerdotes contactos inconvenientes e officios para os quaes seriam pouco aptos. (LASAGNA, 1895, p. 3)

Enquanto Dom Lasagna ressaltava o papel complementar das irmãs no trabalho missionário, os índios viam aquela nova presença feminina mais como uma segurança contra o abuso sexual de suas mulheres (BORDIGNON, 2001, p. 35). Poucos anos atrás, na Colônia Teresa Cristina que estava sob os cuidados dos militares, "índios e soldados viviam em inteira promiscuidade, num ambiente de conflitos, cachaçadas e luxúria, de que os próprios oficiais participavam" (VON DEN STEINEN apud VIETLER, 1990, p. 66)19 19 Cf. também Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 94. . De fato, os brancos que precederam os missionários costumavam negociar os favores sexuais das mulheres Bororo em troca de qualquer roupa ou adornos vistosos vindos da cidade. Existem indícios de que esta prática tenha sido uma constante também no contato com outras tribos. Por exemplo, o médico Marcos Pellegrini, que a serviço do Conselho Indigenista Missionário socorreu algumas vezes os Ianomami de Roraima, relatou que:

Uma índia mais velha lhe fez uma pergunta que à primeira vista, soou estranha: 'Não existe mulher branca?' Depois ele entendeu. Aquelas mulheres só conheciam homens; eram soldados ou garimpeiros, os quais representavam invasão e doenças. Não vinham com suas mulheres e aproveitavam as índias. O sexo, tão natural entre a comunidade, virou produto com valor de troca. (DIMENSTEIN, 1992, p. 84)

É lógico que os Bororo, inicialmente, não tinham a menor idéia sobre a opção de vida celibatária dos missionários. Na verdade, a presença das irmãs no grupo dos missionários, além de tranquilizar os homens Bororo a respeito de suas mulheres, criou também um clima sadio de familiaridade, de respeito e de confiança mútua na missão. Elas rapidamente conquistaram o coração das crianças e a admiração das mulheres, dedicando-se incansavelmente ao trabalho missionário com atividades múltiplas, inclusive indo algumas vezes trabalhar na roça junto com as Bororo (CASTILHO, 2000, p. 77).

O conhecimento da língua Bororo por parte dos missionários foi de fundamental importância, não só no primeiro contato com os índios, mas em todo o processo subsequente de evangelização e promoção humana. Na verdade, nós só conseguimos penetrar profundamente na cultura e na condição humana de um povo por meio do conhecimento de sua língua. Sacks (1989, p. 8) afirma que, quando não conhecemos a língua de um grupo humano, somos excluídos deste grupo, independentemente de nossas boas intenções, empenho ou até mesmo habilidades naturais. Os missionários perceberam que não lhes bastava ter o conhecimento e a prática da mensagem evangélica; para que esta mensagem pudesse tocar o coração da cultura Bororo, eles precisavam também comunicá-la através da própria língua dos índios. Alguns salesianos aprenderam a língua Bororo antes mesmo do primeiro contato com os índios. Porém, a maioria dos missionários aprenderam a falar Bororo através da convivência diária com os índios nas missões (NOVAES, 1993, p. 143). De um modo geral, os missionários não somente aprenderam a língua dos índios em nível de comunicação oral para seu uso imediato no cotidiano, mas também aprofundaram seu estudo em nível científico. Uma prova disto é a variedade de publicações que os missionários fizeram para documentar a língua e valorizar a cultura Bororo20 20 A título de exemplificação, o P. José Pessina, no contato direto com os índios, pesquisou "os sons, as palavras, o significado" e publicou em 1908 o livro intitulado: "Elementos de Gramática e Dicionário da Língua dos Bororo-Coroados de Mato Grosso". O P. Antonio Colbacchini aprofundou o estudo dos costumes Bororo e publicou vários livros nesta área: Grammatica dei Bororos-Orarimugudoge (sem data); A Tribu dos Bororo (1919); I Bororo Orientali "Orarimugudoge" del Mato Grosso (1925); À Luz do Cruzeiro do Sul. Os Índios Borôros-Orari do Planalto Oriental de Mato Grosso e a Missão Salesiana (1939); e em co-autoria com o P. César Albisetti, a obra: Os Bororo Orientais Orarimogodógue do Planalto Oriental de Mato Grosso (1942). . Dentre estas publicações, merece destaque a Enciclopédia Bororo, em três volumes, de autoria dossalesianos P. César Albisetti e P. Ângelo Jayme Venturelli21 21 "De poucos grupos indígenas do Brasil possuímos descrições etnográficas bastante completas para um conhecimento satisfatório das respectivas culturas tribais. Entre as exceções estão os Bororo, a cujo estudo se vêm dedicando há mais de meio século os Padres Salesianos. [...] A transcrição dos textos, feita com o devido rigor, acompanhada de cuidadosa tradução e enriquecida com notas explicativas, testemunha bem a atitude científica dos autores desta obra, que será acolhida pelos especialistas como documento fidedigno": Egon Shasen, Apresentação in César Albisetti and Ângelo Jayme Venturelli, Enciclopédia Bororo, v. II, Lendas e Antropônimos (Campo Grande: Museu Regional Dom Bosco, 1969). . O grande mérito e valor científico da Enciclopédia Bororo reside na descoberta da estrutura da língua e de seu valor na vida do povo Bororo22 22 Esta afirmação reflete o parecer oral que colhi, recentemente, do coautor da Enciclopédia Bororo, o P. Ângelo Jayme Venturelli. .

Os salesianos perceberam que, ao lado da valorização da língua e preservação da cultura Bororo, a defesa da terra também era essencial para a sobrevivência do índio. Embora até o início do século XVIII os Bororo possuíssem um território de 400.000 km2, suficientes para atender às necessidades de sua vida nômade, na metade do século XX eles já tinham perdido quase a totalidade de suas terras (CAMARGO, 1987, p. 21). Quando os missionários fundaram a missão dos Tachos, muitas fazendas de não índios já tinham se multiplicado e intensificado também os conflitos pela posse da terra Bororo. Duroure (1977, p. 199) documentou o círculo de violência ao redor desta questão:

[...] o bororo, dono legítimo e secular das terras, necessita delas para a sua vida nômade: caça, pesca, colheita; o não índio, criador de gado bovino, invade o terreno; o índio espanta o gado, mata e come as rezes; o não índio reage, mata o índio a bala e veneno; por sua vez, o índio reage e mata o invasor.

Na fundação da missão dos Tachos, o P. Malan "percebeu que sem terras não se poderia realizar um trabalho constante e progressivo de adaptação cultural dos índios" (CASTILHO, 2000, p. 70). Devido a isso, em 1905, os salesianos compraram duas áreas de terra na região do Boqueirão e do Barreiro de Cima. "Mais tarde, estes lotes foram incorporados na reserva indígena dos bororo" (CASTILHO, 2000, p. 70)23 23 Cf. também o "Despacho da Presidência do Estado de Mato Grosso, Cuiabá 7/11/1905, no Livro número 7 de Títulos e Domínios, Folhas 174 e 176". . Foi por intermédio dos missionários que os Bororo descobriram a importância de assegurarem a posse de suas terras, reivindicando a legalização das mesmas junto ao governo, por decreto oficial (CASTILHO, 2000, p. 71). Com o aumento e a frequência cada vez maior das invasões do território Bororo, os missionários aumentaram na mesma proporção seu compromisso e sua luta junto com os índios para a defesa de suas terras. Esta luta culminou em 1976 com o assassinato do missionário alemão P. Rodolfo Lunkenbein e do Bororo Simão (VIETLER, 1990, p. 106). Diante da repercussão nacional e da pressão internacional deste evento, o governo brasileiro demarcou oficialmente 82.301 hectares para os índios de Meruri24 24 Cf. os Decretos Oficiais do Governo Federal: "Decreto 76.999/76 de Demarcação" e "Decreto 94014/87 de Homologação". . Esta é a maior área homologada oficialmente para o povo Bororo até agora.

O trabalho missionário dos salesianos foi inapropriadamente definido como catequese. O conceito de catequese vigente na Igreja, quando os salesianos se encontraram com os Bororo pela primeira vez, consistia na transmissão da doutrina cristã através do método da memorização (PIO X, 1905). Os salesianos nunca se limitaram a dar catequese aos Bororo, no sentido estrito desta palavra. Desde o início, o trabalho missionário dos salesianos junto ao povo Bororo foi sempre desenvolvido numa linha de evangelização e de promoção humana. Com efeito, as próprias orientações que os salesianos recebiam do superior geral P. Miguel Rua, primeiro sucessor de Dom Bosco, eram direcionadas mais para a promoção humana: cuidar da higiene e da saúde dos índios; impedir o infanticídio entre eles; dedicar-se à sua alfabetização e formação cristã; implementar o artesanato têxtil; e, na atual forma menos nômade da vida Bororo, qualificar os índios no manuseio de máquinas agrícolas para garantir sua autossustentação25 25 Cartas do P. Miguel Rua ao Diretor da Missão entre os Bororo in Antonio da Silva Ferreira, La missione fra gli indigeni del Mato Grosso. Lettere di Don Michele Rua 1892-1909, Publicação da Piccola Biblioteca dell'Istituto Storico Salesiano, Roma: Ed. LAS, 2000, p. 1-130. Cf. também CASTILHO, 2000, p. 77-78. . O fato de os salesianos não terem reduzido sua atividade missionária à catequese em sentido estrito, não significa que eles colocaram em segundo plano a preocupação com o aspecto religioso propriamente dito. O objetivo fundamental de toda atividade evangelizadora dos salesianos era formar honestos cidadãos e bons cristãos. Eles procuraram sempre manter um equilíbrio entre a educação cívica e a educação religiosa. A metodologia empregada para a consecução deste fim se opunha ao uso de qualquer tipo de ação repressiva. Ao contrário, a metodologia salesiana era preventiva e se caracterizava por três dimensões fundamentais e simultâneas: a dimensão racional, a dimensão religiosa e a dimensão afetiva. O próprio Dom Bosco entregou esta metodologia preventiva aos salesianos, para ser usada em sua práxis educativa e evangelizadora, sublinhando a importância de suas dimensões: "este sistema baseia-se inteiramente na razão, na religião e na bondade" (CERIA, 1932, p. 919). Em síntese, esta metodologia apela para as riquezas da inteligência, do amor e do desejo de Deus, que cada pessoa possui no íntimo de seu ser (SO-CIEDADE DE SÃO FRANCISCO DE SALES, 1985, art. 38).

O ideal missionário e o ardor apostólico foram os fatores que mais contribuíram para que os salesianos perseverassem em sua presença e ação entre os Bororo. O ideal missionário levou os salesianos a vislumbrar, para além dos limites e das dificuldades do tempo presente, uma "terra sem males"26 26 O mito da "terra sem males" é próprio do povo Guarani. No imaginário desses índios, a "terra sem males" é um lugar paradisíaco, onde "as plantas nascem por si próprias, a mandioca já vem transformada em farinha e a caça chega morta aos pés dos caçadores. As pessoas nesse lugar não envelhecem e nem morrem e aí não há sofrimento": Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Fraternidade e Povos Indígenas - Por uma Terra sem Males. Campanha da Fraternidade 2002. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 2002, n. 19, p. 12. para os Bororo. O ardor apostólico, por sua vez, alimentou o ideal missionário no cotidiano através de uma mística específica e de um trabalho incansável. Estes dois fatores foram o diferencial entre a ação missionária dos salesianos e a ação de outros grupos de não índios, na história do contato com os Bororo. Nas memórias biográficas de Dom Bosco havia sempre um sonho por trás das grandes decisões de sua vida. Maria Augusta de Castilho descreve sucintamente um sonho de Dom Bosco

[...] com uma região selvagem, plana, inculta, na qual não se viam colinas nem montes, mas homens nus de estatura extraordinária e feroz. [...] Desse momento em diante, Dom Bosco procurou saber mais sobre a região missionária da América do Sul. (CASTILHO, 2000, p. 24-25).

O ideal missionário sempre esteve presente nos sonhos e no horizonte de Dom Bosco, embora ele tenha fundado e qualificado os salesianos para serem prioritariamente educadores e evangelizadores de jovens. Consequentemente, os salesianos que entraram em contato com os Bororo pela primeira vez não tinham formação missionária específica. Eles se tornaram missionários através da convivência e do aprendizado prático com os próprios Bororo.

3 Os Bororo de Meruri decidem morrer

A indiferença e a morosidade na solução do problema da Reserva de Meruri levaram os Bororo, em anos anteriores, a um desânimo coletivo. Além da questão da terra, outros fatores já vinham interferindo na preservação de sua cultura e na sua subsistência. Aos poucos, foi se tornando mais nítida para os próprios índios a falta de perspectiva para uma sobrevivência digna, como povo etnicamente diferenciado. A partir daí constata-se uma sensível queda no índice de natalidade em Meruri. Há indícios de que, por trás da escassez de novos nascimentos, havia a intenção deliberada dos Bororo de um autoextermínio gradativo.

Embora nunca tenha sido feito um estudo aprofundado sobre a decisão dos Bororo de exterminar-se como povo, alguns estudiosos comprometidos com a pesquisa deste grupo indígena já fizeram acenos explícitos sobre esta questão. Referindo-se às formas de resistência dos índios às vicissitudes sofridas neste século, Mário Bordignon27 27 O missionário salesiano Irmão Mário Bordignon também viveu por 13 anos consecutivos com os Bororo de Meruri. Continua ligado a eles. O povo Bororo introduziu-o na tribo concedendo-lhe o nome de ENAWURÉU. Publicou vários livros. Dentre eles merecem destaque: Róia e Baile: mudança cultural Bororo (2001); BOE ENOGIEGIDAE BAREGE EIE: texto escolar de zoologia segundo a cultura Bororo (1988); Os Bororo na história do Centro-Oeste brasileiro (1986). afirmou: "Na década de 50 e 60, seja na área dos missionários salesianos, seja na do S. P. I. - FUNAI, os Bororo queriam acabar e não ter mais filhos" (BORDIGNON, 2001, p. 72). Vietler28 28 Renate Brigitte Vietler é antropóloga especializada na área da Etnologia Indígena, professora aposentada da Universidade de São Paulo. Entre suas publicações sobre os Bororo, destacam-se: A refeição das almas: uma interpretação etnológica do funeral dos índios Bororo - Mato Grosso (1991); A duras penas: um histórico das relações entre índios Bororo e "civilizados" no Mato Grosso (1990); As aldeias Bororo: alguns aspectos de sua organização social (1976). também confirmou uma redução drástica dos Bororo no ano de 1967: "a população Bororo de Meruri esteve sujeita a fortes oscilações, entre um máximo de 217 Bororo em 1905, jamais recuperado, e um mínimo de 81, em 1967" (VIETLER, 1990, p. 139). Novaes29 29 Sylvia Caiuby Novaes é antropóloga especializada em Etnologia Indígena e Antropologia da Imagem. Além de Professora de Antropologia, é tambem Chefe do Departamento de Antropologia e Professora de Antropologia na Universidade de São Paulo. Entre suas publicações sobre os Bororo, merecem destaque: Jogo de espelhos: imagens da representação de si através dos outros (1993); Mulheres, homens e heróis: dinâmica e permanência através do cotidiano da vida Bororo (1986). detectou uma diminuição de informações a respeito dos Bororo neste período:

São relativamente muito mais abundantes as informações sobre o que ocorre entre 1890-1945, quase inexistentes os dados disponíveis para o período que vai de 1945 a 1970. (NOVAES, 1993, p. 143-144)

Referindo-se à experiência sofrida pelos Bororo na metade do século XX, quando eles estavam perdendo todas as suas terras, Gonçalo Alberto Ochoa Camargo30 30 O missionário salesiano P. Gonçalo Alberto Ochoa Camargo vive, há mais de quarenta anos, com os Bororo de Meruri. Fala fluentemente a língua Bororo. No campo da antropologia, em tempos recentes, foi quem melhor documentou elementos da cultura Bororo trabalhando junto com os anciãos da tribo. Entre suas publicações destacam-se: Meruri na visão de um ancião Bororo: memórias de Frederico Coqueiro (2001); O processo evolutivo da pessoa Bororo (2001); BAKARU MAIWU: Novo Testamento em Língua Bororo (1992); História mítica Bororo (1990). afirmou textualmente:

Foi um momento em que os Bororo estavam querendo se auto-extinguir. Com efeito, os levantamentos acusam um vazio populacional durante as décadas de 1940 a 1970. (CAMARGO, 2001, p. 11)

O vazio populacional dos Bororo coincide também com o vazio de documentação da vida deles por parte dos salesianos. Diante da crescente diminuição demográfica dos Bororo, teriam os salesianos também desanimado e considerado sua sobrevivência uma causa perdida? O que estava realmente por trás da decisão dos Bororo de "se autoextinguir" ou de se "acabar e não ter mais filhos"? Que outras vicissitudes, além do fato de estarem perdendo as suas terras, estariam por trás deste fato? Era o extermínio algo inédito na vida dos Bororo, ou apenas a reedição de experiências anteriores? Uma resposta adequada a cada uma dessas questões exige um estudo bem mais extensivo do que o presente trabalho. Em todo caso, tentaremos nos debruçar brevemente sobre cada uma delas. Constatamos, como ponto de partida, que embora os Bororo nunca tenham tido a experiência de desaparecimento coletivo como etnia, o extermínio já tinha sido uma ameaça real também para eles, no início do século XX.

O extermínio não só dos Bororo, mas de todos os índios do Brasil, já estava por ser decretado, desde 1908, pelo Presidente da República Afonso Pena, com ampla aprovação da sociedade burguesa, inclusive do antropólogo e diretor do Museu Paulista, Herman Von Ihering31 31 Herman Von Ihering publicou, na Revista de Antropologia em 1907, um artigo em que sustentava a posição de que os índios "são um impecilho para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não há outro meio de que se possa lançar mão senão o seu extermínio": cf. CASTILHO, 2000, p. 88. . A motivação principal do governo para promulgar tal decreto era, entre outras, a resistência dos índios para abandonar seus costumes e integrar-se na sociedade brasileira. Neste mesmo ano de 1908, a figura carismática do P. Malan encontrou uma forma original para reverter a opinião brasileira a respeito dos índios, valendo-se da aptidão musical dos Bororo. O missionário levou os 21 Bororo integrantes da banda musical para tocar diante do Presidente Afonso Pena, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Na ocasião, os Bororo executaram com perfeição temas clássicos, inclusive o Hino Nacional Brasileiro. Os jornais da época exaltaram as capacidades artísticas dos Bororo e noticiaram também o discurso revolucionário do P. Malan, pedindo a restituição aos índios

[...] de uma patria que lhes foi roubada em nome de uma falsa civilização conquistadora, liberticida. Patria, senhores, de que são elles os verdadeiros donos, e que saberão amar, defender e illustrar, se isto lhes ensinarmos com o nosso esforço e nosso exemplo. (NOVAES, 1993, p. 171)31 31 Herman Von Ihering publicou, na Revista de Antropologia em 1907, um artigo em que sustentava a posição de que os índios "são um impecilho para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não há outro meio de que se possa lançar mão senão o seu extermínio": cf. CASTILHO, 2000, p. 88.

A ação corajosa do P. Malan no Rio de Janeiro foi determinante para a sobrevivência dos índios. Depois disso, o debate sobre o extermínio dos índios, em nível nacional e internacional32 32 Cf. também Castilho, 2000, nota 20, p. 66. , foi perdendo sua força, e seu respectivo decreto nunca foi promulgado.

O suposto auto extermínio dos Bororo (CAMARGO, 1987, XXVIII, nota 146, p. 569) parece não ter sido uma reação apenas à perda de suas terras. No contexto da experiência missionária, mesmo antes do período que vai de 1940 a 1970, os Bororo já vinham reagindo às interferências em seus costumes, de maneira diversificada. Assim, a redução dos nascimentos Bororo seria a resultante do somatório de fatos negativos do passado com experiências contraditórias do presente. Limito-me aqui a citar alguns fatos que, a meu ver, provocaram juntos a reação culminante do desânimo coletivo dos Bororo perante a vida.

O primeiro fato está ligado à falta de prudência e de comprometimento missionário com a causa do índio. Quando o P. Balzola teve que se ausentar da Colônia Teresa Cristina, por três meses, substituiu-o,na direção, o inexperiente P. Ângelo Cavatorta. Por mais de dois anos, os salesianos tinham se esforçado para promover os índios em todos os sentidos. Os Bororo seguiam com docilidade às orientações receidas, esforçando-se na dedicação à agricultura e aos estudos, porque se sentiam aceitos e amados pelos missionários (CASTILHO, 2000, P. 45). O P. Cavatorta, logo que chegou, trocou inexplicavelmente o sistema vigente: colocou soldados armados escoltando os índios nas roças, proibiu a celebração ritual do funeral Bororo e humilhou publicamente um dos chefes Bororo mais estimado. Os Bororo se recusaram a seguir o novo sistema. O diretor substituto, demonstrando certa rejeição aos índios, afirmou que eles não faziam nenhuma falta para os missionários (DUROURE, 1977, p. 136-137). Os índios, ressentidos, resistiram a este tipo de autoritarismo, abandonando a Colônia e embrenhando-se na mata virgem. Diante do desaparecimento em massa dos índios, o governo dispensou os salesianos e fechou a Colônia Teresa Cristina34 34 A Colônia Teresa Cristina foi fechada para a ação dos salesianos. De acordo com depoimento por carta do missionário salesiano Mário Bordignon, o governo montou nesta Colônia um enorme galpão com várias máquinas movidas a vapor e forçou, por muitos anos, alguns Bororo a trabalharem ali sob o comando severo do S. P. I. . Este incidente ficou profundamente gravado na memória dos anciãos Bororo.

Quando os salesianos assumiram sua primeira atividade autônoma junto aos Bororo, nos Tachos, em 1902, eles procuraram se adaptar à vida dos índios. Os missionários descobriram a importância que os rituais tinham para os Bororo e lhes deram liberdade para agir de acordo com os seus costumes (BORDIGNON, 2001, P. 39; NOVAES, 1993, p. 160). Em 1907, o P. Balzola foi substituído na direção dos Tachos pelo P. Colbacchini. Com o passar do tempo, o P. Colbacchini foi assimilando a estranha obsessão de que o Baito era um templo do demônio, que deveria ser destruído. Como já descrevemos, o Baito era o lugar onde se realizavam os mais importantes rituais da tribo, como centro ou "foco de toda a vida política tradicional" do povo Bororo (AGUILERA, 2001, p. 48-49). O posicionamento do P. Colbacchini contrastava, abertamente, com orientações já dadas pelo superior geral dos salesianos: "Quanto a certos costumes que estes índios têm, principalmente ao redor de seus mortos, procurai não desprezá-los"35 35 "Quanto a certi usi che hanno codesti selvaggi, specialmente in torno ai loro morti, procurate di non disprezzarli." Giovanni Balzola, Fra gli Indi del Brasile. Note Autobiografiche e Testimonianze Raccolte da D. A. Cojazzi. Torino: Società Editrice Internazionale, 1932, p. 120. . O provincial de Mato Grosso na época, P. Malan, também reconhecia a centralidade do Baito na vida social e política dos Bororo: "o baito era ao mesmo tempo igreja, assembléia câmara, república, quartel, officina, refeitório, dormitório, recreio. Ahi officiam os baires, as cerimônias" (CASTILHO36 36 Referindo-se a um relatório do próprio P. Antonio Malan, intitulado "Das Nossas Missões", publicado pelo Boletim Salesiano em outubro de 1909, p. 257-259. , 2000, p. 45). O que parece mais intrigante na atitude do P. Colbacchini é que ele demonstrava conhecer muito bem a importância do Baito para os Bororo:

[...] parecia-nos impossível imaginar uma aldeia dos índios sem esta cabana central; e achávamos mais fácil que eles abandonem a missão do que este seu inviolável recinto"36 36 Referindo-se a um relatório do próprio P. Antonio Malan, intitulado "Das Nossas Missões", publicado pelo Boletim Salesiano em outubro de 1909, p. 257-259. .

Apesar de tudo isso, em 1914, o P. Colbacchini mandou destruir o Baito, batizou as famílias Bororo consideradas ainda pagãs e mandou erguer uma grande cruz no lugar do Baito, como sinal do "triunfo de Cristo sobre o demônio" (CASTILHO, 2000, p. 96). Este foi o primeiro golpe de grande vulto e repercussão na cultura Bororo, porque lhe atingiu o próprio âmago. Como resistência, os Bororo passaram a celebrar os ritos realizados no Baito de maneira clandestina. Referindo-se a esta resistência, o ancião Frederico Coqueiro relembra: "Quando os Bororo queriam cantar, iam de noite fora da aldeia com as coisas. Ou as roupas de seus finados" (CAMARGO, 1987, XXVII, par. 134, p. 555). O quinquagenário Bororo Raimundo Purúbi-Kiedu confirma: "antigamente o pessoal cantava no mato né, onde padre e irmã não escuta" (BORDIGNON, 2001, p. 133).

A presença dos não índios foi se multiplicando rapidamente nas proximidades e até mesmo dentro das terras dos Bororo. Em 1902, registravam-se aí 409 brancos, enquanto em 1923, este número já havia saltado para 11.247, aproximadamente (NOVAES, 1993, p. 185). Até 1970, muitíssimos outros brancos, pequenos ou grandes fazendeiros, chegaram à região de Meruri. Dentre eles, vários começaram a invadir a reserva dos Bororo com a cumplicidade do Estado, que lhes fornecia títulos legais de terra na propriedade indígena (ENAWURÉU, 1987, p. 36). Diante da invasão sistemática das terras de Meruri com o suporte governamental, as reivindicações dos Bororo e dos missionários para preservação do território indígena foram sendo completamente ignoradas. Tornava-se cada vez mais patente que a reserva de Meruri estava com seus dias contados. O crescente número de invasões e o descaso do governo foram criando um sentimento de desânimo coletivo entre os Bororo. Na verdade, a terra é essencial para sua sobrevivência. Tirar a terra do índio significa condená-lo à morte.

A população branca foi fundando também povoados, cada vez mais perto da missão de Meruri38 38 Mário Bordignon confirmou-me por carta que: "a presença do branco foi crescendo sistematicamente ao ponto de querer se transformar em cidade em 1960, com o nome de Brunópolis. Repetindo a história do surgimento das cidades do Brasil, havia correio, escola, polícia, igreja, pensão que era uma zona onde as meretrizes eram as bororas. O Pe. Paulo Mohr acabou com ela. Com o aumento dos brancos os bororo foram progressivamente diminuindo até que o Pe. Falco, antes de tomar posse, resolveu limpar a área, em 1966". . A estrutura urbana dessas vilas incluía a construção de capelas que, dominicalmente, demandavam o atendimento pastoral dos não índios. Visto que os salesianos são por natureza educadores de jovens, junto com os cuidados pastorais eles se interessaram também pela alfabetização dos filhos dos não índios, que se encontravam excluídos da educação formal. Os missionários, não podendo se ausentar sistematicamente de Meruri para assumir uma escola num desses povoados, introduziram um internato dentro da missão para atender, conjuntamente, os filhos dos índios e os filhos dos não índios. O regime de internato, porém, era completamente estranho à cultura Bororo, pois interferia diretamente na estrutura familiar do índio, "separando pais e filhos" (NOVAES, 1993, p. 182). O internato também afetava profundamente a língua Bororo, pois, desde 1757, os governos brasileiros promulgaram decretos exigindo que o ensino formal nas escolas fosse ministrado exclusivamente na língua portuguesa39 39 A primeira lei sobre a obrigatoriedade da língua portuguesa nas escolas foi promulgada pelo Marquês de Pombal em 1757. Ao publicar esta lei, o Marquês de Pombal faz a seguinte afirmação: "Procura subjugar, através da língua, os povos indígenas e africanos, livrando-os da barbaridade de seus costumes." Na Constituição de 1934, no Governo de Getúlio Vargas, é introduzido um capítulo específico para a educação, na alínea d do § Único do Artigo 150, que determina que o ensino seja ministrado em idioma pátrio. Em 20 de dezembro de 1961, é promulgada A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 4 024/61, a qual estabelece no Título VI - Da Educação do Grau Primário, Capítulo II - Do Ensino Primário, Art. 27 que "O ensino primário é obrigatório a partir dos sete anos e só será ministrado na língua nacional [...]": FAULSTICH, Edenilde, Planificação linguística e problemas de normalização, [s.d.]. Disponível em: < http://www.oslo.sintef.no/portug/Faulstich.html>. Acesso em: 31 jul. 2002. . Consequentemente, a língua portuguesa passou a ser obrigatória no internato, enquanto a língua Bororo passou a ser proibida. Os índios não conseguiram entender que a proibição da língua Bororo na escola fosse imposta pelo governo. Pelo contrário, os Bororo interpretaram que tal proibição tivesse sido exclusiva decisão do P. César Albisetti, que era o diretor da missão. O P. Ochoa, referindo-se a esta questão, relatou:

Os alunos que viveram esta experiência, transmitiram a seus filhos a idéia de que os missionários não gostavam da língua Bororo, e desmotivaram-nos para aprendê-la [...]. (CAMARGO, 1987, XXVII, nota132, p. 555).

Na verdade, perder a língua significa perder os mitos, "que são o referencial mais importante da cultura Bororo" (BORDIGNON, 2001, p. 63). Destruindo-se o mito se destrói a capacidade do índio de conhecer e de transmitir sua história e sua cultura. O mito é verdadeiramente o instrumento que permite ao Bororo fazer uma releitura do seu passado, interpretar sua vida presente e projetar-se para o futuro. Aos poucos, diante não só da proibição da língua Bororo no internato, mas também da proibição de alguns de seus rituais no centro da aldeia, os índios chegaram a pensar que os missionários estavam contra sua cultura40 40 O Bororo Benjamim Tugure Etúo, que fala muito bem tanto o Bororo quanto o português e é neto do famoso Tiago Aipoboreu, referindo-se à cultura Bororo em Meruri neste período, relatou no seu depoimento: "Aconteceram várias mudanças neste ponto, especialmente pelos missionários. Antigamente não podia cantar BAKORORÓ aqui na missão": BORDIGNON, 2001, p. 146. .

A presença dos índios Xavante, inimigos tradicionais dos Bororo, foi controvertida em Meruri. Em 1957, os Xavante chegaram em um grupo muito numeroso. Estavam fracos e famintos e não tinham para onde ir. Diante da situação deles e do pedido dos missionários, os Bororo permitiram que os Xavante ficassem em Meruri (CAMARGO, 1987, p. 32). Muito cedo, porém, recomeçaram os conflitos entre os Bororo e os Xavante. Isso ficou claro quando os Xavante ameaçaram matar o Bororo Frederico Coqueiro, como já descrevemos. Os Bororo e os missionários decidiram então transferir os Xavante para a região de São Marcos, onde tudo estava por construir: a casa para os missionários, as choupanas e roças para os índios. Os Xavante começaram a preparar o terreno para suas roças. Inicialmente, enquanto as roças Xavante ainda não produziam nada, os missionários e os Bororo redobraram seus trabalhos nas roças de Meruri para mandar alimentos para os Xavante, em São Marcos. Além disso, os Bororo também foram convocados para construir as casas na nova aldeia dos Xavante. Enquanto isso, os Xavante se dedicavam exclusivamente às suas roças. No desabafo de Frederico Coqueiro aparece nítido o paternalismo em relação aos recém-chegados:

Os Bororo não deixaram os Xavante preocupar-se pela comida. [...] Assim, todo dia de domingo, Mestre mandava o caminhão com comida para eles. [...] Eles podiam plantar o que queriam à vontade e aumentar a vontade e com gosto, a roça. [...] Por isso estes diziam que aqueles lá sim trabalhavam, mas os de Meruri não trabalhavam. (CAMARGO, 1987, XXV, par. 17, p. 517).

Esta última frase traduz muito bem o preconceito que se criou na comparação das duas etnias, classificando os Bororo de "preguiçosos" e os Xavante de "trabalhadores". Nesta mesma linha, outras imagens foram usadas para sublinhar uma aparente inferioridade dos Bororo. Estes eram apelidados de "beberrões", de "índios mansos", ou de "pobres coitados" (NOVAES, 1993, p. 111-122). O fato de os missionários terem intensificado esforços para contatar os Xavante, implantando para eles, em 1950, a missão de Santa Terezinha e, a partir de 1957, a missão de São Marcos, explica em parte a diminuição de informações escritas sobre os Bororo de Meruri, neste período, como observa Novaes (1993, p. 143-144).

O problema do alcoolismo generalizado e de epidemias, como a tuberculose e o sarampo, exterminaram a maioria dos Bororo de Jarudori41 41 O avanço sistemático da tuberculose, em todas as aldeias, chegou a ameaçar o desaparecimento em massa dos Bororo, nas décadas de 50 e 60. (CAMARGO, 1987, XXVIII, nota 172, p. 567). Em Meruri, o grande problema não eram as epidemais42 42 Os salesianos sempre envolveram voluntários leigos na sua ação missionária entre os Bororo. O Dr. Geraldo Chaves Salomon, médico especialista da Universidade de São Paulo, trabalhou gratuita e ininterruptamente por onze anos em Meruri para erradicar a tuberculose. O Dr. Geraldo e sua esposa Esther "todos os anos durante os meses de julho, dezembro e janeiro, deslocavam-se para as Missões Salesianas de MT, trazendo todo o material de que precisavam para seu trabalho, inclusive os remédios para tratamento das pessoas afetadas pela doença e material para radiografia": Ochoa, Meruri na Visão de um Ancião Bororo, XXVIII, nota 143, 570. Entre outros leigos, merece uma referência especial a voluntária Agripina Xavier, que chegou à missão de Meruri, em 1939. Ela é notável por sua bondade entre os Bororo. Agripina já comemorou 73 anos de idade e 62 de permanência em Meruri, como voluntária leiga: cf. OCHOA, 1987, XXVII, nota 114, p. 523. , mas sim o alcoolismo, que vitimava um número cada vez maior de índios Bororo, provocando brigas e ociosidade. A incapacidade de superar a dependência do álcool contribuiu para aumentar ainda mais o desânimo coletivo.

De um modo geral, por trás da maioria desses fatos, existia sempre uma resistência ostensiva, ou velada. A reação dos Bororo diante de experiências de injustiça, reais ou supostas, se manifestava de diferentes formas. Por exemplo, diante da atitude severa do substituto do P. Bálzola, que menospreza seus valores culturais, os Bororo reagem indo embora e provocando o fechamento da Colônia Teresa Cristina. Diante da proibição da celebração de seus rituais próprios, os Bororo reagem celebrando-os clandestinamente. Diante da proibição de seus filhos falarem a língua Bororo na escola para favorecer a presença dos filhos dos não índios na missão, os Bororo reagem entregando-se ao abuso do álcool e à ociosidade, como formas de chamar a atenção dos missionários para se preocuparem mais com eles. Normalmente, os Bororo são de índole profundamente sensível. Quando se sentem preteridos pelas pessoas de quem esperam estima e compreensão, eles se sentem humilhados e reagem com algum tipo de resistência. Os pais e parentes normalmente nunca humilham seus filhos, pois eles abandonariam envergonhados a própria casa. Quando o missionário demonstra incoerência entre o amor que prega e a atitude prática de intolerância de seus costumes, observa-se:

O relacionamento fica prejudicado, a estima é perdida, uma greve espontânea se forma no ânimo do indivíduo e, se este tem influência na comunidade, esta também vai se envolvendo neste espírito de resistência. Considera-se que a pessoa que deveria ligar com Deus já perdeu este carisma e está se deixando guiar pelo maligno e por isso pode ser desprezada. (CAMARGO, 1987, nota 100, p. 497)

Diante de todos estes fatos negativos, por que os Bororo não abandonaram a missão de Meruri em massa, como o fizeram na Colônia Teresa Cristina? Parece que eles perceberam que já tinham perdido quase todas as suas terras. Eles não teriam para onde ir e já não viam nenhuma perspectiva de futuro. E assim, consciente ou inconscientemente, a resistência desta vez consistiu em ir desapa-recendo aos poucos, sem sair da missão. Vietler (1990, p. 140), em sintonia com esta interpretação, afirmou: "Ainda em 1969, queixavam-se os missionários que os Bororo não queriam ter filhos e estes, não queriam tê-los, porque nada tinham a oferecer aos nascituros". Neste contexto, a drástica redução de nascimentos sinaliza muito mais uma intenção deliberada de autoextermínio gradativo, do que um mero fenômeno acidental. Tanto esta decisão de autoextermínio quanto a modalidade escolhida são inéditas na vida dos Bororo de Meruri. O desaparecimento da comunidade indígena de Meruri seria a maior punição para os salesianos, pois a autoextinção dos Bororo significaria o fracasso total de sua obra missionária no Brasil. Na verdade, o extermínio dos Bororo, por decisão própria ou por iniciativa do governo, significaria também uma perda irreparável para a cultura brasileira, que se caracteriza pela diversidade étnica.

4 Os Bororo recuperam o entusiasmo pela vida

A recuperação do entusiasmo dos Bororo pela vida também dependeu da somatória de vários fatos. Dentre eles, em nível interno, os dois fatos mais significativos foram: a atuação do P. Falco para retomada da identidade cultural dos Bororo e o martírio do P. Rodolfo e do Bororo Simão pela defesa das terras de Meruri. Em nível externo, destacam-se também dois fatores: as novas orientações da Igreja (FLANNERY, 1992), implementadas principalmente através do CIMI, e a promulgação do Estatutodo Índio pelo governo brasileiro.

A nomeção do P. João Falco para diretor da missão de Meruri, em 1965, foi um fator importante para reverter o processo deautoextermínio dos Bororo. À semelhança do P. Malan, o P. Falco era inovador nas idéias, rápido e enérgico em seu posicionamento. Ele logo percebeu que a missão indígena de Meruri estava se transformando num povoado de não índios. Entre as causas, o P. Falco identificou a drástica diminuição dos Bororo; a perda de sua língua e de sua cultura; e a presença constante e numerosa de não índios, dentro da missão, por causa do atendimento escolar e hospitalar. Visto que o P. Falco gozava de grande estima de todos os Bororo, inclusive daqueles que moravam fora da reserva de Meruri, ele imediatamente "entrou forte para desativar este processo e salvar a população indígena" (CAMARGO, 1987, XXVIII, nota 136, p. 566). Nesta ocasião, alguns remanescentes dos Bororo de Jarudori, que ainda conservavam seus costumes intactos, vieram visitar o novo diretor e decidiram morar na missão, contribuindo enormemente para o resgate da língua e da cultura dos Bororo de Meruri (CAMARGO, 1987, XXVIII, nota 137, p. 567). Na verdade, foi o P. Falco "quem iniciou o processo para que os Bororo reconquistassem a própria terra e a própria autonomia" (CAMARGO, 1987, XXVIII, nota 136, p. 566). Coube ao P. Rodolfo Lunkenbein dar continuidade a esta guinada na missão de Meruri.

Em 1965, também a Igreja deu uma guinada em sua visão de mundo e no seu posicionamento perante os povos indígenas, através das conclusões do Concílio Vaticano II. À luz dessas conclusões, o episcopado latino-americano publicou, em 1968, o documento de Medellín e, em 1979, o documento de Puebla, que passaram a ser um referencial para uma ação pastoral mais comprometida com a causa dos oprimidos. O episcopado brasileiro, assimilando rapidamente as novas orientações eclesiais, assumiu com determinação a opção preferencial pelos mais pobres e, dentre eles, considerou que os povos indígenas estavam em "situação mais crítica e de maior abandono" (AGUILERA, 2001, p. 72). Coerentemente, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) fez um apelo oficial para um maior compromisso de todos os cristãos com a causa indígena: "para que os problemas do índio sejam melhor solucionados é preciso e urgente que sejam assumidos consciente, responsável e constantemente por toda a Igreja: bispos, padres, agentes de pastoral e comunidades cristãs" (CNBB, 2002, p. 21). Em 1972, foi criado, e assumido como organismo da CNBB, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). O P.Ângelo Jayme Venturelli, missionário salesiano e coautor da Enciclopédia Bororo, foi o articulador, fundador e primeiro presidente do CIMI43 43 CIMI - Setor de Documentação, Ata de Criação do Conselho Indigenista Missionário - Brasília, 23 de Abril de 1972. Em depoimento, por carta, o missionário salesiano Mário Bordignon recomendou-me: "Na mudança de atitude dos bororo em resolver ter filhos de novo, não ter medo de destacar o nascimento do CIMI, em 1972, no qual os salesianos tiveram um papel muito importante: Pe. Ângelo Venturelli, Pe. Ochoa, Pe. Rodolfo, etc., envolvendo inclusive os bororo. O cacique Eugênio Rondon participava das discussões do CIMI e assinava os documentos, o mesmo fazendo o filho dele Lourenço Rondon que em 1974 coordenou a 2ª Assembléia de caciques do Brasil em Meruri". . Entre os princípios que fundamentam a ação do CIMI, destacam-se: o com-promisso com o protagonismo dos povos indígenas nas lutas pelos seus direitos; o respeito à alteridade indígena em sua pluralidade étnico-cultural e a valorização dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas (CIMI, 1995).

O governo brasileiro, pressionado pela ação da Igreja em nível nacional e internacional, publicou o Estatuto do Índio44 44 Em 1969, apareceram no exterior denúncias sobre o genocídio dos índios no Brasil, inclusive com fotos que documentaram torturas. Em fins de 1971, equipes da FAB e da FUNAI tiveram de resgatar de helicóptero os índios Nambiquara, dispersos pelo vale do rio Guaporé (MT). Seu território foi, a partir de 1968, leiloado entre firmas colonizadoras e agropecuárias, e isso mediante certidões negativas expedidas pela FUNAI, atestando que não havia índios no vale. Na época, morreu toda a população Nambiquara abaixo de 15 anos. Vendo aquilo, um médico da Cruz Vermelha Internacional declarou, em 1973: "A vida desses índios é uma vergonha não só para o Brasil, mas para a humanidade": CNBB, Os Povos Indígenas, 24. Pressionado pela ação da Igreja e pela repercussão internacional destes fatos, o presidente militar EmílioMédici promulgou o Estatuto do Índio, no dia 19 de dezembro de 1973, através da Lei 6001. , em 1973. Os propósitos do Estatuto são: preservar a cultura das comunidades indígenas, integrá-las "progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional", estendendo-lhes "a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros"(ESTATUTO DO ÍNDIO, 1973, art. 1º). No que se refere às terras ocupadas pelos indígenas, o Estatuto afirma:

Cabe aos índios ou selvícolas a posse permanente das terras que habitam e o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes. (ESTATUTO DO ÍNDIO, 1973, art. 22)

Paradoxalmente, no mesmo ano de 1973, o Presidente da República interpretou em mensagem oficial que "os objetivos cardiais do Estatuto" consistiam na "rápida e salutar integração do índio na civilização"45 45 Pronunciamento do Presidente da República Emílio Médici - Mensagem n. 530/73, citado pela CNBB (CNBB, 1985, p. 25). . Tal interpretação demonstrava, claramente, que a política indigenista oficial não havia mudado. O Estatuto era mais um instrumento de fachada para defender o governo da ofensiva internacional do que para defender os índios das agressões que vinham sofrendo dentro do país.

Em 1976, o novo diretor de Meruri era o P. Rodolfo Lunkenbein. Juntamente com o P. Gonçalo Alberto Camargo Ochoa, as irmãs salesianas e outros missionários, o P. Rodolfo se identificava profundamente com o povo Bororo, em todas as suas aspirações e lutas. Por um lado, o ardor apostólico dos missionários tinha o claro apoio das orientações eclesiais, que recomendavam a valorização da cultura indígena e a defesa de seus direitos. Por outro lado, a luta dos missionários junto com os Bororo pela defesa específica de suas terras tinha, agora, o respaldolegal do Estatuto do Índio. Incentivada pelos missionários, a comunidade Bororo se organizou e intensificou a reivindicação pela posse definitiva de suas terras. Cumprindo a lei, o governo autorizou o início da demarcação da reserva de Meruri. Os não índios, que já tinham se estabelecido dentro da área indígena, também se organizaram para impedir a demarcação da reserva de Meruri. O problema crucial dos Bororo concentravase agora nos conflitos pela legalização de suas terras. Sabendo das garantias legais do Estatuto que protegia o índio, os invasores recrudesceram sua ousadia: exigiam que os índios abandonassem "voluntariamente" suas terras, e ameaçavam de morte os que permanecessem na reserva de Meruri. O P. Rodolfo não se intimidou. Continuou reanimando os Bororo e empenhando-se intensamente para que as terras fossem demarcadas (MSMT, 1976). No dia 15 de julho de 1976, sessenta não índios armados, chegando de improviso na missão de Meruri, assassinaram o P. Rodolfo e o índio Simão e feriram mais quatro Bororo. O duplo assassinato em Meruri teve ampla divulgação e repercussão nacional e internacional46 46 No "Boletim Informativo - Especial, Junho de 1976" existe uma coletânea intitulada "Imprensa", que registra uma síntese de artigos de jornais sobre o assassinato do Bororo Simão e do P. Rodolfo Lunkenbein. . Visto que o P. Rodolfo era cidadão alemão, além da Igreja, o governo da Alemanha pressionou o governo brasileiro para fazer justiça diante do "Massacre de Meruri". Desgastado diplomaticamente em nível internacional, o governo brasileiro percebeu que resolver a questão de Meruri tornava-se um imperativo urgente e indeclinável. Assim, a reserva dos Bororo foi oficialmente demarcada, no mesmo ano de 1976. Contudo, os assassinos envolvidos no "Massacre de Meruri" nunca foram condenados.

A morte do P. Rodolfo e do índio Simão foi o fato mais marcante na reafirmação da vida por parte dos Bororo de Meruri. A partir deste acontecimento, eles fizeram uma releitura de toda sua situação passada. O fato do P. Rodolfo ter dado a vida para defender a causa Bororo desfez a idéia de que os missionários não se preocupavam com eles ou não apreciavam sua cultura. A partir deste fato eles assumiram com maior empenho o momento presente, pois descobriram que os Bororos tinham valor, que era preciso manter viva a cultura Bororo, recuperando sua língua e valorizando seus costumes. Este fato também abriu para eles uma perspectiva de futuro. Eles podiam continuar gerando filhos, pois já tinham a posse legalizada de suas terras e já estavam recuperando também sua cultura. Em poucas palavras, eles já tinham o que "oferecer aos nascituros". E assim, foi tal o entusiasmo pela vida nas últimas três décadas, que a população dos Bororo de Meruri quintuplicou, passando de 81 pessoas em 1967 para 406 no ano 2000 (VIETLER, 1990, p. 24).

A recuperação do entusiasmo pela vida não significou, porém, um retorno mecânico ao estilo de vida que os Bororo levavam antes do contato com os não índios. O contexto de então já não existe mais: o tempo, o ambiente ecológico e os próprios Bororo mudaram (BORDIGNON, 2001, p. 66). Eles perceberam que sua sobrevivência daqui para frente depende, principalmente, de um equilíbrio entre o estilo de vida tradicional do passado e a mudança cultural do tempo presente. O equilíbrio leva-os até a reconsiderar alguns instrumentos que foram usados no passado para descaracterizar ousuplantar os seus costumes. É o caso da escola e do aprendizado da língua portuguesa, por exemplo.

A escola de Meruri, considerada anteriormente como elemento de desconstrução dos costumes tribais, passou a ser instrumento de reconstrução da identidade cultural do povo Bororo (AGUILERA, 2001, p. 119). A escola, nos moldes de internato, cortara o elo natural de transmissão cultural Bororo, que se dava através da interação educativa entre pais e filhos. Esta interação era fundamental para conservação da "identificação étnica tribal" (RIBEIRO, 1996, p. 12). O internato e a escola que o sucedeu também não levaram em conta o diferencial cultural específico dos índios. Consequentemente, a educação formal em Meruri não respeitou as diferenças e oficializou a prática tradicional da escola branca (AGUILERA, 2001, p. 13-1447 47 Apresentação de Edir Pina de Barros. ). Com a recuperação do entusiasmo pela vida, os Bororo recuperaram também a escola como "local onde se retomam a memória, as tradições e as próprias relações dos personagens que compõem esse universo complexo chamado Meruri" (AGUILERA, 2001, p. 118). A atual Escola Indígena de Meruri48 48 A atual Escola de Meruri foi a primeira a ser reconhecida oficialmente no Brasil como Escola Indígena, pelo Decreto Estadual n. 51/75, publicado no Diário Oficial em 23/5/75, sendo seu Regimento aprovado pelo Parecer n. 029/02/1981. Cf. AGUILERA, 2001, p. 72-73. está sendo recriada pelos próprios Bororo. Ela é bilíngue, o conteúdo ensinado nela é a própria cultura indígena e os professores são todos Bororo. Apesar de a escola ter um corpo docente definido, todos os membros da comunidade estão envolvidos na interação educativa, tanto os anciãos quanto os mais jovens, por meio da partilha e da pesquisa do saber (AGUILERA, 2001, p. 110). Na verdade, este tipo de escola recriada passou a ser um instrumento de preservação das raízes culturais do povo Bororo. Além disso, os índios não tardaram a perceber que a apropriação da comunicação escrita é um meio precioso para preservar os conhecimentos tribais (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 282). Eles perceberam também que o bilinguismo "não significa uma perda da autoidentificação étnica" (CASTILHO, 2000, p. 14049 49 Posfácio de Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick. ). Pelo contrário, o conhecimento da língua portuguesa é de fundamental importância no seu relacionamento intercultural. Em síntese, os Bororo descobriram o alcance e a importância da escola "como arma política" para a "formação, conscientização e capacitação dos mesmos para os novos desafios colocados pela situação de contato" (AGUILERA, 2001, p. 118).

O equilíbrio leva-os também a um retorno às origens, dentro de uma perspectiva renovada. Nesta perspectiva, despontam a nova maneira de se organizar na defesa de seus direitos e, também, o interesse crescente na reapropriação dos elementos básicos de sua cultura.

O relacionamento intercultural alterara a estrutura organizacional Bororo. O chefe era, tradicionalmente, um ancião e a chefia era uma prerrogativa de direito clânico e vitalícia. Atualmente, o chefe é um jovem qualificado na cultura Bororo e dos brancos. Além disso, a chefia é por eleição e temporária (BORDIGNON, 2001, p. 151). As razões desta mudança cultural residem no fato de o chefe ter, atualmente, que promover e defender o bem comum dos Bororo dentro e fora de sua comunidade. Outra novidade organizativa são as assembleias das lideranças Bororo de diferentes aldeias. Além disso, o chefe Bororo participa regularmente das reuniões dos caciques do Brasil. Estes encontros intertribais inauguraram um novo estilo de defesa de seus direitos, por meio da articulação e da união entre os povos indígenas (BORDIGNON, 2001, p. 69). Em depoimentos recentes dos Bororo, colhidos por Bordignon, eles apontam três elementos básicos de sua cultura como os mais importantes na ordem da preservação: o ritual funerário, o ritual da nominação e a língua Bororo. Ao lado destas três "referências mais fortes da cultura Bororo", eles acrescentam a importância dos anciãos para que os mais jovens possam aprender os elementos básicos de sua cultura (BORDIGNON, 2001, p. 75). Há o surgimento de muitos chefes de cerimônias jovens, até com 23 anos de idade, formados na área da missão de Meruri. Este é o sinal mais promissor de que as tradições culturais estão sendo preservadas, num processo de reapropriação contínua. Tudo isso leva a concluir que "os Bororo estão mudando, sim, mas conservando seus valores centrais como vivência ou como imaginário coletivo" (BORDIGNON, 2001, p. 79).

Tanto o uso atual da escola e da língua portuguesa quanto a reapropriação da cultura e nova maneira de se organizar indicam uma mudança cultural. Bordignon, em recente estudo sobre os Bororo, considera que as mudanças presentes adotadas por eles "são um aspecto dos mecanismos de resistência cultural" e "visam dar continuidade à tradição" dos Bororo (BORDIGNON, 2001, p. 65).

Considerações finais

A análise da experiência de Meruri sublinha três fatores importantes na ação missionária. Primeiramente, as orientações da Igreja, juntamente com o respaldo das leis civis, são de fundamental importância para que os missionários possam abraçar sem restrições a causa indígena. Em segundo lugar, o ardor apostólico e a qualificação interdisciplinar do missionário são essenciais para que ele se coloque de maneira construtiva diante da comunidade indígena. Em terceiro lugar, o grande desafio do povo Bororo é conservar sua própria identidade dentro de um contexto irreversivelmente modificado. Isto exige, além da preservação de sua cultura e da unidade tribal, uma postura diferenciada dos Bororo no meio da sociedade pluriétnica.

A história comprova que os acertos da ação missionária da Igreja, através dos salesianos, são bem maiores do que os erros históricos cometidos em Meruri. Prova incontestável disso é o fato de que a população Bororo sob os cuidados dos salesianos sobreviveu e "aumentou em 55% no Meruri e 96% no Garças" (NOVAES, 1993, p. 243). Os Bororo de outras aldeias, que não estiveram sob a influência da ação missionária, diminuíram sensivelmente ou desapareceram. O maior mérito da Missão Salesiana de Mato Grosso junto ao povo Bororo foi a preservação de sua existência física. A ação missionária dos salesianos entre os Bororo, além de ser "uma experiência extraordinariamente rica," é também um referencial pragmático "para quem esteja empenhado em amparar populações tribais" (RIBEIRO, 1996, p. 30).

O ritual ao redor da morte, que é o mais importante da cultura Bororo, faz paradoxalmente a reafirmação da vida. Semelhantemente, a morte do Bororo Simão e do missionário P. Rodolfo Lunkenbein levou os Bororo a optarem definitivamente pela vida. O lema do P. Rodolfo em Meruri era: "Eu vim para servir e dar a vida". Os missionários salesianos continuam servindo os Bororo e doando-lhes um redobrado entusiasmo pela vida. Meruri é, atualmente, a maior reserva e a mais populosa aldeia Bororo. A paixão pela vida entre os Bororo é tão grande, que eles repetem frequente e orgulhosamente:

"BOE AKEDU KARE! BOE AKEDU KARE!"

"OS BORORO NÃO ACABAM! OS BORORO NÃO ACABAM!"

Notas

13 O P. Ochoa considera P. César Albisetti, o maior estudioso da cultura Bororo que, junto com os padres Pessina e Colbacchini, iniciou um consciencioso trabalho de pesquisa desta cultura, cujos resultados ficaram perpetuados em obras como "I Bororos Orientali Orari Mugudoge del Mato Grosso (Brasile)", mais tarde traduzido ao Português, e a Enciclopedia Bororo, publicada em colaboração com o P. Ângelo J. Venturelli.

33 No XXVI Congresso de Americanistas realizado naÁustria (Viena) em 1908, o representante brasileiro Ignácio Batista de Moura discursou: "quanto aos índios, havia poucos dignos de estudo e compaixão, e arriscava dizer que nos próximos 50 anos esse povo iria desaparecer sem deixar vestígios." Este discurso foi publicado no Rio de Janeiro pelo Jornal do Comércio, no dia 26 de outubro de 1908. Cf. CASTILHO, 2000, p. 86-87.

37 Eis a afirmação original do P. Colbacchini: "ci pareva impossibile il poter pensare ad un villaggio di selvaggi senza questa capanna centrale; e ci sembrava più facile che essi abbandonassero la missione a questo loro inviolabile recinto": cf. Antonio Colbacchini, "Il Ciaco Paraguayo e le sue Tribù", in Missione Salesiane 1925. Torino: Società Editrice Internazionale, 1925, p. 105. Citado em VIETLER, 1991, p. 77.

Recebido em 28/8/2007; revisado e aprovado em 18/7/2008; aceito em 20/1/2009

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  • NOVAES, Sylvia Caiuby. Jogo de espelhos. Imagens da Representação de Si através dos Outros. São Paulo: Edusp, 1993.
  • ______. Mulheres, homens e heróis. Dinâmica e permanência através do cotidiano da vida Bororo. São Paulo: FFLCH/USP, 1986.
  • PIO X, Compendio della Dottrina Cristiana Città del Vaticano: Lib. Ed. Vaticana, 1905.
  • RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. A integração das populações indígenas no Brasil Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • SACKS, Oliver. Seeing Voices: a Journey into the World of the Deaf. Berkeley: University of California Press, 1989.
  • SEGUNDA Conferencia General del Episcopado Latinoamericano. La Iglesia en la Actual Transformación de America Latina a la Luz del Concilia. Bogotá, 24 de Agosto - Medellín, Agosto 26 - Septiembre 6, 1968, Bogotá: Secretariado General del CELAM, 1969. v. II: Conclusiones.
  • SOCIEDADE de São Francisco de Sales. Constituições da Sociedade de São Francisco de Sales São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1985.
  • VIETLER, Renate Brigitte. A duras penas. Um histórico das relações entre índios Bororo e "civilizados" no Mato Grosso. São Paulo: FFLCH/USP, 1990.
  • ______. A refeição das almas. Uma interpretação etnológica do funeral dos índios Bororo - Mato Grosso. São Paulo: Edusp, 1991.
  • 1
    Em geral, as traduções de outros idiomas para o Português neste trabalho foram feitas por mim, num estilo muito livre. De modo mais específico, no que se refere a traduções da língua Bororo para a língua Portuguesa, segui a tradução apresentada nos textos bilíngues que tive em mãos.
  • 2
    O imperador Dom Pedro II governou o Brasil por quase 50 anos, de 1840 a 1889. Logo após a proclamação da República, dois militares governaram o Brasil: Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894). Em 1895, quando os salesianos se encontraram com os Bororo pela primeira vez, quem governava o Brasil era o Presidente civil Prudente de Moraes (1894-1898); e quem governava o Estado do Mato Grosso era Manoel José Murtinho (1891-1895). Em seguida o comando do Governo Brasileiro foi exercido pelos seguintes presidentes civis: Manoel Ferraz de Campos Salles (1898-1902), Francisco de Paula Rodrigues Alves (1902-1906), Afonso Augusto Moreira Pena (1906-1909), Nilo Procópio Peçanha (1909-1910). Volta ao governo um militar: Hermes da Fonseca (1910-1914). Logo após, os civis retornam no governo: Wenceslau Brás Pereira Gomes (19141918). No período subsequente, merece uma menção Getúlio Vargas (1930-1945; 1951-1954), porque foi o presidente que permaneceu mais tempo governando o país (18 anos). Merecem ainda destaque os dois presidentes naturais do então Estado de Mato Grosso, onde os Bororo se encontram: o militar Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) e Jânio da Silva Quadros, que esteve apenas sete meses na presidência, pois renunciou em agosto do mesmo ano de sua eleição, 1961.
  • 3
    A Colônia Teresa Cristina foi fundada por ordem do então governador da Província de Mato Grosso, Joaquim Galdino Pimentel.
  • 4
    Azzi (2000, p. 41-42) afirma textualmente: "Uma das razões pelas quais retardou-se por alguns anos a implantação da obra salesiana no Brasil foi a fidelidade às diretrizes romanas. A autoridade da Santa Sé era acatada por Dom Bosco com grande respeito".
  • 5
    Seria exaustivo enumerar os muitos trabalhos publicados sobre os Bororo. À guisa de amostragem, cf. Albisetti e Venturelli, 1962, p. 1037-1046; Viertler, 1991, p. 219-221; Novaes, 1986, p. 235-242.
  • 6
    Em 1883 fundaram o Colégio Santa Rosa, em Niterói. Em 1885 fundaram o Liceu Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo. Em 1890 fundaram o Colégio São Joaquim, em Lorena. Em 1982 fundaram o Lyceu de Artes e Offícios, em Campinas.
  • 7
    De autoria do próprio Dom Bosco, este método educativo é conhecido como Sistema Preventivo.
  • 8
    O P. Ochoa dividiu seu trabalho com os depoimentos de Frederico Coqueiro em 30 capítulos, e numerou os parágrafos de cada capítulo de modo sequencial. Assim, para facilitar a localização do texto citado na língua Bororo, citaremos primeiro o capítulo ao qual nos referimos usando o algarismo romano, separado por uma vírgula do número cardinal que indica o parágrafo e o número da página correspondente na versão em português. Por exemplo, a citação IX, par. 5, 338: se refere ao capítulo nono do livro, parágrafo quinto deste capítulo, na página trezentos e trinta e oito que já pertence à versão desta obra em português. Os textos que precedem os capítulos, como Comentário, Apresentação e Introdução serão citados apenas com a indicação da página.
  • 9
    O missionário salesiano Mário Bordignon, por carta, apontou-me alguns limites das Memórias de Coqueiro. Em síntese, Bordignon diz que Coqueiro "omite umas questões sérias da cultura bororo tais como: o papel do Bari-pagé para agradar ou afastar o bope - espíritos do mal; o infanticídio por sonho agoureiro, os abortos, os contraceptivos; o joruboveneno; o mori - a vingança. O Coqueiro me confessou, em conversa informal, que várias aldeias, especialmente no Pantanal, acabaram porque os bororo se mataram entre si. Com isso, não quero subestimar a cultura bororo, quero dizer que o missionário encontrou uma cultura com seus lados bons e ruins como toda cultura tem."
  • 10
    O P. Ochoa publicou os depoimentos de Frederico Coqueiro em Bororo e também em português, com a seguinte ressalva: "Achamos que este texto poderia ser interessante também para as pessoas que desconhecem a língua Bororo, pelo que decidimos transcrevê-lo para o português, mesmo sabendo que isso diminuiria muito o encanto do texto original Bororo".
  • 11
    Segundo nota esclarecedora n. 14 do P. Ochoa, Coqueiro "Pensa nos Xavante que, ainda não contactados, começam a dar sinal de presença nesses lugares".
  • 12
    A Enciclopédia utiliza o nome original Bororo Akirío Boróro Kejewu, para se referir a Tiago Marques.
  • 14
    A real distância entre Santa Terezinha e Nova Xavantina é de 130 km, aproximadamente.
  • 15
    As dificuldades de comunicação eram também comuns entre centros urbanos da Província de Mato Grosso e outras cidades do Brasil. O Dr. Luís Philipe P. Leite referiu ao P. João Baptista Duroure um episódio que ilustra bem este problema: "proclamada a República a 15 de novembro de 1889, Cuiabá comemorou em pleno regime republicano, no dia 2 de dezembro, o aniversário do Imperador, já destronado."
  • 16
    Carta ao Superior Geral dos Salesianos, P. Miguel Rua, em 5 de Junho de 1902. In: Catholic Readings. São Paulo, 1937, p. 108-109. Eis uma síntese do texto do P. Bálzola: "estamos um pouco abatidos e achamos que seja em consequência de privações e da muita humidade que apanhamos nos quatro meses que dormimos, quasi ao ar livre [...]. Quem pensa nos sanguinolentos massacres que se effectuaram no ano passado entre estes índios e alguns não índios, quem sabe quanta sêde de vingança alimenta o coração de um selvagem e reflecte nas condições que nos achamos [...], poderá facilmente comprehender quanta felicidade tenha sido a nossa de não termos tomado contacto ainda com os selvagens. [...] Há dois ou três dias que vemos do lado do norte fogaréos acesos, claro indício que os índios estão se avisinhando; [...] a fumaça chega até nós... Como será o encontro? [...] a poucas horas de distancia de nós, no ponto mais intrincado da floresta, estavam muitos índios fazendo bacururú, isto é: gritavam, cantavam, dançavam, o que quer dizer: uma orgia selvagem. O encontro era portanto imminente".
  • 17
    Cf. o comentário deste encontro em Catholic Readings. São Paulo, 1937, p. 111.
  • 18
    O critério adotado para citar este trabalho bilíngue é o mesmo adotado com as "Memórias de Frederico Coqueiro". Quanto ao Ritual da Nominação, cf. também: Albisetti e Venturelli, Enciclopédia Bororo, v. I, 624-627. Cf. ainda: Ochoa, Meruri na Visão de um Ancião Bororo, XIX, par. 1-8, 430-442.
  • 19
    Cf. também Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 94.
  • 20
    A título de exemplificação, o P. José Pessina, no contato direto com os índios, pesquisou "os sons, as palavras, o significado" e publicou em 1908 o livro intitulado: "Elementos de Gramática e Dicionário da Língua dos Bororo-Coroados de Mato Grosso". O P. Antonio Colbacchini aprofundou o estudo dos costumes Bororo e publicou vários livros nesta área: Grammatica dei Bororos-Orarimugudoge (sem data); A Tribu dos Bororo (1919); I Bororo Orientali "Orarimugudoge" del Mato Grosso (1925); À Luz do Cruzeiro do Sul. Os Índios Borôros-Orari do Planalto Oriental de Mato Grosso e a Missão Salesiana (1939); e em co-autoria com o P. César Albisetti, a obra: Os Bororo Orientais Orarimogodógue do Planalto Oriental de Mato Grosso (1942).
  • 21
    "De poucos grupos indígenas do Brasil possuímos descrições etnográficas bastante completas para um conhecimento satisfatório das respectivas culturas tribais. Entre as exceções estão os Bororo, a cujo estudo se vêm dedicando há mais de meio século os Padres Salesianos. [...] A transcrição dos textos, feita com o devido rigor, acompanhada de cuidadosa tradução e enriquecida com notas explicativas, testemunha bem a atitude científica dos autores desta obra, que será acolhida pelos especialistas como documento fidedigno": Egon Shasen, Apresentação in César Albisetti and Ângelo Jayme Venturelli, Enciclopédia Bororo, v. II, Lendas e Antropônimos (Campo Grande: Museu Regional Dom Bosco, 1969).
  • 22
    Esta afirmação reflete o parecer oral que colhi, recentemente, do coautor da Enciclopédia Bororo, o P. Ângelo Jayme Venturelli.
  • 23
    Cf. também o "Despacho da Presidência do Estado de Mato Grosso, Cuiabá 7/11/1905, no Livro número 7 de Títulos e Domínios, Folhas 174 e 176".
  • 24
    Cf. os Decretos Oficiais do Governo Federal: "Decreto 76.999/76 de Demarcação" e "Decreto 94014/87 de Homologação".
  • 25
    Cartas do P. Miguel Rua ao Diretor da Missão entre os Bororo in Antonio da Silva Ferreira, La missione fra gli indigeni del Mato Grosso. Lettere di Don Michele Rua 1892-1909, Publicação da Piccola Biblioteca dell'Istituto Storico Salesiano, Roma: Ed. LAS, 2000, p. 1-130. Cf. também CASTILHO, 2000, p. 77-78.
  • 26
    O mito da "terra sem males" é próprio do povo Guarani. No imaginário desses índios, a "terra sem males" é um lugar paradisíaco, onde "as plantas nascem por si próprias, a mandioca já vem transformada em farinha e a caça chega morta aos pés dos caçadores. As pessoas nesse lugar não envelhecem e nem morrem e aí não há sofrimento": Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Fraternidade e Povos Indígenas - Por uma Terra sem Males. Campanha da Fraternidade 2002. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 2002, n. 19, p. 12.
  • 27
    O missionário salesiano Irmão Mário Bordignon também viveu por 13 anos consecutivos com os Bororo de Meruri. Continua ligado a eles. O povo Bororo introduziu-o na tribo concedendo-lhe o nome de ENAWURÉU. Publicou vários livros. Dentre eles merecem destaque: Róia e Baile: mudança cultural Bororo (2001); BOE ENOGIEGIDAE BAREGE EIE: texto escolar de zoologia segundo a cultura Bororo (1988); Os Bororo na história do Centro-Oeste brasileiro (1986).
  • 28
    Renate Brigitte Vietler é antropóloga especializada na área da Etnologia Indígena, professora aposentada da Universidade de São Paulo. Entre suas publicações sobre os Bororo, destacam-se: A refeição das almas: uma interpretação etnológica do funeral dos índios Bororo - Mato Grosso (1991); A duras penas: um histórico das relações entre índios Bororo e "civilizados" no Mato Grosso (1990); As aldeias Bororo: alguns aspectos de sua organização social (1976).
  • 29
    Sylvia Caiuby Novaes é antropóloga especializada em Etnologia Indígena e Antropologia da Imagem. Além de Professora de Antropologia, é tambem Chefe do Departamento de Antropologia e Professora de Antropologia na Universidade de São Paulo. Entre suas publicações sobre os Bororo, merecem destaque: Jogo de espelhos: imagens da representação de si através dos outros (1993); Mulheres, homens e heróis: dinâmica e permanência através do cotidiano da vida Bororo (1986).
  • 30
    O missionário salesiano P. Gonçalo Alberto Ochoa Camargo vive, há mais de quarenta anos, com os Bororo de Meruri. Fala fluentemente a língua Bororo. No campo da antropologia, em tempos recentes, foi quem melhor documentou elementos da cultura Bororo trabalhando junto com os anciãos da tribo. Entre suas publicações destacam-se: Meruri na visão de um ancião Bororo: memórias de Frederico Coqueiro (2001); O processo evolutivo da pessoa Bororo (2001); BAKARU MAIWU: Novo Testamento em Língua Bororo (1992); História mítica Bororo (1990).
  • 31
    Herman Von Ihering publicou, na Revista de Antropologia em 1907, um artigo em que sustentava a posição de que os índios "são um impecilho para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não há outro meio de que se possa lançar mão senão o seu extermínio": cf. CASTILHO, 2000, p. 88.
  • 32
    Cf. também Castilho, 2000, nota 20, p. 66.
  • 34
    A Colônia Teresa Cristina foi fechada para a ação dos salesianos. De acordo com depoimento por carta do missionário salesiano Mário Bordignon, o governo montou nesta Colônia um enorme galpão com várias máquinas movidas a vapor e forçou, por muitos anos, alguns Bororo a trabalharem ali sob o comando severo do S. P. I.
  • 35
    "Quanto a certi usi che hanno codesti selvaggi, specialmente in torno ai loro morti, procurate di non disprezzarli." Giovanni Balzola, Fra gli Indi del Brasile. Note Autobiografiche e Testimonianze Raccolte da D. A. Cojazzi. Torino: Società Editrice Internazionale, 1932, p. 120.
  • 36
    Referindo-se a um relatório do próprio P. Antonio Malan, intitulado "Das Nossas Missões", publicado pelo Boletim Salesiano em outubro de 1909, p. 257-259.
  • 38
    Mário Bordignon confirmou-me por carta que: "a presença do branco foi crescendo sistematicamente ao ponto de querer se transformar em cidade em 1960, com o nome de Brunópolis. Repetindo a história do surgimento das cidades do Brasil, havia correio, escola, polícia, igreja, pensão que era uma zona onde as meretrizes eram as bororas. O Pe. Paulo Mohr acabou com ela. Com o aumento dos brancos os bororo foram progressivamente diminuindo até que o Pe. Falco, antes de tomar posse, resolveu limpar a área, em 1966".
  • 39
    A primeira lei sobre a obrigatoriedade da língua portuguesa nas escolas foi promulgada pelo Marquês de Pombal em 1757. Ao publicar esta lei, o Marquês de Pombal faz a seguinte afirmação: "Procura subjugar, através da língua, os povos indígenas e africanos, livrando-os da barbaridade de seus costumes." Na Constituição de 1934, no Governo de Getúlio Vargas, é introduzido um capítulo específico para a educação, na alínea d do § Único do Artigo 150, que determina que o ensino seja ministrado em idioma pátrio. Em 20 de dezembro de 1961, é promulgada A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 4 024/61, a qual estabelece no Título VI - Da Educação do Grau Primário, Capítulo II - Do Ensino Primário, Art. 27 que "O ensino primário é obrigatório a partir dos sete anos e só será ministrado na língua nacional [...]": FAULSTICH, Edenilde, Planificação linguística e problemas de normalização, [s.d.]. Disponível em: <
  • 40
    O Bororo Benjamim Tugure Etúo, que fala muito bem tanto o Bororo quanto o português e é neto do famoso Tiago Aipoboreu, referindo-se à cultura Bororo em Meruri neste período, relatou no seu depoimento: "Aconteceram várias mudanças neste ponto, especialmente pelos missionários. Antigamente não podia cantar BAKORORÓ aqui na missão": BORDIGNON, 2001, p. 146.
  • 41
    O avanço sistemático da tuberculose, em todas as aldeias, chegou a ameaçar o desaparecimento em massa dos Bororo, nas décadas de 50 e 60.
  • 42
    Os salesianos sempre envolveram voluntários leigos na sua ação missionária entre os Bororo. O Dr. Geraldo Chaves Salomon, médico especialista da Universidade de São Paulo, trabalhou gratuita e ininterruptamente por onze anos em Meruri para erradicar a tuberculose. O Dr. Geraldo e sua esposa Esther "todos os anos durante os meses de julho, dezembro e janeiro, deslocavam-se para as Missões Salesianas de MT, trazendo todo o material de que precisavam para seu trabalho, inclusive os remédios para tratamento das pessoas afetadas pela doença e material para radiografia": Ochoa, Meruri na Visão de um Ancião Bororo, XXVIII, nota 143, 570. Entre outros leigos, merece uma referência especial a voluntária Agripina Xavier, que chegou à missão de Meruri, em 1939. Ela é notável por sua bondade entre os Bororo. Agripina já comemorou 73 anos de idade e 62 de permanência em Meruri, como voluntária leiga: cf. OCHOA, 1987, XXVII, nota 114, p. 523.
  • 43
    CIMI - Setor de Documentação, Ata de Criação do Conselho Indigenista Missionário - Brasília, 23 de Abril de 1972. Em depoimento, por carta, o missionário salesiano Mário Bordignon recomendou-me: "Na mudança de atitude dos bororo em resolver ter filhos de novo, não ter medo de destacar o nascimento do CIMI, em 1972, no qual os salesianos tiveram um papel muito importante: Pe. Ângelo Venturelli, Pe. Ochoa, Pe. Rodolfo, etc., envolvendo inclusive os bororo. O cacique Eugênio Rondon participava das discussões do CIMI e assinava os documentos, o mesmo fazendo o filho dele Lourenço Rondon que em 1974 coordenou a 2ª Assembléia de caciques do Brasil em Meruri".
  • 44
    Em 1969, apareceram no exterior denúncias sobre o genocídio dos índios no Brasil, inclusive com fotos que documentaram torturas. Em fins de 1971, equipes da FAB e da FUNAI tiveram de resgatar de helicóptero os índios Nambiquara, dispersos pelo vale do rio Guaporé (MT). Seu território foi, a partir de 1968, leiloado entre firmas colonizadoras e agropecuárias, e isso mediante certidões negativas expedidas pela FUNAI, atestando que não havia índios no vale. Na época, morreu toda a população Nambiquara abaixo de 15 anos. Vendo aquilo, um médico da Cruz Vermelha Internacional declarou, em 1973: "A vida desses índios é uma vergonha não só para o Brasil, mas para a humanidade": CNBB, Os Povos Indígenas, 24. Pressionado pela ação da Igreja e pela repercussão internacional destes fatos, o presidente militar EmílioMédici promulgou o Estatuto do Índio, no dia 19 de dezembro de 1973, através da Lei 6001.
  • 45
    Pronunciamento do Presidente da República Emílio Médici - Mensagem n. 530/73, citado pela CNBB (CNBB, 1985, p. 25).
  • 46
    No "Boletim Informativo - Especial, Junho de 1976" existe uma coletânea intitulada "Imprensa", que registra uma síntese de artigos de jornais sobre o assassinato do Bororo Simão e do P. Rodolfo Lunkenbein.
  • 47
    Apresentação de Edir Pina de Barros.
  • 48
    A atual Escola de Meruri foi a primeira a ser reconhecida oficialmente no Brasil como Escola Indígena, pelo Decreto Estadual n. 51/75, publicado no Diário Oficial em 23/5/75, sendo seu Regimento aprovado pelo Parecer n. 029/02/1981. Cf. AGUILERA, 2001, p. 72-73.
  • 49
    Posfácio de Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jan 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      20 Jan 2009
    • Revisado
      18 Jul 2008
    • Recebido
      28 Ago 2007
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