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Entre o divino e o dinheiro: análise de serviços magísticos em um terreiro de Candomblé

Between divine and money: analysis of magistic services in a Candomblé terreiro (worship place)

Entre divino y dinero: análisis de servicios magísticos en un terreiro (sitio de adoración) de Candomblé

Resumo:

O objetivo do artigo é analisar as principais trocas materiais em um terreiro de Candomblé em Bocaiuva, MG, na perspectiva do clientelismo, ou seja, situações que envolvem a cobrança em dinheiro pelos serviços ofertados: trabalhos de “amarração de amor” e jogo de búzios. Metodologicamente, procedemos por pesquisa bibliográfica, observação participante e realização de entrevistas no período de maio a agosto de 2018. Além de apresentar generalidades a respeito do Candomblé e alguns paradigmas atuais que o rondam, o artigo analisa os referidos serviços magísticos enquanto relações sociais e econômicas presentes na vida deste terreiro. A pesquisa demonstrou que o Candomblé e seus adeptos exprimem relações não apenas religiosas, mas mercadológicas entre si e com o público exterior ao terreiro. No caso estudado, dinheiro e serviços magísticos não são “esferas separadas” ou “mundos hostis”, mas estruturas em que os agentes realizam “boas combinações”.

Palavras-chave:
Candomblé; serviços magísticos; religião; trocas

Abstract:

This article aims to analyze the main material exchanges in a Candomblé terreiro (worship place) in Bocaiuva, MG, from the perspective of clientelism, that is, situations involving the collection of money for the services offered: works of “love tying” and cowrie shells divination. Methodologically, we proceeded by bibliographic research, participant observation, and interviews from May to August 2018. In addition to presenting generalities about Candomblé and some current paradigms that surrounds it, the article analyzes these magical services as social and economic relations present in the life of this terreiro. The research showed that Candomblé and its supporters express not only religious but market relations with each other and with the outside public. In this case, money and magical services are not “separate spheres” or “hostile worlds” but structures where agents perform “good combinations”.

Keywords:
Candomblé; magical services; religion; exchanges

Resumen:

El objetivo del artículo es analizar los principales intercambios materiales en un terreiro (sitio de adoración) de Candomblé en Bocaiuva, MG, desde la perspectiva del clientelismo, es decir, situaciones que involucran la recaudación de dinero por los servicios ofrecidos: obras de “amarre de amor” y lectura de caracoles. Metodológicamente, procedemos mediante revisión bibliográfica, observación participante y entrevistas en el período de mayo a agosto de 2018. Adernás de presentar generalidades sobre Candomblé y algunos paradigmas actuales que lo rodean, el artículo analiza dichos servicios mágicos como relaciones sociales y económicas presentes en la vida de este terreiro. La investigación mostró que Candomblé y sus seguidores expresan no solo relaciones religiosas, sino también de mercado entre ellos y con el público fuera del terreiro. En el caso estudiado, los servicios de dinero y magia no son “esferas separadas” o “mundos hostiles”, sino estructuras donde los agentes realizan “buenas combinaciones”.

Palabras clave:
Candomblé; servicios mágicos; religión; intercambios

1 INTRODUÇÃO

O processo de colonização brasileira instaurou uma dinâmica histórica peculiar que ainda hoje sublinha as múltiplas realidades do país, a exemplo da consolidação das chamadas religiões afro-brasileiras, entre elas, o Candomblé.

O Candomblé está presente em Bocaiuva, município pertencente à região Norte do Estado de Minas Gerais. O município é conhecido como “Terra do Senhor do Bonfim” e pela predominância do Catolicismo, mas abriga também religiões evangélicas, espíritas e umbandistas. Um dos terreiros de Candomblé mais antigos em funcionamento, em Bocaiuva, é o llê2 2 Para este trabalho, não foi permitida a divulgação do nome oficial do terreiro. A mãe de santo preferiu que fosse identificada pela palavra “Mametto”, termo comum em algumas nações de Candomblé para se referir às mães de santo. , o qual se predispôs a participar deste trabalho.

O llê foi fundado em 1998, pratica Candomblé de nação Angola e Ketu concomitantemente, além de Umbanda e Quimbanda, pois, segundo a mãe de santo, quem tem feitura no Candomblé e já pode abrir casa tem permissão para “tocar” estas três religiões. As giras/x/rês, atualmente, são realizadas em dias variáveis à escolha e disponibilidade dos membros, comumente no início da noite, em dias aleatórios, embora haja atendimentos particulares em todos os dias da semana, conforme necessidade dos clientes/consulentes.

O llê em questão está sediado em local próprio, numa extensão da casa de Mametto. O fato de ser instituído a partir de um cômodo da casa reduz o custo com aluguel, facilita a realização dos trabalhos (evita longos deslocamentos até o terreiro, permite atendimento rápido) e o torna mais seguro (é possível maior monitoramento contra invasões ou outros atos de intolerância religiosa). Consoante a Mametto, existem 25 médiuns praticantes da religião, distribuídos entre diversas funções no llê, além da função de mãe de santo exercida por ela. Esta, no papel de líder e de centralidade do terreiro, distribui tarefas, joga os búzios, monitora todas as atividades e, na ausência de qualquer um dos cargos, executa a função que precisar, recebe a clientela e organiza todas as atividades religiosas praticadas antes, durante e depois dos cultos.

Segundo Mametto, todos os médiuns colaboram financeiramente, à medida que podem, para a realização dos trabalhos e na elaboração das oferendas, e, quando não podem auxiliar financeiramente, contribuem de outras formas, como nos afazeres domésticos do terreiro ou na dinâmica das giras/xirês, já que, entre os médiuns, o de melhor salário é o que tem a profissão de professor da Educação Básica. Neste sentido, é relevante enfatizar que o povo de santo está inserido num contexto religioso que demanda a fartura, comidas abundantes para os médiuns e para as entidades, igualmente em se tratando de roupas bem trabalhadas, as quais ajudam, inclusive, na construção da identidade desse povo.

Contudo, há de se considerar que o funcionamento institucional e litúrgico nos terreiros demanda dinheiro, o que se torna, muitas vezes, um dilema para o povo de axé, pois nem sempre há condições financeiras que atendam satisfatoriamente à manutenção das atividades religiosas, as quais envolvem a compra de materiais que compõem as oferendas e demais elementos ritualísticos. Inclusive, os próprios terreiros, às vezes, acabam sendo construídos por meio de “mutirões sagrados”, como assinala Carvalho (2011)CARVALHO, José Jorge. A economia do axé: os terreiros de religião de matriz afro-brasileira como fonte de segurança alimentar e rede de circuitos econômicos e comunitários. In: BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Alimento: direito sagrado. Pesquisa socioeconômica e cultural de povos e comunidades tradicionais de terreiros. Brasília: MDS, 2011. p. 37-62. ao se referir às ações coletivas de doações para construir a sede do terreiro. O llê não escapa desta realidade, estando ainda em construção e sempre contando com doações para melhorar a estrutura física. A relação entre homem-divino nas religiões afro-brasileiras, densamente mediada por aparatos materiais, acaba justificando, entre outros fatores, a cobrança dos atendimentos em alguns terreiros, principalmente nos de Candomblé. Trata-se da realização dos “serviços magísticos” (PRANDI, 2004PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, 2004. p. 223-38.).

Sendo assim, cumpre ressaltar que é objetivo deste artigo analisar as principais trocas materiais no llê na perspectiva do clientelismo, quando se envolve a cobrança em dinheiro pelos serviços ofertados, com o intuito direto ou indireto de rentabilidade. Por trocas, consideramos as diferentes relações religiosas presentes no terreiro em voga, mantidas entre adeptos e não adeptos do Candomblé. A opção pelas trocas envolvendo dinheiro deve-se à possibilidade de analisar um tema complexo, muitas vezes tido com tabu entre o povo de santo e, principalmente, criticado por outras religiões, a exemplo das neopentecostais.

A metodologia utilizada, além da pesquisa bibliográfica, foi a observação participante no terreiro de Candomblé e a realização de entrevistas semiestruturadas. A observação pautou-se nas diversas atividades realizadas no contexto do Ilê com enfoque nos jogos divinatórios, quando foi possível analisar a dinâmica que perpassa o jogo de búzios e as diversas nuances que o tangem enquanto prática comum na realidade do terreiro estudado, além das chamadas amarrações de amor. As entrevistas foram realizadas no período de maio a agosto de 2018, no intuito de entender aspectos ritualísticos e organizacionais do llê, o que serviu de base para a compreensão da relação entre os elementos sagrados e profanos imbricados na prática religiosa dos homo religiosus do terreiro de Mametto.

O artigo está estruturado em três partes, além desta introdução. A primeira, de maneira contextual, apresenta generalidades a respeito do Candomblé enquanto religião afro-brasileira e alguns paradigmas atuais que o rondam, a exemplo da universalização e do processo de desssincretização vivido por muitos Candomblés, apontando também outras características do universo mágico-religioso do campo estudado. A segunda analisa dois principais serviços magísticos oferecidos pelo llê enquanto relações sociais e econômicas presentes na vida deste terreiro (a amarração amorosa e o jogo de búzios). Por fim, traçamos as considerações finais que o estudo permitiu abstrair.

2 CONCATENAÇÕES GERAIS SOBRE O CANDOMBLÉ E APONTAMENTOS SOBRE O ILÊ

Os elementos africanos balizam muitas manifestações culturais populares na conjuntura social brasileira, entre elas, a religião. Neste sentido, Souza (2008)SOUZA, Marina de Mello. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2008. destaca que, no Brasil, a escravidão evidenciou as religiões de diferentes povos africanos, os quais fomentaram trocas culturais entre si e com demais povos, propiciando o surgimento do Candomblé, por exemplo. No Brasil, as religiões de origem africana foram modificadas. Entretanto, nesse processo, muitas características africanas foram mantidas. Assim, Morais (2006, p. 15)MORAIS, Mariana Ramose. O candomblé na metrópole: a construção da identidade em dois terreiros de Belo Horizonte. 2006.132 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)-Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2006. resume o processo de surgimento da primeira religião afro-brasileira, conforme excerto a seguir:

Com o tráfico negreiro, iniciado no século XVI, os negros começaram a chegar ao Brasil, na condição de escravos. [...] Após a abolição da escravatura, em 1888, os negros passaram a constituir pequenas comunidades nos centros urbanos, onde os dialetos africanos podiam ser falados com mais liberdade e as divindades africanas, cultuadas. Nessas pequenas comunidades, cada divindade tinha um altar, com elementos que representavam parte do continente natal. Estavam criados os primeiros terreiros de candomblé.

O Candomblé é conhecido como a religião relacionada ao culto dos Orixás, Inquices ou Voduns. Numa perspectiva léxica, Castro (2005)CASTRO, Yeda Pessoa. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Topbooks/Academia Brasileira de Letras, 2005. assinala que a terminologia “Candomblé” vem de kandombele e traz o sentido de “rezar”, “invocação”, “interceder junto aos deuses”, referindo-se, concomitantemente, ao local de realização dos cultos públicos. Assim, o termo “Orixá”, expressão mais popularizada no Brasil, tem vínculo com o iorubá, enquanto “Voduns” relaciona-se à influência daomeana. Na Bahia, berço do Candomblé, os iorubás também são conhecidos como nagôs, e os daomeanos, como jejes (SOUZA, 2008SOUZA, Marina de Mello. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2008.). Em análise mais detalhada, Santos (2012)SANTOS, Milton Silva. Afinal, o que são as religiões afro-brasileiras? In: FELINTO, Renata (Org). Culturas africanas e afro-brasileiras em sala de aula: saberes para os professores, fazeres para os alunos. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012. p. 11- 21. reconhece e abrange as nações de Candomblé citadas acima e acresce a raiz Angola, a qual cultuam deuses chamados “Inquices”. Igualmente, acrescenta que as nações procedentes do iorubá também podem ter ramificações, como Ketu, Ijexá, Efã, Batuque Gaúcho e Xangô Pernambucano.

Assim exposto, cada terreiro de Candomblé pertence a pelo menos uma nação. Conforme Morais (2006)MORAIS, Mariana Ramose. O candomblé na metrópole: a construção da identidade em dois terreiros de Belo Horizonte. 2006.132 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)-Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2006., no Candomblé, o termo nação diz respeito às formas específicas de culto, heranças rituais dos povos que balizaram a religião. De cada região da África, emergiu uma nação candomblecista, e, segundo Bastide (1978)BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: Rito nagô. 3. ed. São Paulo: Nacional, 1978., a distinção entre essas nações se dá pelo toque do tambor, pela música, pelo idioma por meio do qual se entoam os cânticos, pela liturgia, pelas vestes e, até mesmo, pelos nomes das divindades. O Ilê, de acordo com Mametto, segue duas nações, pois ela teve algumas “obrigações religiosas” dadas inicialmente numa casa de nação Angola. Mas, por motivos pessoais, “quizilou”3 3 Quizila significa briga, confusão ou comida que o Orixá não gosta. No caso, significa briga. com o pai de santo e finalizou as obrigações religiosas com o atual pai de santo, que é de nação Ketu. Assim, afirma que pratica as duas nações, pois considera importantes os dois fundamentos.

Há de se entender que os Orixás, Inquices e Voduns são entidades ancestrais e divindades-heróis instituidoras de linhagens, reinos e cidades-estados, representando a raiz da organização social, política, espiritual e terrena dos homens, à mesma maneira do que os povos bantos, ou ainda entendidos como “forças da natureza”, conforme explica Souza (2008)SOUZA, Marina de Mello. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2008.. O termo mais utilizado por Mametto durante os cultos religiosos é “Orixá”, o que justifica o uso predominante neste artigo. As divindades do Candomblé são detentoras de atributos, personalidades, comportamentos, sentimentos e paixões humanas, bem como são associadas a locais, elementos e forças da natureza, como o ar, fogo, terra, mares, montanhas, rios, cachoeiras, florestas, pântanos, estradas (SANTOS, 2012SANTOS, Milton Silva. Afinal, o que são as religiões afro-brasileiras? In: FELINTO, Renata (Org). Culturas africanas e afro-brasileiras em sala de aula: saberes para os professores, fazeres para os alunos. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012. p. 11- 21.).

De modo geral, são 16 os Orixás cultuados no Brasil, sendo eles Oxalá, lemanjá, Ogun, Oxóssi, Ossaim, Nanã, Exu, Obaluaiê/Omulu, lansã, Oxum, Xangô, Oxumarê, Ibejis, Logum-Edé, Obá e Euá. Irôco ou Tempo é também um Orixá, mas não é cultuado no Candomblé Ketu, apenas nas nações Angola-Congo. Entretanto, não há unicidade de culto, variando de terreiro para terreiro. O culto pode ser a todo o panteão, parte dele ou a apenas um Orixá pertencente a ele, a depender da especificidade de cada casa de Candomblé. Igualmente, as lendas, os mitos e, logo, os rituais são diversos. No llê, são cultuados, ao todo, 17 Orixás, dado ao vínculo com duas nações.

A inserção de pessoas brancas de variadas classes sociais no contexto do Candomblé foi responsável pelo rompimento da hegemonia étnico-racial dessa religião, antes essencialmente negra e reprimida/reclusa a lugares remotos nas cidades. Bastide (1960)BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1960. afirma que, a partir do “embranquecimento” do Candomblé, foi possível um maior encorpo dos cultos e a posterior expansão para outros lugares do país, por aumentar o número de adeptos e diminuir uma pequena parcela do preconceito, que, aliás, perdura ainda hoje. Enquanto isso, novas religiões afro-brasileiras se expandiam para além da Bahia, a exemplo da Umbanda. No mesmo sentido, Prandi (2005)PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. assevera que, apesar de o embrião do Candomblé ter surgido como religião étnica e de resistência, a adesão da classe média e de não africanos contribuiu para a universalização da religião. Todavia, Morais (2006)MORAIS, Mariana Ramose. O candomblé na metrópole: a construção da identidade em dois terreiros de Belo Horizonte. 2006.132 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)-Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2006. esclarece que, a despeito da universalização da religião, concomitantemente, outro movimento de resistência, já enfrentado na fase embrionária do Candomblé, tem acompanhado os terreiros: a resistência quanto à desintegração da cultura africana tradicional.

A abordagem de Moraes-Júnior (2014)MORAES-JUNIOR, Mário Pires. Candomblé: discurso em transe. 2014. 155 f. Dissertação. (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, 2014. problematiza que, no Brasil, muitos terreiros, principalmente os de nação Ketu, têm movimentado para se legitimarem, alegando que o Candomblé é uma Religião de Matriz Africana (RMA), e não uma religião “afro-brasileira”. O movimento de “pureza africana” baliza-se por tornar o Candomblé o máximo parecido aos cultos praticados pela ancestralidade. Assim, procuram relembrar a “africanidade” por meio do uso de imagens africanas de Orixás, uso de folhas e palhas de dendê, retirada das imagens católicas sincréticas dos altares, execução de cânticos em língua de origem africana, representações de cobras e toda uma simbologia que se remeta África e à “dessincretização” dos costumes da religião candomblecista. Por sua vez, Capone (2009)CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Tradução de Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; Pallas, 2009. afirma que a universalização do Candomblé está ancorada no surgimento de dois poios, um Candomblé “puro”, com alegações de maior vínculo africano, e outros “degenerados”, sendo comum, nos últimos, a presença de elementos cruzados e traçados. Entretanto, a autora esclarece que mesmo os movimentos de reafricanização não exprimem a totalidade africana, haja vista a consubstanciação do culto candomblecista no Brasil, de forma diversa e profusa.

Apesar disso, Moraes-Júnior (2014)MORAES-JUNIOR, Mário Pires. Candomblé: discurso em transe. 2014. 155 f. Dissertação. (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, 2014. reconhece que, se no campo da simbologia nega-se o sincretismo, ainda é evidente a permanência do discurso linguístico sincrético, tais como uso da palavra “Santo”, termo católico, para se referir aos Orixás, por exemplo, tendo em vista que o Candomblé no Brasil não se formou apenas a partir do sincretismo religioso entre a cultura de brancos, indígenas e negros, pois conseguiu reunir também a cultura de veneração às divindades de diferentes povos da África que, antes da diáspora, não tinham contato entre si. Moraes-Júnior (2014)MORAES-JUNIOR, Mário Pires. Candomblé: discurso em transe. 2014. 155 f. Dissertação. (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, 2014. afirma que o movimento de “dessincretização” do Candomblé, após a universalização da religião, é um movimento de “dessincretização externa”, já que objetiva combater as influências europeias e indígenas, e não o “sincretismo interno”, ocorrido entre os negros de diversas regiões do continente africano.

O Ilê é adepto ao sincretismo, uma vez que pratica rezas católicas, realiza novenas, tem muitas imagens sincretizadas (Ogum com São Jorge, lansã com Santa Bárbara, Oxóssi com São Sebastião, Oxum com Nossa Senhora Aparecida). O sincretismo presente no llê se reverbera em épocas de Quaresma (muitos rituais são encerrados) ou ainda em datas comemorativas católicas, nas quais as atividades litúrgicas são adaptadas ou resguardadas. Em épocas de festa do Senhor do Bonfim, padroeiro católico de Bocaiuva, Mametto e alguns fiéis participam das missas e procissões. Sobre o sincretismo, Barbosa Neto (2017)BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues. A geometria do axé: o sincretismo como topologia. Revista de Antropologia da UFSCar, São Carlos, v. 9, n. 2, jul./dez., p. 171-83. 2017. propõe a pensá-lo como topologia ou geometria, e não enquanto tipologia, trazendo uma importante reflexão ao classificá-lo enquanto confluência:

A ‘confluência’ entre raiz e movimento abre a possibilidade de descrever o sincretismo, pelo menos no caso afro-brasileiro, como um sistema de operações que pode simultânea e alternadamente estriar e alisar o espaço: o espaço entre as diferentes ‘casas de religião’, mas também aquele, inseparável do anterior, entre os vários seres sobrenaturais que as cortam transversalmente. Entendo que essa maneira de descrever o sincretismo, que me parece igualmente válida para pensar a relação entre as diferentes religiões a partir de uma perspectiva afro-brasileira, sugere uma importante aproximação com aquilo que se pode chamar de a ‘confluência [que] rege os processos de mobilização do pensamento plurista dos povos politeístas’ [...] contribui para fazer existir: confluência (contra) mestiça. (BARBOSA NETO, 2017, p. 181-2BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues. A geometria do axé: o sincretismo como topologia. Revista de Antropologia da UFSCar, São Carlos, v. 9, n. 2, jul./dez., p. 171-83. 2017.).

Outra reflexão importante sobre o sincretismo religioso é a traçada por Anjos (2006)ANJOS, José Carlos. O território da Linha Cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006. e Ramos (2015)RAMOS, João Daniel Dorneles. O cruzamento das linhas: aprontamento e cosmopolítica entre umbandistas em Mostardas, Rio Grande do Sul. 2015. 273 f. Tese. (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2015., ao asseverarem que práticas sincréticas produzem concomitantemente diferenças e conexão entre elementos, tanto da vida religiosa quanto das pessoas, dos corpos e dos territórios em si. No caso, os díspares permanecem enquanto tais e regidos por fluxos numa perspectiva “rizomática”, ou seja, “[...] o foco da atuação religiosa está pautada pela produção de diferenças, isso é percebido a partir do que as pessoas fazem” (RAMOS, 2015, p. 26RAMOS, João Daniel Dorneles. O cruzamento das linhas: aprontamento e cosmopolítica entre umbandistas em Mostardas, Rio Grande do Sul. 2015. 273 f. Tese. (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2015.).

Por sua vez, Moraes-Júnior (2014)MORAES-JUNIOR, Mário Pires. Candomblé: discurso em transe. 2014. 155 f. Dissertação. (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, 2014. entende que o engendrar das religiões com algum vínculo africano no Brasil pode ser categorizado em três partes, a saber: a sincretização, marcada pelo hibridismo de culturas e práxis religiosas com modalidade tradicional; o branqueamento, caracterizado pelo surgimento da Umbanda e a incorporação de fundamentos do Espiritismo; e a africanização, mecanismo de expurga de elementos sincréticos “não negros” e de hipervalorização dos conhecimentos africanos, ao mesmo tempo que se vive a abertura do Candomblé à população de modo geral.

Um dos aspectos relevantes comum nos terreiros, adeptos ou não ao sincretismo, é que eles rememoram e celebram a recomposição do território africano. A intento, segundo Sodré (2002)SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2002., o surgimento dos terreiros no Brasil foi seguido de uma reterritorialização da África. No Ilê, por exemplo, há vários espaços cultuais delimitados, verdadeiros “territórios simbólicos” na perspectiva de Haesbaert (2005)HAESBAERT, Rogério. Da desterritorialização à multiterritorialidade. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 10., São Paulo, 2005. Anais [...]. São Paulo, 2005. p. 6774-92., que demarcam relações e consagrações entre e para determinadas divindades, sacríficos específicos, demarcações rituais que explicitam “os de fora” e “os de dentro”, axés escondidos e à mostra, sendo chamados internamente de “camarinha”, “assentamentos”, “cumeeiras”, “entotos”, “olhos da casa”, entre outros que revelam a cosmovisão religiosa do llê e que, de alguma forma, rememoram o continente africano ou a ancestralidade do axé.

Portanto, é a partir desses elementos expostos neste item que se sucede o universo religioso do llê, palco de algumas trocas materiais, as quais serão analisadas a seguir.

3 TROCAS MATERIAIS ENDOSSADAS PELO DINHEIRO: ENTRE A FÉ E OS SERVIÇOS MAGÍSTICOS

Compreende-se por “serviços magísticos” a prestação de serviços espirituais praticados por candomblecistas e, às vezes umbandistas, atendendo a demandas de adeptos e não adeptos, normalmente numa perspectiva clientelista. Para Prandi (2004)PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, 2004. p. 223-38., os serviços magísticos candomblecistas, além de contribuírem para a renda nos terreiros, servem como aporte para manutenção da religião em meio à concorrência, principalmente com o avanço das religiões pentecostais e neopentecostais. De acordo com o autor, os serviços magísticos ofertam aos não devotos a possibilidade de achar solução para problema não solucionados por outros caminhos, sem maiores contatos com a religião. A magia passou a atender uma larga clientela, o jogo de búzios e os ebós do Candomblé rapidamente se popularizaram, concorrendo com a consulta a Caboclos e Pretos-Velhos da Umbanda (PRANDI, 2004PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, 2004. p. 223-38.).

Analogamente, Sousa (2011)SOUSA, Jailson Silva. Candomblé e mercado: uma análise do cenário metropolitano de Goiânia. Revista Brasileira de História das Religiões, Maringá, v. 3, n. 9, p. 1-11, jan. 2011. esclarece que, de modo geral, a realidade contemporânea de variados grupos sociais e respectivas religiões é influenciada pela dinâmica de objetos simbólicos e rituais. Isto se manifesta, segundo o autor, por meio de costumes e ações de mercado, consumo de bens simbólicos incorporados pela gastronomia, moda, música, serviços de atendimento, tratamento e acompanhamento espiritual. No que tange especificamente ao Candomblé, Sousa (2011)SOUSA, Jailson Silva. Candomblé e mercado: uma análise do cenário metropolitano de Goiânia. Revista Brasileira de História das Religiões, Maringá, v. 3, n. 9, p. 1-11, jan. 2011. elucida que a introdução no “mercado religioso” deu visibilidade urbana para esta religião, que tem movido a economia dentro e fora dos terreiros, como é o caso de lojas especializadas na venda de artigos religiosos.

Em face disso, é preciso entender que normalmente o Candomblé não se baseia na lógica dual “bem versus mal”, como o faz o Cristianismo ou, até mesmo, a Umbanda. Assim, segundo Prandi (2004)PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, 2004. p. 223-38., o Candomblé não precisa se prender à ética da caridade ou ao temor em cobrar por serviços espirituais/mágicos, os quais acabam constituindo atribuições de uma profissão paralela de muitos pais e mães de santo no Brasil. A confiança nos líderes do Candomblé quanto à execução de magias para o amor, emprego, curas, vinganças etc. permite uma relação paradoxal entre clientes e pais/mães de santo, ou seja, essa relação envolve trocas de intimidade, confiança, fidelidade para revelar questões pessoais a serem magisticamente resolvidas, mas, muitas vezes (não como via de regra), balizadas por trocas envolvendo dinheiro (BAPTISTA, 2005BAPTISTA, José Renato de Carvalho. “No candomblé nada é de graça...”: estudo preliminar sobre a ambiguidade nas trocas no contexto religioso do Candomblé. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, n. 1, p. 68-94. 2005.).

Carvalho (2011)CARVALHO, José Jorge. A economia do axé: os terreiros de religião de matriz afro-brasileira como fonte de segurança alimentar e rede de circuitos econômicos e comunitários. In: BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Alimento: direito sagrado. Pesquisa socioeconômica e cultural de povos e comunidades tradicionais de terreiros. Brasília: MDS, 2011. p. 37-62. destaca que há outro paradoxo que envolve o povo de santo, ou seja, precisar lidar com a noção de abundância sagrada coletivamente para seres humanos, divindades e ancestrais ao longo do ano, conforme alinhavado anteriormente, e, ao mesmo tempo, muitas das vezes, viver com dificuldades crônicas advindas das atividades ocupacionais financeiramente pouco rentáveis. Entretanto, o autor afirma que, apesar das dificuldades financeiras do povo de santo, os terreiros constituem lugares de refúgio e hospitalidade.

De fato, nem sempre as trocas que envolvem o povo de santo estão balizadas pelo dinheiro. Carvalho (2011)CARVALHO, José Jorge. A economia do axé: os terreiros de religião de matriz afro-brasileira como fonte de segurança alimentar e rede de circuitos econômicos e comunitários. In: BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Alimento: direito sagrado. Pesquisa socioeconômica e cultural de povos e comunidades tradicionais de terreiros. Brasília: MDS, 2011. p. 37-62. reforça que a vida religiosa dos terreiros e a vida espiritual dos membros não se apoiam em circuitos capitalistas hegemônicos, visto que muitos bens produzidos e utilizados nas atividades religiosas e seculares no terreiro não são atendidos pelo grande capital. Neste sentido, Carvalho (2011)CARVALHO, José Jorge. A economia do axé: os terreiros de religião de matriz afro-brasileira como fonte de segurança alimentar e rede de circuitos econômicos e comunitários. In: BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Alimento: direito sagrado. Pesquisa socioeconômica e cultural de povos e comunidades tradicionais de terreiros. Brasília: MDS, 2011. p. 37-62. afirma que há circuitos de trocas solidárias entre o povo de axé na construção de redes econômicas, as quais se baseiam em produção de alimentos, criação de animais, artes, ofícios tradicionais e sustentabilidade ambiental, entre outros aspectos.

Em se tratando do Ilê, Mametto é direta ao justificar a realização de cobrança de dinheiro pela realização de alguns trabalhos espirituais. Segundo ela, manter um terreiro em funcionamento exige esforço e muitos custos financeiros, pois é bem elevado o preço dos materiais envolvidos na realização das oferendas e comidas votivas (velas, flores, alimentos, incensos, defumadores, fitas, alguidares, tecidos, entre outros); na manutenção de água, luz, produtos de limpeza e comida para os filhos de santo que moram com ela; e para a realização das festas (ajeums). Além disso, afirma que muitas pessoas procuram o llê com objetivos declaradamente vaidosos: separar casais, fazer “amarração de amor” (ritual de conquistar/prender alguém a si pela intervenção espiritual), vencer inimigos, subir de cargo no emprego, o que ela denomina de “luxo”, e não de “necessidade”. Assim, podemos entender que Mametto delimita “luxo e necessidade”, o que, além de categorizar os trabalhos espirituais (o útil e o supérfluo), explica a cobrança ou não pela realização deles.

Conforme salientado anteriormente, o Candomblé não se atém ao binômio “bem versus mal”. Mas, por praticar também a Umbanda, que inclui em seu escopo a presença contrastante bem/mal, e praticar um culto sincrético, o llê ainda pondera tais elementos. Mametto afirma que não cobra dinheiro pelos “trabalhos para o bem ou necessários” (cura, limpeza, benzimento, arrumar emprego etc.), apenas os materiais a serem utilizados nas oferendas. Os trabalhos cobrados são: jogo de búzios, amarração, 'Vencer pela macumba” o inimigo, separar casais ou quaisquer outros que se atrelam à noção de “maldade”, “vaidade” ou “não necessidade”.

Mametto assegura que é difícil tomar conta do terreiro e trabalhar ao mesmo tempo. Apesar de ser técnica em Segurança do Trabalho e Enfermagem, pouco executa tais profissões, já que a predestinação dada pelos Orixás para que fosse mãe de santo deve ser seguida fiel e indelevelmente, embora não seja uma obrigação a dedicação exclusiva. Outro aspecto que ressalta é a dificuldade em encontrar emprego no município onde mora e nos vizinhos, devido às crises socioeconômicas vigentes na região. Em Bocaiuva4 4 A dificuldade de emprego relatada por Mametto vai ao encontro aos resultados obtidos pelo trabalho de Andrade e Dias (2009). Estes autores já alertavam, por meio da análise do índice de Desenvolvimento das Famílias (IDF), que Bocaiuva, inserido na microrregião que leva o mesmo nome desse município, apesar de apresentar os melhores indicadores de emprego ligados à indústria, tenderia a ter alguns elementos deficitários, a exemplo da renda per capito. De fato, a microrregião ainda sofre com questões ligadas ao acesso a trabalho e à distribuição de renda. , enfatiza que se soma outra dificuldade, o preconceito sofrido. Contudo, Mametto realiza atividades informais como cabeleireira, vende artesanatos e presta serviço como cuidadora de idosos. Esclarece que, embora não possa explicitar em detalhes o quanto ganha com os trabalhos espirituais, o dinheiro advindo deles agrega na renda dela. O dinheiro ganho com os trabalhos segue dois destinos. Uma parte é investida nas oferendas às divindades, por meio da compra de materiais a serem utilizados, e outra permanece com ela para fins não religiosos, como pagamento pela mão de obra empregada na realização dos trabalhos.

No que se refere aos preços a serem cobrados pelos trabalhos, Mametto afirma que isso é relativo e depende dos seguintes fatores: 1) se as pessoas têm relações com o Ilê (visitantes frequentes, amigos, conhecidos) e se são pessoas mais pobres, cobra-se menor preço; se são desconhecidos ou não bocaiuvenses, sobe-se o preço; 2) ou se a pessoa apresentar melhores condições socioeconômicas, cobra-se mais caro, e piores condições de vida, mais barato; 3) o tipo de serviço a ser prestado, sendo que, via de regra, trabalhos que envolvem amarração de amor são os mais caros, podendo variar, de acordo com as especificidades espirituais e contextuais do caso, de R$ 300,00 a R$ 2.000,00. Desta forma, entendemos que há duas lógicas de hierarquização dos clientes no terreiro. A primeira leva em consideração o fator proximidade, sendo que adeptos e membros regulares pagam valores diferenciados nos serviços. O segundo fator leva em consideração a seleção socioeconómica na formação do preço, isto é, o preço a ser cobrado pelos trabalhos espirituais está diretamente ligado às condições financeiras dos clientes (declaradas por eles ou vistas nos jogos de búzios). O serviço é mais caro para pessoas em melhores condições financeiras.

A amarração de amor, trabalho mais solicitado pelos clientes, é o mais caro, uma vez que o dispêndio de materiais e de energia espiritual é maior, segundo Mametto. Ao que indica, Mametto não vê de forma positiva esse trabalho, pois infringe o que ela denomina de “livre-arbítrio”, quer seja, poder escolher com quem se quer relacionar, além de ser espiritualmente “pesado” para quem o realiza (cliente e pai/mãe de santo). Porém, em casos de “quebrar trabalhos feitos” ou “amarrar” quem muito humilhou o/a parceiro/a, a amarração se vê como fator de justiça. Mas a permissão para realizar ou não a amarração parte, em primeiro lugar, dos guias espirituais e, em segundo, de Mametto.

No Ilê, a relação entre cobrança financeira e serviços espirituais, como é o caso da amarração do amor ou jogo de búzios, move dois mundos aparentemente hostis. Este cenário permite resgatar a concepção de Zelizer (2009)ZELIZER, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, jan./jun., p. 135-57, 2009.. A autora enfatiza que o uso do dinheiro nas relações pessoais tem significado permanentemente construído e reconstruído pelos indivíduos. Portanto, somente dentro das relações sociais concretas e específicas é possível compreender e julgar se o dinheiro desempenha um papel hostil e corrompe práticas e costumes - ou se manifesta como uma das muitas dimensões que materializa os laços humanos. Tal concepção parte do princípio de que as barreiras entre o que é ou não aceitável são erguidas pelos diferentes grupos sociais, já que são nesses espaços que eles definem suas próprias relações. Tudo isso indica que não existe uma esfera íntima, política ou sagrada que pode ser definida como externa ao mundo do dinheiro e outra em que só o dinheiro conta. A abordagem da autora descontrói a visão segundo a qual, se a dedicação é genuína, então não pode ser por dinheiro. Mametto afirma que, embora seja adepta da prática da “caridade”, a manutenção dessa caridade pressupõe a cobrança por alguns serviços. Por isso, estabelece preços diferenciados de acordo com a clientela.

Nos estudos sobre a “negociação da intimidade”, Zelizer (2009)ZELIZER, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, jan./jun., p. 135-57, 2009. aponta a crença generalizada de que o dinheiro corrompe a intimidade e dificulta nossa capacidade de analisar fenômenos pertencentes a mundos e com lógicas diferentes. Apesar de não abordar diretamente a negociação da intimidade em religiões de matriz africana, o referencial de Zelizer (2009)ZELIZER, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, jan./jun., p. 135-57, 2009. permite pensar os “serviços magísticos no terreiro” como uma mercadoria, mas também como relações íntimas entre clientes e Mametto.

Sobre a relação entre a esfera da intimidade e o envolvimento dos indivíduos, Neiburg (2003)NEIBURG, Federico. Intimacy and the public sphere. Politics and culture in the argentinian national space, 1946-55. Social Anthropology, Cambridge (Reino Unido), v. 11, n. 1, p. 63-78, 2003. destaca que, de modo geral, os sentimentos tidos como intensos e genuínos são decorrentes de vínculos de proximidade e constituídos a partir da consanguinidade ou da partilha de um espaço comum. Neste contexto, a partir de Zelizer (2009)ZELIZER, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, jan./jun., p. 135-57, 2009., os serviços magísticos do Ilê podem ser entendidos na lógica de “esferas separadas”, pois demarcam dois domínios distintos da vida social funcionando com princípios diferentes: racionalidade, eficiência e planejamento, de um lado; solidariedade, sentimento e impulso, de outro. Mametto elucida que no Candomblé praticado por ela o dinheiro não é visto como “maldição”, “ganância” ou “raízes de todos os males”, mas como “axé” emanado pelas divindades, sendo, por isso, o dinheiro utilizado em muitos rituais como forma de oferenda e gratidão aos guias.

Os serviços magísticos prestados no llê podem igualmente ser compreendidos, ainda à luz de Zelizer (2009)ZELIZER, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, jan./jun., p. 135-57, 2009., ao defrontá-los com a noção de “mundos hostis”, situação em que as duas esferas separadas entram em contato, contaminando uma à outra. Esta mistura corromperia ambas. A invasão do mundo íntimo pela racionalidade instrumental o diminui, enquanto a interferência do sentimento em transações racionais produz ineficiência e favoritismo.

Dentro da zona monetária, ideias de esferas separadas e mundos hostis figuram com proeminência ainda maior do que em qualquer outra parte da análise econômica. Uma ideia muito próxima persiste: o dinheiro e a intimidade representam princípios contraditórios cuja interseção gera conflito, confusão e corrupção. (ZELIZER, 2011. p. 32-33ZELIZER, Viviana A. A negociação da intimidade. Petrópolis: Vozes, 2011.).

Na abordagem de Zelizer (2011)ZELIZER, Viviana A. A negociação da intimidade. Petrópolis: Vozes, 2011., as doutrinas de “mundos hostis” apresentam a ideia de que as transações econômicas corrompem as relações íntimas ou sagradas. No entanto, a autora sustenta que um conjunto de estudos demonstra que as pessoas conseguem integrar as transferências monetárias às redes de obrigações sem destruir os laços sociais envolvidos, o que aclararemos em parágrafos seguintes.

No terreiro de Candomblé estudado, os integrantes compartilham rotineiramente a produção, o consumo, a distribuição e a transferência de dinheiro e bens por meio de oferendas coletivas, doações, organizações de festas religiosas e confiança na administração de Mametto, conforme esclarecido por muitos adeptos durante o trabalho de campo. O terreiro de Candomblé em voga se diferencia de outros lugares de atividades econômicas, tendo em vista que a proximidade e a frequência de alguns clientes criam conhecimento, influência, direitos e obrigações mútuas mais extensas do que os que se desenvolvem em outros conjuntos econômicos. Ao considerar o dinheiro como “dádiva”/“axé” e a descaracterização dele enquanto “coisa” e capital única e exclusivamente financeiro, o terreiro se destoa das visões de “mundos hostis” como unidades domésticas de domínio exclusivo de sentimento e solidariedade no qual qualquer intrusão de cálculo econômico ameaça a intimidade. Há um equilíbrio simbiótico entre as relações interpessoais e íntimas com os acordos econômicos balizados pelos serviços magísticos.

Logo, insta salientar o referencial que Zelizer (2009)ZELIZER, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, jan./jun., p. 135-57, 2009. chama de “boas combinações”. Para a autora, a crença difundida de que o dinheiro contamina a intimidade bloqueia nossa capacidade de descrever e explicar determinados temas. A autora aponta que muitos observadores acreditam que, se a mistura de laços pessoais ou religiosos com transações econômicas corrompe os espaços íntimos, por outro lado, a colonização das atividades comerciais pelas relações de intimidade corrompe igualmente essas atividades. A saída apresentada por Zelizer (2009)ZELIZER, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, jan./jun., p. 135-57, 2009. consiste no fato de que as pessoas se ajustam a essas dificuldades por meio de um conjunto de práticas denominadas por ela de “boas combinações”.

É passível de reconhecimento que as relações íntimas, serviços religiosos ou magísticos praticados no Ilê regularmente coexistem com transações econômicas sem danos para nenhuma das duas partes. Como observado durante o trabalho de campo e reverberado por Mametto, há um entendimento acordado entre os clientes e ela, tendo em vista os interesses, a priori religiosos, viáveis para ambas as partes.

A explicação de Zelizer (2009)ZELIZER, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, jan./jun., p. 135-57, 2009. sustenta que a atividade econômica e a intimidade se intersectam todo o tempo, ou seja, desenham “boas combinações”. Ainda enfatiza a ideia de que as práticas podem funcionar bem no contexto dos envolvidos. Isso não quer dizer que a combinação é igualitária e justa, mas sim que a combinação é viável. Boas combinações entre serviços magísticos e transações econômicas dependem muito de negociações entre as partes, como a relação entre mãe de santo e os clientes que frequentam o terreiro esporadicamente, ou ainda com aqueles que são frequentadores assíduos. Cada um dos grupos despende diferentes quantias financeiras para a realização dos trabalhos magísticos, indicando que se encerra em um cenário bom para as partes envolvidas.

Além de Zelizer (2009ZELIZER, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, jan./jun., p. 135-57, 2009., 2011ZELIZER, Viviana A. A negociação da intimidade. Petrópolis: Vozes, 2011.), será utilizado o referencial teórico de Pierre Bourdieu para analisar o “campo religioso” no qual se situa o Ilê, haja vista que os serviços magísticos realizados se inserem numa lógica de estruturas estruturadas e estruturas estruturantes, permeadas pela gestão de bens simbólicos e culturais.

Em Bourdieu (2013)BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013., a religião exerce um efeito de consagração a partir de duas modalidades: 1) por meio de sanções santificantes, as quais convertem as barreiras econômicas e políticas efetivas em limites legais, contribuindo para manipular simbolicamente as aspirações em prol da garantia e do ajustamento das expectativas às oportunidades objetivas, sendo a “santificação”, desta forma, subjetiva, uma travessia para o alcance de conveniências reais, objetivas; 2) imprime um sistema de práticas e de representações consagradas, capazes de reproduzir e transfigurar determinada estrutura socioeconômica (irreconhecivelmente) por meio do desconhecimento dos limites do conhecimento engendrado pela religião e por meio do reforço simbólico das sanções e dos limites quanto às barreiras lógicas e gnosiológicas impostas à realidade material.

Para o referido autor, o campo religioso é um espaço social que se estrutura em face de posições diferenciadas, sistemáticas próprias e propriedades personalizadas, a partir das quais se estabelece uma dinâmica condicionada por aquelas posições e peculiaridades. Mametto é quem no Ilê mais tem os conhecimentos relativos a todos os trabalhos, tanto pelo tempo de terreiro quanto pela posição espiritual ocupada, cabendo a ela estipular de quem cobra, o quanto cobra, bem como administrar o dinheiro auferido com os trabalhos. Desta forma, o campo religioso se constrói a partir do habitus (estruturas estruturantes e estruturadas de práticas) dos grupos religiosos. Neste ínterim, uma estrutura subjetiva que é a religião passa a estruturar objetivamente mecanismos sociais, posto que o próprio ato religioso atende a uma demanda social, como é o fato de as pessoas pagarem pela “união amorosa” propiciada por trabalhos espirituais advindos do llê.

A propósito, o campo religioso, inerente ao campo cultural, caracteriza-se por uma “estrutura estruturada” e “estrutura estruturante”. Trata-se de uma “estrutura estruturada”, pois, a partir de um campo simbólico “habitualizado”, os homens constroem a vida social a eles imanentes. Por sua vez, refere-se a uma “estrutura estruturante”, já que o homem pode adaptar e fazer uso delas, cultura/religião, segundo a lógica dos objetivos que os impulsionam. Em linhas de exemplificação, um candomblecista vê-se posicionado em um campo religioso, institucionalizado e legitimado por um sistema simbólico próprio. A partir da estrutura estruturada intrínseca a sua cultura/religião, adota ou não modos de vestir, falar e comer ou de realizar a amarração de amor, como no caso do poder decisório de Mametto. Por sua vez, segundo a lógica “estruturante”, pode adaptar esses mesmos modos de vestir, falar e comer de acordo com os fundamentos teológicos e doutrinários os quais julga ser correto, pois, para muitos terreiros, “amarrar” não é permitido. Outrossim, esse mesmo candomblecista tem a possibilidade de promover rupturas dentro do campo religioso, influenciado por um leque variado de contextos, ou promover a ratificação constante do habitus a ele simbolicamente ensinado/trocado, igualmente influenciado por contextos diversos. Mametto, ao mesmo tempo que se atém a uma estrutura estruturada inerente aos fundamentos do Candomblé (jogo de búzios, ebós, rituais, entre outros), efetua mecanismos estruturantes ao direcionar as trocas materiais de acordo com o que acredita ser ético, justo ou necessário.

Sendo assim, o campo religioso é constante e tacitamente marcado pela disputa e pelo gerenciamento dos recursos e bens simbólicos nele presentes, capital religioso e, logo, capital cultural, por parte de “dominantes” e “dominados”. Sob tal ambulação, bens de salvação são disputados dentro de um campo simbólico, em que um “corpo de especialistas”, sacerdotes, os dominantes ou produtores e gestores dos referidos bens oferecem “trabalho religioso” aos dominados, consumidores dos bens de salvação produzidos e gerenciados pelos dominantes. Estabelece-se, por conseguinte, um sistema de trocas simbólicas mediadas por práticas e manifestações do sagrado, canalizadas e catalisadas socialmente e que acaba por atender à necessidade dos que precisam do bem simbólico religioso e de quem precisa por variados motivos reproduzi-lo. O llê, neste sentido, atua como um centro de gestão destes bens simbólicos, delimitando claramente dominantes e dominados por meio de um conjunto delimitado e articulado entre clientes, adeptos assíduos, bocaiuvenses e a própria Mametto.

Para Bourdieu (2013)BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013., o uso reiterado, reproduzido, ortodoxo e específico do capital simbólico particular de um campo religioso promove a manutenção do dominante no poder. Aos heréticos, heterodoxos, compete se erguerem a partir de mecanismos subversivos à ordem preestabelecida por quem domina. O contra-ataque reside na afirmação de valores religiosos. Surge então uma nova divisão social do trabalho que embala o campo religioso, “os sacerdotes”, legitimados e reconhecidos para se posicionarem enquanto tal, e “os profetas” imbuídos da tarefa de contrapor a ideologia reinante no campo. Por sua vez, Mametto também tem consciência de que algumas pessoas, inclusive do Candomblé, não se sentem bem ao realizar a amarração, sobretudo com a cobrança. Entretanto, alivia-se ao lembrar que foi ensinada assim pelos pais de santo e que o dinheiro proveniente dos trabalhos ajuda a manter as despesas dela e do terreiro. Aparentemente, uma contradição se instaura, mas Mametto equaliza a problemática ao se ancorar concomitantemente em aspectos religiosos e econômicos via “boas combinações”, conforme esclarecido anteriormente.

Além da amarração, outra forma de cobrança é por meio do jogo de búzios. Os búzios, elementos norteadores de ações espirituais no Candomblé, constituem tipo de oráculo no qual, segundo a crença, os Orixás respondem em relação ao passado e, principalmente, em relação ao futuro. Entre as principais funções do jogo de búzios no Ilê, destacam-se: determinar a relação filho de santo e o Orixá dono do Ori; descobrir trabalhos (feitiços) e demandas jogados contra o terreiro; determinar a realização ou não de ajeums; identificar os ebós a serem feitos; verificar as cobranças espirituais dos Orixás em relação ao llê ou aos clientes, entre outros objetivos. Não é um serviço a ser realizado gratuitamente. Com ou sem justificativa, sempre se cobra. Mametto não explica enfaticamente por que cobra por isso, apenas diz sutilmente que aprendeu assim e que é desta forma que funciona no Candomblé, situação diferente em se tratando da amarração de amor. Neste sentido, Baptista (2005, p. 76-7)BAPTISTA, José Renato de Carvalho. “No candomblé nada é de graça...”: estudo preliminar sobre a ambiguidade nas trocas no contexto religioso do Candomblé. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, n. 1, p. 68-94. 2005. elucida que, mesmo para os membros do terreiro, o jogo de búzios nunca é totalmente gratuito:

[...] outra questão essencial que caracteriza o jogo de búzios é o fato de que ele quase nunca é realizado de forma gratuita pelo pai de santo. A relação de clientela é quase que determinante nestas consultas. [...] A própria iniciação estabelece uma relação de obrigação do iniciado para com a comunidade na prestação de serviços junto às atividades rituais, sobretudo porque essas atividades constituem-se numa parte do aprendizado iniciático.

O jogo de búzios, explica Baptista (2005)BAPTISTA, José Renato de Carvalho. “No candomblé nada é de graça...”: estudo preliminar sobre a ambiguidade nas trocas no contexto religioso do Candomblé. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, n. 1, p. 68-94. 2005., sempre põe duas questões em xeque: o cliente, ao ter revelado suas intimidades perante o jogador; e o próprio jogador, que tem a sua expertise de “advinhador” testada, podendo, a partir daí, criar fama ou ser malvisto perante o atual e os futuros clientes. Mametto concorda com esta afirmação, uma vez que assegura que, se não é o dom dado pelos Orixás, a pessoa não consegue fazer o jogo certo. Em média, a consulta com os jogos de búzios custa entre 50 e 80 reais, variando de acordo com a possibilidade do cliente em pagar.

Mas há, para ela, uma questão em pauta: atesta que, se ganhasse “um bom salário”, não cobraria de muitas pessoas. A partir disso, uma reflexão merecer ser feita. As imposições capitalistas de acumulação que contracenam com as incertezas de um “mínimo de subsistência”, por assim dizer, conduzem os indivíduos a aderirem de uma forma ou de outra ao sistema. A religião Candomblé assumiu, por meio dos serviços magísticos, esta função para si. Contudo, apesar de “resolver o dilema financeiro” de muitos pais/mães de santo, atende à necessidade e ao anseio de muitos clientes, visto que encontram no Candomblé e nos serviços prestados por ele uma tentativa de minimizar alguns problemas que os atingem. Assim, o jogo de búzios é uma troca simbólica entre cliente e pai/mãe de santo, mas que não se enquadra diretamente na perspectiva acumulativa do capital, pelo menos não dos grandes capitalistas articulados e especialistas em exploração do trabalhador.

Em pesquisa relacionada ao tema, Carvalho (2011)CARVALHO, José Jorge. A economia do axé: os terreiros de religião de matriz afro-brasileira como fonte de segurança alimentar e rede de circuitos econômicos e comunitários. In: BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Alimento: direito sagrado. Pesquisa socioeconômica e cultural de povos e comunidades tradicionais de terreiros. Brasília: MDS, 2011. p. 37-62. propõe que, embora haja monetarização nas trocas econômicas do axé, há nelas a valorização das relações face a face, das diversidades produtivas e dos mercados não industriais. Historicamente, é possível compreender um dos motivos que levaram à cobrança pelos serviços espirituais no Candomblé. Após a abolição da escravatura, muitos escravos e descendentes destes foram obrigados a ocupar áreas mais distantes dos centros urbanos e desprovidos de infraestrutura, sem condições para aderirem às novas regras para o trabalho assalariado. Mas detinham o conhecimento religioso a ofertar à classe média, que, em estado de falência e perda do poder, via nos trabalhos de “M(m)acumba” a chance de se reestabelecer socialmente. Portanto, a cobrança pelos trabalhos magísticos realizados era uma forma dos antigos escravizados de se adequarem ao sistema capitalista, que gradativamente, desde o século XVI, já os forçavam a se submeterem a ele. Contudo, ressalta-se que, além da questão histórica, de modo geral, os terreiros que efetuam a cobrança pelos atendimentos apresentam desde fundamentação religiosa, ao justificarem ser um pré-requisito estipulado pelas divindades para receberem os trabalhos, justificativas de ordem administrativo-financeiras (manutenção das atividades do terreiro), até mesmo a concepção de que o atendimento espiritual é um trabalho/serviço e, portanto, deve ser remunerado. Mametto entremeia por todos estes aspectos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depreende-se que o Candomblé viu na cobrança de alguns serviços magísticos a possibilidade de se adequar à realidade de avanço do capital e, assim, acomodar-se às novas demandas sociais para não “morrer” (PRANDI, 2004PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, 2004. p. 223-38.). Indubitavelmente, há de se concordar com Streeck (2013)STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Coimbra: Conjuntura Atual Ltda., 2013., ao afirmar que o capitalismo se reinventa e adia a sua crise, sendo que, neste ínterim, o Candomblé se adapta para não se perder, como foi toda a estratégia para se manter ainda nos dias de hoje enquanto religião residual. De fato, em muitos terreiros, a cobrança não se aplica exclusivamente porfundamentos ritualísticos-doutrinários, mas também como estratégia de subsistência de sujeitos sociais [e não meramente religiosos] num cenário permeado por dificuldades econômicas, o que se aplica ao terreiro estudado, uma vez que, para alguns trabalhos, Mametto não cobraria caso tivesse emprego formal, segundo ela, e, ainda, não cobra por trabalhos para o “bem”. Logo, conforme apontado no texto, a despeito da justificativa religiosa (como a crença no maior dispêndio de energia espiritual na amarração, por exemplo), a cobrança se deve também por ordem secular, como angariar rentabilidade, esta empregada tanto no consumo de atividades não religiosas quanto na vivência/manutenção do espaço sagrado.

Entretanto, além do viés econômico, cumpre ressaltar o peso exercido por aspectos de ordem religiosa. A amarração de amor ainda permite a Mametto flexibilizar no preço, mas, quanto ao jogo de búzios, não. Embora Mametto não esclareça pormenores, evidencia que se trata de uma aprendizagem cultural e religiosa do Candomblé praticado por ela, a qual afirma repassar para seus filhos de santo. O campo religioso do Ilê demonstra que o dinheiro se vê mediatizado entre a fé do axé e as transações financeiras dos serviços magísticos, não corrompendo as relações íntimas e sagradas nestes espaços. O caso estudado demonstra que é possível realizar “boas combinações”, em que as pessoas conseguem integrar as transferências monetárias, sem destruir os laços construídos entre homens/homens e entre homens/divindades, por assim dizer, laços que Mametto demonstra ser orgulhosa em administrar.

Por certo, no Candomblé estudado, os adeptos exprimem relações não apenas religiosas puras, “a-ideológicas”, mas também mercadológicas/econômicas entre si e entre “os de fora”, muito embora valorizem concomitantemente uma perspectiva mais humanizada e menos coisificada dessas práticas, mesmo quando se considera a necessidade de obter dinheiro nas trocas [materiais e religiosas]. Se há, na história do povo de axé, motivos para a cobrança pelos serviços prestados, razões as quais ainda se fazem presentes, como a dificuldade de acesso ao trabalho e a outras formas de dignificação da vida humana, novas diacronias que incidem sobre a religião agregam e ressignificam as cobranças, a depender da nação, dos mitos, da herança religiosa, da individualidade do líder religioso e, claro, dos interesses viáveis dos clientes que procuram os serviços magísticos.

Ainda, por apontamento final, é importante frisar a necessidade do combate ao preconceito incidente sobre as religiões afro-brasileiras (a exemplo da dificuldade que muitos adeptos encontram para se empregarem, como a asseverada por Mametto). Compreender os “porquês” e a historicidade do povo de santo contribui veementemente para a autonomia religiosa e cidadã dele.

  • 2
    Para este trabalho, não foi permitida a divulgação do nome oficial do terreiro. A mãe de santo preferiu que fosse identificada pela palavra “Mametto”, termo comum em algumas nações de Candomblé para se referir às mães de santo.
  • 3
    Quizila significa briga, confusão ou comida que o Orixá não gosta. No caso, significa briga.
  • 4
    A dificuldade de emprego relatada por Mametto vai ao encontro aos resultados obtidos pelo trabalho de Andrade e Dias (2009)ANDRADE, Fabrício Fontes; DIAS, Carlos Alberto Pereira. Desenvolvimento Social e Dimensões da Pobreza: uma análise do Índice de Desenvolvimento das Famílias (IDF) na Macrorregião de Bocaiuva-MG. Desenvolvimento em Questão: Revista do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, ano 7, n. 14, p. 143-72, jul./dez. 2009.. Estes autores já alertavam, por meio da análise do índice de Desenvolvimento das Famílias (IDF), que Bocaiuva, inserido na microrregião que leva o mesmo nome desse município, apesar de apresentar os melhores indicadores de emprego ligados à indústria, tenderia a ter alguns elementos deficitários, a exemplo da renda per capito. De fato, a microrregião ainda sofre com questões ligadas ao acesso a trabalho e à distribuição de renda.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2020
  • Revisado
    13 Ago 2020
  • Aceito
    16 Set 2020
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