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Crédito solidário e desenvolvimento local participativo: uma investigação a partir da atuação dos bancos comunitários

Solidary credit and participative local development: a research from community banks

Crédito solidario y desarrollo local participativo: una investigación desde el desempeño de bancos comunales

Resumo

Este trabalho tem o objetivo de investigar como iniciativas de crédito solidário podem promover práticas participativas de organização comunitária que representem processos de desenvolvimento socioeconômico local. Como estratégia de análise do campo empírico, optou-se pelo estudo da experiência do Banco Ita, um Banco Comunitário de Desenvolvimento que atua no Assentamento Itamarati, em uma região rural do município de Ponta Porã, MS. A investigação sobre o objeto de estudo, associada à análise da experiência dos Bancos Comunitários, sustenta que tais organizações apresentam significativas contribuições para a organização de recursos financeiros de caráter associativo, desburocratizando e favorecendo o acesso de baixo custo a serviços de crédito mais adequados às necessidades comunitárias. Nesse sentido, apesar de o desenvolvimento local ser uma alternativa bastante restrita quando articulada apenas dentro de delimitações comunitárias, a mobilização participativa destacou-se como dinâmica estrutural e com potenciais emancipatórios, evidenciando o fortalecimento político de alternativas de resistência contra as forças globais e financeiras da desigualdade.

Palavras-chave:
crédito solidário; desenvolvimento local; finanças solidárias; bancos comunitários; associativismo

Abstract

This paper aims to investigate how solidarity credit initiatives can promote participative practices of community organization that represent local socioeconomic development processes. As an empirical field analytical strategy, the researchers selected the case of the Banco Ita experience, a Community Development Bank that operates in the Itamarati Settlement, in a rural area of Ponta Porã, MS. Research on the object of study, associated with the analysis of the experience of Community Banks, argues that such organizations make significant contributions to the organization of financial resources of an associative nature, reducing bureaucracy and favoring low-cost access to credit services that are more suited to community needs. In this sense, although local development is a very restricted alternative when it articulated only within community boundaries, community mobilization was highlighted as a structural dynamic, and with emancipatory potential, evidencing the political strengthening of resistance alternatives against the global and financial forces of inequality.

Keywords:
solidarity credit; local development; solidarity finances; community banks; associativism

Resumen

Este trabajo tiene objetivo de investigar cómo las iniciativas de crédito solidario pueden promover prácticas participativas de organización comunitaria que representan procesos de desarrollo socioeconómico local. Como estrategia de análisis del campo empírico, se optó por estudiar la experiencia del Banco Ita, un banco de desarrollo comunal que opera en el asentamiento Itamarati, en una región rural del municipio de Ponta Porã, MS. La investigación sobre el objeto de estudio, asociada al análisis de la experiencia de los Bancos Comunitarios, sostiene que dichas organizaciones realizan aportes significativos a la organización de los recursos financieros de carácter asociativo, reduciendo la burocracia y favoreciendo el acceso a bajo costo a servicios crediticios más adecuados para necesidades de la comunidad. En este sentido, si bien el desarrollo local es una alternativa bastante restringida cuando se articula sólo dentro de los límites comunitarios, la movilización participativa se destacó como una dinámica estructural y con potencial emancipador, evidenciando el fortalecimiento político de alternativas de resistencia frente a las fuerzas globales y financieras de la desigualdad.

Palabras clave
crédito solidario; desarrollo local; finanzas solidarias; bancos comunales; asociativismo

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como tema central o fenômeno de serviços de crédito solidário no âmbito participativo da organização comunitária de experiências de promoção do desenvolvimento socioeconômico local.

A maior expressão do atual regime de acumulação capitalista reside nos imperativos de uma globalização pautada por grandes interesses corporativos, articulados com um sistema financeiro caracterizado por uma progressiva concentração e centralização da riqueza, do capital e dos recursos produtivos em geral, em níveis nacionais e, sobretudo, internacionais (Harvey, 2011HARVEY, D. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.; Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.; Melges et al., 2022MELGES, F.; CALARGE, T. C. C.; BENINI, E. G.; PACHECO, A. P. C. A nova precarização do trabalho: um mapa conceitual. Organizações & Sociedade, Salvador, v. 29, n. 103, p. 652-80, 2022.).

Nessas condições, a organização espacial das atividades econômicas leva a crescentes desigualdades sociais, condicionando territórios e comunidades à exclusão e ao empobrecimento crônico, pelo fato de se localizarem à margem dos circuitos desse mesmo sistema (Antunes, 2018ANTUNES, R. L. C. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.; Oliveira; 2022OLIVEIRA, E. G. A crise social do emprego e a ampliação dos trabalhadores assalariados por conta própria. 2022. Tese (Doutorado em Administração) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022.).

Por outro lado, é crescente o número de formas de organização do desenvolvimento local que se contrapõem como espaços de resistência às forças econômicas ou mercadológicas hegemônicas que ocasionam a desigualdade e a exclusão (Yunus, 2010YUNUS, M. Building Social Business: the new kind of capitalism that serves humanity's most pressing needs. New York City: PublicAffairs, 2010.; Yunus; Jolis, 2006YUNUS, M; JOLIS, A. O banqueiro dos pobres. São Paulo: Ática, 2006.; Benini; Benini, 2010BENINI, E. A.; BENINI, E. G. As contradições do processo de autogestão no capitalismo: funcionalidade, resistência e emancipação pela economia solidária. Organizações & Sociedade, Salvador, v. 17, n. 55, p. 605-19, 2010.; Dagnino, 2019DAGNINO, R. Tecnociência solidária: um manual estratégico. Marília: Lutas Anticapital, 2019.; Benini; Benini; Pacheco, 2022BENINI, E. A; BENINI, E. G. PACHECO, A. P. C. Cooperativa integral, organicidade socioprodutiva e governança autogestionária: explorando confluências, possibilidades e limites para a construção de um território sustentável. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 27, 2022.).

Com efeito, tais formais de organização de resistência partem de uma perspectiva sustentável e alternativa do desenvolvimento, orientada para as necessidades substantivas. Em vez de incentivo ao consumismo desenfreado, insere, como característica, a endogenia de harmonia com os recursos naturais e a autonomia das dinâmicas e práticas de transformação. Sob essa perspectiva, a estratégia de um desenvolvimento local participativo precisa constituir-se como um processo em que as localidades e comunidades assumam a centralidade e o protagonismo no incremento do bem-estar coletivo, transformando a própria realidade a partir da mobilização popular e da dinamização de suas potencialidades endógenas (Oliveira et al., 2018OLIVEIRA, E. G; BENINI, E. G; SANTANA; K. G. E.; NEMIROVSKY, G. G; FEDERICHI, D. Moedas sociais e suas contribuições em comunidades economicamente precarizadas: um estudo exploratório da experiência do Projeto Pet Mania em Campo Grande - MS. Desenvolvimento Em Questão, Ijuí-RS, v. 16 n. 43, 2018.; Benini; Benini; Pacheco, 2022BENINI, E. A; BENINI, E. G. PACHECO, A. P. C. Cooperativa integral, organicidade socioprodutiva e governança autogestionária: explorando confluências, possibilidades e limites para a construção de um território sustentável. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 27, 2022.).

O comportamento e os serviços financeiros das organizações bancárias formais identificam-se por um alto custo de acesso para a população mais pobre. A exclusão financeira é, assim, uma característica das populações pobres ou que se encontram socioeconomicamente vulneráveis. É também um dos grandes fatores explicativos do empobrecimento de territórios. No sistema capitalista, a realização de atividades produtivas e a circulação de riqueza que garanta o atendimento das necessidades pressupõem a disponibilidade de recursos de troca e de apropriados serviços de financiamento (Carvalho; Abramovay, 2004CARVALHO, C. E.; ABRAMOVAY, R. O difícil e custoso acesso ao sistema financeiro. In: SANTOS, C. A. (Org). Sistema financeiro e as micro e pequenas empresas: diagnósticos e perspectivas. Brasília: SEBRAE, 2004. p. 17-45.).

Por sua vez, as finanças solidárias distinguem-se como organizações que buscam adequar serviços financeiros às necessidades particulares de comunidades ou localidades marginalizadas em relação ao atendimento do mercado bancário tradicional. Nesse escopo, estão inseridas diversas experiências, tais como as moedas sociais, os Bancos Comunitários de Desenvolvimento, os Fundos Rotativos, os clubes de trocas, as cooperativas de crédito solidário e certas iniciativas de microfinanças (Coelho, 2003aCOELHO, F. D. A história das finanças solidárias. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, 22., João Pessoa, julho, 2003. Anais [...]: ANPUH, 2003a.; Singer, 2009; Rigo, França Filho; Leal, 2015RIGO, A. S.; FRANÇA FILHO, G. C.; LEAL, L. P. Os bancos comunitários de desenvolvimento na política pública de finanças solidárias: apresentando a realidade do Nordeste e discutindo proposições. Desenvolvimento em Questão, Ijuí, v. 13, n. 31, p. 70-107, 2015.; Oliveira, 2017OLIVEIRA, E. G. Crédito solidário e moedas sociais na perspectiva do desenvolvimento local participativo: potencialidades e limitações frente ao capitalismo e suas contradições. 2017. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, 2017.; Oliveira et al., 2018OLIVEIRA, E. G; BENINI, E. G; SANTANA; K. G. E.; NEMIROVSKY, G. G; FEDERICHI, D. Moedas sociais e suas contribuições em comunidades economicamente precarizadas: um estudo exploratório da experiência do Projeto Pet Mania em Campo Grande - MS. Desenvolvimento Em Questão, Ijuí-RS, v. 16 n. 43, 2018.; Rigo; 2018RIGO. A. S. Crédito para os mais pobres. GVEXECUTIVO, São Paulo, v. 17. n. 6, p. 16-19, nov./dez. 2018.; Rigo; Cançado; Silva Jr., 2019RIGO, A. S.; CANÇADO, A. C.; SILVA JR, J. T. Desafios e potencialidades das moedas complementares: explorando sua utilização e significado para o desenvolvimento. Revista Tecnologia e Sociedade, Curitiba, v. 15, n. 38, p. 303-21, 2019.; Purkayastha; Tripathy; Das, 2020PURKAYASTHA, D.; TRIPATHY, T.; DAS, B. Understanding the ecosystem of microfinance institutions in India. Social Enterprise Journal, Leeds-UK, v. 16, n. 3, p. 243-61, 2020.; Mourao; Retamiro, 2021MOURAO, P. R.; RETAMIRO, W. Community development banks (CDB): a bibliometric analysis of the first 2 decades of scientific production. Environment, Development and Sustainability, New York City, v. 23, n. 1, p. 477-93, 2021.).

Os Bancos Comunitários de Desenvolvimento (BCDs) e seus serviços de crédito solidário estabeleceram-se em várias regiões do Brasil, sobretudo a partir de 2005, por meio da articulação de redes econômicas de práticas solidárias e com o apoio da Secretaria Nacional de Economia Solidária, que buscou propiciar uma consolidação de políticas públicas de finanças solidárias (Rangel; Silva, 2016RANGEL, T. L. V.; SILVA, D. J. Redistribuição e reciprocidade na realidade dos bancos comunitários: o caso do banco preventório e do banco comunitário popular de Maricá/RJ. Lex Humana, PETRÓPOLIS-RJ, v. 8, n. 1, p. 118-40, 2016.).

Apesar do suporte governamental, Raposo (2014)RAPOSO, J. G. Banco Comunitário de Desenvolvimento Jardim Botânico: gestão social Comunitária para o desenvolvimento local. 2014. Dissertação (Mestrado em Gestão em Organizações Aprendentes) - Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, 2014. defende que se trata de organizações de base comunitária autônoma, cuja ação e propósito são estabelecidos pelo protagonismo das relações locais de seus membros, o que poderia ser considerado como outra proposta de políticas públicas mais horizontais que se contrapõem às práticas patrimonialistas ou clientelistas.

No entanto, alguns autores, tais como Coelho (2003a)COELHO, F. D. A história das finanças solidárias. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, 22., João Pessoa, julho, 2003. Anais [...]: ANPUH, 2003a. e Abramovay (2003)ABRAMOVAY, R. Finanças de proximidade e desenvolvimento territorial no semi-árido brasileiro. In: COSSÍO, Maurício Blanco (Org.). Estrutura agrária, mercado de trabalho e pobreza rural no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2003. e Bateman (2010)BATEMAN. M. Why doesn´t microfinance work? The destructive rise of local neoliberalism. New York: Zed books Ltd., 2010., entre outros, advertem que as experiências com bancos comunitários têm resultados muito limitados, ou mesmo ineficientes, quando reduzidas à mimetização de serviços bancários tradicionais ou apenas ao fornecimento de microcréditos, relegando a segundo plano a mobilização comunitária, o que impede o avanço nas formas substantivas de organização social.

Diante dessas problematizações, este trabalho teve o objetivo de investigar como as iniciativas de crédito solidário podem contribuir com as práticas participativas de organização comunitária que representem processos de inclusão financeira para o desenvolvimento socioeconômico local. Como estratégia de análise do campo empírico, optou-se pelo estudo da experiência do Banco Ita, um Banco Comunitário de Desenvolvimento que atua no Assentamento Itamarati, em uma região rural do município de Ponta Porã, MS.

A exposição da pesquisa encontra-se organizada em seis seções. A próxima seção trata da temática das organizações alternativas de crédito diante da necessidade de democratização dos serviços financeiros. A seção três traz a contextualização e a caracterização mais detalhadas da articulação dos bancos comunitários, considerando sua atuação sob a perspectiva de um desenvolvimento local participativo. Na sequência, são demonstrados os procedimentos metodológicos da pesquisa, tratando das estratégias de investigação e dos elementos formadores da análise do objeto. Na quinta seção, são expostos os resultados da análise da experiência estudada, o caso do Banco Ita, no Assentamento Itamarati. Na última seção, são tecidas algumas considerações.

2 ALTERNATIVAS DE SERVIÇOS DE CRÉDITO E A PROPOSTA DAS FINANÇAS SOLIDÁRIAS

O surgimento das iniciativas de microfinanças e sua proposta inclusiva para os serviços de intermediação financeira são significativos para a quebra da visão funcionalista das finanças que, sob a lógica de mercado, é disseminada pelas práticas do setor bancário tradicional. Coelho (2003aCOELHO, F. D. A história das finanças solidárias. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, 22., João Pessoa, julho, 2003. Anais [...]: ANPUH, 2003a., p. 154) caracteriza as microfinanças como “toda e qualquer operação financeira destinada a pessoas e empresas normalmente excluídas do sistema tradicional ou população de baixa renda”.

O microcrédito ou o crédito em pequenas proporções para pessoas e grupos em situação de baixa renda é a principal atividade realizada no âmbito das microfinanças. Trata-se de uma metodologia de concessão de empréstimos de baixo valor para empreendedores informais ou microempresas que necessitam de capital de giro ou de recursos de investimento para manter ou ampliar suas atividades, mas que não possuem as garantias exigidas pelo sistema financeiro tradicional (Barone et al., 2002BARONE, F. M; DANTAS, V.; LIMA, P. F.; REZENDE, V. Introdução ao microcrédito. Brasília: Conselho da Comunidade Solidária, 2002.).

Para atingir seu público, as microfinanças utilizam diferenciados processos e práticas de gestão. Além do microcrédito, podem oferecer serviços de correspondência bancária, seguros e poupança. Embora as microfinanças visem à democratização do sistema financeiro, Coelho (2003a)COELHO, F. D. A história das finanças solidárias. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, 22., João Pessoa, julho, 2003. Anais [...]: ANPUH, 2003a. considera que uma grande limitação das experiências desse escopo é o fato de que, muitas vezes, atuam apenas com um serviço financeiro, os sistemas de pequenos créditos, deixando de lado outras atividades complementares, como o apoio e a iniciativa de mobilização comunitária.

Abramovay (2003)ABRAMOVAY, R. Finanças de proximidade e desenvolvimento territorial no semi-árido brasileiro. In: COSSÍO, Maurício Blanco (Org.). Estrutura agrária, mercado de trabalho e pobreza rural no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2003. também argumenta que a proposta das microfinanças se torna ineficiente quando elas se limitam somente aos serviços de microcrédito como mera transferência de pequenos recursos financeiros, pois não promovem avanços qualitativos nas formas de organização da luta contra a pobreza.

O conceito mais recente de finanças solidárias vai além da noção de microfinanças, que são limitadas pelas relações de mercado. Inclui a ambição de organizar e construir relações socioprodutivas democratizadas, atuando no campo da economia solidária. Nesse sentido, Bateman (2010)BATEMAN. M. Why doesn´t microfinance work? The destructive rise of local neoliberalism. New York: Zed books Ltd., 2010. faz severas críticas e aponta que as microfinanças, quanto utilizadas apenas como serviços bancários, constituem grande barreira ao desenvolvimento econômico sustentável, impedindo a redução da pobreza. Dessa forma, torna-se um produto mal disfarçado de aumento do poder neoliberal.

Em face do cenário de uma forte fragmentação territorial e social cada vez mais frequente nas mais diversas comunidades, reflexo da hegemonia de um modelo de globalização neoliberal, ocorreu, nos anos 1990, uma intensificação de iniciativas que se organizaram para criar relações produtivas solidárias, com a ampla participação de setores populares.

Nesse movimento, a ambição foi muito além da possibilidade de acesso ao mercado. As finanças solidárias ganharam força como estratégia fundamental para democratizar as relações econômicas. No entanto, são gigantes os desafios históricos sistemicamente disseminados pela reprodução do capital. Além do destaque nas redes e nos fóruns dos movimentos da economia solidária, a proposta das finanças solidárias também tem ganhado destaque nas discussões sobre políticas públicas e de diferentes esferas de governo.

De acordo com a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) (Brasil, 2013BRASIL. Secretaria Nacional de Econnomia Popular e Solidária [SENAES]. Política Nacional de Economia Solidária. Termo de referência. Brasília/DF, 2013., p. 10), as finanças solidárias são iniciativas que buscam “fortalecer e reproduzir relações de confiança com base na reciprocidade”, de modo que “distinguem-se do sistema financeiro convencional pelas regras de acesso e funcionamento qualitativamente diferenciadas que são definidas solidariamente pelas comunidades ou conjunto de associados”.

Segundo Celho (2003b), as experiências de finanças solidárias distinguem-se de outras propostas de microfinanças, principalmente por suas particularidades de interesse em se articular diretamente à mobilização e à organização de base popular e comunitária dos territórios onde se localizam. Assim, o autor argumenta:

O território se constitui no espaço econômico diferenciado na medida em que apresenta diferentes tipos de ambiência produtiva, especificidades das cadeias produtivas, formas diferenciadas de integração horizontal e vertical, distintas correlações de forças locais. Neste sentido, a economia e as finanças devem ser entendidas como processos socioespaciais. [...]. Pensar o território significa identificar as formas distintas de organização econômica, de relações próprias entre sistemas urbanos e agrários, as imposições em termos de mobilidade de trabalho, a história do lugar, sua cultura. Ou seja, significa pensar a sua construção social (Coelho, 2003bCOELHO, F. D. Finanças solidárias. In: CATTANI, D. C. (Org.). A outra economia. Porto Alegre: Veraz Editores, 2003b., p. 162).

As finanças solidárias configuram-se uma alternativa de diversas modalidades de serviços financeiros, com a finalidade de democratizar o acesso a recursos de financiamento em benefício dos grupos sociais mais necessitados, que são excluídos do sistema bancário institucionalizado. Ademais, buscam incentivar e fortalecer experiências socioprodutivas, que se mobilizem no âmbito da economia solidária e na perspectiva do desenvolvimento local participativo. As intervenções das iniciativas de finanças solidárias proporcionam práticas socioeconômicas que geralmente vão além dos instrumentos financeiros.

Assim, em vez de serem promovidas com a finalidade de maximizar a rentabilidade do negócio, as finanças solidárias orientam-se por critérios de utilidade social, atraindo o apoio de organizações socioprodutivas que incorporem processos participativos e relações de solidariedade, mediante experiências com instrumentos e estratégias que contribuem diretamente para o desenvolvimento local. Em 2003, a Economia Solidária foi institucionalizada no país com a criação da SENAES, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego.

A SENAES representou, em certo sentido, a institucionalização de um rol de demandas represadas pelos diversos movimentos sociais, urbanos e rurais, por políticas públicas de fomento de trabalho e renda sob o arco organizacional de empreendimentos econômico solidários, possibilitando sua implementação, desenvolvimento e continuidade de suas atividades de forma autogestionária (Chiariello, 2020CHIARIELLO, C. A trajetória da SENAES em prosa e números: consolidação e réquiem de uma agenda pública para a economia solidária. Org & Demo, Marília, v. 21, n. 2, 2020., p. 98).

No entanto, a experiência institucional teve pouca duração. Em 2016, a Secretaria foi deslocada e rebaixada, e, finalmente, em 2019, extinta, o que representou “uma interrupção de uma experiência de política pública direcionada para a ação coletiva de trabalhadores e trabalhadoras” (Chiariello, 2020CHIARIELLO, C. A trajetória da SENAES em prosa e números: consolidação e réquiem de uma agenda pública para a economia solidária. Org & Demo, Marília, v. 21, n. 2, 2020., p. 97).

O fim dessa experiência formal institucional causou impacto nas experiências de economia solidária (Chiariello, 2020CHIARIELLO, C. A trajetória da SENAES em prosa e números: consolidação e réquiem de uma agenda pública para a economia solidária. Org & Demo, Marília, v. 21, n. 2, 2020.), sobretudo em um período de grave crise, como foi o da pandemia da covid-19. Não obstante, é importante ressaltar que o governo eleito no pleito de 2022 recriou a pasta de economia solidária, agora nominada de Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego (Brasil, 2023BRASIL. Decreto n. 11.359, de 1º de janeiro de 2023. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério do Trabalho e Emprego e remaneja cargos em comissão e funções de confiança. Brasília/DF, 2023. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11359.htm. Acesso em: 5 fev. 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

3 ATUAÇÃO DOS BANCOS COMUNITÁRIOS NA PERSPECTIVA DE UM DESENVOLVIMENTO LOCAL PARTICIPATIVO

De acordo com a Rede Brasileira de Bancos Comunitários, os Bancos Comunitários de Desenvolvimento (BCDs) são organizações de caráter associativo e comunitário, voltados para o fornecimento de serviços financeiros solidários em rede (REDE BRASILEIRA DE BANCOS COMUNITÁRIOS [RBBC], 2007REDE BRASILEIRA DE BANCOS COMUNITÁRIOS [RBBC]. Termo de referências dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento. Caucaia: RBBC, 2007.).

Algumas abordagens críticas (Lucena, 2013LUCENA, S. A. A implantação de um banco comunitário de desenvolvimento: estudo de caso sobre o processo organizativo da comunidade. 2013. 196 f. Dissertação (Mestrado em Gestão de Organizações Aprendentes) - Universidade Federal da Paraí-ba, João Pessoa, 2013.; Oliveira, 2017OLIVEIRA, E. G. Crédito solidário e moedas sociais na perspectiva do desenvolvimento local participativo: potencialidades e limitações frente ao capitalismo e suas contradições. 2017. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, 2017.) argumentam que os bancos privados não têm interesse de se instalar em comunidades pequenas ou assoladas pela pobreza. Nesse sentido, a implementação dos BCDs representa uma alternativa ao sistema financeiro hegemônico. Seus serviços de crédito não são concedidos meramente como um produto microfinanceiro, mas como uma política de inclusão social. Tendo por base princípios da economia solidária, o objetivo dos BCDs é fomentar o desenvolvimento de territórios de baixa renda, por meio do apoio à produção e à comercialização de riquezas locais, trazendo melhorias para as condições econômicas e sociais das comunidades.

Por meio de um conjunto de instrumentos financeiros alternativos e de estratégias de mobilização comunitária, os Bancos Comunitários de Desenvolvimento (BCDs) e a emissão de suas moedas sociais correspondem a uma das principais iniciativas de finanças solidárias no Brasil, com várias experiências atuantes em diversas regiões do país (Passos, 2007PASSOS, O. A. V. D. Estudo exploratório em bancos comunitários: conceito, características e sustentabilidade. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.; Rigo, 2014RIGO, A. S. Moedas sociais e bancos comunitários no Brasil: aplicações e implicações teóricas e práticas. Tese (Doutorado em Administração) - Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.; 2018RIGO. A. S. Crédito para os mais pobres. GVEXECUTIVO, São Paulo, v. 17. n. 6, p. 16-19, nov./dez. 2018.; Rangel; Silva, 2016RANGEL, T. L. V.; SILVA, D. J. Redistribuição e reciprocidade na realidade dos bancos comunitários: o caso do banco preventório e do banco comunitário popular de Maricá/RJ. Lex Humana, PETRÓPOLIS-RJ, v. 8, n. 1, p. 118-40, 2016.; Beatriz, 2016BEATRIZ, M. Z.; OLIVEIRA, J. A.; MARCHI, L.; BUENO, G.; CARNEIRO, G. Moeda social: possibilidades e limites - reflexões a partir da implantação do Ecobanco em uma Feira de Economia Solidária. Otra Economía, Buenos Aires, Argentina, v. 10, n. 19, 2016.; Oliveria, 2017; Oliveira et al. 2018OLIVEIRA, E. G; BENINI, E. G; SANTANA; K. G. E.; NEMIROVSKY, G. G; FEDERICHI, D. Moedas sociais e suas contribuições em comunidades economicamente precarizadas: um estudo exploratório da experiência do Projeto Pet Mania em Campo Grande - MS. Desenvolvimento Em Questão, Ijuí-RS, v. 16 n. 43, 2018.; Silva, 2020SILVA, S. P. Finanças solidárias no Brasil: caracterização, tipos organizacionais e suas dimensões estruturais. In: SILVA, S. P. (Org.). Dinâmicas da economia solidária no Brasil: organizações econômicas, representações sociais e políticas públicas. Brasília: Ipea, 2020.; Spilleir, 2021SPILLEIR, D. P. Economia solidária e obtenção de crédito: uma contribuição propositiva à luz do presente. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, Brasilia-DF, ano 27, n. 71, mar. 2021.; Pupo, 2022PUPO, C. G. PAULA. Finanças solidárias no Brasil: Bancos comunitários, moedas locais e a força dos lugares. 2022. Tese (Doutorado em Filosofia, Letras e Ciências Humanas) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.).

Além das modalidades de serviços de microcrédito solidário para fortalecer a geração e a ampliação de renda no território, os BCDs atuam com o principal objetivo de construir redes locais de economia solidária, adotando como estratégia a organização comunitária de produtores, prestadores de serviços e consumidores das localidades. Essa forma de articulação também recebe o nome de redes de prossumidores, em que os BCDs buscam financiar empreendimentos socioprodutivos, geração de serviços e consumo territorial na direção de um desenvolvimento comunitário organizado, com base em relações locais de solidariedade (França Filho; Silva Junior, 2009FRANÇA FILHO, G. C.; SILVA JÚNIOR, J. T. Bancos Comunitários de Desenvolvimento. In: HESPANHA, P., CATTANI, A. D., LAVILLE, J. L., GAIGER, L. I. Dicionário internacional da outra economia. Coimbra: Almedina, 2009. p. 31-6.).

Segundo França Filho (2008)FRANÇA FILHO, G. A via sustentável-solidária no desenvolvimento local. Organizações & Sociedade, Salvador, v. 15, n. 45, p. 219-32, abr./jun., 2008., a perspectiva de atuação dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento (BCDs) distancia-se da proposta de bancarização dos pobres, efetivada pelos bancos comerciais para ser explorada como um novo nicho de mercado. Por se fundamentarem em relações de proximidade e solidariedade, os BCDs ressignificam e criam outro universo de microfinanças, com o objetivo de estimular capacidades endógenas para impulsionar o desenvolvimento local.

No Brasil, o Banco Palmas foi a primeira experiência de banco comunitário que deu origem à expansão de outros BCDs. A atuação do Banco Palmas teve início em 1998, na cidade de Fortaleza, CE. Seu processo de construção foi resultado da articulação da Associação de Moradores do Conjunto Palmeiras (ASMOCONP), que já atuava com o propósito de implantar melhorias da qualidade de vida dos membros da comunidade do Conjunto Palmeiras. A busca por soluções de problemas, como falta de renda, escassez de oportunidades de trabalho e exclusão social, foi a principal motivação para a criação dessa experiência de finanças solidárias. Por seus significativos resultados para o desenvolvimento socioeconômico comunitário, o Banco Palmas ganhou grande visibilidade e até reconhecimento institucional (França Filho; Silva Junior, 2009FRANÇA FILHO, G. C.; SILVA JÚNIOR, J. T. Bancos Comunitários de Desenvolvimento. In: HESPANHA, P., CATTANI, A. D., LAVILLE, J. L., GAIGER, L. I. Dicionário internacional da outra economia. Coimbra: Almedina, 2009. p. 31-6.).

O segundo BCD foi criado no Ceará, em 2004. A criação dessas experiências se intensificou em todo o Brasil. A Rede Brasileira de Bancos Comunitárias é formada por todos os bancos comunitários que atuam de acordo com o termo de referência e marco conceitual constituído a partir da iniciativa do Instituto Palmas (RBBC,2007REDE BRASILEIRA DE BANCOS COMUNITÁRIOS [RBBC]. Termo de referências dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento. Caucaia: RBBC, 2007.; Passos, 2007PASSOS, O. A. V. D. Estudo exploratório em bancos comunitários: conceito, características e sustentabilidade. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.).

Conforme dados divulgados no site do Instituto Banco Palmas (2023)INSTITUTO BANCO PALMAS. Rede Brasileira de Bancos Comunitários. Fortaleza: Instituo Palmas, 2023. Disponível em: http://www.institutobancopalmas.org/rede-brasileira-de-bancos-comunitarios/. Acesso em: 1º/02/2023.
http://www.institutobancopalmas.org/rede...
e atualizados por Rigo (2018)RIGO. A. S. Crédito para os mais pobres. GVEXECUTIVO, São Paulo, v. 17. n. 6, p. 16-19, nov./dez. 2018., já se registravam, em 2009, 49 BCDs; em 2012, 78 BCDs compunham a rede nacional. A partir de 2012, houve uma ampliação das políticas de criação dos bancos comunitários e, já entre 2013 e 2015, a quantidade de BCDs cresceu de 103 para 115 experiências espalhadas por todo o território brasileiro, chegando ainda ao registro de 155 bancos comunitários no ano de 2018 (Rigo, 2018RIGO. A. S. Crédito para os mais pobres. GVEXECUTIVO, São Paulo, v. 17. n. 6, p. 16-19, nov./dez. 2018.).

Outra característica notável dos BCDs é a sua estrutura de gestão, com a organização de caráter comunitário, como associações, fóruns, conselhos ou, ainda, outros tipos de iniciativas da sociedade civil inseridas na comunidade, como ONGs, igrejas, sindicatos etc. A gestão comunitária e participativa é uma marca organizacional coerente com os propósitos dos BCDs. Adotam-se diversas estratégias para estabelecer a democratização de seus processos decisórios. Segundo o Instituto Palmas, sua gestão implica “numa dimensão compartilhada, com forte componente de controle social local baseado em mecanismos de democracia direta” no interior de estruturas de organização de caráter comunitário (Instituto..., 2006INSTITUTO BANCO PALMAS DE DESENVOLVIMENTO E SOCIOECONOMIA SOLIDÁRIA. Relatório de avaliação do projeto de apoio à organização de bancos comunitários. Fortaleza, 2006. [mimeo]., p. 8).

Desse modo, além de democratizar serviços financeiros, os bancos comunitários são iniciativas que visam a incrementar o desenvolvimento local endógeno, por meio do estímulo de práticas de auto-organização solidárias nas comunidades.

Os BCDs também atendem os beneficiários de programas assistenciais governamentais e de políticas públicas compensatórias. Sua sustentabilidade fundamenta-se na obtenção de subsídios justificados pela utilidade social das práticas dos BCDs; e sua manutenção pode ocorrer por meio da captação de recursos públicos e da instituição de um fundo solidário de investimento comunitário (Núcleo de Economia Solidária [NESOL], 2015NÚCLEO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA [NESOL]. Metodologia de implementação de Bancos Comunitários de Desenvolvimento. São Paulo: USP, 2015.). Conforme o NESOL (2015)NÚCLEO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA [NESOL]. Metodologia de implementação de Bancos Comunitários de Desenvolvimento. São Paulo: USP, 2015., esse fundo é formado por variadas fontes de recursos, tais como doações de pessoas físicas, prestação de serviços mercantis não concorrenciais, dentre outros tipos de prestação de serviços e cotizações de associados, seja de pessoas físicas, seja de pessoas jurídicas.

4 METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS DA PESQUISA

Com a finalidade de aprofundar a investigação dos elementos concretos acerca do objeto de estudo, envolvendo o fenômeno de organização de serviços de crédito solidário no sentido de um desenvolvimento local participativo, adotou-se uma aproximação empírica a partir da estratégia de estudo de uma experiência de banco comunitário. O campo empírico selecionado foi o caso de atuação do Banco Ita, um banco comunitário dentro do Assentamento Itamarati, o maior assentamento da reforma agrária do Brasil, localizado no município de Ponta Porã, MS. A atuação em área rural é um contexto diferenciado para BCDs.

No processo de pesquisa de campo, a coleta de dados primários baseou-se em três atividades principais e complementares: conversas informais com membros das experiências, observação não participante no ambiente da organização e aplicação de entrevistas de questões não estruturadas e semiestruturadas com os gestores e representantes do caso estudado. O critério de seleção de entrevistados foi: membros com posição de maior envolvimento e conhecimento acerca da organização analisada.

Em agosto de 2016, realizou-se a primeira visita a campo junto aos representantes do Banco Pire, com o propósito de estabelecer o diálogo para a realização da pesquisa, por meio de questões abertas e exploratórias, para o conhecimento da realidade local e coleta das primeiras informações. Nessa fase, foi utilizado o gravador digital como instrumento de registro das conversas e das questões de entrevistas abertas e das temáticas direcionadas.

A principal referência metodológica de sistematização do processo investigativo e de análise de dados da pesquisa foi a Epistemologia Crítica do Concreto (ECC), proposta por Faria (2015)FARIA, J. H. Epistemologia crítica do concreto e momentos da pesquisa: uma proposta para os estudos organizacionais. São Paulo: RAM - Revista de Administração Mackenzie, set. 2015. como uma adequação do método crítico dialético (Marx, 1996MARX, K.. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1996. Livro I.; Kosik, 1976KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.) para a realização de pesquisas no campo das ciências sociais aplicadas e, mais particularmente, dos estudos organizacionais. Os elementos constitutivos e as categorias que sistematizam a representação da totalidade em movimento precisam ser identificados como expressão intelectual das condições oferecidas pela própria realidade.

Assim, a investigação conduziu ao tratamento dos elementos constitutivos analiticamente formulados em três categorias inter-relacionadas, na compreensão teórica dos serviços de crédito solidário fornecidos pelos Bancos Comunitários de Desenvolvimento, conforme a tabela a seguir:

Quadro 1
Categorias e elementos constitutivos do objeto de estudo

No mês de janeiro de 2017, realizaram-se as visitas a campo no espaço de organização da experiência investigada, para a aplicação do último modelo de entrevista semiestruturada, com questões sistematizadas a partir do avanço do próprio processo de investigação e de construção teórica dos elementos constitutivos do objeto. Não obstante, a relação entre sujeito e objeto é uma interação dinâmica e dialética, em que existe o movimento tanto da realidade quanto da percepção e interpretação do pesquisador no processo de investigação (Faria, 2011FARIA, J. H. Economia Política do Poder - fundamentos. Curitiba: Juruá, 2011. V. 1.).

Por fim, de janeiro a fevereiro de 2023, foram feitas novas rodadas de entrevista para atualização das informações.

5 ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO BANCO ITA: UM BCD NO MEIO RURAL, EM PONTA PORÃ, MS

5.1 Apresentação e contextualização da experiência

O Assentamento Itamarati, onde atua o Banco Comunitário Ita, está localizado na zona rural do município de Ponta Porã, MS. A comunidade do assentamento é formada por cerca de 2.835 famílias que, na maioria, articulam-se em vários movimentos sociais e de ocupação, tais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST); a Central Únicas dos Trabalhadores (CUT); a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI); a Federação da Agricultura Familiar de Mato Grosso do Sul (FAF/MS); os Funcionários Associados da Fazenda Itamarati (FAFI); as Associações de Moradores e Funcionários da Fazenda Itamarati (AMFFI).

Os pequenos agricultores do Itamarati sempre encontraram grande dificuldade em viabilizar suas atividades dentro do modelo de produção agrícola mercadológica, dominado pela competição desigual em favor dos latifúndios e monoculturas. A produção agroecológica e a construção de alternativas de desenvolvimento mais sustentáveis e colaborativas têm sido uma importante estratégia de fortalecimento entre os assentados do Itamarati.

As atividades do Banco Ita tiveram como antecedentes alguns trabalhos realizados junto ao grupo de agroecologia que se formou em 2005, com aproximadamente 115 famílias, no assentamento Itamarati. Nas circunstâncias em que o grupo se reunia, com a intenção de realizar algum projeto de produção ou comercialização, sempre havia grandes dificuldades, devido à falta de recursos e condições de financiamento, já que os bancos comerciais não atendiam às demandas daquele perfil de empreendimento.

Diante da carência de serviços financeiros mais acessíveis, membros do grupo de agroecologia começaram a mobilizar a comunidade em busca de uma solução. Inicialmente, o grupo encontrou referência e apoio junto aos responsáveis do Banco Comunitário Pire e da Entidade Mulheres em Movimento, atuantes no município de Dourados, MS. Foram realizadas algumas reuniões, que resultaram na formação do primeiro comitê gestor para a estruturação do banco comunitário.

Em agosto de 2011, a comunidade do Assentamento Itamarati foi procurada pela Associação Ateliê de Ideias, entidade gestora do Banco Bem em Vitória, ES, que, juntamente da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), realizava um projeto de apoio às finanças solidárias, com base na organização de bancos comunitários para a Região Centro-Oeste do Brasil. Com recursos do projeto e por meio da atuação da Entidade Ateliê de Ideias, foram contratados dois agentes da comunidade responsáveis para trabalhar no banco comunitário.

Em 2012, o Banco Ita iniciou as atividades com recursos de empréstimos de apenas R$ 2.500,00, obtidos por meio de doações. Nesse mesmo ano de implantação, o Banco Ita conseguiu o apoio e se tornou membro da Rede Brasileira de Bancos Comunitários. No Brasil, trata-se do primeiro modelo de banco comunitário atuante no campo com o objetivo de promover o desenvolvimento local.

5.2 Organização econômica solidária: fatores empíricos

O Banco Ita formou-se a partir de uma mobilização participativa e endógena de sua comunidade. As principais decisões do Ita são tomadas por meio da atuação de dois tipos de comitês: o comitê de análise de crédito, composto por sete membros do assentamento, que colaboram voluntariamente com o processo de aprovação e acompanhamento dos serviços de crédito, além de contribuir para a própria formulação dos critérios e políticas dos serviços do Ita; e o comitê gestor, com maiores responsabilidades em relação à atuação geral do Banco Ita.

O comitê gestor é composto por dois cargos que, em momentos de disponibilidade de recursos, recebem remuneração. O primeiro cargo é ocupado por um agente de desenvolvimento solidário; o segundo, por um agente de crédito; porém, ressalta-se que as tarefas gerais do banco comunitário são partilhadas pelos dois agentes.

Quando há remuneração para o comitê gestor, a fonte dos pagamentos é garantida por meio da participação em editais, principalmente os da SENAES. Esse projeto de participação em editais também era originado, sobretudo, pela Entidade Ateliê de Ideias do Banco Bem em Vitória, ES, que captava recursos junto à SENAES para apoiar a atuação de dez bancos comunitários da região Centro-Oeste, entre eles, o Banco Pire e o Banco Ita.

Com o fim da SENAES também ocorreram os fins de recursos via editais. Todo o trabalho desenvolvido, a partir de 2016 até o presente momento (fevereiro de 2023), passou a ser feito de forma voluntária. No entanto, as atividades ocorreram de forma intermitente, pois os agentes comunitários tiveram de buscar alternativas de geração de renda pessoal, o que impossibilitou o trabalho em tempo integral dedicado ao banco.

Em algumas situações, além dos serviços de crédito, agentes do comitê gestor atuam com serviços de assessoria ou consultoria para organizar e fortalecer o desempenho de empreendimentos e grupos produtivos dos assentados. Há alguns critérios prioritários para se beneficiar com os serviços de crédito, tal como ser morador do assentamento há mais de um ano. Com o intuito de atender um número maior de pessoas, a prioridade dos serviços de crédito é direcionada aos indivíduos ou grupos produtivos que foram beneficiados menos de três vezes pelos créditos do Ita. Além disso, os assentados que realizam sua produção dentro da proposta agroecológica também são priorizados no atendimento.

No assentamento Itamarati, há diversos empreendimentos. Alguns realizam a produção de alimentos como panificados, doces e queijo. Merece destaque a predominante produção agrícola de hortaliças e frutas, bastante estimulada pelos programas de compras públicas dos governos municipais ou federais. No caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), é o próprio governo federal que garante os pagamentos.

A partir da atuação dos serviços de finanças solidárias realizadas pelo Banco Ita, os pequenos produtores da comunidade passaram a adotar estratégias de cooperação de maneira mais efetiva na comunidade.

A troca de experiências produtivas é bastante articulada entre os assentados, por meio do apoio e de mobilizações impulsionadas pela atuação do Banco Ita. Seus membros, empreendimentos e grupos frequentemente realizam visitas e encontros com essa finalidade. Um exemplo interessante é a parceria com o Núcleo de Agroecologia para apoiar e incentivar a estratégia de produção agroecológica entre os beneficiados dos serviços de crédito e demais produtores do assentamento.

Desse modo, além dos serviços de empréstimos e consultoria financeira, o Banco Ita articula-se com o Grupo de Agroecologia para proporcionar apoio técnico e assessoria agroecológica aos assentados.

A Associação da Escola de Família Agrícola na Fronteira (AEFAF), que também foi uma importante entidade proponente do Banco Comunitário Ita, inicialmente surgiu para mobilizar a criação de uma escola agrícola para a comunidade, mas tem atuado no assentamento como um dos principais representantes da articulação colaborativa entre os moradores e produtores assentados. O principal espaço de cooperação econômica entre os assentados é a Cooperativa de Comercialização do Assentamento Itamarati.

Identificam-se raras iniciativas de empreendimentos de cooperativa de produção no assentamento. No entanto, as máquinas e os equipamentos agrícolas, como tratores e arados, na maioria dos casos, são compartilhados por meio da utilização rotativa entre os assentados. Há exemplos recentes da aquisição de maquinário a partir da mobilização da Cooperativa de Habitação dos Agricultores Familiares (COOPERHAF), com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em benefício dos produtores do assentamento.

As diversas parcerias apoiadoras do Banco Ita são fundamentais para favorecer as condições de atuação. Entre as entidades, destacam-se a Rede Brasileira de Bancos Comunitários; a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES); o Banco Comunitário Pire, de Dourados, MS; a Associação de Produtores Orgânicos de Mato Grosso do Sul (APOMS); e a Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (AGRAER). No próprio Assentamento Itamarati, há contribuições importantes por parte das diversas associações e cooperativas organizadas pelos assentados, tais como a Associação da Escola de Família Agrícola na Fronteira (AEFAF), as Associações de Moradores e Funcionários da Fazenda Itamarati (AMFFI) e os Funcionários Associados da Fazenda Itamarati (FAFI).

Na fase de consolidação do Banco Ita, a Rede Brasileira de Bancos Comunitários propiciou apoio fundamental, com a prestação de serviços de formação do comitê gestor e dos agentes de crédito e de assessoria direta acerca da metodologia de implementação de banco comunitário. A confecção de moeda social também teve participação da RBBC.

As despesas correntes de funcionamento do Banco Ita são pouco significativas. Não há gastos com aluguel, água ou energia, pois o espaço que sedia as instalações do banco comunitário é cedido pela prefeitura do município de Ponta Porã. Os equipamentos operacionais do banco foram adquiridos, principalmente, por meio do acesso a recursos de editais. Entre os principais gastos correntes, incluem-se os custos com o combustível necessário para as visitas de acompanhamento dos membros do assentamento, que são beneficiados e fazem demandas pelos serviços de crédito.

Desde o início de sua atuação com os serviços de crédito solidário, o Banco Ita tem, como principal fonte de receitas financeiras, os recursos de doações de pessoas físicas. No entanto, atualmente, uma significativa parcela de suas receitas financeiras é proveniente da realização periódica de um bazar que o Banco Ita organiza para arrecadar recursos. Esse bazar de comercialização solidária é mantido por produtos doados pela própria comunidade.

Por sua vez, quando existem fontes de remuneração para os trabalhadores do comitê gestor do banco, composto por um agente de desenvolvimento solidário e um agente de crédito, a principal origem dos recursos provém da participação em editais. Porém, na maior parte do tempo, não há disponibilidade de recursos provenientes de editais, e os membros do comitê gestor continuam realizando o trabalho diário do banco apenas de forma voluntária.

Mesmo ampliando seus recursos de empréstimo ao longo do tempo, o Banco Ita nunca consegue atender de imediato a toda a demanda por serviços de crédito existente no assentamento. Desse modo, os empréstimos são realizados de forma rotativa, a partir de alguns critérios de prioridade de atendimento. O Banco Ita registra mensalmente uma média de pessoas que ficam na lista de espera dos serviços de empréstimo.

O valor do fundo de empréstimo do Banco Ita, em 2016, correspondia à soma de R$ 35.000,00. Com o valor do fundo ora existente, o Ita realizava um fluxo anual de cerca de R$ 100.000,00 de empréstimos. Desse modo, o Banco Ita consegue alavancar o seu fundo de empréstimos. No entanto, estima-se que seria necessário um fundo de cerca de R$ 100.000,00 para atender satisfatoriamente a toda a demanda de serviços de crédito para os assentados. Atualmente, o valor do fundo é de R$ 36.000,00, mantido por meio de doações de pessoas físicas e jurídicas, além de promoções de eventos para a comunidade.

Um dos maiores desafios do Banco Ita é garantir melhores condições de remuneração estável para os membros responsáveis. A necessidade de realizar trabalho voluntário para manter o funcionamento dos serviços do banco comunitário gera grandes dificuldades de renda para os gestores responsáveis, que, por conta dessa questão, dividem o tempo da gestão do Banco com outros afazeres (empregos).

Porém, com o advento da pandemia da covid-19, o trabalho de atendimento no Banco Ita passou a ser exclusivamente por meio remoto e permanece dessa forma, sem perspectiva de mudança caso o trabalho continue a não ser remunerado.

5.3 Serviços de crédito solidário: fatores empíricos

A partir da contribuição dos serviços de crédito solidário que o Banco Ita disponibiliza, surgiram diversas experiências e empreendimentos produtivos no Assentamento Itamarati.

Desde o início da sua atuação, o Ita tem priorizado os seus serviços para a geração de renda. Diversas modalidades de empreendimentos são apoiadas, mas, na maioria das vezes, são atendidos os pequenos produtores agrícolas do assentamento, que representam a maioria das iniciativas de geração de renda da comunidade. Por meio da atuação do Ita, identifica-se um significativo crescimento da produção de hortaliças e frutas por parte dos assentados.

Apesar da contribuição fundamental dos serviços de crédito do Banco Ita em disponibilizar recursos que viabilizam várias atividades produtivas e de geração de renda no assentamento, ainda é bastante limitada a sua capacidade de atender à totalidade das demandas por financiamento produtivo por parte dos assentados, considerando-se os limites do próprio fundo de empréstimo do Banco Ita.

O Banco Ita trabalha com apenas duas modalidades de serviços financeiros, o crédito produtivo e o crédito para consumo disponibilizado em moeda social. No crédito produtivo, são atendidas várias iniciativas de geração de renda. O crédito para consumo é disponibilizado sempre em moeda social e é destinado às pessoas que se encontram em situação de necessidades emergenciais. No entanto, como não se cobra nenhum juro nos empréstimos realizados em moeda social, existe maior limitação de recursos para serviços de empréstimo dessa modalidade.

A principal fonte de renda dos assentados deriva fundamentalmente de suas atividades de produção rural, representadas, em grande parte, pela produção de hortaliças, frutas e leite.

Uma das maiores dificuldades de acesso aos serviços bancários por parte dos assentados decorre do grande distanciamento da região em relação aos centros urbanos dos municípios. Não há nenhuma organização de serviços bancários nas proximidades do Itamarati.

Diversas pessoas da comunidade recebem benefícios de programas sociais e necessitam deslocar-se até as localidades urbanas dos municípios mais próximos, onde atuam bancos comerciais. O banco comercial mais próximo do assentamento está a 50 quilômetros de distância.

Atualmente, o banco comunitário atende cerca de 360 pessoas com os serviços de microcrédito solidário. Entretanto, mais de 50% dos assentados que solicitam os serviços acabam ficando na lista de espera.

O Banco Ita tem sido motivado, pelos assessores da Rede Brasileira de Bancos Comunitários, a utilizar a plataforma digital de serviços de pagamento e de correspondência bancária, denominada de e-dinheiro.

No caso do Banco Pire, a utilização dos serviços de correspondência bancária da plataforma digital tem obtido bons resultados. Não obstante, no caso do Banco Ita, a situação é mais complexa. Os gestores identificam maior dificuldade, pelo risco de guardar somatórias de valores superiores e pela falta de pessoas com disponibilidade de tempo para realizar ainda mais atividades operacionais. Desse modo, o Banco Ita decidiu não adotar a metodologia.

A aprovação dos serviços de crédito não leva em consideração qualquer situação anterior de inadimplência junto a alguma entidade comercial ou financeira. O principal quesito é o aval do comitê de crédito e dos gestores mais responsáveis do Ita, que realizam visitas de acompanhamento para análise das demandas de empréstimos junto aos tomadores de crédito do assentamento. Nesse processo, a comunidade colabora com informações acerca da credibilidade dos tomadores de empréstimos. Em muitos casos, a reprovação se dá pela falta do aval da comunidade para alguns indivíduos, o que lhes impede o beneficiamento dos serviços de empréstimos do Banco Ita.

O crédito produtivo tem como principal finalidade a aquisição de insumos e equipamentos para fomentar condições de produção dos assentados. Frequentemente, há gastos com material de irrigação ou transporte, por exemplo.

A definição dos juros de 1% ao mês para as modalidades de serviços de crédito produtivo teve a finalidade de contribuir com os próprios custos operacionais do banco comunitário. Trata-se de um valor simbólico, estabelecido com a participação dos próprios assentados.

A política de crédito do Banco Ita não concede período de carência, para evitar maiores atrasos do retorno e da disponibilidade dos recursos de empréstimo. Os pagamentos podem ser parcelados em até seis vezes.

Para o crédito produtivo, o Banco Ita trabalhava, em 2016, com as linhas de valores de R$ 300,00; R$ 500,00; e até R$ 700,00. Por mais que os valores pareçam pequenos, dificilmente o produtor agrícola do assentamento tem a disponibilidade pessoal de R$ 700,00 para investir, sem acionar algum serviço de empréstimo. Desse modo, os valores disponibilizados pelo Ita acabam ajudando muito a realização da produção dos assentados. Com a geração de renda, conseguem pagar as parcelas de seus empréstimos. Atualmente, o Banco Ita trabalha com teto de valor de R$ 700,00.

Em 2016, a linha de empréstimo para consumo em moeda social podia ser realizada nos valores equivalentes a R$ 50,00; R$ 100,00; e R$ 150,00, com prazos de pagamento de até 30 ou 60 dias, sem a cobrança de juros. Atualmente, o Banco trabalha com o limite de R$ 100,00 para essa modalidade e mantém as mesmas condições anteriores de prazo.

Desde o início da atuação do Banco Ita, em 2012, os anos de 2014 e 2015 tiveram as maiores movimentações de serviços de crédito oferecidos à comunidade, com os valores de R$ 36.350,00 e R$ 50.910,30, respectivamente.

Nos casos de atraso de um ou dois meses dos pagamentos das parcelas, os gestores do Banco Ita entram em contato com os tomadores de crédito. Na ausência de justificativa, podem ser cobradas multas pelos atrasos. No entanto, são muito raros os casos de inadimplência. Na história da atuação desse banco comunitário, apenas duas pessoas não conseguiram quitar algumas parcelas - passaram por situações de emergência e foram embora do assentamento. Esses bons resultados originam-se no engajamento e na colaboração da própria comunidade e no empenho de acompanhamento do comitê de análise de crédito.

5.4 Desenvolvimento local participativo: fatores empíricos

A disponibilidade dos serviços de crédito realizados pelo Banco Ita tem sido fundamental para viabilizar grande parte da ampliação e do fortalecimento de projetos produtivos dos assentados do Itamarati.

A iniciativa de finanças solidárias tem contribuído para importantes transformações, como a maior geração de trabalho e renda na perspectiva da economia solidária, engendrando, como resultado, o atendimento de necessidades prioritárias dos assentados e melhoria da qualidade de vida. A principal fonte de renda dos assentados que demandam pelos serviços de crédito do Banco Ita tem sido a sua própria produção, o que indica uma condição de maior sustentabilidade da economia local da comunidade.

Além do acesso a melhores condições para incrementar as suas atividades produtivas, os pequenos agricultores do assentamento têm se beneficiado de estratégias de comercialização interna, que se configuram em circuitos produtivos solidários de troca e alternativos à situação de vulnerabilidade que caracteriza a inserção nos mercados competitivos.

Somente no domingo não acontece a principal feira de comercialização do assentamento. A frequente realização das feiras de comercialização, estimuladas pelo Ita e apoiadas por outras entidades de atuação solidária da comunidade, tem garantido maior aproximação sinérgica entre o processo de produção local e o consumo endógeno dos assentados. Por meio da mobilização do incentivo pelo Banco Ita, há uma maior conscientização para a organização comunitária em bases associativas e solidárias. Tal processo de empoderamento dos assentados tem fortalecido a construção de uma ação social mais participativa e coletiva, o que tem potencializado a emergência de alternativas de relações de trabalho e processos produtivos.

Entretanto, ainda há muitos desafios e dificuldades na realidade do Assentamento Itamarati, o que prejudica a qualidade de vida da sua comunidade. Os problemas de infraestrutura e de acesso a alguns serviços públicos básicos são alguns exemplos de destaque. O assentamento não tem acesso a saneamento básico.

Provavelmente, o marcante histórico de construção e organização do assentamento, fortemente ligado à atuação de vários movimentos sociais e entidades solidárias da própria comunidade do Itamarati, desempenha um papel preponderante nos seus evidentes resultados de sucesso de fortalecimento da economia solidária e de desenvolvimento local participativo.

Nesse processo, merece destaque a parceria do Banco Ita com as demais entidades solidárias e movimentos sociais do assentamento para a frequente realização de encontros e atividades direcionadas à capacitação formativa e de esforços pedagógicos em favor do desenvolvimento de uma consciência de empoderamento comunitário e de práticas autogestionárias, o que também contribui para os bons resultados de toda a sinergia da organização socioprodutiva e solidária do Assentamento Itamarati.

Os avanços e as limitações evidenciados por esta pesquisa acerca dessas alternativas de organização - que, diante do crescente desemprego e precarização social, também são experiências históricas de lutas da classe trabalhadora - corroboram os estudos de Benini e Benini (2010BENINI, E. A.; BENINI, E. G. As contradições do processo de autogestão no capitalismo: funcionalidade, resistência e emancipação pela economia solidária. Organizações & Sociedade, Salvador, v. 17, n. 55, p. 605-19, 2010.; 2022).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa buscou investigar propostas de serviços de crédito solidário e de organização comunitária como estratégia socioeconômica de inclusão financeira para o desenvolvimento local de caráter participativo e de resistência diante das forças de desigualdade e de exclusão reproduzidas dentro de um regime de globalização, guiado, sobretudo, por interesses corporativos, para maximizar a acumulação de capital.

Nesse sentido, a lacuna teórica que a análise aqui realizada buscou atender foi aprofundar a abordagem social e política tanto sobre os elementos constitutivos quanto sobre os relacionamentos íntimos que são estabelecidos entre três processos essenciais identificados nas experiências dos bancos comunitários: o contexto de redes de organização da economia solidária; as práticas associativas de crédito e de trocas; e os resultados para o desenvolvimento local de caráter participativo. Essa abordagem se distingue dos referenciais epistemológicos de caráter mais funcionalista e convergentes com os princípios liberais ou mercadológicos que negam os determinantes históricos-políticos constitutivos da realidade social, mas se associa, sobretudo, aos sentidos do desenvolvimento material das condições de sociabilidade que são tratados por Oliveira (2017OLIVEIRA, E. G. Crédito solidário e moedas sociais na perspectiva do desenvolvimento local participativo: potencialidades e limitações frente ao capitalismo e suas contradições. 2017. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, 2017., 2022OLIVEIRA, E. G. A crise social do emprego e a ampliação dos trabalhadores assalariados por conta própria. 2022. Tese (Doutorado em Administração) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022.) em outros movimentos dialéticos da pesquisa.

Como proposta de democratização das relações econômicas, os Bancos Comunitários de Desenvolvimento e, particularmente, a experiência analisada, no caso do Banco Ita, no Assentamento Itamarati, têm produzido resultados significativos para a inclusão financeira, promovendo o acesso de baixo custo a serviços de crédito desburocratizados e mais adequados às próprias necessidades comunitárias. A circulação local dos recursos de pequenos empréstimos, seja para consumo, seja para investimentos, contribui diretamente para o fortalecimento e a expansão de organizações socioprodutivas de natureza associativa, populares e solidárias.

Como importante diferencial, a gestão dos Bancos Comunitários dispõe de uma série de instrumentos e metodologias mais efetivas para adequar serviços de crédito ao público de baixa renda. A relação de proximidade pessoal entre essas experiências e os tomadores de crédito corresponde a um desses principais instrumentos. Tais estratégias fomentam, ainda, a mobilização comunitária, com a finalidade de construir uma alternativa de desenvolvimento a partir das condições de especificidades locais e endógenas, com prioridade para as aspirações sociais derivadas de relações de pertencimento comunitário.

Portanto, mesmo que em dimensões locais, essas experiências também colaboram no âmbito do fortalecimento das organizações econômicas solidárias, como um instrumento para a construção de um processo de troca alternativo aos imperativos monetários e financeiros de acumulação de capital.

No entanto, a mera disponibilidade de serviços de empréstimos financeiros, desarticulados de uma estratégia social de democratização econômica e política mais ampla, que conduza a uma maior socialização e ao acesso dos recursos produtivos, é uma condição pouco promissora, incapaz de transformar com efetividade a realidade dos grupos sociais precarizados. O desenvolvimento local, apesar de ser uma alternativa bastante limitada, quando articulada apenas dentro de delimitações comunitárias, tem como elemento fundamental a mobilização participativa e dinâmica, que também é prioritária para o fortalecimento político de alternativas de resistência contra as forças globais e financeiras da desigualdade, considerando-se uma perspectiva de construção de estratégias sociais de práticas que fortaleçam a organização das lutas mais essenciais da classe trabalhadora.

REFERÊNCIAS

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  • BARONE, F. M; DANTAS, V.; LIMA, P. F.; REZENDE, V. Introdução ao microcrédito Brasília: Conselho da Comunidade Solidária, 2002.
  • BATEMAN. M. Why doesn´t microfinance work? The destructive rise of local neoliberalism. New York: Zed books Ltd., 2010.
  • BEATRIZ, M. Z.; OLIVEIRA, J. A.; MARCHI, L.; BUENO, G.; CARNEIRO, G. Moeda social: possibilidades e limites - reflexões a partir da implantação do Ecobanco em uma Feira de Economia Solidária. Otra Economía, Buenos Aires, Argentina, v. 10, n. 19, 2016.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2021
  • Aceito
    23 Nov 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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