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Culturas infantis de crianças pantaneiras em contexto escolar: o protagonismo como elemento de desenvolvimento da cultura local

Infant cultures of Pantanal children in a school context: protagonism as an development of local culture element

Culturas infantiles de niños pantaneros en un contexto escolar: el protagonismo como elemento de desarrollo de la cultura local

Resumo

A região do Pantanal sul-mato-grossense, por meio da implantação de suas escolas-fazenda, abre possibilidades para investigações e, nesse contexto, emerge este texto, que apresenta um recorte de uma pesquisa de doutoramento. A investigação de abordagem qualitativa e cunho etnográfico teve por sujeitos as crianças pantaneiras de uma escola-fazenda localizada no município de Aquidauana, estado de Mato Grosso do Sul. O texto em questão tem por objetivo identificar as re(criações) e apropriações das crianças pantaneiras nas brincadeiras infantis, em contexto escolar, ilustrativas de seu protagonismo e marco da cultura local. Ancora-se nos pressupostos da Sociologia da Infância, que reconhece as crianças como atores sociais, protagonistas de suas histórias de vida. Utiliza para a coleta de dados a observação participante, caderno de campo, fotografias e roda de conversa, como modo de conhecer o grupo e interagir em meio às suas brincadeiras, que manifestam o protagonismo infantil. Os resultados evidenciam que as crianças pantaneiras, por meio de ações interativas em suas brincadeiras, carregam conhecimentos individuais construídos nas experiências cotidianas dos seus mundos sociais e culturais mais amplos e vão, de alguma forma, assumindo elementos compartilhados da interação com outras crianças e adultos, gerando, assim, as re(criações) e apropriações de suas vidas pantaneiras.

Palavras-chave
crianças pantaneiras; culturas infantis; contexto escolar; protagonismo

Abstract

The Pantanal region of Mato Grosso do Sul, through the implementation of its farm schools, opens up possibilities for investigation and, in this context, this text emerges, presenting an excerpt of doctoral research. The investigation, with a qualitative approach and ethnographic nature, had as subjects children from a farm located in the municipality of Aquidauana, state of Mato Grosso do Sul. The text in question aims to identify the re(creations) and appropriations of Pantanal children in infant games, in a school context, illustrative of their protagonism and landmark of the local culture. It is anchored in the assumptions of the Sociology of Childhood, which recognizes children as social actors, protagonists of their life stories. It uses participant observation, field notebook, photographs, and conversation circles for data collection, as a way of getting to know the group and interacting during their games, which manifest children’s protagonism. The results show that Pantanal children, through interactive actions in their games, carry individual knowledge built in the daily experiences of their broader social and cultural worlds and, in some way, assume shared elements of interaction with other children and adults, thus generating the re(creations) and appropriations of their Pantanal lives.

Keywords
Pantanal children; children’s cultures; school context; protagonism

Resumen

La región del Pantanal de Mato Grosso do Sul, a través de la implementación de sus granja escuelas, abre posibilidades para investigaciones y, en ese contexto, surge este texto, que presenta un extracto de una investigación doctoral. La investigación, de enfoque cualitativo y de naturaleza etnográfica, tuvo como sujetos los niños del Pantanal de una granja escuela ubicada en el municipio de Aquidauana, estado de Mato Grosso do Sul. El texto en cuestión tiene como objetivo identificar las (re)creaciones y apropiaciones de los niños del Pantanal en juegos infantiles en un contexto escolar ilustrativo de su protagonismo y referente de la cultura local. Está anclado en los presupuestos de la Sociología de la Infancia, que reconoce a los niños como actores sociales, protagonistas de sus historias de vida. Utiliza la observación participante, cuaderno de campo, fotografías y círculos de conversación para la recolección de datos como forma de conocer al grupo e interactuar en medio de sus juegos, que muestran el protagonismo de los niños. Los resultados muestran que los niños del Pantanal, a través de acciones interactivas en sus juegos, llevan conocimientos individuales construidos a partir de las experiencias cotidianas de sus mundos sociales y culturales más amplios y, de alguna manera, asumen elementos compartidos de interacción con otros niños y adultos, generando así las re(creaciones) y apropiaciones de sus vidas pantaneras.

Palabras clave
niños pantaneros; culturas infantiles; contexto escolar; protagonismo

1 PARA INICIAR NOSSA PROSA...

A implantação de escolas nas fazendas da região do Pantanal, em Aquidauana, Mato Grosso do Sul, abre um campo vasto para investigações. A pouca produção científica levantada pelo estado de conhecimento realizado em 2016, no início da pesquisa, mostrou a necessidade e relevância da temática. Integrar-se à realidade pantaneira, saber conviver com suas adversidades e viver a sua cultura é, numa perspectiva mais ampla, uma dimensão do desenvolvimento local.

Traduz-se, nesse contexto, a escola localizada em uma fazenda em pleno Pantanal sul-mato-grossense, que funciona no período matutino, atendendo aproximadamente 95 crianças do 1º ano ao 9º ano do Ensino Fundamental, com professores que se deslocam da cidade, diariamente, de ônibus. As crianças pantaneiras, assim como toda e qualquer criança, têm histórias a contar. Morar no Pantanal, em uma fazenda, e estudar em uma escola que está inserida na mesma ou em outra fazenda faz parte da vida e das atividades dessas crianças. São várias as fazendas, e as crianças ficam entre 15 minutos até duas horas dentro do ônibus, para chegar à fazenda onde está situada a escola.

A pesquisa, inserida em um programa de doutoramento, tem a relevância de estar registrando o que de alguma forma se torna a vida e a história de muitas crianças – no caso deste artigo, das pantaneiras; afinal, como toda criança, elas também brincam, dançam, cantam, falam, sonham e se expressam. E o que será que elas têm a nos dizer? Qual será o sentido de viver, sentir e sonhar para elas? Como será que elas compartilham suas culturas? Quais são as suas relações e interações umas com as outras e com os adultos? Do que as crianças pantaneiras brincam? E, quando brincam, como criam suas histórias? Estes são questionamentos que a pesquisa buscou discutir, pois as crianças pantaneiras também têm uma história a contar, com uma dimensão criativa no brincar que propicia expressões mais completas, já que a criança é ativa na vida em sociedade, produtora nas interações com pares de culturas infantis, por meio das quais vai apropriando-se das informações do mundo adulto, interpretando-as e recriando-as.

A investigação se ancora teoricamente na Sociologia da Infância, que reconhece as crianças como atores sociais, protagonistas de suas histórias de vida. Para Prout (2004)PROUT, A. Reconsiderar a nova sociologia da infância: para um estudo multidisciplinar das crianças. Ciclo de Conferências em Sociologia da Infância 2003/2004. Braga, PT: IEC, 2004., é a possibilidade de um espaço para a infância no discurso da Sociologia, a fim de se pensar a complexidade e ambiguidade da infância como um fenômeno atual e de reflexão contínua.

A abordagem qualitativa e a etnografia constituíram o caminho metodológico assumido devido a sua importância e adequação no estudo e pesquisa com criança. Para Corsaro (2011)CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artemed, 2011., a etnografia envolve um trabalho de campo prolongado, no qual o pesquisador tem acesso ao grupo e realiza sua observação de maneira intensiva, durante meses ou anos. Para ele, o valor da observação de longo tempo possibilita ao pesquisador descobrir como é a vida cotidiana para seu grupo, no que diz respeito a configurações físicas e institucionais, suas rotinas diárias, suas crenças e seus valores, bem como a linguística e outros contextos que medeiam suas atividades.

A pesquisa empírica desenvolveu-se durante o ano letivo de 2017, por meio de idas e vindas à escola-fazenda, investigando o que as crianças pantaneiras estavam fazendo ou falando, manifestando ou interagindo em seus cotidianos, por meio de observação participante, registros em caderno de campo, fotografias e roda de conversa.

Os critérios de seleção dos participantes para a pesquisa foram: crianças que estudam no Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano – 46 crianças); crianças de diferentes idades e de diferentes lugares/fazendas da região.

A pesquisa esteve em consonância com os procedimentos metodológicos do Comitê de Ética em relação ao consentimento de pais e responsáveis, ao assentimento das crianças em participarem da pesquisa, bem como à exposição das fotos. Buscou-se a transparência nas ações, acatando a normativa vigente, não se eximindo da responsabilidade ética em relação ao sigilo e respeito ao bem-estar das crianças; portanto, os nomes das crianças são fictícios, preservando, assim, suas identidades.

Situada a pesquisa, as seções a seguir apresentam um recorte do estudo focalizando as brincadeiras das crianças pantaneiras em contexto escolar, com o objetivo de identificar re(criações) e apropriações de suas vidas pantaneiras nas brincadeiras infantis, em contexto escolar, ilustrativas de seu protagonismo e marco da cultura local.

2 AS RE(CRIAÇÕES) E APROPRIAÇÕES DAS CRIANÇAS PANTANEIRAS NAS SUAS BRINCADEIRAS EM CONTEXTO ESCOLAR

Eu queria ser banhado por um rio como um sítio é! Como as árvores são.... Como as pedras são.... Eu fosse inventado de ter uma graça e outros pássaros em minhas árvores... eu fosse inventado como as pedrinhas e as rãs em minhas areias.... Eu escorresse desembestado sobre as gotas e pelos cerrados como os rios, sem conhecer nem os rumos como os andarilhos... livre, livre é quem não tem rumo! (BARROS, 2010, p. 457BARROS, M. de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.).

As palavras de Manoel de Barros sensibilizam, pois a maneira como ele as utiliza é uma forma de mostrar a liberdade e, por meio da poesia, o poeta transvê o mundo e apresenta, nela, uma criança, que corre, brinca, sonha, imagina e cria. Essa criação vem ao encontro do que se depara durante o percurso etnográfico da pesquisa, como as árvores, os rios, os pássaros e as crianças pantaneiras, com as quais se conviveu por um ano, percebendo-se seus dias experienciados de liberdade, de criação e de alegria, em constante sintonia com o tempo e espaço pantaneiro... Elas falam:

Vou brincar de pega-pega, de corre cutia [cantou a canção toda!], de pedrinha no chão e no rio, pulo corda, gosto muito de pular corda e corro tanto no campo, que canso, meu pai fala que sou igual um passarinho, que canta e voa, sou feliz, como diz minha vó. (Matheus, 8 anos – 07/08/2017).

De tarde, brinco de queimada com as gurizadas, gosto de pular corda e minha tia bate para mim, varro o quintal e corro para ver o Sol à tardinha e esperar meu vô e meu padrasto, e aí vamos jantá e canto, brinco mais um pouco. (Adriana, 11 anos – 07/08/2017).

Um dia eu vi uma onça, depois passou muito tempo, eu vi duas onça, dela não tenho medo, porque posso corre; agora, de sucuri, ui! Não dá para corre, né, professora!? Vou te conta, lá na fazenda e aqui na escola, eu pulo corda e brinco de machetão, eu gosto muitãooooo [abriu os braços e fez o gesto, como se fosse muito, mesmo!], ah, e tem a brincadeira de corrida, essa eu gosto, hein! (Rafael, 9 anos – 07/08/2017).

Matheus (8 anos), Adriana (11 anos) e Rafael (9 anos) são crianças que brincam, correm, imaginam, cantam, inventam e até voam... suas histórias possibilitaram o entendimento de que esse processo é inerente ao ser criança, que a inteligibilidade, a qual Sarmento (2003)SARMENTO, M. J. O Estudo de caso etnográfico em educação. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: perspectivas sócio-pedagógicas da infância e educação. Braga, PT: Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 2003. aponta, está presente nelas e possibilita, também, compreender o modo como as infâncias se dão ao longo das culturas infantis das crianças, pois as culturas infantis emergem nos intervalos dos ordenamentos do tempo e espaço em relação à organização das vidas das crianças.

Para Borba (2006)BORBA, A. M. Quando as crianças brincam de ser adultos: vir a ser ou experiência da infância? In: LOPES, J. J. M.; MELLO, M. B. (Org.). O jeito de que nós crianças pensamos sobre certas coisas: dialogando com lógicas infantis. Rio de Janeiro: Rovelle, 2006., o processo entre as relações sociais que ocorrem entre pares é elemento para a construção das culturas infantis nos espaços e tempos das crianças. As crianças vão partilhando os mesmos espaços, tempos e interações sociais, elas criam juntas estratégias para lidar com a complexidade de conhecimentos, afazeres, valores, hábitos, artefatos e atitudes que lhes são apresentados, transformando-os em compreensão e ação sobre o mundo.

Nessa perspectiva, a observação participante possibilitou compreender que, quando as crianças pantaneiras estão juntas, partilhando desses e de outros momentos, é possível perceber a construção de suas culturas infantis; e, quando contam as suas histórias, tem-se, ali, momentos desses compartilhamentos; quando contam e praticamente todas elas afirmam terem visto onça, sucuri, lobisomem, saci, entre outras coisas, marcam as suas experiências, e, mesmo não tendo visto onça, sucuri, lobisomem e saci, elas afirmam e perpassam como verdade as suas vivências.

Nas histórias de Matheus, Adriana e Rafael, temos o “brincar” como espaço/tempo em suas rotinas. Elas brincam, correm, imaginam, cantam, inventam e até voam... O brincar é ponto de partida da construção do ser criança e das crianças pantaneiras também, tendo a forma de reconhecimento em uma atividade social significativa, tanto na escola como em suas casas (fazendas). Esse brincar se constitui, de maneira fundamental, para a construção das relações sociais, de forma coletiva e individual de elas interpretarem o mundo pantaneiro em que vivem.

As crianças pantaneiras gostam de “pular corda”, elas dizem que essa atividade representa muito do que elas são, brincam na escola de forma coletiva e em suas casas, individualmente ou com as pessoas da família. Nessa brincadeira, elas inventam “musiquinhas” e formas diferentes de pular, transformando uma brincadeira formal em uma brincadeira própria delas, com interação e experiência. Identificou-se, durante o tempo etnográfico da investigação, as re(criações) e apropriações das crianças pantaneiras nas suas brincadeiras em contexto escolar, como a brincadeira “Machetão”, contada por Rafael. Essa é uma brincadeira criada pelas crianças pantaneiras, ilustrada pela imagem a seguir.

Fotografia 1
Imagem da brincadeira “Machetão”

Ao falarem sobre a brincadeira “Machetão” elas contaram como a criaram, marcando suas apropriações em envolver a corda, elemento e brincadeira que mais gostam, com um outro elemento da cultura do Pantanal (“Machete”, uma faca grande, maior que as convencionais, a qual os peões utilizam sempre que necessário em suas lidas, principalmente no meio do mato). Luís, professor de Educação Física, confirmou que elas inventaram a brincadeira, com regras, e, sempre que possível, brincam em suas aulas, entoando recriações e possibilidades de entrega, inventividade, curiosidade, construções lúdicas e protagonismo infantil.

Professora, nós inventamo uma brincadeira aqui, que é assim: dois pega a corda, como se fosse pular e, sai correndo atrás dos outros e passa o Machetão e vai derrubando todo mundo, e aí, quem cai, sai da brincadeira, e vai assim, até cair todo mundo, é muito legal, porque quando passa a corda, que é o machete, que vira Machetão, que é a corda, se cair todo mundo, quem tá com a corda, ganha e se sobrar gente de pé, é que ganha e vai segurar a corda e começar a brincadeira de novo... viu, que boa a nossa brincadeira!? (Rafael, 9 anos – 07/08/2017).

Outra marca importante desse contexto pantaneiro em ver e ouvir as crianças criando e recriando suas brincadeiras, como esta do Machetão, é a linguagem expressa de uma forma muito particular da cultura local que elas utilizam, elaboram e transmitem, pois,

[...] as linguagens são as possibilidades de significação de expressões, de representações de ideias, de conceitos, dos seres, de emoções ou de objetos que podem adquirir formas concretas (pinturas, obras de arte, textos, poemas) ou abstratas (movimento, expressões corporais ou gestuais, brincadeiras sonhos, imaginações ativas). (Friedmann, 2013, p. 46FRIEDMANN, A. O brincar no cotidiano da criança. São Paulo: Moderna, 2013.).

Para a autora, as representações, tanto concretas como as abstratas, surgem sob a forma de imagens internas, aquelas que estão no interior das crianças e que se transformarão em formas de imagens externas quando expressas por meio da arte, do movimento, do gesto, da brincadeira, da palavra, da escrita, enfim, em muitas atividades e atitudes que levarão as crianças a produzirem e (re)criarem suas culturas infantis.

Ao longo das observações, percebeu-se como o processo de construção das brincadeiras das crianças pantaneiras está em um movimento externo, conforme Friedmann (2013)FRIEDMANN, A. O brincar no cotidiano da criança. São Paulo: Moderna, 2013. apontou, pois suas brincadeiras refletem movimentos internos, como a imaginação, a fantasia, alguns conceitos e, também, compreensão e interpretação emocional de cenas cotidianas e personagens reais ou imaginários:

[...] professora, eu moro com cinco irmãos, lá onde moro brinco de casinha, de mamãe e filhinho, de escolinha, de pega-pega, de pular corda e de filme, e eu tenho medo quando assisto filme de vampiro, mas o que eu tenho medo é do lobisomem! (LUZIA, 6 anos – 18/09/2017). Eu gosto de pular corda, pega-pega com minhas primas e meus irmãos, meu cachorro também brinca, ele chama Bolinho, quando brincamo de casinha é legal, lá na fazenda a gente brinca de tudo, até de navio pirata, do filme dos macacos, do Menino Lobo eu sou ele sempre, mas tenho medo da onça, que um dia eu e meu pai vimos na estrada. (RAFAEL, 9 anos – 18/09/2017).

Eu gosto de ir para o campo, eu ajudo meu pai com o gado e brinco de laçar boizinho de madeira, meu tio fez para nós e tem dia que a gente lança nos carneiro, quando meu pai dexa e os bode de chifre corre atrás da gente, é bem legal! Tem outra coisa que eu brinco que é de correr, lá na escola de Machetão e eu, professora, tenho um amigo que ninguém vê, só eu, e ele chama Dindinho. (PEDRO, 10 anos – 18/09/2017).

Eu, professora, brinco de todas as coisas e tenho quatro irmãos, que brinca comigo. Ando de bicicleta, e gosto de brincar de casinha também, ah... e eu brinco sozinha também de fada, de novela e eu tenho medo de cobra, porque esses dias apareceu uma lá bem grande! (AMANDA, 7 anos – 18/09/2017).

As possibilidades de criação e imaginação estão postas nas brincadeiras das crianças pantaneiras; elas inventam, imaginam e brincam, como se percebe nas falas delas, de filmes, de novelas, de casinha e de muitas outras coisas. Gostam de falar também de seus medos, quando contam do que gostam. Pode ser porque o gostar está ligado à imaginação delas, contam as histórias com entusiasmo, contam sobre a onça com uma satisfação e, diante de muitos elementos, criam espaços, tanto físicos como imaginários; criam cenários e criam suas brincadeiras, personagens, fantasiam-se neles, são reais e, ao mesmo tempo, imaginários. “As crianças criam suas tramas definindo, a cada vez, seus próprios tempos e lugares” (FRIEDMANN, 2013, p. 47FRIEDMANN, A. O brincar no cotidiano da criança. São Paulo: Moderna, 2013.), e as brincadeiras podem ser individuais ou coletivas, reais ou inventivas e também invisíveis.

Ao pensar nas brincadeiras como um processo de (re)criações e apropriações das crianças da cultura local, recorre-se ao que foi observado e percebe-se a riqueza de experiências vivenciadas por elas ao brincar, pois unem seus conhecimentos de mundo pantaneiro, em relação às histórias que elas ouviram de seus avós e pais, com o ser criança brincante, curioso e imaginativo. Isso significa dizer que tais elementos são indispensáveis como espaço e tempo de aprendizagens. Dolto (1998)DOLTO, F. Os caminhos da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1998., em seus estudos, registra que as crianças precisam brincar tanto quanto precisam de contatos afetivos, de fazer, de falar, de ouvir.

O brincar representa a possibilidade de a criança imaginar ser quem é, estar em lugares diferentes, ser seus personagens favoritos, como na fala de Amanda, que brinca de novela e de fada; do Rafael, ao ser o menino-lobo, bem como de Pedro, que tem um amigo invisível. Para tanto, “[...] a imaginação é permeada por acontecimentos do mundo real exterior ou do mundo interior (fantasias) e as crianças organizam o seu espaço lúdico de maneira reveladora” (DIAS, 2009, p. 81DIAS, M. C. M. O brincar com as múltiplas linguagens na educação infantil. In: DIAS, M. C. M. Brincar: o brinquedo e a brincadeira na infância. São Paulo: Cenpec, 2009.).

Para o autor,

[...] a criança e brincadeira fazem, sem dúvida, uma combinação perfeita. É difícil pensarmos em uma criança que não goste de brincar, de deixar-se envolver pela imaginação, pela fantasia, vivendo personagens dos mais variados tipos – bombeiros, médicos, super-heróis, viajantes de outros mundos, guerreiros interestrelares, pai, mãe etc – inventando e criando. (DIAS, 2009, p. 83DIAS, M. C. M. O brincar com as múltiplas linguagens na educação infantil. In: DIAS, M. C. M. Brincar: o brinquedo e a brincadeira na infância. São Paulo: Cenpec, 2009.).

A imaginação e ludicidade são espaços em que as crianças podem experimentar, descobrir, criar e recriar experiências e saberes sobre si e sobre o mundo em que vivem. Saberes importantes para recriarem suas experiências em vivências e conviverem, partilharem e desfrutarem das possibilidades que as brincadeiras externam. Para Levin (1997)LEVIN, E. A infância em cena: constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor. Petrópolis: Vozes, 1997., o ato de brincar é como um espelho simbólico, e não apenas imaginário, a partir do qual é possível transformar o pequeno em grande, o grande em pequeno, a criança em adulto, o adulto em criança, os pais em crianças, e as crianças em pais; assim, “o próprio da infância é o ato lúdico como espelho que ata o real, o imaginário e o simbólico na infância” (LEVIN, 1997, p. 255LEVIN, E. A infância em cena: constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor. Petrópolis: Vozes, 1997.). Nessa perspectiva, na fotografia a seguir, as crianças pantaneiras estão entre cones e traves encenando ou dramatizando a cena do filme ‘O Planeta dos Macacos’:

Fotografia 2
Dramatização de cena do filme “Planeta dos Macacos”

O professor Luís disse, neste dia (25/09/2017), que na semana anterior levou o filme “Planeta dos Macacos”, a pedido das próprias crianças, para assistirem; elas gostaram tanto, que reproduziram várias cenas nesta brincadeira. A ludicidade é um elemento importante e fundamental das culturas infantis. A brincadeira e, neste caso, a encenação de um filme têm uma dimensão humana e não se limita apenas em ser produtivo, e sim em uma dimensão inerente à infância, ou seja, uma atividade própria da criança, na infância vivida e experimentada de maneira intensa, sensível, abrangente, compartilhada e visivelmente real e séria, logo, indispensável ao desenvolvimento humano das crianças e possibilidade de (re)criações e apropriações da cultura local.

Em seus apontamentos, Sarmento (2003, p. 15)SARMENTO, M. J. O Estudo de caso etnográfico em educação. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: perspectivas sócio-pedagógicas da infância e educação. Braga, PT: Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 2003. diz que, para a criança, diferentemente do adulto, “[..] entre brincar e fazer coisas sérias não há distinção, sendo o brincar muito do que as crianças fazem de mais sério”. As crianças pantaneiras, neste dia, brincando, dividindo papéis, escolhendo quem queriam ser, encenando, dialogando, de maneira séria, mostram sua inteligibilidade. Elas conseguiram, de maneira prazerosa, viver momentos instigantes de um filme. Dessa forma, “[...] quando a criança brinca, a criança está protagonizando. No seu tempo, que é só dela, a criança escreve com seu corpo uma melodia. Com seu gesto, sua mão, seu olhar e seu sorriso imprimindo a pegada do seu coração” (FRIEDMANN, 2013, p. 58FRIEDMANN, A. O brincar no cotidiano da criança. São Paulo: Moderna, 2013.).

Um outro momento de brincadeira coletiva entre as crianças pantaneiras é a brincadeira de “Estátua”. Elas cantavam uma melodia (eram músicas atuais – uma criança começava) para dançarem e, quando a criança que estava no comando parava de cantar, todas viravam “estátua”. O interessante é que havia uma segunda criança olhando, cuidando para ver quem se mexia (esta não participava dos gestos para virar estátua); ou seja, mais um adendo à brincadeira, pois esta, na realidade, não tem esse observador. O que se percebe, pela fotografia, é a forma como olham, param, e, acima de tudo, cumprem as regras.

Fotografia 3
Imagem da brincadeira “Estátua”

As brincadeiras realizadas pelas crianças pantaneiras se constituem entre sua/s cultura/s e o ambiente em que vivem; percebe-se isso, principalmente, pela brincadeira “Machetão”, por algumas cantigas alteradas por elas, quando pulam corda e nesta brincadeira citada acima, em que todas viram “estátua”. No brincar coletivo, entrelaça-se a singularidade de cada criança em uma relação contínua no espaço/tempo, desencadeando um processo de constituição de identidade que aparece nas responsabilidades, principalmente no ir e vir no ônibus, uma cuidando da outra, ao contarem suas histórias, entre medos e imaginação, ou nas brincadeiras pertencentes a elas, que as identificam e constituem o mundo real de maneira afetiva, principalmente do seu lugar.

A constituição do real no mundo da infância, percebido nas interações cotidianas com o seu meio, não toma apenas a cultura local como construção de conhecimento e desenvolvimento, mas marca o lugar, seja sua casa, seja outro espaço de seu cotidiano e suas interações, agregando valores que reorganizam o seu estar no mundo (DIAS, 2009DIAS, M. C. M. O brincar com as múltiplas linguagens na educação infantil. In: DIAS, M. C. M. Brincar: o brinquedo e a brincadeira na infância. São Paulo: Cenpec, 2009.). Como percebido nessas histórias:

Professora, minha irmã mais velha mora na cidade com minha vó Tuta, para ela estudar, quando vou lá ela não brinca mais comigo, então eu brinco aqui na escola de corda, Machetão, de cola-cola, de estátua e, na fazenda, eu laço boizinho, meu pai fez de madeira e também vou a pé na casa do meu amigo e lá brincamos de um monte de coisas que eu gosto, subo numa árvore e jogamos pedrinha no rio. (ALEX, 8 anos – 28/09/2017).

Olha, professora, eu vou te contar, mas não é para rir de mim, porque o que eu gosto mesmo é de cozinhar, de fazer macarrão, gosto de ler, de fazer versos, levo livros daqui da escola, meus irmãos tira sarro de mim, assisto TV, jogo no celular e ajudo em casa, não gosto do campo, não vou trabalhar lá, quero ir para a cidade, mas faço Educação Física de vez em quando, aí, eu jogo, corro e brinco um pouco. (PAULO, 14 anos – 28/09/2017).

Eu assisto TV, jogo no celular, jogo bola e brinco de pega-pega e ajudo minha mãe, lavo louça, limpo casa, tiro água da varanda, estendo roupa e o que eu mais gosto é de jogar bola, vou pouco no campo ajudar meu tio, gosto mais de ficar em casa e aqui na escola, gosto do campinho, por causa que jogo bola e como moro aqui, pesco bastante alí no Taboco. (GUSTAVO, 11 anos – 28/09/2017).

Depois da escola, a tarde vou toca leitera, toco o gado pra ajudá meu pai e vou domingo caça porco do mato pra criá e colocamo no chiqueiro, meu pai trabaia aqui no Taboco, e o que eu gosto de fazer também é joga bola, jogo todo dia ali no campinho e vou pescá no Rio Taboco. (HEITOR, 11 anos – 28/09/2017).

Eu ando de bicicleta, que era meu sonho ter uma, ando todo dia, brinco com meus três cachorros e gosto de fazer comidinha de faz de conta com terra e folha das árvores, gosto também de desenhar, de ver e escutar os passarinhos, lá em casa vai bastante bem-te-vi, minha mãe tem um lugar que eles vão toma água que parece um bebedouro de passarinho e gosto muito de morar na fazenda, vou no mangueiro, fico muito lá, que é um lugar que eu gosto, vou no rio com meu pai jogar pedrinha para ver ela pular e aqui na escola eu brinco com minhas amigas de um monte de coisa. (GIOVANA, 10 anos – 28/09/2017).

Diante dessas histórias do brincar, do fazer, do ver, do assistir, do ir até um lugar e estar no seu lugar além da escola, tem interações habituais da infância das crianças pantaneiras que transformam, por meio da imaginação e das vivências reais, o espaço de cada uma. Pensando nesses espaços vividos por elas nas brincadeiras ou em seus afazeres como pertencimento, destaca-se aqui o protagonismo de cada uma delas, suas linguagens, seus gestos e atitudes, possibilitando analisar suas culturas e, em contexto escolar, identificar suas (re)criações e apropriações em torno do que vivem como marca de cultura e desenvolvimento local.

3 CRIANÇAS PANTANEIRAS E SUAS BRINCADEIRAS: PRODUZINDO CULTURA E PROTAGONIZANDO SUAS HISTÓRIAS

A brincadeira possibilita à criança conhecer-se a si mesma como um ser ativo e criativo, tornando-a competente no explorar e responder ao meio, trabalhando com situações e elementos do seu entorno (DIAS, 2009DIAS, M. C. M. O brincar com as múltiplas linguagens na educação infantil. In: DIAS, M. C. M. Brincar: o brinquedo e a brincadeira na infância. São Paulo: Cenpec, 2009.). Nessa perspectiva, recorre-se mais uma vez a Manoel de Barros, cuja poesia narra um pouco do pertencimento de um lugar, que, para o poeta, geralmente é o Pantanal sul-mato-grossense:

UM BEM-TE-VI: [...] o leve e macio raio de Sol, se põe no rio. Faz arrebol. Da árvore evola amarelo, do alto bem-te-vi-cartola e, de um salto, pousa envergado no bebedouro a banhar seu louro pelo enramado. Da arrepio, na cerca já se abriu, e seca [...]. (BARROS, 2010, p. 107BARROS, M. de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.).

Assim, o poeta e a criança conseguem contar do seu lugar, do que gostam, do que sentem e ainda conseguem imaginar e sobrepor ao real e mostrar que o pensar e o fazer podem constituir-se de elementos para ver, ouvir e sentir. Nessa perspectiva, à medida que as crianças crescem e se relacionam com outras pessoas, a sua ideia de lugar amplia o pertencimento e marca seu espaço. Quando ela diz de uma brincadeira específica (Machetão) ou de um afazer no campo, no mangueiro, no chiqueiro, apartando um gado, indo a um rio jogar pedrinhas, este ambiente é específico, marcando um lugar, e, assim, as crianças pantaneiras têm suas culturas estabelecidas e ainda a exaltam de forma autêntica e íntima. Desse modo,

As brincadeiras expressam estados de espírito, conflitos. São capazes de harmonizar situações, transmitir conhecimentos, desconstruir certezas. Têm o poder de quebrar paradigmas, flexibilizar corpos, dogmas e relações. Questionam e respondem. Podem transformar uma pessoa, mudar um clima instaurado. São mágicas, misteriosas, alquímicas. Mobilizam, mas também podem paralisar por dentro e por fora [...]. (FRIEDMANN, 2013, p. 70FRIEDMANN, A. O brincar no cotidiano da criança. São Paulo: Moderna, 2013.).

Olhar o mundo a partir do ponto de vista da criança pode revelar muito do que elas têm a dizer, possibilita dar novos contornos à realidade. Esse olhar é importante por ajudar a constituir um olhar sensível e crítico, desvelando o real e subvertendo a aparente ordem natural das coisas, pois “[...] as crianças falam não só do seu mundo e da sua ótica de crianças, mas também do mundo adulto, da sociedade contemporânea” (KRAMER, 1996, p. 23KRAMER. Pesquisando infância e educação: um encontro com Walter Benjamin. In: KRAMER, S.; LEITE, M. I. (Org.). Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus, 1996. p. 13–38.). No viés da autora, imbuirnos do olhar da criança, que é crítico e que vira as coisas pelo avesso, que desmonta brinquedos, desmancha construções, que dá a volta ao mundo, é aprender com elas sem se deixar infantilizar, portanto, “conhecer a infância e as crianças favorece que o ser humano continue sendo sujeito crítico da história que ele produz (e que o produz)” (KRAMER, 1996, p. 24KRAMER. Pesquisando infância e educação: um encontro com Walter Benjamin. In: KRAMER, S.; LEITE, M. I. (Org.). Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus, 1996. p. 13–38.).

A visão sensível sobre a infância e a cultura infantil, de Kramer (1996)KRAMER. Pesquisando infância e educação: um encontro com Walter Benjamin. In: KRAMER, S.; LEITE, M. I. (Org.). Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus, 1996. p. 13–38., oferece importantes informações para compreender que Paulo quer ir à cidade e não se identifica com o campo; que Gustavo limpa casa, estende roupa e joga bola; Heitor ajuda na lida do gado e joga bola; e Giovana brinca de faz de conta e gosta do mangueiro, pois, na tentativa de descobrir e conhecer o mundo, as crianças falam dos seus lugares, que têm a especificidade da sua cultura; elas atuam sobre suas vidas, elas têm responsabilidades, mas brincam e atribuem significados às coisas, aos fatos e artefatos.

As brincadeiras, para Corsaro (2011)CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artemed, 2011., são contextualizadas como rotinas e/ou rotinas culturais; em alguns casos, o enquadre para essa identificação é relevante para o cotidiano das crianças pantaneiras, pois elas lidam com determinados objetos (boizinho de madeira), lugares específicos (mangueiro, chiqueiros, rio, árvores), citam animais, ou seja, tem-se uma especificidade. O autor nos indica que alguns elementos e objetos referentes à cultura do lugar, quando disponíveis às crianças, são agrupados ao seu cotidiano e passam a fazer parte de suas vidas.

Uma das perspectivas desafiadoras apontadas nas pesquisas de Corsaro (2011)CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artemed, 2011. é pensar na importância de uma ou muitas atividades lúdicas entre as crianças, como criação de uma cultura entre elas, pois, para ele, ao compartilhar valores, interesses, rotinas, artefatos, sempre em pares, as crianças estão produzindo cultura e estabelecendo influências, afetando e sendo afetadas. Para o pesquisador:

[...] considerar as crianças como grupo social, que participa da cultura de forma ativa, produzindo mudanças culturais, não é tão simples assim e significa uma mudança de paradigmas em relação à participação das crianças na sociedade. Elas deixam de ser números para estatísticas e assumem um lugar ativo, onde tanto influenciam as formas de viver dos grupos sociais, como são influenciadas por eles. (CORSARO, 2011, p. 109CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artemed, 2011.).

Estar imersa à vida das crianças pantaneiras, ouvi-las em seus lugares, saber de suas histórias e de suas vidas, levou a pensar em como o protagonismo infantil requer estudo, requer entendimento, pois cada criança tem sua identidade marcada pelo lugar em que vive. As crianças pantaneiras brincam! Brincam de muitas coisas, inventam, interagem e, por meio dessas atividades, criam um espaço que expressa significados aos acontecimentos, como registrado no caderno de campo no dia 02/10/2017. Ao acharem um pedaço de janela, pediram ao professor Luís para brincarem com ela. Este permitiu e ainda proporcionou outros elementos (cones, traves, canos, corda) e, assim, de um pedaço de janela, as crianças criaram um barco e fizeram viagens imaginárias para lugares longínquos, e a grama foi um rio também imaginário.

Fotografia 4
Crianças pantaneiras brincando com um barco em rio imaginário

Próximo à escola-fazenda, passa o Rio Taboco e, para as crianças pantaneiras, o rio faz parte de suas vidas, de seus cotidianos, e brincar é uma forma de convívio de pares, é uma atividade compartilhada que permite ao ser humano conhecer e reinventar, reproduzir e interpretar, gerando novas formas culturais entre elas (CORSARO, 2011CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artemed, 2011.).

4 SEM INTENÇÃO DE FINALIZAR A PROSA

Durante o percurso etnográfico (um ano), percebeu-se o significado das relações sociais entre as crianças e destas com o mundo, para compreender como elas compartilham e produzem as culturas da infância. Sarmento (2003)SARMENTO, M. J. O Estudo de caso etnográfico em educação. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: perspectivas sócio-pedagógicas da infância e educação. Braga, PT: Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 2003. estabelece que as culturas da infância são incorporadas tanto pelos jogos infantis, entendidos como formas culturais produzidas pelas crianças, como pelos modos específicos de significação e de comunicação que se desenvolvem nas relações entre pares.

Destaca-se aqui a linguagem já mencionada anteriormente, pois as crianças pantaneiras têm uma maneira peculiar de falar, comunicar, expressar e contar as suas histórias. Elas, além de gostarem de brincar, contam que ajudam seus pais nos afazeres, tanto de casa como do campo, estabelecendo relações também com os adultos do meio em que vivem. Agem algumas vezes, por necessidade, como adultos/as, cuidando umas das outras, como demonstrado no ônibus, durante o ir e vir para a escola, todos os dias da semana, pela estrada boiadeira. Elas estabelecem uma relação de trocas constituídas a partir da inter-relação entre as produções culturais dos adultos para as crianças e as produções culturais geradas pelas crianças nas suas relações entre pares.

Em acordo com Sarmento e autores e autoras citados ao longo do texto, compreende-se que as culturas infantis não se dão apenas na comunidade em que as crianças estão inseridas (neste caso, nas fazendas do Pantanal sul-mato-grossense e na escola pantaneira observada), elas se apresentam na sociedade como um todo, caracterizadas na simbologia da infância (SARMENTO, 2003SARMENTO, M. J. O Estudo de caso etnográfico em educação. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: perspectivas sócio-pedagógicas da infância e educação. Braga, PT: Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 2003.).

E, nessa perspectiva de Sarmento, o brincar, ou seja, a brincadeira, a ludicidade, é inerente ao próprio homem/mulher, sendo assim, uma das atividades mais significativas da vida humana. Por meio dele, há interação, descoberta, inventividade, compromisso, respeitabilidade, emoção, compartilhamento, amizade, enfim, é uma atividade que representa formas de ação e especificidade da infância, por ocupar um lugar central na vida das crianças. Tais características foram encontradas nas crianças pantaneiras em diversas atividades, atitudes, ações e histórias de vida. Assim, o brincar, elemento fundamental do ser humano, constrói-se a partir do coletivo e das vivências interativas, possibilitando aprendizagem e sociabilidade, sendo esses elementos fundacionais das culturas da infância (SARMENTO, 2003SARMENTO, M. J. O Estudo de caso etnográfico em educação. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: perspectivas sócio-pedagógicas da infância e educação. Braga, PT: Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 2003.).

Nos estudos específicos da criança e sua infância, Sarmento (2003)SARMENTO, M. J. O Estudo de caso etnográfico em educação. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: perspectivas sócio-pedagógicas da infância e educação. Braga, PT: Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 2003. e Corsaro (2009)CORSARO, W. A. Reprodução interpretativa e cultura de pares. In: MÜLLER, F.; CARVALHO, A. M. A. (Org.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com William Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009. apresentam a cultura de pares como possibilidade de as crianças se apropriarem, reinventarem e reproduzirem o mundo que as rodeia. Nessa perspectiva, o percurso etnográfico mostrou que as crianças pantaneiras, por meio de atividades e rotinas, atitudes, prazeres, gostos, medos, chateações, enfim, suas vivências, compartilham experiências tanto negativas como positivas, que levarão para toda a vida. Essas experiências e partilhas, tanto de tempo como espaço, são importantes para entenderem o mundo e possibilitam o processo de crescimento que faz parte do desenvolvimento humano. Para a criança, esse entendimento vem de maneira mais específica no brincar, por isso, conforme Sarmento (2003)SARMENTO, M. J. O Estudo de caso etnográfico em educação. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: perspectivas sócio-pedagógicas da infância e educação. Braga, PT: Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 2003., o lugar da criança é o lugar das culturas da infância, e esse lugar é continuamente reestruturado pelas estruturas sociais que perpassam as gerações em seus momentos e épocas históricas.

Portanto, as crianças pantaneiras, por meio de ações interativas em suas brincadeiras, carregam conhecimentos individuais construídos nas suas experiências cotidianas dos seus mundos sociais e culturais mais amplos e vão, de alguma forma, assumindo elementos compartilhados da interação com outras crianças e adultos com os quais convivem. Esses elementos são as experiências comuns que as crianças vivenciam em muitas situações cotidianas no contato com outras pessoas, seja de discordância, seja de ideias, prazeres, conhecimento, felicidade, mágoa, negociações, e as brincadeiras ajudam a esclarecer situações com o surgimento de novas interações e novos conhecimentos. As relações das crianças entre pares, com os adultos e com a ordem instituída na escola e na família se estruturam e, a partir desses contextos, relações sociais mais amplas surgem, gerando, assim, as re(criações) e apropriações de suas vidas como marcas de uma cultura e do desenvolvimento local.

REFERÊNCIAS

  • BARROS, M. de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.
  • BORBA, A. M. Quando as crianças brincam de ser adultos: vir a ser ou experiência da infância? In: LOPES, J. J. M.; MELLO, M. B. (Org.). O jeito de que nós crianças pensamos sobre certas coisas: dialogando com lógicas infantis. Rio de Janeiro: Rovelle, 2006.
  • CORSARO, W. A. Reprodução interpretativa e cultura de pares. In: MÜLLER, F.; CARVALHO, A. M. A. (Org.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com William Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009.
  • CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artemed, 2011.
  • DIAS, M. C. M. O brincar com as múltiplas linguagens na educação infantil. In: DIAS, M. C. M. Brincar: o brinquedo e a brincadeira na infância. São Paulo: Cenpec, 2009.
  • DOLTO, F. Os caminhos da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
  • FRIEDMANN, A. O brincar no cotidiano da criança. São Paulo: Moderna, 2013.
  • KRAMER. Pesquisando infância e educação: um encontro com Walter Benjamin. In: KRAMER, S.; LEITE, M. I. (Org.). Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus, 1996. p. 13–38.
  • LEVIN, E. A infância em cena: constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor. Petrópolis: Vozes, 1997.
  • PROUT, A. Reconsiderar a nova sociologia da infância: para um estudo multidisciplinar das crianças. Ciclo de Conferências em Sociologia da Infância 2003/2004. Braga, PT: IEC, 2004.
  • SARMENTO, M. J. O Estudo de caso etnográfico em educação. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: perspectivas sócio-pedagógicas da infância e educação. Braga, PT: Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2022
  • Revisado
    26 Out 2022
  • Aceito
    23 Nov 2022
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