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Libertação gay no Brasil: discursos e enfrentamentos do jornal Lampião da Esquina durante a abertura política (1978-1981)

Liberación gay en Brasil: discursos y confrontaciones del periódico Lampião da Esquina durante la apertura política (1978-1981)

Resumo

Este trabalho tem como objetivo analisar os conteúdos relacionados ao ideário da libertação gay no Brasil publicados no jornal Lampião da Esquina, que circulou de 1978 a 1981. Por meio de três eixos temáticos, buscamos compreender a relação estabelecida com demais veículos de comunicação; as denúncias contra homossexuais noticiadas no periódico; e a cobertura política realizada por Lampião. Os eixos foram definidos com base na relevância que apresentaram em leitura sistematizada e intencionalmente dirigida ao tema da libertação gay e os excertos selecionados conforme pertinência e correlação aos eixos, compondo uma amostra por conveniência. Como principal resultado, foi possível identificar o posicionamento do jornal frente a grupos políticos, independente de sua filiação partidária, além do papel de articulador do movimento homossexual brasileiro.

Palavras-chave
Lampião da Esquina; Imprensa Gay; Jornalismo; Comunicação; Abertura política

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo analizar los contenidos relacionados con la liberación gay en Brasil publicados en el periódico Lampião da Esquina, que circuló entre 1978 y 1981. A través de tres ejes temáticos, buscamos comprender la relación establecida con otras publicaciones periódicas; las denuncias contra homosexuales reportadas en el periódico; y la cobertura política llevada a cabo por Lampião. Los ejes se definieron en función de la relevancia que presentaron en la lectura sistematizada e intencionalmente dirigida al tema de la liberación gay. Los extractos fueron seleccionados de acuerdo con la pertinencia y la correlación con los ejes, componiendo una muestra por conveniencia. Como principal resultado, fue posible identificar la posición política de el periódico frente a los grupos políticos, independientemente de su afiliación partidista, además de su función articuladora en el movimiento homosexual brasileño.

Palabras clave
Lampião da Esquina; Prensa gay; Periodismo; Comunicación; Apertura política

Abstract

This work aims to analyze the contents related to the gay liberation in Brazil published in the Lampião da Esquina newspaper, which circulated from 1978 to 1981. Through three thematic axes, we sought to understand the relationship established with other communication vehicles; the denunciations against homosexuals reported in the periodics, and the political coverage carried out by Lampião. The axes were defined based on the relevance that they presented in the systematized reading, intentionally directed to the theme of gay liberation. The excerpts were selected according to pertinence and correlation to the axes, composing a sample for convenience. As a main result, it was possible to identify the position of newspaper in comparison of political groups, independently of their party affiliation, besides the articulating role in the Brazilian homosexual movement.

Keywords
Lampião da Esquina; Gay Press; Journalism; Communication; Political Opening

Como consequência de diversos movimentos que ocorriam no mundo, a década de 1960 foi transformadora quando observamos as questões dos costumes e liberdades. A Contracultura, nascida nos Estados Unidos e com auge neste período, teve como principais bandeiras a luta pelo desarmamento nuclear, o fim do modelo de vida tecnocrático, a retirada dos exércitos americanos do Vietnã, território asiático estratégico pelo qual os EUA e a URSS tinham interesse à época, e também a liberdade das mais variadas expressões, dentre elas a sexual.

Jovens rebeldes que aclamavam a paz, entregavam flores com o apelo “Faça amor e não guerra”, utilizavam drogas e escutavam uma música representante do espírito rebelde, o Rock and Roll, por meio de suas manifestações pouco convencionais fizeram com que a sociedade das armas e das bombas os escutassem. Roszak (1972)ROSZAK, T. A contracultura, Petrópolis: Editora Vozes, 1972., criador do termo “Contracultura”, conta que as expressões desses jovens transformaram a época em que estavam inseridos.

Esse contexto foi essencial para a expressão livre da homossexualidade, antes vista e tratada como uma doença. Influenciado e favorecido pelo movimento feminista, o livre convívio entre gays nos Estados Unidos, principalmente na cidade de São Francisco, trouxe reflexos à população homossexual: em 1961, em São Francisco, a drag queen José Sarria se tornou a primeira homossexual a se candidatar em uma eleição a um cargo oficial; em 1963, a Society for Individual Rights, entidade também do estado de São Francisco, fundou um centro comunitário para auxílio a homossexuais; 1966 foi o ano em que a National Planning Conference of Homophile Organizations lançou uma campanha de protestos contra a exclusão de militares gays do exército americano. Esta campanha contou com diversas organizações homossexuais, que se uniram e fundaram a NACHO, North American Conference of Homophile Organizations; em 1970, foi criada a Gay Pride (Parada gay), organizada por Morris Kight e Troy Perry, realizada em Hollywood, foi a primeira passeata de luta pelos direitos homossexuais, uma de suas bandeiras era a substituição do termo “homossexual”, ligado às questões médicas, pelo “gay”; em 1977, foi eleito o primeiro político abertamente gay do país, Harvey Milk 1 1 Harvey Milk, após ter contato com o movimento da contracultura, se assumiu homossexual, participou de três eleições e, em 1977, foi eleito como supervisor da cidade de Castro, em São Francisco que, posteriormente, seria tragicamente assassinado.

Como efeito borboleta, uma destas manifestações chegou ao Brasil. Em 1978, Winston Leyland, editor da revista americana Gay Sunshine, veio fazer uma visita ao país e incentivou um grupo de intelectuais a publicar um jornal para os gays brasileiros (MACRAE, 1990). Quando Winston Leyland propõe a criação do jornal, o Brasil, apesar de ainda viver em um regime ditatorial, passava por um período de menor repressão com relação aos anos de implantação do AI-5 (Ato Institucional nº 5), que impunha censuras em diversas publicações e buscava controlar a liberdade de expressão no país. As décadas de 1970 e 1980 foram compostas por momentos muitos peculiares; esta passagem é chamada de abertura política por conta do enfraquecimento do Regime Militar instalado em 1964. No período, a chamada “Imprensa Alternativa” estava em franco desenvolvimento. Jornais dos mais diversos possíveis combatiam o governo dos militares, tanto pelo viés político, quanto cultural. Normalmente gerenciado por jornalistas, os “nanicos”2 2 Os jornais “nanicos” foram assim conhecidos por conta de seu tamanho, normalmente no formato de tablóides; e por conta de sua circulação, que era menor que a dos grandes jornais. entravam em circulação sem a estrutura de distribuição que detinham os grandes jornais comerciais e o lucro não era o principal intuito dessas publicações, estavam mais dispostos a divulgar uma causa. Kucinski (1991)KUCINSKI, B. Jornalistas e revolucionário: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta, 1991. conta que a criação e evolução da imprensa alternativa se deram por conta dos desejos mútuos de expressão dos grupos sociais e de jornalistas que queriam escrever em outros locais além dos grandes jornais e das universidades.

Lampião da Esquina foi um desses veículos, nasceu em abril de 1978, teve um total de 37 números, além do número zero de circulação restrita e outras três edições extras. Inicialmente, os onze integrantes fundadores fizeram parte do Conselho Editorial da publicação, foram eles: Darcy Penteado, Adão Costa, Aguinaldo Silva, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt, Gasparino Damata, Jean Claude Bernardet, João Antônio Mascarenhas, João Silvério Trevisan e Peter Fry (FERREIRA, 2010FERREIRA, C. Imprensa homossexual: surge o Lampião da Esquina. Revista Alterjor, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 1-13, jan./jun. 2010. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/alterjor/article/view/88195. Acesso em: 20 jun. 2018.
http://www.revistas.usp.br/alterjor/arti...
).

Lampião da Esquina surgiu como um jornal homossexual que tinha o objetivo de retirar os gays do gueto do país e mostrar à sociedade, e aos próprios homossexuais, que uma desvinculação da tradicional imagem do gay como ser afeminado e que rejeitava sua própria sexualidade, era possível (SAINDO..., 1978CINEMA Iris: na última sessão, um filme de terror. Reportagem. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, abr. 1978. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2016/01/01-LAMPIAO-EDICAO-00-ABRIL-19781.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2018.
http://www.grupodignidade.org.br/wp-cont...
). Por este motivo, quando falamos do Lampião da Esquina, não podemos deixar de tratar a libertação gay masculina. O principal conteúdo do jornal era voltado aos homens homossexuais, que obtinham informações sobre o mundo “guei” – palavra aportuguesada utilizada pelo jornal – e da luta pelos seus direitos 3 3 Para mais informações sobre os processos de produção, circulação e distribuição do jornal Lampião da Esquina, consultar artigo “Imprensa homossexual, surge o Lampião da Esquina” (FERREIRA, 2010) Disponível em: http://www.revistas.usp.br/alterjor/article/viewFile/88195/91073. Acesso em: 10 abr. 2018. .

A libertação gay4 4 Optamos pela expressão “Libertação Gay”, ao invés de “Liberação Gay”, por acreditar que a primeira guarda as contradições da luta pelos direitos LGBTI+ durante as décadas de 1960 a 1980, no Brasil. O sentido de liberação, para nós, está mais ligado a uma permissividade do outro, contrastando, assim, com a ideia de uma conquista social. (em inglês: Gay Liberation) diz respeito a esse momento particular da história no Brasil e no mundo, décadas de 1960-1980, no qual homossexuais se uniram para lutar por seus direitos enquanto indivíduos e seres humanos. Foi nesse período que diversos movimentos voltados aos direitos homossexuais surgiram em diversas partes do globo, formando uma frente pelos direitos de seus integrantes. A expressão passou a ser conhecida pelo movimento realizado por homossexuais americanos após o evento de Stonewall Inn, em 1969:

O nascimento da Libertação Gay foi em junho de 1969, quando gays revidaram contra a batida policial realizada no Stonewall Inn. A polícia invadiu o bar, forçando as pessoas saírem para a rua. Mas, ao invés de fugirem, os gays, liderados pelas travestis, trancaram os policiais dentro do bar, incendiaram o local e jogaram moedas e garrafas quando a polícia saiu do estabelecimento. Participantes do incidente, juntamente com outros integrantes da comunidade gay, se reuniram para planejar um grupo político para gays. Os militantes gays escolheram o nome Gay Liberation Front em homenagem as guerrilhas vietnamitas. O grupo nunca esteve no fronte, propriamente dito, mas o nome pegou e foi utilizado em dezenas de outras cidades

(JAY; YOUNG, 1992JAY, K; YOUNG, A. Out of the closets. 2 ed. New York: New York University Press. 1992., p. 25 – Tradução nossa).

Compreendendo, portanto, a libertação gay como a manifestação dos próprios homossexuais a favor de seus direitos, neste trabalho, a definimos como qualquer conteúdo jornalístico que possa ser considerado a favor da obtenção desses direitos, favoráveis ao grupo social. Questionamentos sobre ações conservadoras contra a emancipação do gay enquanto ser humano e digno de direitos; atitudes individuais ou conjuntas destinadas ao pleno gozo à vida; dentre outras manifestações culturais, sociais ou políticas relacionadas a livre expressão da sexualidade.

Tanto os movimentos sociais deste período, quanto o Lampião da Esquina, abordaram as demais expressões de gênero em suas reivindicações. Lésbicas, transexuais, travestis, bissexuais e vários outros grupos fizeram parte do discurso social e das páginas do Lampião à época. Neste trabalho, porém, abordaremos apenas a imagem do homossexual gay masculino, devido a maior profusão de conteúdos produzidos e divulgados no veículo, deixando para nossos estudos futuros a relação do jornal com os demais grupos sociais.

Para nossa análise, por meio de excertos extraídos das 37 edições de Lampião e seu número zero – não fizeram parte de nossa amostra as edições extras –, buscamos compreender três eixos temáticos: a relação estabelecida com os demais veículos de comunicação; as denúncias contra homossexuais noticiadas no periódico; e, por fim, a cobertura política realizada por Lampião. Os eixos foram definidos com base na relevância que apresentaram em leitura sistematizada e intencionalmente dirigida ao tema da libertação gay e os excertos selecionados conforme pertinência e correlação aos eixos, compondo uma amostra por conveniência. Foram utilizadas matérias que se dedicassem exclusivamente aos eixos priorizados. No total, foram analisados 24 conteúdos jornalísticos publicados no jornal entre 1978 e 1981. Todas as edições consultadas fazem parte da coleção digitalizada e disponibilizada pelo Centro de documentação Prof. Dr. Luiz Mott, iniciativa do Grupo Dignidade em parceria com a Associação Paranaense da Parada da Diversidade (APPAD).

Lampião e sua relação com os demais veículos de comunicação

A crítica de como os veículos de comunicação retratavam a homossexualidade foi amplamente discutida nas páginas do Lampião da Esquina. Veículos de comunicação da intitulada grande imprensa e periódicos da imprensa alternativa tinham suas matérias analisadas, criticadas e denunciadas quando consideradas inadequadas ao auxílio da promoção dos direitos homossexuais, ou até mesmo quando realizavam a propagação de uma imagem padronizada e estereotipada dos gays.

Na edição número seis de Lampião, podemos perceber uma dessas manifestações, uma dura crítica ao veículo de comunicação e a imprensa marrom de maneira geral. O jornal sensacionalista Notícias Populares havia publicado uma série de reportagens, nas quais acusava homossexuais de diversos crimes e afirmava que a polícia estava sendo negligente com relação aos criminosos. Segundo Glauco Matoso, responsável pela reportagem, a cobertura de crimes relacionados aos homossexuais servia apenas para realizar uma campanha de fomentação do preconceito contra gays:

Numa recente série de reportagens em torno de crimes praticados por homossexuais, o jornal paulista Notícias Populares dá a entender que a polícia estaria sendo negligente quanto a perseguição dos criminosos. Isto é, ao denunciar o que seria uma “omissão das autoridades”, o jornal pretende cobrar uma atitude (ou no mínimo uma posição), senão das próprias autoridades, do povo em geral. Como quem diz: já que a polícia não toma providências... Este pretenso “papel fiscalizador” é apenas um dos aspectos (talvez o mais grave) que configuram uma verdadeira “campanha” anti-homossexual por parte da imprensa marrom. Mesmo que tal “campanha” não seja uma cruzada moralista consciente e não passe de uma fábrica de manchetes vendáveis, ela é real na medida em que produz seus reflexos sobre determinada faixa da opinião pública

(MATOSO, 1978MATOSO, G. Nos jornais, um eterno suspeito: o homossexual. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, nov. 1978. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/10-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-06-NOVEMBRO-1978.pdf. Acesso em: 12 jun. 2018.
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, p. 7).

Essa postura, de se opor às notícias que não interessavam ao movimento homossexual, se repete diversas vezes no Lampião. Os veículos nanicos também foram alvo de críticas, entre eles o jornal O Pasquim, famoso por seu humor e oposição durante o período do Regime Militar de 1964.

Críticas e chacotas se tornariam mais comuns com a publicação da coluna social Bixórdia, que tinha uma linguagem mais informal, se aproximando mais da linguagem falada no gueto homossexual. Além de contar “fofocas” do mundo gay, o deboche contra a imprensa, jornalistas e pessoas da alta sociedade que questionavam as ações dos homossexuais era exercido frequentemente. O comentário direcionado ao colunista social Ibrahim Sued, do jornal O Globo (Figura 1), serve de exemplo:

Figura 1
Excerto da coluna Bixórdia

Apesar destes atritos com jornalistas da pequena e grande imprensa, o Lampião da Esquina mantinha uma relação estável com veículos que eram favoráveis aos direitos homossexuais. A imprensa alternativa americana era uma das fontes de informação dos jornalistas do Lampião, fazendo com que, às vezes, artigos fossem traduzidos e publicados no veículo.

A publicação destas traduções era uma forma de oferecer novidades aos leitores brasileiros que, dificilmente, teriam acesso por meio dos veículos tradicionais ou não as leriam nas publicações originais por falta do domínio dos idiomas ou dificuldade de acesso.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com um artigo de Pier Paolo Pasolini, cineasta e crítico de cinema italiano, que, apesar de ter sido escrito em 1974, ainda não havia sido traduzido para o português até 1978. Neste artigo, o autor questiona as discussões teóricas abertas por cientistas franceses e argumenta contra alguns pontos da obra (PASOLINI, 1978PASOLINI, P. P. Desbloqueando o tabu. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, out. 1978. Disponível em http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/09-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-05-OUTUBRO-1978.pdf. Acesso em: 13 jun. 2018.
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).

Até a circulação do Lampião da Esquina, apenas alguns pequenos jornais, de produção e circulação restritas, tiveram como público os homossexuais. Jornal do Gay, Snob e Revista Peteca foram algumas dessas publicações (GREEN; POLITO, 2004GREEN, J. N.; POLITO, R. Frescos Trópicos: fontes sobre a homossexualidade masculina no Brasil (1870-1980). São Paulo: José Olympio, 2004.). Portanto, o acesso às discussões teóricas e mais aprofundadas sobre a homossexualidade, principalmente estrangeiras, era escasso, se tornando assim uma possibilidade para o jornal a tradução e disponibilização de conteúdos para um número maior de pessoas.

Diferente do tratamento dado aos veículos já citados, Lampião da Esquina tem uma relação amistosa com seus concorrentes diretos, anunciando até mesmo os lançamentos de revistas e jornais voltados aos gays. O discurso que o jornal apresentava fazia alusão ao reconhecimento e apoio para as novas publicações. Fry (1978, p. 4)FRY, P. História da imprensa baiana. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, ago./set. 1978. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/08-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-04-AGOSTO-SETEMBRO-1978.pdf. Acesso em: 13 jun. 2018.
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traça a história de diversos jornais feitos por Waldeilton dí Paula, bancário e jornalista baiano que, por meio de seus veículos, praticamente artesanais, contava a vida social dos gays baianos:

Di Paula nasceu em Alagoinhas em 1942 e mudou para Salvador 13 anos depois. Logo entrou na profissão de bancário que segue até hoje. “Naqueles tempos a gente vivia muito fechado, porque não podia ter liberdade de expressão, viver publicamente e ser aceito pela sociedade. Então, isso tudo nos obrigou a criar vínculos. Então a gente se reunia em apartamentos, nas praias, não tinham bares, boates e outras coisas. A gente utilizava a natureza como ponto de lazer nas noites”. Formaram-se, então, vários grupos bem fechados tais como os VlDs (Very Important Dolls), Carimbós e Os Intocáveis. “Com essa coisa toda, comecei a fazer os murais, com os desenhos. Todo mundo lia e satirizava os acontecimentos e os personagens. Agradava muito. Então comecei a fazer um jornalzinho precariamente limitado a falar sobre a sociedade guei do nosso grupo, e ganhando uma estrutura econômica. Comecei a trabalhar. E assim fui promovendo reuniões em minha casa e nas casas dos amigos. O jornal foi crescendo”.

Jornais com circulação mais expressiva, voltados ao público gay, também tiveram seus destaques nas páginas de Lampião, como foi o caso do lançamento do Gay News. A publicação, derivada do Jornal do Gay, cita o Lampião da Esquina em suas páginas e o mesmo ocorre no Lampião, mostrando uma união, de maneira geral, dos veículos voltados aos direitos homossexuais em nome do discurso gay:

O antigo Jornal do Gay, publicação paulista destinada aos entendidos, mudou de nome: agora chama-se Gay News, e apresenta-se aos seus leitores mais ágil, com uma paginação mais simpática, e como representante de “um grupo gay internacional”

(NAS BANCAS..., 1979NAS BANCAS o “Gay News”. Esquina. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, fev. 1979. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/17-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-13-JUNHO-1979.pdf. Acesso em: 13 jun. 2018.
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, p. 4).

A relação que o Lampião da Esquina estabelecia com a imprensa varia conforme o tratamento dado ao grupo social, independente se ligados a imprensa comercial de grande escala, ou aos nanicos. A publicação criticava duramente a cobertura da imprensa tradicional com relação ao tema da homossexualidade, além de realizar ataques esporádicos há alguns de seus membros. Já com seus concorrentes, ou publicações que seguem uma linha editorial semelhante a sua, o jornal adotava um discurso mais ameno e, por vezes, até promovia alguns desses veículos, ressaltando a importância deles para o debate de ideias perante a sociedade. Essas posições colocam o Lampião da Esquina como um veículo que, de fato, demarcava seu território a favor da afirmação gay, colocando-a, por exemplo, a frente de possíveis interesses comerciais ou da chamada “luta maior”, aquela que defendia a redemocratização do país e tinha em veículos da imprensa nanica, como O Pasquim, um de seus principais representantes. A relação com a imprensa era marcada essencialmente pela forma como os indivíduos, ou veículos, se portavam frente às demandas do movimento homossexual.

Violências contra homossexuais e as denúncias

Uma atitude adotada pelo Lampião da Esquina, e que se apresenta em praticamente todas as edições, foi a denúncia de crimes contra homossexuais. Assassinatos, atos de preconceito, batidas policiais sem motivo aparente e a falta de segurança para os gays são destaques nas páginas do periódico.

Já em seu número zero, Lampião colocou em sua capa a manchete “Celso Curi processado. Mas qual é o crime deste rapaz?”. Esta pode ser considerada a primeira denúncia realizada pelo jornal e também a que apresentou ao público como seria a abordagem do periódico com relação aos abusos sofridos pelos homossexuais frente às violências cotidianas.

No interior do jornal, a matéria mantém o tom de denúncia. Em sua linha fina, a ação contra o jornalista é citada como “apenas mais uma etapa da campanha contra o jornalista que ousou transformar em assunto diário do jornal um tema até então considerado tabu: o homossexualismo” (TREVISAN, 1978TREVISAN, J. S. Demissão, processo, perseguições. Mas qual é o crime de Celso Curi?. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, abr. 1978. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2016/01/01-LAMPIAO-EDICAO-00-ABRIL-19781.pdf. Acesso em: 12 jun. 2018.
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, p. 7). No decorrer do texto, a discussão sobre a perseguição ao jornalista Celso Curi, por conta da coluna sobre assuntos gays que mantinha no jornal Última Hora, a “Coluna do Meio”, primeira do gênero em um jornal de grande circulação, se torna mais incisiva.

Essas denúncias, ao mesmo tempo em que falavam dos abusos, demonstravam o cotidiano dos homossexuais. Durante as décadas de 1970 e 1980, a repressão sofrida pelos gays fazia com que diversos locais públicos servissem de pontos encontros. Os cinemas eróticos das capitais, por exemplo, eram redutos para muitos que não tinham como se relacionar e procuravam diversão durante as noites, como era o caso do Cinema Iris, no Rio de Janeiro (GATTI, 2000GATTI, J. Mais amor e mais tesão: história da homossexualidade no Brasil - Entrevista com James Green. Revistas Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 149-166, 2000. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/11932/11198. Acesso em: 20 jun. 2018.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
).

Em matéria, também do número zero do jornal, Lampião denuncia exatamente o abuso de policiais, que ficavam a espreita dos locais conhecidos e tidos como espaços frequentados por homossexuais a fim de prendê-los, sob acusação de serem desocupados:

Os primeiros a sair, ao ver o carro parado à porta - viatura, segundo os policiais, carrão, segundo os presos - hesitam e usam os últimos instantes de segurança que o cinema lhes proporciona. Vão ao bebedouro de onde há anos não jorra uma gota d’água, olham os cartazes, examinam os cantos menos escuros. E depois, claramente aflitos, decidem enfrentar o pior a saída “Seus documentos” - dizem os agentes da lei, um ar cansado, sem sequer exibir suas próprias identificações (os frequentadores do Cinema Iris sabem reconhecer de longe um policial). E vêm as explicações. Um PM ou bombeiro ouve “deixa pra lá, companheiro”. Um comerciário de uma loja próxima ouve uma frase ríspida, após ter sua carteira profissional (assinada) submetida a longo exame: “Vai para casa. rapaz. Isso não é hora de estar na rua”. E saí do cinema, então o primeiro desocupado. Cercado pelos policiais, ele diz que é trabalhador autônomo, pinta paredes. Mas não pode exibir o cartão do Imposto Sobre Serviços, na verdade, ainda não se inscreveu. Protesta, diz que tem mulher filhos, dá um vago endereço onde podem comprovar que ele trabalha. Mesmo assim é levado para o carro e trancafiado. (...) Um rapaz, cujos gestos funcionam como uma espécie de bandeira - trata-se de um homossexual - informa que é advogado. Exibe a carteirinha da Ordem, que os policiais examinam mais longamente. “Como é possível, um advogado”, diz um deles, fazendo uma alusão direta ao comportamento sexual do rapaz. Este, impávido, enfrenta a sequência de humilhações sem uma só das respostas que certamente aprendeu a dar nos tribunais (CINEMA..., 1978SAINDO do gueto. Opinião. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, abr. 1978. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2016/01/01-LAMPIAO-EDICAO-00-ABRIL-19781.pdf. Acesso em: 12 jun. 2018.
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, p. 9).

A humilhação sofrida por esses homossexuais encontrava espaço no Lampião da Esquina, único espaço disponível para esse tipo de conteúdo na época. Reportagens deste gênero nos demonstram como o mecanismo para a discriminação dos gays podia ganhar contornos outros, como o econômico. A fala do policial citado na matéria faz menção clara a sexualidade dos usuários do cinema, porém, para que fossem presos, um crime se fazia necessário e a pecha de desocupado, ao mesmo tempo que servia como elemento para prisão de homossexuais, reforçava a afirmação da lógica capitalista.

Figura 2
Capa nº zero do Lampião da Esquina

As denúncias não se limitavam ao território nacional. Nas informações publicadas sobre outros países da América Latina, os abusos e o descaso das autoridades eram os mais frequentes. Assim como no Brasil, muitos países latino-americanos tinham regimes autoritários que traziam, consequentemente, mais violência à comunidade homossexual. Na tradução de José Silvério Trevisan do artigo de Carlos Manuel “Chile: denúncias da matança”, publicado originalmente na revista norte-americana Vector, em 1973, o preconceito e a crueldade da Ditadura Militar Chilena, comandada por Pinochet contra os homossexuais, é trazida ao público brasileiro:

Por telefone, um amigo me perguntou se eu sabia o que os milicos andavam fazendo com as bichas. Respondi que não sabia. Ai meu amigo me contou: “Eles estão afim de botar a bicharada toda em campo de concentração. Me disseram que outro dia três bichas pegaram uns soldados e foram todos para um bar conversar. Os soldados deixaram endereços e foram embora: o de sempre, claro. Quando as bichas saíram do bar, toparam com um pelotão lá fora. Os três soldados apontaram para as bichas. que foram agarradas e levadas embora. Até hoje não se tem notícia delas. Portanto, vê se toma cuidado”

(MANUEL, 1978MANUEL, C. Chile: denúncias da matança. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, dez. 1978. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/11-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-07-DEZEMBRO-1978.pdf. Acesso em: 14 jun. 2018.
http://www.grupodignidade.org.br/wp-cont...
, p. 7).

Essas reportagens foram importantes no Lampião da Esquina tanto para expor à sociedade o que estava ocorrendo com os homossexuais, quanto para mostrar aos próprios gays a necessidade de se unirem para a garantia de seus direitos. Das 38 capas de Lampião, 20 trazem denúncias de abusos na justiça ou atos de violência contra homossexuais, sendo assunto relevante para a publicação. Como demonstram Green e Polito (2004)GREEN, J. N.; POLITO, R. Frescos Trópicos: fontes sobre a homossexualidade masculina no Brasil (1870-1980). São Paulo: José Olympio, 2004., se em um primeiro momento os relatos realizados por médicos e especialistas tinham como objetivo tratar os homossexuais em busca de uma cura, no segundo, os jornais gays que surgiram durante as décadas de 1960 e 1970, antes de Lampião, tratavam mais de assuntos ligados ao comportamento homossexual, portanto, pela primeira vez, homossexuais realizam denúncias contra os crimes que eram realizados contra eles, seguindo sua lógica e versão dos fatos. Os relatos publicados no Lampião da Esquina, assim como as matérias produzidas sobre as denúncias, funcionam como exclamações contra as ações que eram realizadas, desconsiderando o homossexual como um ser imbuído de direitos.

Cobertura política e o posicionamento como articulador do movimento homossexual

A cobertura política feita pelo Lampião da Esquina tem destaque na mancha impressa, muito provavelmente devido ao período no qual foi editado. Nas páginas do Lampião foram abordadas diversas questões desde o político que exibia seu peitoral no Congresso como forma de protesto as críticas à ditadura militar.

O contexto nacional era mais explorado, porém, órgãos internacionais que agiam de maneira preconceituosa, ou ineficaz, também recebiam as atenções e comentários da publicação. Foi o caso do Conselho para a Anistia Internacional. Após o órgão considerar que pessoas adultas não poderiam ser presas por conta de seu comportamento sexual, mesmo tendo um discurso indiretamente favorável aos homossexuais, recebeu as críticas de Lampião. Em seu número zero, o jornal apontava a falta de ação efetiva para a proteção de homossexuais encarcerados, dizendo que a ação da organização, por vezes, poderia piorar a situação dos detidos:

No caso dos homossexuais (detidos, por exemplo, por atentado aos bons costumes, segundo um dos eufemismos da lei brasileira), não se pode esperar para breve um socorro mais concreto da Organização. Ela teme, sobretudo enredar-se na indefinição de costumes e leis sobre a questão, tornar iniciativa que, não contando com um respaldo concreto, venha até a piorar a situação de seus “adotados” (é este o termo empregado pela própria Anistia para se referir às vítimas de encarceramento injusto de que cuida)

(MARQUES, 1978MARQUES. C. Com o tímido apoio da Anistia. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, abr. 1978. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2016/01/01-LAMPIAO-EDICAO-00-ABRIL-19781.pdf. Acesso em: 12 jun. 2018.
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, p. 5).

A ligação com a política internacional não se dava apenas nas críticas às entidades governamentais. As manifestações populares da comunidade gay também eram exploradas pelo periódico, abordando, inclusive, as polêmicas que existiam dentro do próprio movimento. Um dos casos relatados foi a luta dos homossexuais norte-americanos para que o congresso aprovasse leis específicas para a inclusão desse grupo no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo que colocava em destaque a organização do movimento gay nos Estados Unidos e mostrava o poder de mobilização que possuía, questionava o posicionamento dos gays frente aos demais grupos sociais que começavam a se sentir ameaçados por uma hegemonia masculina dentro do próprio movimento destinado aos direitos de todos expressarem livremente sua sexualidade como desejassem (DANTAS, 1979DANTAS. E. A procura de um emprego. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, fev. 1979. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/17-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-13-JUNHO-1979.pdf. Acesso em: 13 jun. 2018.
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).

Ainda tratando do destaque internacional, o assassinato de Harvey Milk, primeiro político assumidamente homossexual a ser eleito nos Estados Unidos, foi publicado com grande destaque no periódico, no espaço onde normalmente eram colocados os editoriais. Em artigo escrito por José Silvério Trevisan, foram abordados os tópicos que motivaram o assassinato e suas consequências políticas:

O vereador Dan White, de San Francisco, renunciou à sua cadeira na Câmara, em protesto contra os baixos salários. Algumas semanas depois resolveu voltar atrás e retomar seu cargo. Mas tanto a Justiça quanto os eleitores se opuseram a isso, desaprovando o gesto irresponsável do ex-vereador. Irritado com a confirmação de que já haveria um substituto para sua cadeira, Dan White dirigiu-se ao prédio da Prefeitura e matou primeiro o prefeito, George Moscone e em seguida o colega vereador, Harvey Milk, com vários tiros de revólver. Esse duplo assassinato na Califórnia parece não ter os motivos retumbantes que agradariam à grande imprensa. Chegou-se, por ex., a ligar esse crime com os Anjos da Morte (da seita Templo do Povo) que teriam justiciado o Prefeito como vingança. (...) Na noite do crime 30 mil pessoas caminharam em procissão por San Francisco, carregando velas acesas, enquanto tambores batiam sons fúnebres e Joan Baez se apresentava, cantando suas velhas canções de protesto. Nada disso impedirá que a qualquer momento ocorram outros assassinatos políticos, que já fazem parte do “Jogo democrático” nos Estados Unidos. Para os militantes homossexuais americanos, o resultado dos crimes é politicamente imprevisível

(TREVISAN, 1979TREVISAN, J. S. Morte em São Francisco. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, jan. 1979. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/12-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-08-JANEIRO-1979.pdf. Acesso em: 16 jun. 2018.
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, p. 2).

Na mesma página, o veículo trazia informações sobre um julgamento que ocorria na Inglaterra e podia ser caracterizado, mesmo que indiretamente, favorável à causa homossexual. Um ex-líder do Partido Liberal britânico estava sendo acusado pela morte de um modelo que supostamente seria seu amante.

O ativismo brasileiro também tinha espaço no Lampião da Esquina. Reivindicações, reflexões políticas e congressos realizados pelos líderes do movimento eram publicados, ou comentados, no jornal. A publicação também servia como espaço para o debate de ideias. As matérias destinadas a esse tipo de abordagem ganharam mais repercussão quando o veículo se aproximava de suas últimas edições.

É importante ressaltar que, no início, o movimento homossexual era formado por um pequeno grupo e mantinha um clima intimista em suas reuniões. Muitos eram integrantes do Lampião da Esquina (MACRAE, 1990MACRAE, E. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas: UNICAMP, 1990.). Conforme o passar dos anos, diversas entidades foram criadas, porém, esse grupo de pessoas ganhou forma, passou a se chamar Grupo SOMOS, em referência ao extinto movimento argentino, e foi um grupo central para as discussões gays, se tornando uma grande entidade representativa. Porém, conforme o grupo crescia, os integrantes do movimento começavam a tomar rumos ideológicos distintos, o apartidarismo foi uma delas.

Parte dos integrantes do Grupo SOMOS, aquela da qual integravam boa parte dos integrantes do Lampião da Esquina, defendia que as manifestações homossexuais não deviam ter envolvimentos com os partidos políticos, enquanto outra parcela do grupo acreditava que com as filiações e participação ativa nas agremiações, os homossexuais teriam mais visibilidade e suas reivindicações seriam atendidas. Com o passar do tempo, isso se tornou uma crise dentro do movimento homossexual e pequenas ações de reivindicações políticas, ou auxílio à comunidade homossexual, passaram a ser mais ressaltadas nas últimas edições de Lampião da Esquina (MACRAE, 1990MACRAE, E. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas: UNICAMP, 1990.).

Foi o que aconteceu no número 34 do jornal. Na matéria “Bahia: os ativistas vão à luta”, Lampião exaltou a atitude dos homossexuais baianos de prestarem auxílio aos gays da região e fizeram ligação com uma possível saída para a crise política que o movimento passava:

Existe uma crise no movimento homossexual. Negá-la só serve para adiar por mais tempo a discussão em busca de uma saída. Atribuí-la ao Lampião, como fazem os líderes dos grupos Somos/PI e Aué/Rio, ou é desonestidade, ou burrice. Tentar de alguma maneira superá-la através da retomada de ações práticas que substituam os estéreis debates teóricos merece aplausos. (...) Pois bem, o pessoal do GGB decidiu ver pra crer. E iniciou a “Operação Pelourinho”, uma campanha de assistência médico-social gratuita a homossexuais. O Pelourinho, vocês, sabem, é uma espécie de zona de Salvador. Uma barra pesadíssima, onde prostitutas e xibungos vivem na pior, completamente alheios ao folclore tipo Jorge Amado/Caribé. A campanha, devidamente alardeada - o pessoal do GGB (e eles também merecem aplausos por isso) é o que mais vem botando a boca no trombone, ultimamente - faixas nas ruas e notícias nos jornais, rendeu bons frutos

(SILVA, 1981SILVA, A. Bahia: os ativistas vão à luta. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, mar. 1981. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/38-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-34-MARCO-1981.pdf. Acesso em: 16 jun. 2018.
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, p. 3).

Além dos desentendimentos internos do incipiente movimento homossexual, as divergências com os partidos políticos e os movimentos de esquerda eram tão discrepantes que, em uma edição do jornal, a equipe do Lampião da Esquina foi às portas das fábricas do ABC paulista imbuídos a descobrir se haviam homossexuais trabalhando e participando das manifestações políticas em prol da redemocratização do país e na melhoria das condições de trabalho dos metalúrgicos.

Nas entrevistas, muitos operários negaram, ou foram reticentes, com relação aos homossexuais no movimento dos trabalhadores. Uma das capas da publicação, a edição nº 14, de julho de 1979, traz uma entrevista com Luiz Inácio da Silva, o Lula, à época principal liderança política do movimento operário. Na matéria “Alô, Alô Classe Operária: e o paraíso nada?”ALÔ, alô, classe operária: e o paraíso, nada?. Reportagem. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro. jul. 1979. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/18-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-14-JULHO-1979.pdf. Acesso em: 17 jun. 2018.
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, a situação dos operários homossexuais é retratada por meio do relato dos próprios operários e mostra o preconceito que existia na época, mesmo dentro dos movimentos sociais dispostos a lutar pela redemocratização do país:

Figura 3
Capa do Lampião com o, então, líder sindicalista Luís Inácio da Silva, o Lula

“Olha, lá na minha seção tem uma moça meio assim né, ela usa umas roupas meio de homem, não se pinta nem nada. Uma vez ela vem com uns papos meio estranhos para cima de mim, mas não dei muita conversa, né? Fora isso, ela é uma pessoa legal, né, até o chefe a seção tem respeito por ela. Dizem que ela briga muito bem” (Marinete de Moraes, montadora). (...) “– Fresco? Olha, esse negócio de fresco é lá em São Paulo. Aqui eu nunca vi não. E, talvez tenha. mas não põe o nariz pra fora da porta, não” (Jorge Luís da Silva, ferramenteiro). (...) “O quê, garota? Viado? Olha aqui, viado, comigo, é na porrada! Não, nunca me fizeram nada, mas é bom eles nem tentar!” (Luís Duarte da Rocha, operário).

(ALÔ..., 1979, p. 9)

A discussão dos ideais da esquerda e sua indiferença para com os direitos homossexuais foram abordadas em outra capa do Lampião. A edição número 33 foi publicada com uma caricatura em destaque na capa em que Fidel Castro aparecia vestido de Carmem Miranda com a frase “Yo no creo em maricones. Pero que los hay, los hay”.

Na matéria “Cuba: dez anos de caça às bichas”, Lampião da Esquina trouxe uma série de informações relacionadas à forma como o país caribenho tratava os homossexuais. Essa matéria serviu para intensificar a batalha do Lampião com os movimentos de esquerda. As atitudes do governo cubano foram consideradas uma “caça às bruxas”, criado uma perseguição da máquina pública aos gays de Cuba:

Em certos setores vagamente progressistas, é muito comum considerar que toda crítica aos regimes denominados socialistas serviria apenas para favorecer a reação e o obscurantismo. Segundo esse raciocínio, é preferível calar. Foi assim que, durante uma geração inteira, criou-se o manto de silêncio em torno dos crimes cometidos por Stalin. Mas é interessante notar como esse mesmo manto de silêncio se torna ainda mais espesso quando a repressão desaba sobre grupos sociais tradicionalmente condenados ao escárnio. Assim, não existe justificativa ideológica possível para evitar as denúncias a respeito da perseguição que os homossexuais sofrem em Cuba, onde o próprio Fidel Castro deflagrou uma campanha antiguei por volta de 1966. Num discurso pronunciado no aniversário da morte do herói da Revolução Cubana Echeverría, Fidel lançou um ataque aos homossexuais, comparando-os aos delinqüentes e proxenetas. Logo a seguir, a burocracia estatal armou uma verdadeira “caça às bruxas”, em diversos setores, sobretudo nas universidades, onde [há] professores e estudantes reconhecidamente homossexuais através de supostos tribunais populares, na verdade dirigidos por funcionários do Governo. A fúria anti-homossexual chegou ao ponto da organizar verdadeiros autos-de-fé medievais. Tal é o caso do conhecido escritor Virgílio Piñera que, junto com outros homossexuais foi levado pelas ruas de Havana com um P nas costa – P de “pássaro” outro denominativo para homossexual, na gíria cubana... Em suas Memórias, Simone de Beauyoir faz referências a esse caso sem mencionar o nome de Piñera

(CUBA..., 1981CUBA: dez anos de caça às bichas. Reportagem. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, fev. 1981. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/37-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-33-FEVEREIRO-1981.pdf. Acesso em: 17 jun. 2018.
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, p. 10).

O jornal servia como articulista político do movimento homossexual brasileiro, além de debater os problemas do movimento gay, mostrava a importância da militância a seus leitores. Em uma de suas matérias, o jornal explicou como os principais grupos (SOMOS, Auê e Bando de Cá) funcionavam e mostravam alguns de seus pontos fracos, muitos que compareciam às reuniões dos movimentos não estavam interessados em militar. Nesta matéria, “Afinal, o que é um grupo homossexual organizado?”, existe box de informações com o endereço dos diversos grupos homossexuais que existiam no país (NUNES, 1981NUNES. A. Afinal, o que é um grupo homossexual organizado?. Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, jan. 1981. Disponível em: http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2015/11/36-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-32-JANEIRO-1981.pdf. Acesso em: 18 jun. 2018.
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). Apesar de suas posições não serem unanimidade dentro dos diversos espectros que surgiam junto às mais variadas demandas sexuais, Lampião foi um importante ponto de encontro para o debate dessas opiniões, sendo, muitas vezes, uma referência, mesmo que para a construção de pensamentos contrários ao divulgados na publicação.

Portanto, podemos afirmar que a cobertura política do Lampião da Esquina foi intensa e sempre buscava trazer informações para o posicionamento dos homossexuais frente a sociedade. Foi muito utilizada como tática de afirmação e como forma de dar visibilidade aos direitos que eram negados ao grupo. É importante lembrarmos que o jornal servia como órgão de integração entre leitores espalhados em todo o país e, portanto, se converteu em um polo de distribuição dos ideais homossexuais do período.

As relações divergentes com outros grupos ligados à causa homossexual e os problemas enfrentados com os movimentos políticos já estabelecidos trouxeram alguns desgastes à publicação, que passou por reformulações durante os anos de 1980 e 1981. O jornal deixou de ser editado entre São Paulo e Rio de Janeiro, adotando apenas a última cidade como sua sede.

Da mesma forma que os protestos serviam para reivindicar os direitos homossexuais, serviram para unir e articular o movimento gay no país, divulgando algumas diretrizes e pensamentos que estavam diretamente ligados aos ideais do veículo e consecutivamente a reivindicação homossexual.

Considerações

Lampião da Esquina representou um marco na imprensa brasileira. Primeiro, por sua produção e distribuição – foi o primeiro veículo escrito por e para gays que teve uma produção profissional, além de atingir o território nacional, apesar dos parcos meios disponíveis à época, tendo como referência os veículos ligados a imprensa alternativa. Segundo, por sua representatividade dentro do próprio movimento gay – por mais que diversas perspectivas estivessem sendo colocadas à mesa, o periódico funcionou como uma espécie de catalizador dessas diferentes demandas, seja por meio de suas matérias, ou das cartas de reclamação que eram publicadas em suas edições.

Podemos afirmar que o jornal combateu as principais organizações contrárias aos gays, ou aquelas atitudes que contribuíam para a criação de uma imagem negativa dos homossexuais, ao mesmo tempo que publicava os discursos dos grupos minoritários que começavam a se organizar no período da Abertura Política. Vale ressaltar que a temática do preconceito foi abordada nas diversas frentes que o periódico se dispunha tratar. Não apenas gays, mas lésbicas, feministas, transsexuais, travestis, negros, indígenas, dentre outros grupos, fizeram parte dos questionamentos e da busca por liberdade que anciavam os integrantes da publicação. Lampião da Esquina utilizava como principal discurso a crítica aos costumes conservadores, fazendo com que diversos setores fossem atingidos por conta dessa atitude, independente de seu espectro político.

Os excertos analisados demonstraram que, por meio de suas pautas e conteúdos, o Lampião da Esquina abordou diversos temas que perpassavam a vida dos gays neste período, tendo como diferencial a abordagem e os enfoques, que buscavam repassar aos leitores a perspectiva do gay como um cidadão repleto de direitos, ao contrário das visões estereotipadas presentes na imprensa da época e destacada em nossos tópicos de análise.

É possível estabelecermos paralelos entre os eixos destacados em nosso estudo. Tanto o posicionamento frente aos demais veículos e jornalistas, quanto sua cobertura política e a divulgação de denúncias contra a violência homossexual dentro de um contexto de repressão política e social, podem ser vistos como reflexos de uma estafa pela qual os sujeitos passavam à época. Apesar do inicío da pujança dos movimentos a favor da democracia, ficam visíveis os descontentamentos desses indivíduos com relação a sua representação no cenário nacional. Busca-se, então, um caminho de independência, no qual o discurso prioritário é aquele ligado a causa e aos direitos gays. Independentemente de onde parta o preconceito, ele acaba sendo questionado pela publicação, demonstrando a busca de um posicionamento autônomo frente aos demais grupos sociais.

Os apontamentos que trazemos neste estudo mostram que, para além de relatarem uma situação de precariedade, os integrantes do Lampião se mostravam ativos na construção de uma nova realidade e tinham como norte o respeito aos direitos humanos, especialmente aqueles ligados às questões da liberdade e da sexualidade, valores vistos como fundamentais para o desfrute de uma vida menos cativa e, portanto, mais liberta. Mais aflorada e menos contida e delimitada pelos padrões heteronormativos, estampando em suas páginas o sentido daquilo que podemos denominar como “Libertação gay brasileira”, o início da luta pelos direitos LGBTI+ brasileiros que começavam a fulgurar naquele período.

  • 1
    Harvey Milk, após ter contato com o movimento da contracultura, se assumiu homossexual, participou de três eleições e, em 1977, foi eleito como supervisor da cidade de Castro, em São Francisco
  • 2
    Os jornais “nanicos” foram assim conhecidos por conta de seu tamanho, normalmente no formato de tablóides; e por conta de sua circulação, que era menor que a dos grandes jornais.
  • 3
    Para mais informações sobre os processos de produção, circulação e distribuição do jornal Lampião da Esquina, consultar artigo “Imprensa homossexual, surge o Lampião da Esquina” (FERREIRA, 2010FERREIRA, C. Imprensa homossexual: surge o Lampião da Esquina. Revista Alterjor, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 1-13, jan./jun. 2010. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/alterjor/article/view/88195. Acesso em: 20 jun. 2018.
    http://www.revistas.usp.br/alterjor/arti...
    ) Disponível em: http://www.revistas.usp.br/alterjor/article/viewFile/88195/91073. Acesso em: 10 abr. 2018.
  • 4
    Optamos pela expressão “Libertação Gay”, ao invés de “Liberação Gay”, por acreditar que a primeira guarda as contradições da luta pelos direitos LGBTI+ durante as décadas de 1960 a 1980, no Brasil. O sentido de liberação, para nós, está mais ligado a uma permissividade do outro, contrastando, assim, com a ideia de uma conquista social.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2018
  • Aceito
    22 Maio 2019
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